Teatro/CRÍTICA
"É a mãe"
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Delicioso 'sofrimento' no Leblon
Lionel Fischer
Dizem que ser mãe é padecer no paraíso. Ainda que muito utilizada e aceita, e desde tempos imemoriais, tal assertiva não deixa de exibir uma curiosa contradição, posto que "padecer" implica em sofrimento e nos parece que o paraíso não seria o local apropriado para sentimentos desta natureza. Seja como for, e padecimentos e paraísos à parte, o presente texto nos coloca diante de muitas mães, inclusive a de todos nós - a Virgem Maria -, todas elas invariavelmente enlouquecidas com as diversificadas atitudes de seus filhos e filhas, que não compreendem ou simplesmente fazem questão de não compreender.
Em cartaz no Teatro do Leblon, "É a mãe" leva a assinatura de Ana Velloso e Vera Novello, que contaram com a colaboração de Ana Paula Botelho na elaboração final do texto. Ana Velloso responde pela direção, estando o elenco formado por Ana Velloso, Ana Paula Botelho, Stella Maria Rodrigues e Vera Novello, que encarnam 20 personagens.
Ao contrário de muitos autores contemporâneos que, possuidores de extrema modéstia, acreditam piamente que a dramaturgia universal pode ser dividida em antes e depois de suas obras, as dramaturgas da presente peça deixam perfeitamente claro que tinham por objetivo apenas divertir a platéia, levando-a a identificar-se com as muitas mães - e filhos, filhas, sogras etc. - que convertem a cena numa espécie de familiar hospício.
Contendo bons personagens, diálogos fluentes e cenas quase sempre muito divertidas, "É a mãe" reúne todas as condições para cumprir bela temporada, pois a reação da platéia na última terça-feira foi a melhor possível, inclusive quando as atrizes abandonam seus personagens e interagem com os espectadores, numa passagem hilariante cujo tema é coleta de sêmem.
Quanto ao espetáculo, Ana Velloso impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto, criando marcas criativas e divertidas. E no tocante ao elenco, as quatro atrizes exibem performances irrepreensíveis, extraindo todo o potencial de cada um dos muitos personagens.
Na equipe técnica, a mesma eficiência se faz presente no trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta simpática empreitada - Ricardo Rente (direção musical e arranjos), Bia Gondomar e Dani Vidal (cenografia e figurinos) e Aurélio de Simoni (iluminação). Cabe ainda destacar a direção de imagem de Anderson Lago e a participação em vídeo de Isio Ghelman - um dos melhores e mais simpáticos atores cariocas.
É A MÃE - Texto de Ana Velloso e Vera Novello - com a colaboração de Ana Paula Botelho. Direção de Ana Velloso. Com Ana Velloso, Ana Paula Botelho, Stella Maria Rodrigues e Vera Novello. Teatro do Leblon (Sala Fernanda Montenegro). Terças e quartas, 21h.
quarta-feira, 27 de maio de 2009
terça-feira, 26 de maio de 2009
Qual é o lugar do teatro?
Ricardo Kosovski
De que modo podemos equacionar os relacionamentos do teatro com determinados ramos sociais? Vivemos a afirmação de uma cultura preponderantemente ligada à imagem; como situar o teatro, que tem em um de seus centros constitutivos a palavra, forma comunicacional em desprestígio? Qual o espaço de representatividade cultural e artística que este meio ocupa na contemporaneidade? Será que o advento de formas comunicacionais tecnologicamente mais evoluídas contribuiu para o enfraquecimento do teatro como forma de expressão? Que tipo de cumplicidade serviria à arte dramática em termos de uma parceria com a televisão e o cinema? Como as artes cênicas sobreviverão aos desafios das novas linguagens que surgem? O que o teatro pode realizar mais eficazmente que os outros meios de comunicação?
Partimos de indagações para questionar o instante presente e propor não especificamente alternativas, mas sim a possibilidade de refletir um pouco acerca daquilo que designamos como teatro.
Ruptura
Aqueles que falam continuamente em crise do teatro esquecem-se que crise é ponto de ruptura de uma falsa estabilidade. Crise pressupõe que alguma modificação vai operar-se no status quo. Crise é, portanto, fonte de movimento. O que se passou com o teatro? Baixou o público? Este diminuiu por diversos motivos, que vão desde a criação de novos hábitos até o desenvolvimento do senso crítico para selecionar espetáculos que correspondam a seus anseios.
Não cremos que o teatro esteja perdendo terreno em relação às outras artes. O público não abanbdona o teatro por preferir outras formas de espetáculo. A tela gigantesca do cinema ou a pequena tela da TV não substituem a sugestão da cena. Mas o público exige do teatro muito mais do que antes, na medida em que seu gosto transformou-se justamente através das experiências do cinema e da televisão. Que o profissional de teatro pense acima de tudo no espectador, pois é à platéia que ele serve. Captar as demandas do presente, eis a questão.
É preciso reconhecer a situação existente e reivindicar para o teatro aquilo que outros veículos de comunicação não podem oferecer. O estrito realismo contemporâneo, por exemplo, é mais bem servido pelo cinema; mas nem este nem a televisão são capazes de realizar, tão satisfatoriamente quanto o palco, uma farsa de estilo; ou a economia dramática que o teatro, por sua própria convenção, pode criar, abrindo mão da ambientação fotográfica. Parece-nos que a expressão daquilo que é essencialmente teatral insere as artes cênicas em um contexto de posturas críticas relevantes para a sociedade.
Vigia
Hoje em dia, a televisão instalou-se no centro de nossa intimidade como um olho que vigia, informa, promete. Este olho atrai com seu poder hipnótico, e ao mesmo tempo cria a ilusão de respeitar a liberdade e a integridade. Basta um movimento suave, uma leve pressão no comutador e o olho fecha sua pálpebra. De que regiões emerge esse retângulo fosforescente tão poderoso que nos fascina? Será a televisão apenas um aparelho eletrodoméstico indispensável ao conforto de civilizados, dócil ao comando, apto a povoar nosso universo de imagens, aventuras, fantasias e notícias? Sim; também. Mas sem dúvida a televisão ocupa um espaço criado em parte por ela mesma, pela necessidade de consagrar todo um sistema sociocultural. A televisão modificou hábitos, criando uma nova sociologia do gosto. E é a partir desta que o teatro deve repensar-se enquanto meio de comunicação e arte, buscando encontrar sua especificidade e, conseqüentemente, seu lugar.
A nosso ver, com toda a imparcialidade que cabe a uma reflexão desta ordem, o teatro é um veículo sofisticadíssimo, exatamente por sua funcionalidade, simplicidade e utilidade como instrumento social, político e psicológico. O renomado encenador inglês Peter Brook, em seu livro "O ponto de mudança", afirma que Deus criou o teatro exatamente no instante em que tudo estava perfeito na Terra, mas algo faltava: "A possibilidade da realidade imitar-se a si mesma".
Espelho
Esse mecanismo é extraordinariamente requintado, quando pensamos no significado das coisas e em tudo aquilo que o homem-criador faz para aperfeiçoar sua existência, com o fim de obter maior consciência e bem-estar. É possível compreender esta arte milenar como algo que se inscreve no rol das criações mais indispensáveis à humanidade: a recriação, a celebração do instante, o espelho. É a possibilidade sofisticada de produção de pensamento de uma forma rigorosamente particular.
Poder-se-ia supor que qualquer outra expressão artística, ou até mesmo outros meios de registro de imagem (televisão, vídeo, cinema, fotografia, memória), poderiam cumprir essa função de ressignificação da natureza com a mesma potência que o teatro empreende. Engano dos que assim pensam: sua força é única no âmbito de transmitir ao ser humano aquilo que lhe é primordial, e o maior prazer que pode conferir é o de fazer pensar e sentir.
O teatro pode contribuir para a modernização do aparelho conceitual do homem e para a amplificação de sua capacidade de raciocínio; desta forma, instrumentaliza-o mais eficazmente para que depure a própria tecnologia, que se aperfeiçoa a cada dia.
Dialética
Comecemos pela faculdade de raciocínio dialético, sem a qual não é possível compreender o mundo em seus processos e transformações. As mudanças que se operam decorrem das contradições que lhe são inerentes. É possível mostrá-las no teatro? Isso não é só possível, como é necessário. O conflito é a essencialidade do teatro, como o é também da dialética. Mostrar a luta dos contrários e sua tendência à unidade, de onde decorrem as contradições e nascem as oposições, eis uma tarefa apaixonante para o teatro contemporâneo, que assim tem a oportunidade de tornar-se uma 'Escola da Dialética'.
Outra particularidade é a possibilidade de expressar o imaginário dentro deste campo dialético. Também pode tornar-se 'Escola de Imaginação', capaz de estimular a sensibilidade estética e social, de recuar ou avançar os limites da compreensão e de associação de idéias.
Imaginação
Pensando nas possibilidades estilísticas, enquanto que os teatros naturalista e ilusionista encontram fortes concorrentes no cinema e na televisão, sendo inclusive absorvidos por eles, e especulando-se sobre o teatro do futuro, poder-se-ia pensar numa cena aberta à total liberdade de imaginação, aglutinando a relação palco/platéia. O teatro de amanhã deverá responder às questões essenciais de seu tempo. Bastará a sabedoria acoplada à paixão. Quem sabe, um teatro filosófico que nos sugira formas de viver e pensar com o intuito de compreendermos o mundo, encontrando nosso lugar? A arte do efêmero que, tal qual a vida, nasce, morre e ressurge a cada instante. O ciclo da representação teatral se completa em sua última instância no espectador concreto, sem o qual o ato não acontece; esta é uma característica específica que diferencia este veículo/arte dos demais.
Impasse
O impasse atual do teatro talvez reflita o próprio impasse do homem diante da existência. Pode-se dizer que toda época tem o teatro que merece; portanto, se as dificuldades inspiram uma constante transposição de obstáculos, de forma alguma elas destroem nossa confiança no futuro. Não se pode perder determinadas certezas, a não ser que se perca definitivamente a crença no pensamento e na sociedade. O destino do teatro está ligado ao destino da civilização.
Finalizando, gostaríamos de reiterar que o teatro, assim como o homem, é algo condenado à imperfeição. Giovanni Pico della Mirandola, filósofo italiano morto dem 17 de novembro de 1494, afirmava que precisamente por ser "imperfeito", o ser humano tem uma grande vantagem sobre os anjos, que são "perfeitos": poder se aperfeiçoar sempre, infinitamente...
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 150/1, edição já esgotada.
Ricardo Kosovski
De que modo podemos equacionar os relacionamentos do teatro com determinados ramos sociais? Vivemos a afirmação de uma cultura preponderantemente ligada à imagem; como situar o teatro, que tem em um de seus centros constitutivos a palavra, forma comunicacional em desprestígio? Qual o espaço de representatividade cultural e artística que este meio ocupa na contemporaneidade? Será que o advento de formas comunicacionais tecnologicamente mais evoluídas contribuiu para o enfraquecimento do teatro como forma de expressão? Que tipo de cumplicidade serviria à arte dramática em termos de uma parceria com a televisão e o cinema? Como as artes cênicas sobreviverão aos desafios das novas linguagens que surgem? O que o teatro pode realizar mais eficazmente que os outros meios de comunicação?
Partimos de indagações para questionar o instante presente e propor não especificamente alternativas, mas sim a possibilidade de refletir um pouco acerca daquilo que designamos como teatro.
Ruptura
Aqueles que falam continuamente em crise do teatro esquecem-se que crise é ponto de ruptura de uma falsa estabilidade. Crise pressupõe que alguma modificação vai operar-se no status quo. Crise é, portanto, fonte de movimento. O que se passou com o teatro? Baixou o público? Este diminuiu por diversos motivos, que vão desde a criação de novos hábitos até o desenvolvimento do senso crítico para selecionar espetáculos que correspondam a seus anseios.
Não cremos que o teatro esteja perdendo terreno em relação às outras artes. O público não abanbdona o teatro por preferir outras formas de espetáculo. A tela gigantesca do cinema ou a pequena tela da TV não substituem a sugestão da cena. Mas o público exige do teatro muito mais do que antes, na medida em que seu gosto transformou-se justamente através das experiências do cinema e da televisão. Que o profissional de teatro pense acima de tudo no espectador, pois é à platéia que ele serve. Captar as demandas do presente, eis a questão.
É preciso reconhecer a situação existente e reivindicar para o teatro aquilo que outros veículos de comunicação não podem oferecer. O estrito realismo contemporâneo, por exemplo, é mais bem servido pelo cinema; mas nem este nem a televisão são capazes de realizar, tão satisfatoriamente quanto o palco, uma farsa de estilo; ou a economia dramática que o teatro, por sua própria convenção, pode criar, abrindo mão da ambientação fotográfica. Parece-nos que a expressão daquilo que é essencialmente teatral insere as artes cênicas em um contexto de posturas críticas relevantes para a sociedade.
Vigia
Hoje em dia, a televisão instalou-se no centro de nossa intimidade como um olho que vigia, informa, promete. Este olho atrai com seu poder hipnótico, e ao mesmo tempo cria a ilusão de respeitar a liberdade e a integridade. Basta um movimento suave, uma leve pressão no comutador e o olho fecha sua pálpebra. De que regiões emerge esse retângulo fosforescente tão poderoso que nos fascina? Será a televisão apenas um aparelho eletrodoméstico indispensável ao conforto de civilizados, dócil ao comando, apto a povoar nosso universo de imagens, aventuras, fantasias e notícias? Sim; também. Mas sem dúvida a televisão ocupa um espaço criado em parte por ela mesma, pela necessidade de consagrar todo um sistema sociocultural. A televisão modificou hábitos, criando uma nova sociologia do gosto. E é a partir desta que o teatro deve repensar-se enquanto meio de comunicação e arte, buscando encontrar sua especificidade e, conseqüentemente, seu lugar.
A nosso ver, com toda a imparcialidade que cabe a uma reflexão desta ordem, o teatro é um veículo sofisticadíssimo, exatamente por sua funcionalidade, simplicidade e utilidade como instrumento social, político e psicológico. O renomado encenador inglês Peter Brook, em seu livro "O ponto de mudança", afirma que Deus criou o teatro exatamente no instante em que tudo estava perfeito na Terra, mas algo faltava: "A possibilidade da realidade imitar-se a si mesma".
Espelho
Esse mecanismo é extraordinariamente requintado, quando pensamos no significado das coisas e em tudo aquilo que o homem-criador faz para aperfeiçoar sua existência, com o fim de obter maior consciência e bem-estar. É possível compreender esta arte milenar como algo que se inscreve no rol das criações mais indispensáveis à humanidade: a recriação, a celebração do instante, o espelho. É a possibilidade sofisticada de produção de pensamento de uma forma rigorosamente particular.
Poder-se-ia supor que qualquer outra expressão artística, ou até mesmo outros meios de registro de imagem (televisão, vídeo, cinema, fotografia, memória), poderiam cumprir essa função de ressignificação da natureza com a mesma potência que o teatro empreende. Engano dos que assim pensam: sua força é única no âmbito de transmitir ao ser humano aquilo que lhe é primordial, e o maior prazer que pode conferir é o de fazer pensar e sentir.
O teatro pode contribuir para a modernização do aparelho conceitual do homem e para a amplificação de sua capacidade de raciocínio; desta forma, instrumentaliza-o mais eficazmente para que depure a própria tecnologia, que se aperfeiçoa a cada dia.
Dialética
Comecemos pela faculdade de raciocínio dialético, sem a qual não é possível compreender o mundo em seus processos e transformações. As mudanças que se operam decorrem das contradições que lhe são inerentes. É possível mostrá-las no teatro? Isso não é só possível, como é necessário. O conflito é a essencialidade do teatro, como o é também da dialética. Mostrar a luta dos contrários e sua tendência à unidade, de onde decorrem as contradições e nascem as oposições, eis uma tarefa apaixonante para o teatro contemporâneo, que assim tem a oportunidade de tornar-se uma 'Escola da Dialética'.
Outra particularidade é a possibilidade de expressar o imaginário dentro deste campo dialético. Também pode tornar-se 'Escola de Imaginação', capaz de estimular a sensibilidade estética e social, de recuar ou avançar os limites da compreensão e de associação de idéias.
Imaginação
Pensando nas possibilidades estilísticas, enquanto que os teatros naturalista e ilusionista encontram fortes concorrentes no cinema e na televisão, sendo inclusive absorvidos por eles, e especulando-se sobre o teatro do futuro, poder-se-ia pensar numa cena aberta à total liberdade de imaginação, aglutinando a relação palco/platéia. O teatro de amanhã deverá responder às questões essenciais de seu tempo. Bastará a sabedoria acoplada à paixão. Quem sabe, um teatro filosófico que nos sugira formas de viver e pensar com o intuito de compreendermos o mundo, encontrando nosso lugar? A arte do efêmero que, tal qual a vida, nasce, morre e ressurge a cada instante. O ciclo da representação teatral se completa em sua última instância no espectador concreto, sem o qual o ato não acontece; esta é uma característica específica que diferencia este veículo/arte dos demais.
Impasse
O impasse atual do teatro talvez reflita o próprio impasse do homem diante da existência. Pode-se dizer que toda época tem o teatro que merece; portanto, se as dificuldades inspiram uma constante transposição de obstáculos, de forma alguma elas destroem nossa confiança no futuro. Não se pode perder determinadas certezas, a não ser que se perca definitivamente a crença no pensamento e na sociedade. O destino do teatro está ligado ao destino da civilização.
Finalizando, gostaríamos de reiterar que o teatro, assim como o homem, é algo condenado à imperfeição. Giovanni Pico della Mirandola, filósofo italiano morto dem 17 de novembro de 1494, afirmava que precisamente por ser "imperfeito", o ser humano tem uma grande vantagem sobre os anjos, que são "perfeitos": poder se aperfeiçoar sempre, infinitamente...
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 150/1, edição já esgotada.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
O pouco que conheço de moral aprendi
nos campos de futebol e no palco
Albert Camus
(Dramaturgo, filósofo e novelista francês, fundador do Teatro do Trabalho, mais tarde rebatizado de Teatro de Grupo. Suas principais obras teatrais são: "O mal entendido" (1944), "Calígula" (1945), "Estado de sítio" (1948 - adaptação de sua novela "A peste") e "Os justos " (1949). O absurdo da existência humana foi o tema central de sua obra. Camus faleceu em 1960).
* * *
Por que trabalho em teatro? Muitas vezes eu me fiz essa pergunta. A resposta poderá soar desanimadoramente banal: simplesmente porque o teatro é um dos lugares do mundo em que me sinto feliz. Mas essa reflexão não é tão banal assim. Hoje em dia, a felicidade é um assunto delicado. As pessoas têm mesmo a tendência de ocultar de si próprias a sua busca de felicidade, vendo-a como uma espécie de róseo balé, de que devem excusar-se. Às vezes leio que homens de ação, que deram tudo a uma atividade pública, encontram refúgio ou abrigo em sua vida privada. Há um certo menosprezo, não é - em tal noção? Menosprezo e - um não existe sem o outro - contrasenso. Tenho observado muitos casos em que a situação é o reverso, pessoas que encontraram refúgio na vida pública a fim de fugir de suas vidas particulares.
Pecado
Viver feliz hoje é como viver em pecado. Nunca se deve admití-lo. Não diga inocentemente, sem pensar mal, "sou feliz". Imediatamente lerá a condenação em todos os lábios à sua volta: "Oh! Você é feliz, meu filho! E o que está fazendo - diga-me - pelos órfãos de tal lugar, pelos leprosos?...Não se pode dizer que eles sejam felizes!" Que fazer? Então, imediatamente, ficamos sombrios.
Tentativa
Ainda estou dolorosamente tentado a crer que, para sermos realmente úteis aos que estão na miséria, temos que ser fortes e felizes. A pessoa que considera a vida como um fardo e que afunda sob seu próprio peso, não pode ajudar ninguém. Mas aquele que controla seus sentimentos e sua vida, pode dar efetivamente. Conheci um homem que não gostava da mulher, e vivia desesperado com isso. Um dia ele resolveu devotar-lhe a vida (uma supercompensação, em outras palavras). A partir daí, a vida dessa mulher, que até então fora suportável, tornou-se um inferno absoluto, com o ostensivo auto-sacrifício do marido. Assim é hoje em dia: as pessoas se dedicam mais àqueles seres humanos de que menos gostam.
Doença
Não admira, em tais circunstâncias, que o mundo pareça doente e que seja difícil dar-lhe um atestado de felicidade, principalmente se se trata de um escritor. Todavia atesto meu respeito pela felicidade e pelas pessoas felizes; e nem que seja por higiene, procuro estar o mais tempo possível na esfera da minha felicidade, que é o teatro. Diferentemente de outras alegrias mais transitórias, a minha, no teatro, persiste por mais de 20 anos, e não sei o que faria sem ele.
Defunto
Em 1936, reorganizei um grupo defunto, na Algéria, e montamos peças de Malraux a Dostoiewski, até Ésquilo. Vinte e três anos mais tarde, no Teatro Antoine, realizei uma adaptação de "Os possessos", de Dostoiewski. Eu mesmo estava admirado de tão rara fidelidade - ou de tão longa intoxicação. Indagava os motivos dessa obstinada virtude, ou vício. E verifiquei que era de dois tipos: um relativo ao meu próprio temperamento e outro relativo à própria natureza do teatro.
Razão
A primeira e menos maravilhosa razão de que me lembro, era que através do teatro eu escapava daquilo que me aborrecia em minha carreira de escritor. Primeiro, de tudo aquilo que chamo de frívolo comércio, quer seu nome seja Fernandel, Brigitte Bardot, Ali Khan ou, mais modestamente, Paul Valéry. De qualquer maneira, vocês têm seus nomes nos jornais. E assim que você tem o nome nos jornais, tudo começa. O correio o caça; os convites chovem e presume-se que devam ter uma resposta. Grande parte de seu tempo é gasto em recusá-los. Metade de sua energia humana é gasta, assim, no dizer não, de todas as maneiras. Não é estúpido? Claro que é. Mas esse é o modo de se punir a nossa vaidade pela própria vaidade.
Medo
Entrementes, tenho notado que todo mundo considera o trabalho teatral com medo, mesmo sendo ele uma profissão vã, e tudo que você tem a fazer é anunciar que está ensaiando. Forma-se, imediatamente, um deserto em torno de você. E quando você tem a idéia astuciosa, como eu faço, de ensaiar o dia todo e parte da noite, bem, francamente, é o paraíso. A esse respeito, o teatro é um mosteiro. O tumulto do mundo morre à sua porta; dentro de seu confinamento sagrado, por dois meses dedicada a uma única meditação, essa comunidade de monges trabalhadores, isolada do mundo, prepara o rito que será celebrado uma noite pela primeira vez.
Surpresa
A palavra monge surpreende? Uma imprensa sofisticada que dorme tarde e se divorcia muitas vezes? Vou decepcioná-los, sem dúvida, se lhes disser que teatro é mais banal que isso, ou mesmo, que as pessoas nele se divorciam menos que aqueles que trabalham em têxteis, em açúcar, ou em jornalismo. É que, quando há um caso de divórcio entre gente de teatro, outras pessoas falam, naturalmente, mais dele. Isso é compreensível. Representar é uma profissão em que o corpo conta, não pode ser usado libertinamente, mas sempre se é obrigado a mantê-lo em forma. Ser virtuoso é um caso de necessidade, e é talvez o único caminho para ser virtuoso.
Preferência
De qualquer maneira, prefiro a companhia de gente de teatro, virtuosa ou não, à dos intelectuais, meus irmãos. Como todos sabem, os intelectuais são raramente amáveis, nunca se dão bem juntos. Há outra razão que não posso expor inteiramente. Na companhia de intelectuais sempre me sinto como se algo em mim tivesse que ser pedoado; sempre tenho a impressão que quebrei algumas regras do clã. Esse sentimento dispersa minha espontaneidade e, sem espontaneidade, eu me aborreço. No palco, sou espontâneo. Não penso naquilo que tenho ou não tenho que ser, e as únicas coisas que partilho com meus colaboradores são as experiências e as alegrias de um empreendimento comum. É um estado, acredito, que se chama companheirismo, e tem sido uma das grandes alegrias de minha vida. Eu o perdi no dia em que deixei um jornal que fazíamos em equipe, e encontrei-o noamente assim que voltei ao teatro.
Saúde
Um escritor trabalha em solidão, é julgado solitariamente e, acime de tudo, julga a si mesmo em solidão. Isso não é certo, e não é saudável. Se ele tem uma constituição normal, chega a hora em que precisa ver outros rostos, para sentir o calor do contato humano, que explica mesmo muitos dos desenvolvimentos de um escritor: o casamento, a academia, os políticos. De qualquer modo esses expedientes não arranjam nada. Assim que perde a solidão, logo começa a sentir sua falta. Ele gostaria de ter, ao mesmo tempo, não só os chinelos, como um grande amor; gostaria de ser um acadêmico, sem deixar de ser um inconformista. Acreditem-me, a carreira de um artista hoje em dia não é uma sinecura.
Companhia
O teatro oferece a companhia de que preciso, junto com a pesada servidão e as limitações de que todos os homens e todos os espíritos necessitam. Na solidão, o artista reina - mas sobre o vácuo. No teatro ele não pode reinar. O que deseja depende dos outros. O diretor precisa de ator, e o ator precisa de diretor. Essa mútua dependência, quando reconhecida com humildade e bom humor apropriado a ela, forma a solidariedade da profissão e dá um corpo a esse companheirismo diário. Nele, estamos todos ligados um ao outro sem perda de liberdade de ninguém (ou quase isso). Não é uma boa receita para a sociedade do futuro?
Engano
Mas sejamos mais diretos: os atores enganam-se tanto quanto outras espécies humanas, inclusive seu diretor, e às vezes mais, como quando você se permitiu amá-los. Mas as disilusões (se o são) acontecem muitas vezes depois que passou o período de trabalho, quando retorna à sua natureza solitária. Nessa profissão, em que as pessoas não são fortes em lógica, diz-se com igual convicção que o fracasso dissolve a companhia, e assim o sucesso. Não é nada disso. O que acaba a companhia é o fim da esperança que os unia durante os ensaios. É a proximidade do objetivo (a estréia) que os manteve unidos numa ligação tão íntima. Uma reunião, um movimento são também sociedade; mas o objetivo que buscam se perde na noite do futuro. No teatro, o fruto do trabalho será colhido, para o melhor ou o pior, numa noite de antemão sabida, numa noite da qual cada dia de trabalho mais se aproxima. Homens e mulheres, individualmente, se tornam um time partilhando uma aventura comum, e tentando um lindo gol que nunca será melhor ou mais belo do que na noite longamente esperada, quando os dados são lançados.
Exaltação
As corporações de construtores e os estúdios coletivos de pintura, durante a Renascença, devem ter sentido essa espécie de exaltação conhecida por aqueles que trabalham num grande espetáculo. Suas realizações ultrapassam o momento da execução; o show, ao contrário, é transitório - e seus participantes o amam mais porque ele morrerá um dia. Somente na minha juventude conheci isso: o mesmo forte sentido de esperança e união que acompanha os dias de treino até o dia da partida. O pouco que conheço de moral, aprendi nos campos de futebol e no palco. Eles foram minha verdadeira universidade.
Fuga
O teatro também me ajuda a fugir da abstração que ameça todo escritor. Nos meus dias de jornalista, preferia compor as páginas a trabalhar nesses quase sermões que são os chamados editoriais; como também em teatro, gosto de ver como o trabalho cria raiz na confusão dos holofotes, das plataformas, lonas e sarrafos. Não sei quem me disse que para ser um bom diretor você tem que "conhecer o peso dos cenários com os braços"; mas esta é uma grande regra em arte. E gosto da profissão que me obriga a considerar simultaneamente a psicologia dos pesonagens, a colocação de uma lâmpada ou de um vaso degerânios, a textura de uma roupa, o peso e o contrapeso de um volume que deve correr sobre o palco. Quando meu amigo Mayo desenhou os cenários de "Os possessos", concordamos que tínhamos que começar pensando em termos de construção sólida (um quarto feio, mobília - realidade, em resumo), de maneira a erguer a produção, aos poucos, até um plano mais elevado, menos preso ao tema; por fim, estilizamos o cenário. A peça surgiu numa espécie de loucura irreal, mas partiu de um local preciso, escravizado ao assunto. Não é isso a verdadeira definição de arte? Não somente realidade, nem imaginação apenas, mas imaginação tomando vôo da realidade.
Verdade
Basta de motivos pessoais para a minha presença no teatro. Estas são as razões de um homem, mas tenho também os motivos de um artista - e estes últimos são mais misteriosos. Antes de tudo, acho o teatro o lugar da verdade. Para ser exato, as pessoas geralmente o chamam de um lugar de ilusão. Não creio nisso! É a sociedade, acima de tudo, que vive no meio de ilusões. Tome, por exemplo, um desses atores não profissionais, que faz figura nos círculos da moda, ou na administração ou, simplesmente, nas noites de estréia. Coloque-o no palco, sob o refletor exato; jogue quatro mil watts de luz sobre ele e a peça se tornará insuportável. Você o verá, em certo sentido, inteiramente nu sob a luz da verdade. Sim, o brilho do refletor é impiedoso e nenhuma tapeação poderá ocultar a verdadeira identidade do homem ou da mulher, no palco, mesmo com o disfarce das roupas. E estou absolutamenmte certo de que todas essas pessoas que conheci muito bem na minha vida, revelar-se-iam a mim se elas se dispusessem a ensaiar e representar comigo numa peça com personagens de outra época e de outro tipo. Aqueles que amam os mistérios do coração - e a verdade oculta nos seres humanos - devem vir ao teatro. É aí que sua curiosidade insaciável recebe pelos menos uma retribuição parcial. Sim, acreditem, para descobrir a verdade, ponha-o no palco.
Conciliação
Às vezes me perguntam: "Como pode conciliar o teatro e a literatura em sua vida?". Para ser exato, tive muitas profissões, por necessidade ou por gosto, e desde que continuo sendo um escritor, é de presumir-se que consegui de alguma forma reconciliá-los. Sinto que no momento em que consinto em ser apenas escritor, tenho que parar de escrever. Mas com relação ao teatro, a conciliação é automática. Para mim o teatro é a mais elevada forma de literatura, e também a mais universal. Falar para todo mundo não é fácil. Sempre se arrisca a ficar ou muito abaixo ou muito acima. Há autores que desejam dirigir-se ao que há de mais estúpido no público e, acreditem, eles o conseguem muito bem. Há outros que desejam dirigir-se apenas àqueles que supõem inteligentes, e sempre erram o alvo. Quando um autor consegue dirigir-se a todo mundo com simplicidade, em vez de ser ambicioso a respeito do tema, ele está servindo à verdadeira tradição artística e consegue unir todas as classes e todos os espíritos na platéia, numa simples emoção ou numa simples gargalhada. Somente os muito grandes conseguem isso.
Aflição
Perguntam-me também (como uma solicitude que me aflige): "Por que adapta textos quando poderia escrever suas próprias peças?. Tenho escrito minhas próprias peças, e continuarei escrevendo outras. Quando escrevo minhas peças, é o escritor que está funcionando, mas de acordo com um largo esquema. Quando eu adapto, é o caso de um diretor trabalhando de acordo com os termos de seu conceito teatral. De resto, acredito no espetáculo total, concebido, inspirado e produzido pela mesma alma; escrito e dirigido pelo mesmo homem. Esse trabalho torna possível a consecução de uma unidade de tom, estilo e ritmo, que são o essencial de um show, e ao qual me proponho mais livremente do que outros que não foram, como eu fui, escritor, dramaturgo e diretor. Em resumo, eu sirvo aos textos (traduções, adaptações ou o que seja), mas quando são postos no palco, reservo-me o direito de modelá-los de acordo com as necessidades da direção. Colaboro comigo, em outras palavras, de modo a eliminar o atrito existente entre o autor e o diretor. E acho que há tão pouca degradação nesse trabalho que continuarei a fazê-lo sempre que houver oportunidade. Sentirei que faltei aos meus deveres como escritor somente quando montar espetáculos que agradarão ao público por meios degradantes - uma espécie de produção de grande êxito que se costuma ver em Paris, e que revolta meu estômago. De certo não acho que fugi à minha carreira como escritor quando montei "Os possessos".
Dúvida
Talvez não seja possível continuar servindo ao teatro naquilo que gosto. A própria nobreza dessa exigente profissão está hoje ameaçada. A alta incessante dos custos e a burocratização das companhias profissionais estão levando o teatro, pouco a pouco, para o maior comercialismo. Será esta uma razão para parar de lutar? Acho que não. Um espírito de arte e loucura oculta-se sob os balcões e atrás das cortinas. Ele não pode morrer, e evita que tudo se perca. Ele espera de cada um de nós. Devemos evitar que ele seja banido pelos balconistas e pelos produtores de massa. Em troca, devemos ficar firmes e salvar nosso sólido bom-humor. Para receber e para dar - não é esta a felicidade de que falei no início? E necessitamos da própria vida, forte e livre. Agora, vamos ao próximo espetáculo.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 109/1986, edição já esgotada.
nos campos de futebol e no palco
Albert Camus
(Dramaturgo, filósofo e novelista francês, fundador do Teatro do Trabalho, mais tarde rebatizado de Teatro de Grupo. Suas principais obras teatrais são: "O mal entendido" (1944), "Calígula" (1945), "Estado de sítio" (1948 - adaptação de sua novela "A peste") e "Os justos " (1949). O absurdo da existência humana foi o tema central de sua obra. Camus faleceu em 1960).
* * *
Por que trabalho em teatro? Muitas vezes eu me fiz essa pergunta. A resposta poderá soar desanimadoramente banal: simplesmente porque o teatro é um dos lugares do mundo em que me sinto feliz. Mas essa reflexão não é tão banal assim. Hoje em dia, a felicidade é um assunto delicado. As pessoas têm mesmo a tendência de ocultar de si próprias a sua busca de felicidade, vendo-a como uma espécie de róseo balé, de que devem excusar-se. Às vezes leio que homens de ação, que deram tudo a uma atividade pública, encontram refúgio ou abrigo em sua vida privada. Há um certo menosprezo, não é - em tal noção? Menosprezo e - um não existe sem o outro - contrasenso. Tenho observado muitos casos em que a situação é o reverso, pessoas que encontraram refúgio na vida pública a fim de fugir de suas vidas particulares.
Pecado
Viver feliz hoje é como viver em pecado. Nunca se deve admití-lo. Não diga inocentemente, sem pensar mal, "sou feliz". Imediatamente lerá a condenação em todos os lábios à sua volta: "Oh! Você é feliz, meu filho! E o que está fazendo - diga-me - pelos órfãos de tal lugar, pelos leprosos?...Não se pode dizer que eles sejam felizes!" Que fazer? Então, imediatamente, ficamos sombrios.
Tentativa
Ainda estou dolorosamente tentado a crer que, para sermos realmente úteis aos que estão na miséria, temos que ser fortes e felizes. A pessoa que considera a vida como um fardo e que afunda sob seu próprio peso, não pode ajudar ninguém. Mas aquele que controla seus sentimentos e sua vida, pode dar efetivamente. Conheci um homem que não gostava da mulher, e vivia desesperado com isso. Um dia ele resolveu devotar-lhe a vida (uma supercompensação, em outras palavras). A partir daí, a vida dessa mulher, que até então fora suportável, tornou-se um inferno absoluto, com o ostensivo auto-sacrifício do marido. Assim é hoje em dia: as pessoas se dedicam mais àqueles seres humanos de que menos gostam.
Doença
Não admira, em tais circunstâncias, que o mundo pareça doente e que seja difícil dar-lhe um atestado de felicidade, principalmente se se trata de um escritor. Todavia atesto meu respeito pela felicidade e pelas pessoas felizes; e nem que seja por higiene, procuro estar o mais tempo possível na esfera da minha felicidade, que é o teatro. Diferentemente de outras alegrias mais transitórias, a minha, no teatro, persiste por mais de 20 anos, e não sei o que faria sem ele.
Defunto
Em 1936, reorganizei um grupo defunto, na Algéria, e montamos peças de Malraux a Dostoiewski, até Ésquilo. Vinte e três anos mais tarde, no Teatro Antoine, realizei uma adaptação de "Os possessos", de Dostoiewski. Eu mesmo estava admirado de tão rara fidelidade - ou de tão longa intoxicação. Indagava os motivos dessa obstinada virtude, ou vício. E verifiquei que era de dois tipos: um relativo ao meu próprio temperamento e outro relativo à própria natureza do teatro.
Razão
A primeira e menos maravilhosa razão de que me lembro, era que através do teatro eu escapava daquilo que me aborrecia em minha carreira de escritor. Primeiro, de tudo aquilo que chamo de frívolo comércio, quer seu nome seja Fernandel, Brigitte Bardot, Ali Khan ou, mais modestamente, Paul Valéry. De qualquer maneira, vocês têm seus nomes nos jornais. E assim que você tem o nome nos jornais, tudo começa. O correio o caça; os convites chovem e presume-se que devam ter uma resposta. Grande parte de seu tempo é gasto em recusá-los. Metade de sua energia humana é gasta, assim, no dizer não, de todas as maneiras. Não é estúpido? Claro que é. Mas esse é o modo de se punir a nossa vaidade pela própria vaidade.
Medo
Entrementes, tenho notado que todo mundo considera o trabalho teatral com medo, mesmo sendo ele uma profissão vã, e tudo que você tem a fazer é anunciar que está ensaiando. Forma-se, imediatamente, um deserto em torno de você. E quando você tem a idéia astuciosa, como eu faço, de ensaiar o dia todo e parte da noite, bem, francamente, é o paraíso. A esse respeito, o teatro é um mosteiro. O tumulto do mundo morre à sua porta; dentro de seu confinamento sagrado, por dois meses dedicada a uma única meditação, essa comunidade de monges trabalhadores, isolada do mundo, prepara o rito que será celebrado uma noite pela primeira vez.
Surpresa
A palavra monge surpreende? Uma imprensa sofisticada que dorme tarde e se divorcia muitas vezes? Vou decepcioná-los, sem dúvida, se lhes disser que teatro é mais banal que isso, ou mesmo, que as pessoas nele se divorciam menos que aqueles que trabalham em têxteis, em açúcar, ou em jornalismo. É que, quando há um caso de divórcio entre gente de teatro, outras pessoas falam, naturalmente, mais dele. Isso é compreensível. Representar é uma profissão em que o corpo conta, não pode ser usado libertinamente, mas sempre se é obrigado a mantê-lo em forma. Ser virtuoso é um caso de necessidade, e é talvez o único caminho para ser virtuoso.
Preferência
De qualquer maneira, prefiro a companhia de gente de teatro, virtuosa ou não, à dos intelectuais, meus irmãos. Como todos sabem, os intelectuais são raramente amáveis, nunca se dão bem juntos. Há outra razão que não posso expor inteiramente. Na companhia de intelectuais sempre me sinto como se algo em mim tivesse que ser pedoado; sempre tenho a impressão que quebrei algumas regras do clã. Esse sentimento dispersa minha espontaneidade e, sem espontaneidade, eu me aborreço. No palco, sou espontâneo. Não penso naquilo que tenho ou não tenho que ser, e as únicas coisas que partilho com meus colaboradores são as experiências e as alegrias de um empreendimento comum. É um estado, acredito, que se chama companheirismo, e tem sido uma das grandes alegrias de minha vida. Eu o perdi no dia em que deixei um jornal que fazíamos em equipe, e encontrei-o noamente assim que voltei ao teatro.
Saúde
Um escritor trabalha em solidão, é julgado solitariamente e, acime de tudo, julga a si mesmo em solidão. Isso não é certo, e não é saudável. Se ele tem uma constituição normal, chega a hora em que precisa ver outros rostos, para sentir o calor do contato humano, que explica mesmo muitos dos desenvolvimentos de um escritor: o casamento, a academia, os políticos. De qualquer modo esses expedientes não arranjam nada. Assim que perde a solidão, logo começa a sentir sua falta. Ele gostaria de ter, ao mesmo tempo, não só os chinelos, como um grande amor; gostaria de ser um acadêmico, sem deixar de ser um inconformista. Acreditem-me, a carreira de um artista hoje em dia não é uma sinecura.
Companhia
O teatro oferece a companhia de que preciso, junto com a pesada servidão e as limitações de que todos os homens e todos os espíritos necessitam. Na solidão, o artista reina - mas sobre o vácuo. No teatro ele não pode reinar. O que deseja depende dos outros. O diretor precisa de ator, e o ator precisa de diretor. Essa mútua dependência, quando reconhecida com humildade e bom humor apropriado a ela, forma a solidariedade da profissão e dá um corpo a esse companheirismo diário. Nele, estamos todos ligados um ao outro sem perda de liberdade de ninguém (ou quase isso). Não é uma boa receita para a sociedade do futuro?
Engano
Mas sejamos mais diretos: os atores enganam-se tanto quanto outras espécies humanas, inclusive seu diretor, e às vezes mais, como quando você se permitiu amá-los. Mas as disilusões (se o são) acontecem muitas vezes depois que passou o período de trabalho, quando retorna à sua natureza solitária. Nessa profissão, em que as pessoas não são fortes em lógica, diz-se com igual convicção que o fracasso dissolve a companhia, e assim o sucesso. Não é nada disso. O que acaba a companhia é o fim da esperança que os unia durante os ensaios. É a proximidade do objetivo (a estréia) que os manteve unidos numa ligação tão íntima. Uma reunião, um movimento são também sociedade; mas o objetivo que buscam se perde na noite do futuro. No teatro, o fruto do trabalho será colhido, para o melhor ou o pior, numa noite de antemão sabida, numa noite da qual cada dia de trabalho mais se aproxima. Homens e mulheres, individualmente, se tornam um time partilhando uma aventura comum, e tentando um lindo gol que nunca será melhor ou mais belo do que na noite longamente esperada, quando os dados são lançados.
Exaltação
As corporações de construtores e os estúdios coletivos de pintura, durante a Renascença, devem ter sentido essa espécie de exaltação conhecida por aqueles que trabalham num grande espetáculo. Suas realizações ultrapassam o momento da execução; o show, ao contrário, é transitório - e seus participantes o amam mais porque ele morrerá um dia. Somente na minha juventude conheci isso: o mesmo forte sentido de esperança e união que acompanha os dias de treino até o dia da partida. O pouco que conheço de moral, aprendi nos campos de futebol e no palco. Eles foram minha verdadeira universidade.
Fuga
O teatro também me ajuda a fugir da abstração que ameça todo escritor. Nos meus dias de jornalista, preferia compor as páginas a trabalhar nesses quase sermões que são os chamados editoriais; como também em teatro, gosto de ver como o trabalho cria raiz na confusão dos holofotes, das plataformas, lonas e sarrafos. Não sei quem me disse que para ser um bom diretor você tem que "conhecer o peso dos cenários com os braços"; mas esta é uma grande regra em arte. E gosto da profissão que me obriga a considerar simultaneamente a psicologia dos pesonagens, a colocação de uma lâmpada ou de um vaso degerânios, a textura de uma roupa, o peso e o contrapeso de um volume que deve correr sobre o palco. Quando meu amigo Mayo desenhou os cenários de "Os possessos", concordamos que tínhamos que começar pensando em termos de construção sólida (um quarto feio, mobília - realidade, em resumo), de maneira a erguer a produção, aos poucos, até um plano mais elevado, menos preso ao tema; por fim, estilizamos o cenário. A peça surgiu numa espécie de loucura irreal, mas partiu de um local preciso, escravizado ao assunto. Não é isso a verdadeira definição de arte? Não somente realidade, nem imaginação apenas, mas imaginação tomando vôo da realidade.
Verdade
Basta de motivos pessoais para a minha presença no teatro. Estas são as razões de um homem, mas tenho também os motivos de um artista - e estes últimos são mais misteriosos. Antes de tudo, acho o teatro o lugar da verdade. Para ser exato, as pessoas geralmente o chamam de um lugar de ilusão. Não creio nisso! É a sociedade, acima de tudo, que vive no meio de ilusões. Tome, por exemplo, um desses atores não profissionais, que faz figura nos círculos da moda, ou na administração ou, simplesmente, nas noites de estréia. Coloque-o no palco, sob o refletor exato; jogue quatro mil watts de luz sobre ele e a peça se tornará insuportável. Você o verá, em certo sentido, inteiramente nu sob a luz da verdade. Sim, o brilho do refletor é impiedoso e nenhuma tapeação poderá ocultar a verdadeira identidade do homem ou da mulher, no palco, mesmo com o disfarce das roupas. E estou absolutamenmte certo de que todas essas pessoas que conheci muito bem na minha vida, revelar-se-iam a mim se elas se dispusessem a ensaiar e representar comigo numa peça com personagens de outra época e de outro tipo. Aqueles que amam os mistérios do coração - e a verdade oculta nos seres humanos - devem vir ao teatro. É aí que sua curiosidade insaciável recebe pelos menos uma retribuição parcial. Sim, acreditem, para descobrir a verdade, ponha-o no palco.
Conciliação
Às vezes me perguntam: "Como pode conciliar o teatro e a literatura em sua vida?". Para ser exato, tive muitas profissões, por necessidade ou por gosto, e desde que continuo sendo um escritor, é de presumir-se que consegui de alguma forma reconciliá-los. Sinto que no momento em que consinto em ser apenas escritor, tenho que parar de escrever. Mas com relação ao teatro, a conciliação é automática. Para mim o teatro é a mais elevada forma de literatura, e também a mais universal. Falar para todo mundo não é fácil. Sempre se arrisca a ficar ou muito abaixo ou muito acima. Há autores que desejam dirigir-se ao que há de mais estúpido no público e, acreditem, eles o conseguem muito bem. Há outros que desejam dirigir-se apenas àqueles que supõem inteligentes, e sempre erram o alvo. Quando um autor consegue dirigir-se a todo mundo com simplicidade, em vez de ser ambicioso a respeito do tema, ele está servindo à verdadeira tradição artística e consegue unir todas as classes e todos os espíritos na platéia, numa simples emoção ou numa simples gargalhada. Somente os muito grandes conseguem isso.
Aflição
Perguntam-me também (como uma solicitude que me aflige): "Por que adapta textos quando poderia escrever suas próprias peças?. Tenho escrito minhas próprias peças, e continuarei escrevendo outras. Quando escrevo minhas peças, é o escritor que está funcionando, mas de acordo com um largo esquema. Quando eu adapto, é o caso de um diretor trabalhando de acordo com os termos de seu conceito teatral. De resto, acredito no espetáculo total, concebido, inspirado e produzido pela mesma alma; escrito e dirigido pelo mesmo homem. Esse trabalho torna possível a consecução de uma unidade de tom, estilo e ritmo, que são o essencial de um show, e ao qual me proponho mais livremente do que outros que não foram, como eu fui, escritor, dramaturgo e diretor. Em resumo, eu sirvo aos textos (traduções, adaptações ou o que seja), mas quando são postos no palco, reservo-me o direito de modelá-los de acordo com as necessidades da direção. Colaboro comigo, em outras palavras, de modo a eliminar o atrito existente entre o autor e o diretor. E acho que há tão pouca degradação nesse trabalho que continuarei a fazê-lo sempre que houver oportunidade. Sentirei que faltei aos meus deveres como escritor somente quando montar espetáculos que agradarão ao público por meios degradantes - uma espécie de produção de grande êxito que se costuma ver em Paris, e que revolta meu estômago. De certo não acho que fugi à minha carreira como escritor quando montei "Os possessos".
Dúvida
Talvez não seja possível continuar servindo ao teatro naquilo que gosto. A própria nobreza dessa exigente profissão está hoje ameaçada. A alta incessante dos custos e a burocratização das companhias profissionais estão levando o teatro, pouco a pouco, para o maior comercialismo. Será esta uma razão para parar de lutar? Acho que não. Um espírito de arte e loucura oculta-se sob os balcões e atrás das cortinas. Ele não pode morrer, e evita que tudo se perca. Ele espera de cada um de nós. Devemos evitar que ele seja banido pelos balconistas e pelos produtores de massa. Em troca, devemos ficar firmes e salvar nosso sólido bom-humor. Para receber e para dar - não é esta a felicidade de que falei no início? E necessitamos da própria vida, forte e livre. Agora, vamos ao próximo espetáculo.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 109/1986, edição já esgotada.
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Notas sobre a direção de "O médico à força",
de Molière, no Tablado (1962)
Maria Clara Machado
Acho muito mais fácil atingir os grandes sentimentos, desafiar a sorte em versos, acusar o destino e aos deuses, dizer desaforos, que penetrar no ridículo dos homens e representar, no palco, de um modo que agrade, os defeitos de todo mundo. Estranho ofício este de fazer rir as pessoas de bem...(MOLIÉRE)
Para o diretor brasileiro, afastado das tradições do teatro francês, a primeira dificuldade que se lhe depara ao tentar dirigir uma peça de Molière é justamente o peso dessa tradição. A tentação é grande de procurar imitar, numa busca de fidelidade, as representações do teatro francês, através das concepções da Comédie Française, de grupos que vimos no estrangeiro ou que nos visitaram. Para aqueles diretores que nunca viram a representação de um clássico, a tentativa de montar Molière torna-se uma espécie de audácia. Os entendidos dirão talvez que é preferível deixar os clássicos como literatura apenas, a cometer o erro de encená-los de uma maneira não tradicional. A obrigação de fazer como eles fizeram ou fazem desafia a nossa boa vontade de conceber um espetáculo clássico. Felizmente para os diretores inexperientes que nunca viram Molière em cena, e felizmente para o teatro, esse tabu de fidelidade à mise-en-scène clássica é um tabu como qualquer outro, ou Molière não seria um autor universal. E é Jouvet quem diz:
"Todo francês carrega consigo uma hereditariedade clássica, porém, pervertida pelos colégios e pelos preconceitos. Ora, a 'entidade dramática', a peça de teatro possui uma vida orgânica. A peça clássica, mais do que as outras, é capaz de uma vida mais sólida. As peças de Molière permanecem inalteradamente jovens, apesar de estragadas pelos sábios e entendidos, pelos pesquisadores infatigáveis que, por preocupações pedagógicas idiotas, sujaram livremente todas as edições que foram feitas de Molière, principalmente durante o século XIX. É preciso, pois, voltar a Molière - ao artista, ao diretor-comediante. Todavia, voltar ao clássico representado, isto é, em ação, vem a ser abandonar o Molière moralista, filósofo, para reencontrar o Molière dramaturgo e justamente o que impressiona em todas as suas comédias é a espécie de irrealidade ou supra-realidade do assunto. Nada de naturalismo aqui, nem de sátira social. A inserção de Molière no mundo de seu tempo deve ser procurada em outra parte. Amê-mo-lo, pois, como ele teria desejado ser amado, isto é, naquele plano extra-temporal em que ele próprio colocou suas peças".
Universal
Ser universal é conhecer o homem em qualquer situação, é conhecer suas fraquezas, misérias e alegrias, característas estas que, por serem universais, não representam nem uma época definida, nem um estado de alma próprio deste ou daquele povo. O amor, o ciúme, a esperteza, a avareza, a cobiça pertencem ao homem e é disso que Molière trata em sua obra, e é isso que incumbe ao diretor transmitir ao público quando dirige suas peças. Vencida a primeira etapa - o medo de desagradar aos entendidos, que pediriam cópia fiel da maneira de representar Molière como o teatro francês o faz - resta-nos encontrar o estilo que serviria a Molière.
Estilo
Estilo, diz o dicionário, é o conjunto de qualidades de expressão, características de um autor ou de uma época. O único caminho para se descobrir o estilo de um autor morto há séculos seria a fidelidade ao texto. E, na interpretação desse texto, que é a sua transposição à cena, não procurar, à maneira de nossa época, verdades psicológicas, nem implicações sociais. Há uma tendência generalizada nos diretores de teatro de querer dizer mais dos que os autores pretenderam. Se, com autores de peças psicológicas, isto pode funcionar, em relação a Molière seria uma catástrofe. O método de procurar interpretar além do que diz o texto, analisando a causa e as conseqüências de cada ação, usado em Molière, levaria a desvirtuá-lo.
Distorção
Em "O médico à força", por exemplo, Sganarelo é apenas um espertalhão inteligente, inculto mas sabido. Querer criar para esse personagem problemas liagados à sua situação social ou complexos em relação à mulher, seria torcer o texto. Talvez a representação saísse enriquecida de nuances psicológicas, de pausas cheias de sentido oculto, mas perderia em movimento, em ritmo e em comicidade. É preciso que o diretor não veja além do autor, mas com o autor. O método usado para interpretar um autor moderno seria desastroso em Molière. O que este autor quer transmitir - quando não é apenas fazer rir, como é o caso de "O médico à força" - já está no texto e não precisa ser redescoberto por ninguém. Sua maneira de comunicar é direta, é visual, é movimento. Sua obra é teatro - teatro, sem literatura que dê margem a interpretações. Esclarecido este ponto, resta-nos o mais difícil: fazer passar a AÇÃO para o público, isto é, REPRESENTAR.
Ator
Um ator de comédia, se quer fazer rir somente através de sua mímica, de seus movimentos, de sua maneira de dizer, tem que ser forçosamente um ator completo. Deve usar a sua intuição, o seu instinto de tempo e ritmo, seu domínio do corpo, sua presença de espírito, rapidez na resposta aos estímulos, quer seja da ação pedida, quer contracenando com outro ator.
Diretor
Ao diretor, cabe ter um conhecimento de todos os mistérios do palco, da comunicação dos atores com o público e do desejo do autor de fazer rir a platéia. O texto, dito com correção, fará o resto, sustentado por cenários, figurinos e iluminação, concebidos com espírito de liberdade criadora, dentro do estilo da época de Molière.
Medo
Finalizando, é o medo de uma tradição acadêmica e romântica que nos faz vacilar ao enfrentar Molière. E o que poderia ser grave para o diretor brasileiro - falta de conhecimento da tradição teatral clássica - torna-se sua melhor arma ao aproximar-se do autor. Pondo de lado o respeito ao homem de Luis XIV, orgulho da literatura francesa, podemos enfrentá-lo como homem de teatro, ator e diretor. Tudo que nos resta é fazer chegar ao público (público este que, como o do século XVII, quer rir de suas próprias fraquezas), fazer com que a peça atinja a platéia pela própria ação da palavra e do jogo de cena, sem segundas intenções, sem nuances psicológicas, sem literatura social. Talvez, assim, possamos, nós - brasileiros sem escola, sem tradição e sem mestres - tentar redescobrir o estilo de Molière.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 108/1986, edição já esgotada.
de Molière, no Tablado (1962)
Maria Clara Machado
Acho muito mais fácil atingir os grandes sentimentos, desafiar a sorte em versos, acusar o destino e aos deuses, dizer desaforos, que penetrar no ridículo dos homens e representar, no palco, de um modo que agrade, os defeitos de todo mundo. Estranho ofício este de fazer rir as pessoas de bem...(MOLIÉRE)
Para o diretor brasileiro, afastado das tradições do teatro francês, a primeira dificuldade que se lhe depara ao tentar dirigir uma peça de Molière é justamente o peso dessa tradição. A tentação é grande de procurar imitar, numa busca de fidelidade, as representações do teatro francês, através das concepções da Comédie Française, de grupos que vimos no estrangeiro ou que nos visitaram. Para aqueles diretores que nunca viram a representação de um clássico, a tentativa de montar Molière torna-se uma espécie de audácia. Os entendidos dirão talvez que é preferível deixar os clássicos como literatura apenas, a cometer o erro de encená-los de uma maneira não tradicional. A obrigação de fazer como eles fizeram ou fazem desafia a nossa boa vontade de conceber um espetáculo clássico. Felizmente para os diretores inexperientes que nunca viram Molière em cena, e felizmente para o teatro, esse tabu de fidelidade à mise-en-scène clássica é um tabu como qualquer outro, ou Molière não seria um autor universal. E é Jouvet quem diz:
"Todo francês carrega consigo uma hereditariedade clássica, porém, pervertida pelos colégios e pelos preconceitos. Ora, a 'entidade dramática', a peça de teatro possui uma vida orgânica. A peça clássica, mais do que as outras, é capaz de uma vida mais sólida. As peças de Molière permanecem inalteradamente jovens, apesar de estragadas pelos sábios e entendidos, pelos pesquisadores infatigáveis que, por preocupações pedagógicas idiotas, sujaram livremente todas as edições que foram feitas de Molière, principalmente durante o século XIX. É preciso, pois, voltar a Molière - ao artista, ao diretor-comediante. Todavia, voltar ao clássico representado, isto é, em ação, vem a ser abandonar o Molière moralista, filósofo, para reencontrar o Molière dramaturgo e justamente o que impressiona em todas as suas comédias é a espécie de irrealidade ou supra-realidade do assunto. Nada de naturalismo aqui, nem de sátira social. A inserção de Molière no mundo de seu tempo deve ser procurada em outra parte. Amê-mo-lo, pois, como ele teria desejado ser amado, isto é, naquele plano extra-temporal em que ele próprio colocou suas peças".
Universal
Ser universal é conhecer o homem em qualquer situação, é conhecer suas fraquezas, misérias e alegrias, característas estas que, por serem universais, não representam nem uma época definida, nem um estado de alma próprio deste ou daquele povo. O amor, o ciúme, a esperteza, a avareza, a cobiça pertencem ao homem e é disso que Molière trata em sua obra, e é isso que incumbe ao diretor transmitir ao público quando dirige suas peças. Vencida a primeira etapa - o medo de desagradar aos entendidos, que pediriam cópia fiel da maneira de representar Molière como o teatro francês o faz - resta-nos encontrar o estilo que serviria a Molière.
Estilo
Estilo, diz o dicionário, é o conjunto de qualidades de expressão, características de um autor ou de uma época. O único caminho para se descobrir o estilo de um autor morto há séculos seria a fidelidade ao texto. E, na interpretação desse texto, que é a sua transposição à cena, não procurar, à maneira de nossa época, verdades psicológicas, nem implicações sociais. Há uma tendência generalizada nos diretores de teatro de querer dizer mais dos que os autores pretenderam. Se, com autores de peças psicológicas, isto pode funcionar, em relação a Molière seria uma catástrofe. O método de procurar interpretar além do que diz o texto, analisando a causa e as conseqüências de cada ação, usado em Molière, levaria a desvirtuá-lo.
Distorção
Em "O médico à força", por exemplo, Sganarelo é apenas um espertalhão inteligente, inculto mas sabido. Querer criar para esse personagem problemas liagados à sua situação social ou complexos em relação à mulher, seria torcer o texto. Talvez a representação saísse enriquecida de nuances psicológicas, de pausas cheias de sentido oculto, mas perderia em movimento, em ritmo e em comicidade. É preciso que o diretor não veja além do autor, mas com o autor. O método usado para interpretar um autor moderno seria desastroso em Molière. O que este autor quer transmitir - quando não é apenas fazer rir, como é o caso de "O médico à força" - já está no texto e não precisa ser redescoberto por ninguém. Sua maneira de comunicar é direta, é visual, é movimento. Sua obra é teatro - teatro, sem literatura que dê margem a interpretações. Esclarecido este ponto, resta-nos o mais difícil: fazer passar a AÇÃO para o público, isto é, REPRESENTAR.
Ator
Um ator de comédia, se quer fazer rir somente através de sua mímica, de seus movimentos, de sua maneira de dizer, tem que ser forçosamente um ator completo. Deve usar a sua intuição, o seu instinto de tempo e ritmo, seu domínio do corpo, sua presença de espírito, rapidez na resposta aos estímulos, quer seja da ação pedida, quer contracenando com outro ator.
Diretor
Ao diretor, cabe ter um conhecimento de todos os mistérios do palco, da comunicação dos atores com o público e do desejo do autor de fazer rir a platéia. O texto, dito com correção, fará o resto, sustentado por cenários, figurinos e iluminação, concebidos com espírito de liberdade criadora, dentro do estilo da época de Molière.
Medo
Finalizando, é o medo de uma tradição acadêmica e romântica que nos faz vacilar ao enfrentar Molière. E o que poderia ser grave para o diretor brasileiro - falta de conhecimento da tradição teatral clássica - torna-se sua melhor arma ao aproximar-se do autor. Pondo de lado o respeito ao homem de Luis XIV, orgulho da literatura francesa, podemos enfrentá-lo como homem de teatro, ator e diretor. Tudo que nos resta é fazer chegar ao público (público este que, como o do século XVII, quer rir de suas próprias fraquezas), fazer com que a peça atinja a platéia pela própria ação da palavra e do jogo de cena, sem segundas intenções, sem nuances psicológicas, sem literatura social. Talvez, assim, possamos, nós - brasileiros sem escola, sem tradição e sem mestres - tentar redescobrir o estilo de Molière.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 108/1986, edição já esgotada.
Teatro, Humor & Amor
José Octávio Naves
Algumas considerações tecidas sobre estes fascinantes e importantes temas (não necessariamente nessa ordem), escritas a partir de um debate realizado após uma apresentação da peça "Do amor", de Domingos Oliveira, no Teatro Planetário da Gávea, 1985.
O autor é psicanalista, professor da PUC-RJ e fez seus estudos de pós-graduação na Universidade Católica de Louvain, Bélgica.
* * *
Debater o amor ou debater-se no amor, é um jogo de palavras que um amigo meu me propunha ontem e que serviu de semente ao que eu lhes digo agora. De qualquer maneira, é do prazer que se fala. Do prazer, do amor e do cômico, da relação da dor e do prazer, procura e perda. O teatro, arte total, corpo e fala, é o mundo privilegiado para aquilo que é espirituoso. Tanto o corpo como a palavra se apresentam na multidão de suas ambigüidades. O que se passa no palco é uma condensação de propósitos e sentidos, o deslocamento e o deslize constante de uma verdade à outra verdade, de um não sentido inicial a um aprofundamento de sentido, de um lúdico amoroso a um instante apaixonado e intensamente pleno de espírito.
Comicidade
O Cômico é profundamente estudado pela psicanálise. Ela busca encontrar nele a razão de seu prazer, sua fonte e sua formação, junto à dinâmica do seu poder de descarga. Freud escreve uma de suas obras mais interessantes tendo como tema o cômico, obra infelizmente pouco lida e comentada no Brasil. É essencial dizer que Freud redige o seu livro sobre o chiste e suas relações com o inconsciente, ao mesmo tempo que trabalha "Três ensaios sobre a sexualidade".
Aproximação
Nós poderíamos dizer que, assim fazendo, ele aproxima intensamente as duas obras, ou seja, a progressão no desenvolviento da sexualidade e a produção do riso. Assim, nós poderíamos dizer que se trata de unificar, de sintetizar o aspecto teórico e as tendências destas duas produções de prazer.
Criança
A criança retira um grande gozo jogando ou brincando com as palavras. Como ela brinca com as coisas e com o corpo ela joga, mesmos nos exercícios pré-verbais, com os sons. Neste momento, o material é sem significado, o prazer é do significante. O adulto, porém, volta sempre a esta criança que ele era nesta inusitada produção do cômico e do gozo que dela resulta.
Homem
Mas para o homem tirar satisfação do jogo é preciso que lhe dê significado. O jogo das palavras que nós chamaríamos espirituoso, quase insensato, absurdo somatório que ri das críticas da razão e que goza diante delas, impõe silêncio a esta mesma razão, silêncio sem o qual o prazer se sufocaria.
Ápice
Mas é somente numa última etapa que o prazer do riso atinge o seu mais extremado ápice e seus mais deliciosos abismos. Apesar das inibições, o cômico, que anteriormente vence e mata a razão, assassina e derrota agora a censura interna e através de uma fachada de aparente simplicidade permite a passagem da verdade e do desejo. É através desse caminho que Freud relaciona o cômico ao sonho e ao inconsciente, afirmando que eles são regidos pelos mesmos processos. Também no cômico, como no sonho, algo de sutil e de involuntário acontece. Nós poderíamos dizer que o cômico e o sonho se fazem dentro de nós e ultrapassam o nosso próprio poder de fazê-lo surgir.
Humor
Mas no domínio do riso aparece ainda uma outra situação, situada na ordem do afeto e do sentimento, situação esta que chamaríamos de "humor". Ele parece ser uma conquista do homem diante da dor, aspecto imensamente poderoso dentro do aparelho psíquico. O humor parece permitir que quase tudo se diga, quase tudo se sinta, quase tudo se faça ou se desnude. Parece que com ele, a vida e a morte se conjugam para tornar possível a palavra mais próxima da verdade e do desejo Permitir-se sentir não importa o quê, com humor, é uma característica dos sábios. O humor ama enquanto o julgamento rivaliza. Na medida que o humor ri do que diz, uma ordem simbólica se apresenta, uma terceira coisa toma lugar, e algo da ordem da vida se torna possível. O sonho então é irmão do humor, na medida que eles propiciam a expressão deste material escondido. Pensemos, então, na estranha riqueza do texto denominado "Noite feliz" (O. Henry)
Jogo
O jogo é um jogo de presentes, de oferta, de significado. A intenção é a passagem da confissão de amor, ou dele mesmo e, aparentemente, o que nos traz o texto é um extremo fracasso desta doação. A esposa vende os cabelos onde cabiam as travessas e o marido, o relógio, onde se encaixaria a corrente. Ambos doam exatamente naquilo onde o outro não tem mais. E o que é na aparência um fracasso, uma comédia de erros, se transmuda num momento de encontro. Assim, o tema "Da Ternura" fala mais propriamente do amor e da falta. O que ambos se dão, apesar de uma aparente inutilidade, é exatamente aquilo, e unicamente aquilo, que eles poderiam se doar.
Dialética
E é só neste campo e desta dialética que o amor se faz. A mulher só poderia receber as travessas se houvesse cortado os cabelos e o homem só se prenderia à corrente se houvesse se desfeito do relógio. É neste jogo impossível onde o amor cria uma utilidade específica, maravilhosa e exaltante, é neste jogo de perder no ganho que o gozo se faz e não só o presente, no seu sentido de doação, pode se fazer no seu inteiro significado, mas também o presente, no seu sentido de tempo, se torna gozo, chama e quase eterno. De agora em diante, o que se passa em cena joga entre o amor, a paixão e o ciúme.
Amor
O amor, psicanaliticamente, é obra da criação. E sem a criação, o homem adoece, diz Freud. O jogo da paixão e do amor se torna então um difícil vocabulário. O amor seria obra da diferença, da falta; neste jogo de vida e morte ele permite ao homem recriar-se, fornecendo-lhe a possibilidade de ser "na posse" o que "pensou ser", restituindo no "possuindo", o "não mais sendo". Assim, amando, o homem esvai-se e se esvazia, e este depositário sequioso e em estio só se peencherá na medida que receber amor do outro. Assim pensando, o amor é o extremo da troca. Amar é esvaziar-se para dar lugar ao amor do outro. Como diz o texto, ele é filho da pobreza com o recurso. O amor não é o contrário do ódio, também neste terreno movediço ele floresce e caminha. Só a infiferença, palavra perigosa e sentimento quase impossível, parece que lhe faz antônimo.
Espelho
A paixão parece ser a obra do espelho. O apaixonado pensa se complicar na projeção de si no outro e o momento em que o olhar se faz e se espelha, parece ser o momento da miragem que se esgota no buscar a fonte. "Eu te amo", disse-me uma mulher, numa noite, porque és o arquivo onde eu guardei a lembrança da paixão que tive por ti. Não sei se te amo ou se amo a paixão a que me acendeste e que totemizas. Eu te amo, diria o poeta, mas eu não sei o que você tem a ver com isto.
Ciúme
O ciúme, porém, é obra da História. É o homem histórico que produz e possui o ciúme. É o luto e a perda, a experiência cruel e a partida que, armazenadas no Ego, temem a repetição, império do ciúme. A condição de vida do desligar-se e perder-se inspiram e alimentam. São diferentes as relações do amor e do ciúme com a morte. O amor revitaliza a morte, transformando-a na pequena morte do orgasmo. O ciúme, porém, reforça as colorações da morte, se aproxida dela e se intoxica daquilo que ela emana. O amor é sempre histórico e resgata a história.
Sexo
O ato sexual começa na boca do seio e termina no genital da falta. O homem, como já dissemos, nunca abandonou um prazer que já teve. No amor, ele resgata a criança e é só aí que eu posso compreender por que Eros não pode crescer, pois ele simboliza a criança a ser resgatada.
Caminho
Este espetáculo nos trouxe outra vez o caminho desta criança gososa e sofredora, dona de perdas e ganhos - Cupido. Tornou possível este resgate através da sabedoria do humor e da verdade.
______________________
Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 108, edição já esgotada.
José Octávio Naves
Algumas considerações tecidas sobre estes fascinantes e importantes temas (não necessariamente nessa ordem), escritas a partir de um debate realizado após uma apresentação da peça "Do amor", de Domingos Oliveira, no Teatro Planetário da Gávea, 1985.
O autor é psicanalista, professor da PUC-RJ e fez seus estudos de pós-graduação na Universidade Católica de Louvain, Bélgica.
* * *
Debater o amor ou debater-se no amor, é um jogo de palavras que um amigo meu me propunha ontem e que serviu de semente ao que eu lhes digo agora. De qualquer maneira, é do prazer que se fala. Do prazer, do amor e do cômico, da relação da dor e do prazer, procura e perda. O teatro, arte total, corpo e fala, é o mundo privilegiado para aquilo que é espirituoso. Tanto o corpo como a palavra se apresentam na multidão de suas ambigüidades. O que se passa no palco é uma condensação de propósitos e sentidos, o deslocamento e o deslize constante de uma verdade à outra verdade, de um não sentido inicial a um aprofundamento de sentido, de um lúdico amoroso a um instante apaixonado e intensamente pleno de espírito.
Comicidade
O Cômico é profundamente estudado pela psicanálise. Ela busca encontrar nele a razão de seu prazer, sua fonte e sua formação, junto à dinâmica do seu poder de descarga. Freud escreve uma de suas obras mais interessantes tendo como tema o cômico, obra infelizmente pouco lida e comentada no Brasil. É essencial dizer que Freud redige o seu livro sobre o chiste e suas relações com o inconsciente, ao mesmo tempo que trabalha "Três ensaios sobre a sexualidade".
Aproximação
Nós poderíamos dizer que, assim fazendo, ele aproxima intensamente as duas obras, ou seja, a progressão no desenvolviento da sexualidade e a produção do riso. Assim, nós poderíamos dizer que se trata de unificar, de sintetizar o aspecto teórico e as tendências destas duas produções de prazer.
Criança
A criança retira um grande gozo jogando ou brincando com as palavras. Como ela brinca com as coisas e com o corpo ela joga, mesmos nos exercícios pré-verbais, com os sons. Neste momento, o material é sem significado, o prazer é do significante. O adulto, porém, volta sempre a esta criança que ele era nesta inusitada produção do cômico e do gozo que dela resulta.
Homem
Mas para o homem tirar satisfação do jogo é preciso que lhe dê significado. O jogo das palavras que nós chamaríamos espirituoso, quase insensato, absurdo somatório que ri das críticas da razão e que goza diante delas, impõe silêncio a esta mesma razão, silêncio sem o qual o prazer se sufocaria.
Ápice
Mas é somente numa última etapa que o prazer do riso atinge o seu mais extremado ápice e seus mais deliciosos abismos. Apesar das inibições, o cômico, que anteriormente vence e mata a razão, assassina e derrota agora a censura interna e através de uma fachada de aparente simplicidade permite a passagem da verdade e do desejo. É através desse caminho que Freud relaciona o cômico ao sonho e ao inconsciente, afirmando que eles são regidos pelos mesmos processos. Também no cômico, como no sonho, algo de sutil e de involuntário acontece. Nós poderíamos dizer que o cômico e o sonho se fazem dentro de nós e ultrapassam o nosso próprio poder de fazê-lo surgir.
Humor
Mas no domínio do riso aparece ainda uma outra situação, situada na ordem do afeto e do sentimento, situação esta que chamaríamos de "humor". Ele parece ser uma conquista do homem diante da dor, aspecto imensamente poderoso dentro do aparelho psíquico. O humor parece permitir que quase tudo se diga, quase tudo se sinta, quase tudo se faça ou se desnude. Parece que com ele, a vida e a morte se conjugam para tornar possível a palavra mais próxima da verdade e do desejo Permitir-se sentir não importa o quê, com humor, é uma característica dos sábios. O humor ama enquanto o julgamento rivaliza. Na medida que o humor ri do que diz, uma ordem simbólica se apresenta, uma terceira coisa toma lugar, e algo da ordem da vida se torna possível. O sonho então é irmão do humor, na medida que eles propiciam a expressão deste material escondido. Pensemos, então, na estranha riqueza do texto denominado "Noite feliz" (O. Henry)
Jogo
O jogo é um jogo de presentes, de oferta, de significado. A intenção é a passagem da confissão de amor, ou dele mesmo e, aparentemente, o que nos traz o texto é um extremo fracasso desta doação. A esposa vende os cabelos onde cabiam as travessas e o marido, o relógio, onde se encaixaria a corrente. Ambos doam exatamente naquilo onde o outro não tem mais. E o que é na aparência um fracasso, uma comédia de erros, se transmuda num momento de encontro. Assim, o tema "Da Ternura" fala mais propriamente do amor e da falta. O que ambos se dão, apesar de uma aparente inutilidade, é exatamente aquilo, e unicamente aquilo, que eles poderiam se doar.
Dialética
E é só neste campo e desta dialética que o amor se faz. A mulher só poderia receber as travessas se houvesse cortado os cabelos e o homem só se prenderia à corrente se houvesse se desfeito do relógio. É neste jogo impossível onde o amor cria uma utilidade específica, maravilhosa e exaltante, é neste jogo de perder no ganho que o gozo se faz e não só o presente, no seu sentido de doação, pode se fazer no seu inteiro significado, mas também o presente, no seu sentido de tempo, se torna gozo, chama e quase eterno. De agora em diante, o que se passa em cena joga entre o amor, a paixão e o ciúme.
Amor
O amor, psicanaliticamente, é obra da criação. E sem a criação, o homem adoece, diz Freud. O jogo da paixão e do amor se torna então um difícil vocabulário. O amor seria obra da diferença, da falta; neste jogo de vida e morte ele permite ao homem recriar-se, fornecendo-lhe a possibilidade de ser "na posse" o que "pensou ser", restituindo no "possuindo", o "não mais sendo". Assim, amando, o homem esvai-se e se esvazia, e este depositário sequioso e em estio só se peencherá na medida que receber amor do outro. Assim pensando, o amor é o extremo da troca. Amar é esvaziar-se para dar lugar ao amor do outro. Como diz o texto, ele é filho da pobreza com o recurso. O amor não é o contrário do ódio, também neste terreno movediço ele floresce e caminha. Só a infiferença, palavra perigosa e sentimento quase impossível, parece que lhe faz antônimo.
Espelho
A paixão parece ser a obra do espelho. O apaixonado pensa se complicar na projeção de si no outro e o momento em que o olhar se faz e se espelha, parece ser o momento da miragem que se esgota no buscar a fonte. "Eu te amo", disse-me uma mulher, numa noite, porque és o arquivo onde eu guardei a lembrança da paixão que tive por ti. Não sei se te amo ou se amo a paixão a que me acendeste e que totemizas. Eu te amo, diria o poeta, mas eu não sei o que você tem a ver com isto.
Ciúme
O ciúme, porém, é obra da História. É o homem histórico que produz e possui o ciúme. É o luto e a perda, a experiência cruel e a partida que, armazenadas no Ego, temem a repetição, império do ciúme. A condição de vida do desligar-se e perder-se inspiram e alimentam. São diferentes as relações do amor e do ciúme com a morte. O amor revitaliza a morte, transformando-a na pequena morte do orgasmo. O ciúme, porém, reforça as colorações da morte, se aproxida dela e se intoxica daquilo que ela emana. O amor é sempre histórico e resgata a história.
Sexo
O ato sexual começa na boca do seio e termina no genital da falta. O homem, como já dissemos, nunca abandonou um prazer que já teve. No amor, ele resgata a criança e é só aí que eu posso compreender por que Eros não pode crescer, pois ele simboliza a criança a ser resgatada.
Caminho
Este espetáculo nos trouxe outra vez o caminho desta criança gososa e sofredora, dona de perdas e ganhos - Cupido. Tornou possível este resgate através da sabedoria do humor e da verdade.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 108, edição já esgotada.
segunda-feira, 18 de maio de 2009
Relaxamento:
um diálogo com o corpo
Andréia Fernandes
O corpo humano é sábio. Embora tentemos massacrá-lo, ele continua sábio. Mesmo trancafiado nas grandes cidades, sufocado de fumaça, amarrado com tecidos sintéticos e entupido por uma alimentação tóxica, ele, o corpo humano, continua sábio. Talvez uma sabedoria infantil, imatura, pouco desenvolvida, ou melhor, pouco percebida pela nossa consciência. Por outro lado, o "culto ao corpo", que vem se desenvolvendo nos últimos anos, pode se transformar numa verdadeira obsessão; um controle rígido da alimentação, um violento massacre com exercícios físicos em excesso e muitas vezes inadequados, não podem ser formas saudáveis de interagir com o corpo.
Diálogo
O ideal seria que pudéssemos não só perceber mas sobretudo entender a linguagem corporal. Este diálogo, bastante pessoal, tem como base um conhecimento cada vez mais profundo do nosso corpo. Uma vez estabelecido esse diálogo, perceberíamos com maior clareza o nosso estado geral físico e psíquico, aumentaríamos nossas possibilidades, reaprendendo uma linguagem há muito tempo esquecida por nós, ocidentais.
Alvo
Não seria necessário dizer que esse "diálogo com o corpo" assume proporções vitais no caso do ator, cujo instrumento de trabalho é única e exclusivamente o seu corpo. Toda a sua expressividade e toda a sua emoção passa pelo corpo: na voz, na postura, na respiração, na agilidade e flexibilidade dos músculos e articulações. É óbvio então que o corpo deveria ser alvo de maior atenção por parte do ator e, ao contrário do que se pensa, não é preciso técnicas mirabolantes para se atingir um bom conhecimento e aprimoramento do corpo. Bastam, em linhas gerais, vontade, disciplina e concentração.
Premissa
Uma das formas básicas de estabelecermos um primeiro contato com o nosso corpo é através do relaxamento. Relaxar não é só dissipar tensões ou atingir uma sensação de conforto e harmonia física, espiritual etc. Não é só o resultado que se busca, mas principalmente o processo. Através de várias técnicas de relaxamento (sejam elas aplicadas por outro ou não), com exercícios físicos e/ou respiratórios, massagens etc., somos sempre levados a perceber nossos pontos de tensão, nosso ritmo respiratório e cardíaco, nossos encurtamentos musculares. Partindo daí, o processo de relaxamento é sobretudo uma forma de auto conhecimento do corpo, um aprofundamento desse diálogo corporal; um mergulho profundo dentro de nós mesmos.
Escolha
Não existe uma técnica ideal para relaxar. A escolha de uma (ou várias) técnica é algo estritamente pessoal, sendo que, na maioria das vezes, descobrimos nossas próprias técnicas. O relaxamento individual, sob o ponto de vista que estou tratando neste artigo, oferece duas vantagens. A primeira, e óbvia, é que nem sempre a presença do outro é possível. A segunda é a exigência de uma maior atenção e concentração em cada parte do corpo, estimulando a sensibilidade em relação aos limites e tensões corporais. Importante, também, seria experimentar várias formas de relaxamento. Cada maneira atinge diferentemente as diversas partes do corpo, e isso evitaria a fixação numa determinada forma, tornando-a mecânica e automatizada, tendência tão normal na vida moderna.
Conclusão
Concluindo, se encararmos o relaxamento sem maiores pretensões, como uma maneira de travar um primeiro contato com o nosso corpo, estaríamos dando um bom passo para um maior conhecimento de nós mesmos. Saber escutar e respeitar nosso corpo, aliviar suas tensões, são sem dúvida maneiras de aumentar nossas possibilidades de atuação no palco e fora dele. Principalmente é ganhar uma maior disposição para a vida.
TÉCNICAS DE RELAXAMENTO
I - Relaxamento através do pé:
Sentar de maneira bastante confortável e dobrar uma perna de modo que o pé fique apoiado na coxa da outra perna. Segura-se o pé com uma das mãos e com a outra, fazer delicadamente um movimento de rotação com os dedos do pé, para a esquerda e para a direita, do dedo mindinho ao dedão do pé. A intenção é de soltar as articulações dos dedos, como se fosse desaparafuzar os dedos do pé. Tudo deve ser feito muito devagar para não machucar.
Em seguida, com as duas mãos, puxar os dedos lateralmente, para abrir espaço entre eles. De novo, tudo deve ser feito delicadamente, para não machucar, lembrando sempre que o importante é o processo de tentar aumentar o espaço entre os dedos e não o de conseguir um determinado grau de afastamento. Feito isto, entrelaçar os dedos da mão (contrária do pé que está trabalhando) com os dedos dos pé. A palma da mão (contrária do pé que está trabalhando) com os dedos do pé. A palma da mão fica em contato com a sola do pé. Nesta posição fazer vários movimentos com o pé: rodar, empurrar os dedos para trás e para a frente etc.
Finalmente, voltando a segurar o pé com ambas as mãos, fazer uma massagem no pé direito: a ponta dos dois polegares massageia a sola do pé, calcanhar, tornozelo. A ponta dos outros dedos massageia o peito do pé, percebe as articulações, os ossos, os tendões. Se por acaso encontrar um ponto dolorido, massageie devagar até aliviar a dor. E depois repita tudo com o outro pé. Após esse trabalho o corpo deve estar relaxado, os pés mais espalhados e aderentes ao chão, o peso do corpo melhor distribuído sobre a planta dos pés.
II - Esvaziamento:
Deitar no chão. Imaginar o corpo como um recipiente transparente, com dois orifícios mínimos nos dedões do pé. Imaginar que através desses furinhos um líquido penetra lentamente. A cor e a densidade do líquido devem ser imaginadas. Sinta o líquido entrar pelos pés, ocupar todos os espaços deste recipiente. Sinta-o subir pelas pernas, contornando cada articulação, cada dobra do corpo, dissolvendo todos os pontos de tensão, até chegar ao topo da cabeça, não esquecendo os braços e as mãos, o rosto, a garganta, a boca, o nariz, os olhos e os ouvidos. Depois de tudo preenchido, o líquido volta a sair pelos furinhos do pé, lentamente, carregando consigo toda a tensão do corpo.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 107/1985, edição já esgotada.
um diálogo com o corpo
Andréia Fernandes
O corpo humano é sábio. Embora tentemos massacrá-lo, ele continua sábio. Mesmo trancafiado nas grandes cidades, sufocado de fumaça, amarrado com tecidos sintéticos e entupido por uma alimentação tóxica, ele, o corpo humano, continua sábio. Talvez uma sabedoria infantil, imatura, pouco desenvolvida, ou melhor, pouco percebida pela nossa consciência. Por outro lado, o "culto ao corpo", que vem se desenvolvendo nos últimos anos, pode se transformar numa verdadeira obsessão; um controle rígido da alimentação, um violento massacre com exercícios físicos em excesso e muitas vezes inadequados, não podem ser formas saudáveis de interagir com o corpo.
Diálogo
O ideal seria que pudéssemos não só perceber mas sobretudo entender a linguagem corporal. Este diálogo, bastante pessoal, tem como base um conhecimento cada vez mais profundo do nosso corpo. Uma vez estabelecido esse diálogo, perceberíamos com maior clareza o nosso estado geral físico e psíquico, aumentaríamos nossas possibilidades, reaprendendo uma linguagem há muito tempo esquecida por nós, ocidentais.
Alvo
Não seria necessário dizer que esse "diálogo com o corpo" assume proporções vitais no caso do ator, cujo instrumento de trabalho é única e exclusivamente o seu corpo. Toda a sua expressividade e toda a sua emoção passa pelo corpo: na voz, na postura, na respiração, na agilidade e flexibilidade dos músculos e articulações. É óbvio então que o corpo deveria ser alvo de maior atenção por parte do ator e, ao contrário do que se pensa, não é preciso técnicas mirabolantes para se atingir um bom conhecimento e aprimoramento do corpo. Bastam, em linhas gerais, vontade, disciplina e concentração.
Premissa
Uma das formas básicas de estabelecermos um primeiro contato com o nosso corpo é através do relaxamento. Relaxar não é só dissipar tensões ou atingir uma sensação de conforto e harmonia física, espiritual etc. Não é só o resultado que se busca, mas principalmente o processo. Através de várias técnicas de relaxamento (sejam elas aplicadas por outro ou não), com exercícios físicos e/ou respiratórios, massagens etc., somos sempre levados a perceber nossos pontos de tensão, nosso ritmo respiratório e cardíaco, nossos encurtamentos musculares. Partindo daí, o processo de relaxamento é sobretudo uma forma de auto conhecimento do corpo, um aprofundamento desse diálogo corporal; um mergulho profundo dentro de nós mesmos.
Escolha
Não existe uma técnica ideal para relaxar. A escolha de uma (ou várias) técnica é algo estritamente pessoal, sendo que, na maioria das vezes, descobrimos nossas próprias técnicas. O relaxamento individual, sob o ponto de vista que estou tratando neste artigo, oferece duas vantagens. A primeira, e óbvia, é que nem sempre a presença do outro é possível. A segunda é a exigência de uma maior atenção e concentração em cada parte do corpo, estimulando a sensibilidade em relação aos limites e tensões corporais. Importante, também, seria experimentar várias formas de relaxamento. Cada maneira atinge diferentemente as diversas partes do corpo, e isso evitaria a fixação numa determinada forma, tornando-a mecânica e automatizada, tendência tão normal na vida moderna.
Conclusão
Concluindo, se encararmos o relaxamento sem maiores pretensões, como uma maneira de travar um primeiro contato com o nosso corpo, estaríamos dando um bom passo para um maior conhecimento de nós mesmos. Saber escutar e respeitar nosso corpo, aliviar suas tensões, são sem dúvida maneiras de aumentar nossas possibilidades de atuação no palco e fora dele. Principalmente é ganhar uma maior disposição para a vida.
TÉCNICAS DE RELAXAMENTO
I - Relaxamento através do pé:
Sentar de maneira bastante confortável e dobrar uma perna de modo que o pé fique apoiado na coxa da outra perna. Segura-se o pé com uma das mãos e com a outra, fazer delicadamente um movimento de rotação com os dedos do pé, para a esquerda e para a direita, do dedo mindinho ao dedão do pé. A intenção é de soltar as articulações dos dedos, como se fosse desaparafuzar os dedos do pé. Tudo deve ser feito muito devagar para não machucar.
Em seguida, com as duas mãos, puxar os dedos lateralmente, para abrir espaço entre eles. De novo, tudo deve ser feito delicadamente, para não machucar, lembrando sempre que o importante é o processo de tentar aumentar o espaço entre os dedos e não o de conseguir um determinado grau de afastamento. Feito isto, entrelaçar os dedos da mão (contrária do pé que está trabalhando) com os dedos dos pé. A palma da mão (contrária do pé que está trabalhando) com os dedos do pé. A palma da mão fica em contato com a sola do pé. Nesta posição fazer vários movimentos com o pé: rodar, empurrar os dedos para trás e para a frente etc.
Finalmente, voltando a segurar o pé com ambas as mãos, fazer uma massagem no pé direito: a ponta dos dois polegares massageia a sola do pé, calcanhar, tornozelo. A ponta dos outros dedos massageia o peito do pé, percebe as articulações, os ossos, os tendões. Se por acaso encontrar um ponto dolorido, massageie devagar até aliviar a dor. E depois repita tudo com o outro pé. Após esse trabalho o corpo deve estar relaxado, os pés mais espalhados e aderentes ao chão, o peso do corpo melhor distribuído sobre a planta dos pés.
II - Esvaziamento:
Deitar no chão. Imaginar o corpo como um recipiente transparente, com dois orifícios mínimos nos dedões do pé. Imaginar que através desses furinhos um líquido penetra lentamente. A cor e a densidade do líquido devem ser imaginadas. Sinta o líquido entrar pelos pés, ocupar todos os espaços deste recipiente. Sinta-o subir pelas pernas, contornando cada articulação, cada dobra do corpo, dissolvendo todos os pontos de tensão, até chegar ao topo da cabeça, não esquecendo os braços e as mãos, o rosto, a garganta, a boca, o nariz, os olhos e os ouvidos. Depois de tudo preenchido, o líquido volta a sair pelos furinhos do pé, lentamente, carregando consigo toda a tensão do corpo.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 107/1985, edição já esgotada.
O assassinato do diretor
Jean Vilar
Jean Vilar (1912-1971), juntamente com Jean Louis Barrault, liderou o teatro francês do pós-guerra, e foi designado diretor do Théâtre National Populaire em 1951. Abandonou o cargo em 1963 após estabelecer uma sólida reputação como diretor que respeitava o texto e privilegiava o ator. Atenção estreita aos detalhes e a tentativa de atingir grandes audiências, podem ser consideradas sua marca registrada.
* * *
1. As notas seguintes referem-se apenas a uma técnica particular do teatro, qual seja a de transpor um trabahlho escrito do reino imaginário da leitura para o reino concreto do palco. Procurar qualquer coisa além de "meios de interpretação" nessas deliberadamente críticas linhas será trabalho perdido. Quando tanta teoria, ars poetica e metafísica, é escrita sobre o teatro, talvez seja necessário ouvir um pouco as considerações de um artesão.
2. Nunca se lê uma peça suficientemente. Atores nunca lêem uma peça o suficiente. Eles pensam que entendem uma peça após saberem a trama ou o seu enredo - o que é um erro grave. Arriscando-me um pouco, eu diria que de um modo geral os diretores substimam a inteligência profissional dos atores. Deles são pedidos somente os seus corpos, como se fossem peões animados no tabuleiro de um diretor. A peça é lida uma, duas vezes e depois os atores são lançados no palco. Qual o resultado?
Sujeitos cedo demais às demandas da ação, da atuação física, os atores acabam recorrendo às suas reações convencionais, habituais, e desenvolvem seus personagens arbitrária e convencionalmente, bem antes que sua inteligência profissional e sensibilidade possam captar as intenções do diretor. Daí, as más representações! Mesmo o ator mais sensível se sairá mal, caso tenha que se apressar. Quantos atores, inclusive alguns dos melhores, representaram para nós nos últimos 20 anos com a mesma voz, a mesma postura, os mesmos maneirismos e colorido emocional, por vezes, em papéis diametralmente opostos! Por isso se fazem necessárias tantas leituras de mesa: um terço do total de ensaios. Pelo menos. Texto na mão, bem sentado na cadeira, o corpo em repouso. Assim, a sensibilidade poderá aflorar e captar a nota almejada, o ator entendendo, sentindo o personagem no qual se transformará.
3. Todos os personagens devem ser compostos. Todos os bons atores são necessariamente criadores de tipos. Todos os papéis são produto de uma composição.
4. A criação de um personagem é a obra de criação que aproxima o ator da arte, pois a composição de um papel implica em escolha, observação, pesquisa, inspiração e disciplina.
5. O ator capta o que lhe é caro de dentro e de fora de si. Ao seu redor, porque a natureza oferece aos seus olhos os modelos mais distintos e diversos de observação - eu quase poderia dizer, para sua contemplação. De dentro de si, porque o ator não consegue observar suficientemente a vida palpitante à sua volta, e nem pode expor sua sensibilidade o suficiente para um pleno contato com a realidade.
Em resumo, o ator deve ser capaz de reter em sua memória visual os tipos humanos que chamam a sua atenção, bem como as memórias sensoriais (ou compassivas) provenientes de suas próprias feridas e de seu sofrimento moral. Ele deve aprender a usar essa memória, ou melhor, aprender a cultivá-la.
6. Na marcação, o propósito deve ser o de simplificar e reduzir. Contrariamente às idéias em voga, a questão não deve ser a de explorar o espaço e sim de esquecê-lo ou ignorá-lo. Para um espetáculo reter o máximo de seu poder de sugestão, não é absolutamente necessário que uma dita cena de ação seja totalmente "ocupada" (com acrobacias, murros, brigas e outras atividades "realistas" ou "simbólicas"). Um ou dois gestos, somados ao texto, bastam, desde que sejam "certos".
7. O trabalho de marcação e composição física devem ser levados a cabo por bons atores profissionais em um tempo relativamente curto: digamos, em 15 ensaios para um total de 40.
8. O talento de um ator - ou de um diretor - não está necessariamente apoiado na variedade e na força de seus poderes (que são uma dádiva realmente pouco importante da Providência), mas, acima de tudo, no aprimoramento de seus poderes, no rigor de sua seletividade e no seu voluntário auto-despojamento.
9. O musical: um grande ator, um figurino esplêndido, um cenário impressionante, música transbordante de genialidade, iluminação de cores vivas e fortes.
10. Nenhum ator digno desse nome se impõe ao texto; ele o serve. Humildemente. E que o iluminador, o músico, o cenógrafo e ofigurinista sejam ainda mais humildes.
11. O ator e a composição.
Com o texto cuidadosamente estudado e os personagens "sentidos" em todas as suas ramificações aos longo de umas 15 ou 20 leituras trabalhadas, o diretor começa o suave exercício de marcação, termina-o e se vê repentinamente frente a uma renovada batalha contra esses monstros insidiosos, os personagens. Os atores os conhecem bem, de vez que personagem e ator são duas entidades separadas. Durante um longo tempo o primeiro esquiva-se do segundo com uma infernal facilidade. A pior coisa a se fazer nesse momento é tentar lutar contra o demônio, submetê-lo à sua vontade. Se você quer que ele seja absorvido suavemente por seu corpo e sua alma, esqueça-o. O papel do diretor, como um atento observador dessa busca por osmose, é o de inspirar o ator de confiança, convencê-lo de que ele "encontrou" ou "redescobriu" o seu personagem, no sentido mais expressivo que essa frase possa ter. Não é de modo algum ingênuo afirmar que em dado momento da criação de um personagem, confiança é tudo. É pela não-violência, pela confiança na sua vitória final sobre o monstro escorregadio, que o ator acaba por triunfar.
12. O diretor deve conhecer o trabalho do cenógrafo. Da mesma forma, o cenógrafo/figurinista deveria ser o braço direito do diretor, com plenos poderes no palco: um homem de gosto, devotado ao seu trabalho, culto. Uma profissão difícil.
13. No teatro, às vezes, o hábito faz o monge.
14. O trabalho de direção deve incluir uma análise escrita da peça. O diretor deve fazê-lo, apesar de parecer um trabalho ingrato. A feitura dessa análise compele o diretor a um conhecimento claro e exaustivo da peça.
15. Uma pergunta: pode alguém interpretar algo que não entendeu?
16. Quantos escritores seriam capazes de fazer uma análise precisa de suas próprias peças (ou mesmo do próprio enredo?)
17. Um diretor que não consegue se "desligar" de seu trabalho na fase final dos ensaios é apenas um medíocre artesão, embora possa parecer que é essa a fase onde ele estaria mais envolvido. Se falhar nessa "neutralização", o diretor fica cego - o pior erro possível. Os pobres coitados que incorrem nesse erro se esquecem que o teatro é jogo, e no jogo, a inspiração e a criatividade infantil são bem mais importantes que o suor excessivo e os ataques de raiva. É verdade que esse desligamento é tão difícil de ser conseguido no tempo certo que não é de se surprender que apenas muito poucos diretores consigam-no ou mesmo desejem-no.
18. Uma qualidade tão importante para o ator na boa prática de sua arte é - além do instinto e da sensibilidade - o espírito de finesse (delicadeza, sutileza, sagacidade, elegância). Sem essa qualidade, seu trabalho sempre se apresentará como uma confusa exibição de expressões anárquicas.
19. O ator não é uma máquina. Esse é um truísmo que precisa ser gritado nos ouvidos das pessoas. O ator não é nem um peão, nem um robô. O diretor tem de acreditar desde o início que seus atores possuem o talento necessário.
20. Não há uma técnica de interpretação, e sim, práticas, técnicas (plural). Experiência pessoal - empirismo - é tudo.
21. Para o diretor, cada ator é um caso especial. Daí se segue a necessidade de ele conhecer cada membro do elenco muito bem. Conhecer seu trabalho, é claro, mas mais do que isso, conhecer a pessoa, até o limiar de sua vida íntima, e, talvez até mesmo além daí.
22. No que concerne ao ator, a arte do diretor é a da sugestão. Ele não ipõe, sugere. Acima de tudo ele não pode ser rude, estúpido. A "alma do ator" não é só uma figura retórica: é uma necessidade contínua, mais até que a "alma de um poeta". Não se conquista a alma de uma pessoa brutalizando-a, e a alma de um ator é mais necessária ao seu trabalho que a sua própria sensibilidade.
23. Da simplicidade: três referências.
a) Shakespeare - Hamlet: "Diga sua falas, eu te peço, como eu as pronunciei para vocês, com naturalidade" etc., e o resto dessa passagem famosa.
b) Molière: O improiso de Versailles.
c) Talmá: "Lekain se guardava da fome de aplauso que atormenta a maioria dos atores e os conduz frequentemente ao erro; ele queria agradar somente a discriminados membros da platéia. Ele rejeitava toda a falsidade teatral, visando criar um efeito genuíno, despojado dos "efeitos teatrais". Ele praticava uma economia certa de movimentos e gestos, na crença de que isso constituía a parte essencial de sua arte, na medida em que a multiplicação retira a dignidade do comportamento.
24. Uma produção pode ser reduzida à sua mais simples - e mais difícil - expressão: a ação no palco, ou, mais precisamente, a atuação. Consequentemente, o palco não pode se transformar numa encruzilhada de todas as artes, maiores ou menores (pintura, arquitetura, eletromania, musicomania, mecânica etc.). O cenógrafo deve ocupar o seu lugar, que é o de resolver os problemas de visão e proceder de tal forma que cenário e adereços sirvam estritamente à ação no palco. O uso imoderado de projetores, refletores e da luz como um todo devem ser guardados para o circo ou os Musicais. A música deveria ser utilizada apenas no início, nas transsições, ou então quando o texto explicitamente requisitá-lo, como uma canção, um interlúdio musical etc.
Em resumo, todos os efeitos estranhos às puras e espartanas leis do palco deveriam ser eliminados, o espetáculo reduzido à ação física e moral dos atores.
___________________________
Artigo extraído de The Director in a Changind Theater, J.R. Wells, Mayfield Pub. Co, 1976. Tradução de Cristina Krause. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 107/1985, edição já esgotada.
Jean Vilar
Jean Vilar (1912-1971), juntamente com Jean Louis Barrault, liderou o teatro francês do pós-guerra, e foi designado diretor do Théâtre National Populaire em 1951. Abandonou o cargo em 1963 após estabelecer uma sólida reputação como diretor que respeitava o texto e privilegiava o ator. Atenção estreita aos detalhes e a tentativa de atingir grandes audiências, podem ser consideradas sua marca registrada.
* * *
1. As notas seguintes referem-se apenas a uma técnica particular do teatro, qual seja a de transpor um trabahlho escrito do reino imaginário da leitura para o reino concreto do palco. Procurar qualquer coisa além de "meios de interpretação" nessas deliberadamente críticas linhas será trabalho perdido. Quando tanta teoria, ars poetica e metafísica, é escrita sobre o teatro, talvez seja necessário ouvir um pouco as considerações de um artesão.
2. Nunca se lê uma peça suficientemente. Atores nunca lêem uma peça o suficiente. Eles pensam que entendem uma peça após saberem a trama ou o seu enredo - o que é um erro grave. Arriscando-me um pouco, eu diria que de um modo geral os diretores substimam a inteligência profissional dos atores. Deles são pedidos somente os seus corpos, como se fossem peões animados no tabuleiro de um diretor. A peça é lida uma, duas vezes e depois os atores são lançados no palco. Qual o resultado?
Sujeitos cedo demais às demandas da ação, da atuação física, os atores acabam recorrendo às suas reações convencionais, habituais, e desenvolvem seus personagens arbitrária e convencionalmente, bem antes que sua inteligência profissional e sensibilidade possam captar as intenções do diretor. Daí, as más representações! Mesmo o ator mais sensível se sairá mal, caso tenha que se apressar. Quantos atores, inclusive alguns dos melhores, representaram para nós nos últimos 20 anos com a mesma voz, a mesma postura, os mesmos maneirismos e colorido emocional, por vezes, em papéis diametralmente opostos! Por isso se fazem necessárias tantas leituras de mesa: um terço do total de ensaios. Pelo menos. Texto na mão, bem sentado na cadeira, o corpo em repouso. Assim, a sensibilidade poderá aflorar e captar a nota almejada, o ator entendendo, sentindo o personagem no qual se transformará.
3. Todos os personagens devem ser compostos. Todos os bons atores são necessariamente criadores de tipos. Todos os papéis são produto de uma composição.
4. A criação de um personagem é a obra de criação que aproxima o ator da arte, pois a composição de um papel implica em escolha, observação, pesquisa, inspiração e disciplina.
5. O ator capta o que lhe é caro de dentro e de fora de si. Ao seu redor, porque a natureza oferece aos seus olhos os modelos mais distintos e diversos de observação - eu quase poderia dizer, para sua contemplação. De dentro de si, porque o ator não consegue observar suficientemente a vida palpitante à sua volta, e nem pode expor sua sensibilidade o suficiente para um pleno contato com a realidade.
Em resumo, o ator deve ser capaz de reter em sua memória visual os tipos humanos que chamam a sua atenção, bem como as memórias sensoriais (ou compassivas) provenientes de suas próprias feridas e de seu sofrimento moral. Ele deve aprender a usar essa memória, ou melhor, aprender a cultivá-la.
6. Na marcação, o propósito deve ser o de simplificar e reduzir. Contrariamente às idéias em voga, a questão não deve ser a de explorar o espaço e sim de esquecê-lo ou ignorá-lo. Para um espetáculo reter o máximo de seu poder de sugestão, não é absolutamente necessário que uma dita cena de ação seja totalmente "ocupada" (com acrobacias, murros, brigas e outras atividades "realistas" ou "simbólicas"). Um ou dois gestos, somados ao texto, bastam, desde que sejam "certos".
7. O trabalho de marcação e composição física devem ser levados a cabo por bons atores profissionais em um tempo relativamente curto: digamos, em 15 ensaios para um total de 40.
8. O talento de um ator - ou de um diretor - não está necessariamente apoiado na variedade e na força de seus poderes (que são uma dádiva realmente pouco importante da Providência), mas, acima de tudo, no aprimoramento de seus poderes, no rigor de sua seletividade e no seu voluntário auto-despojamento.
9. O musical: um grande ator, um figurino esplêndido, um cenário impressionante, música transbordante de genialidade, iluminação de cores vivas e fortes.
10. Nenhum ator digno desse nome se impõe ao texto; ele o serve. Humildemente. E que o iluminador, o músico, o cenógrafo e ofigurinista sejam ainda mais humildes.
11. O ator e a composição.
Com o texto cuidadosamente estudado e os personagens "sentidos" em todas as suas ramificações aos longo de umas 15 ou 20 leituras trabalhadas, o diretor começa o suave exercício de marcação, termina-o e se vê repentinamente frente a uma renovada batalha contra esses monstros insidiosos, os personagens. Os atores os conhecem bem, de vez que personagem e ator são duas entidades separadas. Durante um longo tempo o primeiro esquiva-se do segundo com uma infernal facilidade. A pior coisa a se fazer nesse momento é tentar lutar contra o demônio, submetê-lo à sua vontade. Se você quer que ele seja absorvido suavemente por seu corpo e sua alma, esqueça-o. O papel do diretor, como um atento observador dessa busca por osmose, é o de inspirar o ator de confiança, convencê-lo de que ele "encontrou" ou "redescobriu" o seu personagem, no sentido mais expressivo que essa frase possa ter. Não é de modo algum ingênuo afirmar que em dado momento da criação de um personagem, confiança é tudo. É pela não-violência, pela confiança na sua vitória final sobre o monstro escorregadio, que o ator acaba por triunfar.
12. O diretor deve conhecer o trabalho do cenógrafo. Da mesma forma, o cenógrafo/figurinista deveria ser o braço direito do diretor, com plenos poderes no palco: um homem de gosto, devotado ao seu trabalho, culto. Uma profissão difícil.
13. No teatro, às vezes, o hábito faz o monge.
14. O trabalho de direção deve incluir uma análise escrita da peça. O diretor deve fazê-lo, apesar de parecer um trabalho ingrato. A feitura dessa análise compele o diretor a um conhecimento claro e exaustivo da peça.
15. Uma pergunta: pode alguém interpretar algo que não entendeu?
16. Quantos escritores seriam capazes de fazer uma análise precisa de suas próprias peças (ou mesmo do próprio enredo?)
17. Um diretor que não consegue se "desligar" de seu trabalho na fase final dos ensaios é apenas um medíocre artesão, embora possa parecer que é essa a fase onde ele estaria mais envolvido. Se falhar nessa "neutralização", o diretor fica cego - o pior erro possível. Os pobres coitados que incorrem nesse erro se esquecem que o teatro é jogo, e no jogo, a inspiração e a criatividade infantil são bem mais importantes que o suor excessivo e os ataques de raiva. É verdade que esse desligamento é tão difícil de ser conseguido no tempo certo que não é de se surprender que apenas muito poucos diretores consigam-no ou mesmo desejem-no.
18. Uma qualidade tão importante para o ator na boa prática de sua arte é - além do instinto e da sensibilidade - o espírito de finesse (delicadeza, sutileza, sagacidade, elegância). Sem essa qualidade, seu trabalho sempre se apresentará como uma confusa exibição de expressões anárquicas.
19. O ator não é uma máquina. Esse é um truísmo que precisa ser gritado nos ouvidos das pessoas. O ator não é nem um peão, nem um robô. O diretor tem de acreditar desde o início que seus atores possuem o talento necessário.
20. Não há uma técnica de interpretação, e sim, práticas, técnicas (plural). Experiência pessoal - empirismo - é tudo.
21. Para o diretor, cada ator é um caso especial. Daí se segue a necessidade de ele conhecer cada membro do elenco muito bem. Conhecer seu trabalho, é claro, mas mais do que isso, conhecer a pessoa, até o limiar de sua vida íntima, e, talvez até mesmo além daí.
22. No que concerne ao ator, a arte do diretor é a da sugestão. Ele não ipõe, sugere. Acima de tudo ele não pode ser rude, estúpido. A "alma do ator" não é só uma figura retórica: é uma necessidade contínua, mais até que a "alma de um poeta". Não se conquista a alma de uma pessoa brutalizando-a, e a alma de um ator é mais necessária ao seu trabalho que a sua própria sensibilidade.
23. Da simplicidade: três referências.
a) Shakespeare - Hamlet: "Diga sua falas, eu te peço, como eu as pronunciei para vocês, com naturalidade" etc., e o resto dessa passagem famosa.
b) Molière: O improiso de Versailles.
c) Talmá: "Lekain se guardava da fome de aplauso que atormenta a maioria dos atores e os conduz frequentemente ao erro; ele queria agradar somente a discriminados membros da platéia. Ele rejeitava toda a falsidade teatral, visando criar um efeito genuíno, despojado dos "efeitos teatrais". Ele praticava uma economia certa de movimentos e gestos, na crença de que isso constituía a parte essencial de sua arte, na medida em que a multiplicação retira a dignidade do comportamento.
24. Uma produção pode ser reduzida à sua mais simples - e mais difícil - expressão: a ação no palco, ou, mais precisamente, a atuação. Consequentemente, o palco não pode se transformar numa encruzilhada de todas as artes, maiores ou menores (pintura, arquitetura, eletromania, musicomania, mecânica etc.). O cenógrafo deve ocupar o seu lugar, que é o de resolver os problemas de visão e proceder de tal forma que cenário e adereços sirvam estritamente à ação no palco. O uso imoderado de projetores, refletores e da luz como um todo devem ser guardados para o circo ou os Musicais. A música deveria ser utilizada apenas no início, nas transsições, ou então quando o texto explicitamente requisitá-lo, como uma canção, um interlúdio musical etc.
Em resumo, todos os efeitos estranhos às puras e espartanas leis do palco deveriam ser eliminados, o espetáculo reduzido à ação física e moral dos atores.
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Artigo extraído de The Director in a Changind Theater, J.R. Wells, Mayfield Pub. Co, 1976. Tradução de Cristina Krause. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 107/1985, edição já esgotada.
Teatro/CRÍTICA
"O filho da mãe"
"O filho da mãe"
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Histeria e emoção no Ipanema
Lionel Fischer
Separada do marido, que se casou com uma mulher 20 anos mais jovem e que está grávida de um menino, a bem sucedida publicitária Valentina (42 anos) criou sozinha seu único filho, Fernando, hoje com 25 anos. E toda a trama gira em torno da viagem a Nova Iorque que Fernando fará, com o objetivo de pós-graduar-se em cinema. Mas Valentina acredita piamente que a tal viagem, por estar sendo paga pelo pai, apenas explicita um plano do ex-marido para afastá-la do filho.
Eis, em resumo, o enredo de "O filho da mãe", de Regiana Antonini, em cartaz no Teatro Ipanema. O espetáculo chega à cena com direção de João Camargo e elenco formado por Regiana Antonini e Pedro Nercessian, que na noite em que assistimos a montagem foi substituído por Bruno Seixas.
Com idas e voltas no tempo, o texto de Regiana Antonini, em sua primeira metade, é por demais prolixo e cansativo, com passagens que se alongam em demasia - como a que envolve uma iguana ou lembranças da relação da protagonista com o ex-marido e a sogra. No entanto, a segunda parte é realmente muito divertida, a partir do momento em que a mãe suspeita que seu filhjo possa ser gay.
Neste segmento, Regiana cria não apenas diálogos muito saborosos e divertidos, mas faz também uma análise mais do que pertinente do caráter de um super mãe completamente histérica, mas ao mesmo tempo profundamente amorosa. Ou seja: se a primeira parte fosse bastante enxugada, a peça alcançaria um nível bem mais elevado e certamente Regiana teria escrito uma de suas melhores comédias - talvez a melhor.
Com relação ao espetáculo, o diretor João Camargo - por sinal um ótimo ator de comédias - trabalha a cena em sintonia com o material dramatúrgico, sempre atento ao ritmo e eventualmente criando marcas divertidas.
No que concerne ao elenco, Regiana Antonini cria uma Valentina impagável, tanto nos momentos em que a histeria a domina por completo quanto naqueles, na parte final, em que seu caráter emotivo aflora. Sem dúvida, uma atuação irretocável desta atriz que se sente completamente à vontade no universo da comédia. Bruno Seixas também exibe uma boa performance, ainda que num papel de menores oportunidades.
Na equipe técnica, Marcelo Marques assina uma cenografia um tanto pomposa demais, sendo igualmente excessivamente pomposos os figurinos da protagonista - os de Fernando são mais corretos. Rogério Wiltgen ilumina a cena de forma corriqueira, sendo excelente a trilha sonora de Paulo Severo.
O FILHO DA MÃE - Texto de Regiana Antonini. Direção de João Camargo. Com Antonini e Bruno Seixas. Teatro Ipanema. Sexta e sábado, 21h30. Domingo, 20h30.
quarta-feira, 13 de maio de 2009
Princípios da emissão vocal
Ana Maria Regal
O sucesso e o bom relacionamento entre as pessoas dependem, em grande escala, do tom de voz e do jeito de falar. Por isso, é necessário que se torne consciente a importância da maneira de como usar corretamente a voz, sobretudo às pessoas que a usam como instrumento de trabalho, tais como professores, atores, cantores, locutores, advogados etc.
Voz é som produzido pelo ser humano. A corrente de ar que vem dos pulmões passa pela laringe vibrando as cordas vocais, onde se torna sonora. Nas cavidades bucal e nasal, com auxílio dos órgãos articulatórios, essa sonoridade é amplificada. Durante a fonação as cordas vocais se aproximam da linha média, num movimento lento de abrir e fechar. Quando alguém usa mal a voz pode acarretar para si muitos problemas orgânicos, como papilomas, edemas, pólipos, nódulos, hiperemias e outros.
Papilomas
São tumores benignos, caracterizados pela hipertrofia das papilas, com neoformações de tecido conjuntivo. Sua causa é normalmente virótica. Esse tipo de problema, quando se agrava - a glote vai se fechando - provoca asfixia e afonia.
Pólipos
Se localizam no terço médio ou terço anterior do bordo livre da corda vocal. São neoformações redondas, rosadas ou brancas e benignas. Além do abuso vocal, sua causa é atribuída também a ambientes poluídos ou mudanças bruscas de temperatura. O pólipo se dá devido a constantes inflamações nas cordas vocais e quase nunca é bilateral.
Hiperamia
É vermelhidão nas cordas vocais.
Nódulos
Ou calos são as causas mais corriqueiras, mais simples de disfonia. Começa pela formação de hemorragias entre o terço médio e o terço anterior, seguidas de cicatrizações que formam nódulos em espelho. Estes são formações brancas de pequena massa de tecido inflamatório. Vem depois de um edema (inchação das cordas vocais). O abuso vocal é dado como causa única da formação de nódulos.
Choque
Abrir e fechar rapidamente as cordas vocais (golpe de glote), falar alto ou forçar a voz provoca um choque das cordas vocais. Falando-se constantemente assim, o choque se repete várias vezes e o organismo cria um espessamento para defesa das mesmas. Isso é chamado de nódulo de corda vocal. Tais anormalidades podem levar desde a uma disfonia, que são desordens na qualidade, intensidade e tom de voz - vindo de um esforço muscular exagerado - até uma afonia, que é a perda total da voz, ocasionada pela não vibração das cordas vocais.
Prevenção
Para se prevenir tais tipos de transtorno torna-se necessário uma boa impostação, ou seja, uma harmoniosa emissão vocal. E isto deve ser feito muito naturalmente, sem esforço algum, associada a uma respiração perfeita, uma vez que esta é a base de uma boa fonação. Se não houver respiração normal não existirá fonação normal. O segredo de uma boa voz está na coordenação da respiração com a emissão sonora.
Respiração
A respiração ideal para fonação é a costo-abdominal. O ato respiratório se dá em três tempos: inspiração-pausa-expiração. Na inspiração o diafragma se contrai, abaixando-se e empurrando o abdomem para frente, provocando o aumento do diâmetro vertical e a elevação das costelas, deixando assim maior espaço que é ocupado pelos pulmões cheios de ar. Já na expiração, os órgãos voltam à posição normal, porque o pulmão se contrai e expulsa o ar que contém, levando consigo o tórax. O ar expirado é o que se utiliza na emissão vocal.
Exemplos de exercícios respiratórios
- Deitado: inspirar, segurar o ar por um minuto e expirar bem devagar pronunciando um ah!, ao mesmo tempo encolher lentamente o abdomem;
- De pé: idem ao anterior, expirando com as vogais i,e,a,o,u, numa só insspiração;
- Sentado: coluna reta, fazer os exercícios como se estivesse de pé.
Relaxamento
Além dos exercícios respiratórios, faz-se necessário o relaxamento com o objetivo de diminuir as tensões da vida cotidiana, permitindo ao indivíduo um estado propício para a execução dos exercícios propostos. A técnica Yoga é muito usada para se alcançar um bom relaxamento.
Articulação
A articulação correta de cada fonema pode ser obtida mediante a aplicação de exercícios específicos. Estes têm como finalidade aumentar a mobilidade e a elasticidade dos músculos dos órgãos que interferem na articulação, além da obtenção do ponto de articulação de cada fonema. As contrações dos músculos do pescoço e dos órgãos vocais, a má disposição dos lábios, língua e palato, como também a rigidez da mandíbula podem prejudicar uma boa emissão de voz. Sendo assim, não se pode dispensar tais exercícios, que devem ser efetuados progressivamente, poupando esforços desnecessários.
Alguns exercícios articulatórios
- Língua: colocar a língua em posição normal e dizer aaa...aaa...aaa.
Estalar a língua.
Levar a ponta da língua ao lábio superior e depois ao lábio inferior.
- Lábios: soprar bolinhas de papel
Vibrar os lábios
Colocar os lábios em posição de assovio.
- Mandíbula: abrir e fechar a boca rápido e fortemente. Com a boca fechada , mover a mandíbula em movimentos circulares. Abrir a boca devagar e fechá-la rapidamente.
- Palato: imitar o som da campainha (ding-dong).
imitar o rugir do leão (rrr....)
tossir.
OBS: é aconselhável fazer esses exercícios pelos menos umas cinco vezes cada um.
Trabalho
Uma impostação perfeita é conseguida através de um trabalho gradativo, paciente, de educação e reeducação, que desenvolva a capacidade respiratória, a flexibilidade das cordas vocais e uma emissão correta, permitindo um resultado harmonioso e estético. Mas mesmo que o indivíduo alcance tudo que foi dito acima, não significa que isto seja suficiente, pois é preciso que nossa fala seja motivada e que todos os recursos utilizados sejam a expressão autêntica da emoção e do pensamento. Tais recursos compreendem: o ritmo, pontuações e pausas, inflexões (modulações da voz que se eleva ou se abaixa quando expressamos os nossos pensamentos e sentimentos), interrogações e interjeições, naturalidade e colorido. Esses elementos é que permitirão a autenticidade da expressão humana, evitando assim uma fala impessoal, como se fôssemos máquinas (robôs).
Precauções
Algumas precauções para conservar sua voz em perfeito funcionamento. Não se deve gritar, usar demasiado a voz, fumar em excesso, tomar gelado, tomar café muito quente, tomar qualquer líquido quente seguido de água gelada, abusar do ar condicionado, inspirar fumaça etc. Como foi dito, a reducação da voz é um fator essencial para a nossa vida. Desta forma e com a ajuda de um fonoaudiólogo podemos obter todos os quesitos mencionados.
Criança
É importante ainda lembrar que a criança deverá ser sempre observada quanto ao desenvolvimento de sua fala. Se por volta dos três ou quatro anos for notada qualquer incorreção, ela deverá ser logo encaminhada a especialistas, pois dependendo da problemática, ela não só poderá ter sua fala prejudicada, como também ter problemas sociais e psicológicos, principalmente no período escolar.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 83/1979, edição já esgotada
Ana Maria Regal
O sucesso e o bom relacionamento entre as pessoas dependem, em grande escala, do tom de voz e do jeito de falar. Por isso, é necessário que se torne consciente a importância da maneira de como usar corretamente a voz, sobretudo às pessoas que a usam como instrumento de trabalho, tais como professores, atores, cantores, locutores, advogados etc.
Voz é som produzido pelo ser humano. A corrente de ar que vem dos pulmões passa pela laringe vibrando as cordas vocais, onde se torna sonora. Nas cavidades bucal e nasal, com auxílio dos órgãos articulatórios, essa sonoridade é amplificada. Durante a fonação as cordas vocais se aproximam da linha média, num movimento lento de abrir e fechar. Quando alguém usa mal a voz pode acarretar para si muitos problemas orgânicos, como papilomas, edemas, pólipos, nódulos, hiperemias e outros.
Papilomas
São tumores benignos, caracterizados pela hipertrofia das papilas, com neoformações de tecido conjuntivo. Sua causa é normalmente virótica. Esse tipo de problema, quando se agrava - a glote vai se fechando - provoca asfixia e afonia.
Pólipos
Se localizam no terço médio ou terço anterior do bordo livre da corda vocal. São neoformações redondas, rosadas ou brancas e benignas. Além do abuso vocal, sua causa é atribuída também a ambientes poluídos ou mudanças bruscas de temperatura. O pólipo se dá devido a constantes inflamações nas cordas vocais e quase nunca é bilateral.
Hiperamia
É vermelhidão nas cordas vocais.
Nódulos
Ou calos são as causas mais corriqueiras, mais simples de disfonia. Começa pela formação de hemorragias entre o terço médio e o terço anterior, seguidas de cicatrizações que formam nódulos em espelho. Estes são formações brancas de pequena massa de tecido inflamatório. Vem depois de um edema (inchação das cordas vocais). O abuso vocal é dado como causa única da formação de nódulos.
Choque
Abrir e fechar rapidamente as cordas vocais (golpe de glote), falar alto ou forçar a voz provoca um choque das cordas vocais. Falando-se constantemente assim, o choque se repete várias vezes e o organismo cria um espessamento para defesa das mesmas. Isso é chamado de nódulo de corda vocal. Tais anormalidades podem levar desde a uma disfonia, que são desordens na qualidade, intensidade e tom de voz - vindo de um esforço muscular exagerado - até uma afonia, que é a perda total da voz, ocasionada pela não vibração das cordas vocais.
Prevenção
Para se prevenir tais tipos de transtorno torna-se necessário uma boa impostação, ou seja, uma harmoniosa emissão vocal. E isto deve ser feito muito naturalmente, sem esforço algum, associada a uma respiração perfeita, uma vez que esta é a base de uma boa fonação. Se não houver respiração normal não existirá fonação normal. O segredo de uma boa voz está na coordenação da respiração com a emissão sonora.
Respiração
A respiração ideal para fonação é a costo-abdominal. O ato respiratório se dá em três tempos: inspiração-pausa-expiração. Na inspiração o diafragma se contrai, abaixando-se e empurrando o abdomem para frente, provocando o aumento do diâmetro vertical e a elevação das costelas, deixando assim maior espaço que é ocupado pelos pulmões cheios de ar. Já na expiração, os órgãos voltam à posição normal, porque o pulmão se contrai e expulsa o ar que contém, levando consigo o tórax. O ar expirado é o que se utiliza na emissão vocal.
Exemplos de exercícios respiratórios
- Deitado: inspirar, segurar o ar por um minuto e expirar bem devagar pronunciando um ah!, ao mesmo tempo encolher lentamente o abdomem;
- De pé: idem ao anterior, expirando com as vogais i,e,a,o,u, numa só insspiração;
- Sentado: coluna reta, fazer os exercícios como se estivesse de pé.
Relaxamento
Além dos exercícios respiratórios, faz-se necessário o relaxamento com o objetivo de diminuir as tensões da vida cotidiana, permitindo ao indivíduo um estado propício para a execução dos exercícios propostos. A técnica Yoga é muito usada para se alcançar um bom relaxamento.
Articulação
A articulação correta de cada fonema pode ser obtida mediante a aplicação de exercícios específicos. Estes têm como finalidade aumentar a mobilidade e a elasticidade dos músculos dos órgãos que interferem na articulação, além da obtenção do ponto de articulação de cada fonema. As contrações dos músculos do pescoço e dos órgãos vocais, a má disposição dos lábios, língua e palato, como também a rigidez da mandíbula podem prejudicar uma boa emissão de voz. Sendo assim, não se pode dispensar tais exercícios, que devem ser efetuados progressivamente, poupando esforços desnecessários.
Alguns exercícios articulatórios
- Língua: colocar a língua em posição normal e dizer aaa...aaa...aaa.
Estalar a língua.
Levar a ponta da língua ao lábio superior e depois ao lábio inferior.
- Lábios: soprar bolinhas de papel
Vibrar os lábios
Colocar os lábios em posição de assovio.
- Mandíbula: abrir e fechar a boca rápido e fortemente. Com a boca fechada , mover a mandíbula em movimentos circulares. Abrir a boca devagar e fechá-la rapidamente.
- Palato: imitar o som da campainha (ding-dong).
imitar o rugir do leão (rrr....)
tossir.
OBS: é aconselhável fazer esses exercícios pelos menos umas cinco vezes cada um.
Trabalho
Uma impostação perfeita é conseguida através de um trabalho gradativo, paciente, de educação e reeducação, que desenvolva a capacidade respiratória, a flexibilidade das cordas vocais e uma emissão correta, permitindo um resultado harmonioso e estético. Mas mesmo que o indivíduo alcance tudo que foi dito acima, não significa que isto seja suficiente, pois é preciso que nossa fala seja motivada e que todos os recursos utilizados sejam a expressão autêntica da emoção e do pensamento. Tais recursos compreendem: o ritmo, pontuações e pausas, inflexões (modulações da voz que se eleva ou se abaixa quando expressamos os nossos pensamentos e sentimentos), interrogações e interjeições, naturalidade e colorido. Esses elementos é que permitirão a autenticidade da expressão humana, evitando assim uma fala impessoal, como se fôssemos máquinas (robôs).
Precauções
Algumas precauções para conservar sua voz em perfeito funcionamento. Não se deve gritar, usar demasiado a voz, fumar em excesso, tomar gelado, tomar café muito quente, tomar qualquer líquido quente seguido de água gelada, abusar do ar condicionado, inspirar fumaça etc. Como foi dito, a reducação da voz é um fator essencial para a nossa vida. Desta forma e com a ajuda de um fonoaudiólogo podemos obter todos os quesitos mencionados.
Criança
É importante ainda lembrar que a criança deverá ser sempre observada quanto ao desenvolvimento de sua fala. Se por volta dos três ou quatro anos for notada qualquer incorreção, ela deverá ser logo encaminhada a especialistas, pois dependendo da problemática, ela não só poderá ter sua fala prejudicada, como também ter problemas sociais e psicológicos, principalmente no período escolar.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 83/1979, edição já esgotada
Teatro/CRÍTICA
"Confronto"
(Sangrenta madrugada sangrenta)
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Ótimo texto em versão primorosa
Lionel Fischer
No início deste século, Luiz Felipe Soares - que em sua juventude chegou a estudar teatro com Sérgio Britto, sendo na época conhecido como "Motor" ou "Motorzinho" pelos mais íntimos - ocupava o cargo de Secretário de Segurança do Estado. Humanista e intelectual, acreditava que poderia enfrentar os corruptos e todas as deformações inerentes ao sistema. Lutou o quando pôde, mas acabou tendo que renunciar e, ameaçado de morte, chegou até mesmo a sair do país. Ao regressar, escreveu "Elite da tropa", em parceria com André Batista e Rodrigo Pimentel, livro que deu origem ao filme "Tropa de elite".
Agora, Luiz Eduardo, Domingos Oliveira e Marcia Zanelatto assinam a peça "Confronto" (Sangrenta madrugada sangrenta), livremente inspirada em "Elite da tropa", cujo enredo aborda não tanto as ações policiais propriamente ditas, mas as diabólicas maquinações dos que estão no topo da Segurança do Estado.
Em cartaz no Espaço Sesc, "Confronto" chega à cena com Direção de Domingos Oliveira e elenco formado por Michel Bercovith (Luiz Felipe, Secretário de Segurança), Camilo Bevilacqua (Vitor Graça, chefe da Polícia Civil), Delson Antunes (Santiago, capitão da PM), Renata Paschoal (Renata Palhares, assistente social em Bangu I), Luiz B. Neto (Fraga, comandante da PM), José Roberto de Oliveira (delegado Luizão França), Paulo Giardini (Governador da cidade), Moisés Bittencourt (Amílcar, do Serviço de Inteligência), Fernando Gomes (Vaz, da Inteligência), Rose Abdahlla (Alicia, secretária de Luiz Felipe), Marcello Pio (Moisés, chefe do Comando Vermelho), Graziella Schmitt (Michele, ex-stripper, mulher do traficante), Marcelo Mendonça (Baby, psicólogo e amigo de Renata), Alexandre Mofati (Aliosto e piloto), Adriano Pettermann (reporter e diretor do presídio), Eduardo Bastos (camareiro de Michele), Lincoln Vargas (Sininho), Lori Santos (Paraná, do Terceiro Comando) e Luiz Machado (Miranda).
Sendo a ação conduzida por um narrador em off (Domingos Oliveira), aos poucos a platéia vai se dando conta de uma série de horrores inerentes ao Poder e sua infinita capacidade de empreender maquinações sinistras visando materializar seus sórdidos interesses. Sem dúvida, trata-se de uma realidade paralela à qual a opinião pública jamais tem acesso, posto que os órgãos de comunicação, de uma maneira geral, ou desconhcem os meandros desta mencionada realidade ou não têm o menor interesse em divulgá-la - e isto por razões que a razão certamente conhece...
Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma ação que prende por completo a atenção do espectador, "Confronto" se insere no seleto rol de textos indispensáveis, posto que não apenas denuncia a podridão de todo o sistema como instiga a platéia a refletir sobre possíveis maneiras de modificá-la. Em vista disso, comparecer ao Espaço Sesc torna-se uma obrigação para todos aqueles que ainda alimentam alguma esperança de viver em um país imune a determinados vírus que só contribuem para arruiná-lo.
Com relação ao espetáculo, Domingos Oliveira impõe à cena uma dinâmica agil, eletrizante e muito expressiva, conseguindo sempre manter o indispensável clima de expectativa na platéia. Tal êxito também se dá, naturalmente, em face do ótimo rendimento da maior parte do elenco,
com especial destaque para Michel Bercovitch, Camilo Bevilacqua, Renata Paschoal, Paulo Giardini e Rose Abdahlla, com os demais exibindo atuações seguras.
Na equipe técnica, a correção é a tônica nos trabalhos de Ronald Teixeira e Leobruno Gama (cenário e figurinos) e Russinho (iluminação, com supervisão de Maneco Quinderé).
CONFRONTO - Texto de Domingos Oliveira, Luiz Eduardo Soares e Marcia Zanelatto. Direção de Domingos Oliveira. Com Michel Bercovitch, Camilo Bevilacqua e grande elenco. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.
"Confronto"
(Sangrenta madrugada sangrenta)
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Ótimo texto em versão primorosa
Lionel Fischer
No início deste século, Luiz Felipe Soares - que em sua juventude chegou a estudar teatro com Sérgio Britto, sendo na época conhecido como "Motor" ou "Motorzinho" pelos mais íntimos - ocupava o cargo de Secretário de Segurança do Estado. Humanista e intelectual, acreditava que poderia enfrentar os corruptos e todas as deformações inerentes ao sistema. Lutou o quando pôde, mas acabou tendo que renunciar e, ameaçado de morte, chegou até mesmo a sair do país. Ao regressar, escreveu "Elite da tropa", em parceria com André Batista e Rodrigo Pimentel, livro que deu origem ao filme "Tropa de elite".
Agora, Luiz Eduardo, Domingos Oliveira e Marcia Zanelatto assinam a peça "Confronto" (Sangrenta madrugada sangrenta), livremente inspirada em "Elite da tropa", cujo enredo aborda não tanto as ações policiais propriamente ditas, mas as diabólicas maquinações dos que estão no topo da Segurança do Estado.
Em cartaz no Espaço Sesc, "Confronto" chega à cena com Direção de Domingos Oliveira e elenco formado por Michel Bercovith (Luiz Felipe, Secretário de Segurança), Camilo Bevilacqua (Vitor Graça, chefe da Polícia Civil), Delson Antunes (Santiago, capitão da PM), Renata Paschoal (Renata Palhares, assistente social em Bangu I), Luiz B. Neto (Fraga, comandante da PM), José Roberto de Oliveira (delegado Luizão França), Paulo Giardini (Governador da cidade), Moisés Bittencourt (Amílcar, do Serviço de Inteligência), Fernando Gomes (Vaz, da Inteligência), Rose Abdahlla (Alicia, secretária de Luiz Felipe), Marcello Pio (Moisés, chefe do Comando Vermelho), Graziella Schmitt (Michele, ex-stripper, mulher do traficante), Marcelo Mendonça (Baby, psicólogo e amigo de Renata), Alexandre Mofati (Aliosto e piloto), Adriano Pettermann (reporter e diretor do presídio), Eduardo Bastos (camareiro de Michele), Lincoln Vargas (Sininho), Lori Santos (Paraná, do Terceiro Comando) e Luiz Machado (Miranda).
Sendo a ação conduzida por um narrador em off (Domingos Oliveira), aos poucos a platéia vai se dando conta de uma série de horrores inerentes ao Poder e sua infinita capacidade de empreender maquinações sinistras visando materializar seus sórdidos interesses. Sem dúvida, trata-se de uma realidade paralela à qual a opinião pública jamais tem acesso, posto que os órgãos de comunicação, de uma maneira geral, ou desconhcem os meandros desta mencionada realidade ou não têm o menor interesse em divulgá-la - e isto por razões que a razão certamente conhece...
Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma ação que prende por completo a atenção do espectador, "Confronto" se insere no seleto rol de textos indispensáveis, posto que não apenas denuncia a podridão de todo o sistema como instiga a platéia a refletir sobre possíveis maneiras de modificá-la. Em vista disso, comparecer ao Espaço Sesc torna-se uma obrigação para todos aqueles que ainda alimentam alguma esperança de viver em um país imune a determinados vírus que só contribuem para arruiná-lo.
Com relação ao espetáculo, Domingos Oliveira impõe à cena uma dinâmica agil, eletrizante e muito expressiva, conseguindo sempre manter o indispensável clima de expectativa na platéia. Tal êxito também se dá, naturalmente, em face do ótimo rendimento da maior parte do elenco,
com especial destaque para Michel Bercovitch, Camilo Bevilacqua, Renata Paschoal, Paulo Giardini e Rose Abdahlla, com os demais exibindo atuações seguras.
Na equipe técnica, a correção é a tônica nos trabalhos de Ronald Teixeira e Leobruno Gama (cenário e figurinos) e Russinho (iluminação, com supervisão de Maneco Quinderé).
CONFRONTO - Texto de Domingos Oliveira, Luiz Eduardo Soares e Marcia Zanelatto. Direção de Domingos Oliveira. Com Michel Bercovitch, Camilo Bevilacqua e grande elenco. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.
Teatro/CRÍTICA
"Cidade das donzelas"
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Bizarra e divertida narrativa
Lionel Fischer
Como já dissemos inúmeras vezes ao longo desses 20 anos de exercício da crítica teatral, uma boa idéia não garante um produto final à sua altura. Mas é claro que é sempre melhor se partir de uma idéia potencialmente interessante, como no presente caso. O narrador Franzilino conta a história de um tal de Carolino que, ao chegar numa pequena cidade do sertão, toma conhecimento de que ali não existem homens e apenas mulheres muito feias. Por que seria?
Bem, ao longo da trama fica-se sabendo que as tais mulheres feias assassinam todos os homens que aparecem, só não ficando muito claro se antes mataram as mulheres belas por inveja ou qualquer outro impulso igualmente destrutivo.
Uma produção do grupo Troupp Pas D'Argent, "Cidade das donzelas" é o atual cartaz do Teatro Municipal Café Pequeno, após cumprir várias temporadas no Brasil e no exterior. Marcela Rodrigues assina o texto e a direção, estando o elenco formado por Carolina Garcês, Lilian Meireles, Natalie Rodrigues, Jorge Florêncio, Marcela Rodriues e Orlando Caldeira.
Escrita numa linguagem de cordel, a peça pode ser interpretada de várias maneiras. Se encarada apenas em seus aspectos mais evidentes, trata-se de uma história bizarra, com passagens muito engraçadas. Ao mesmo tempo, e ainda que não tenha sido esta a intenção da autora, a narrativa nos remete a alguns mitos, como o do canto das sereias que enfeitiçavam os navegantes e em seguida os matavam, assim como o de Meduza, que tinha serpentes no lugar dos cabelos e que também assassinava os incautos que dela se aproximavam.
Seja como for, Marcela Rodrigues revela muitas qualidades como autora, em especial no que concerne à sua capacidade de criar rimas inventivas e divertidas. Só achamos que seu texto poderia ser um pouco reduzido, pois há passagens que se alongam em demasia e assim retardam o desenvolvimento da narrativa.
Quanto à sua direção, esta impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, cabendo destacar a expressividade corporal que extrai do elenco, sem dúvida o ponto mais atraente do espetáculo. Carolina Garcês, Lilian Meireles, Natalie Rodrigues, Jorge Florêncio, Orlando Caldeira e a própria Marcela Rodrigues demonstram, de forma irrefutável, que os atores não apenas podem, como devem, utilizar não apenas suas vozes, mas todo o seu corpo, convertendo-o no que poderíamos chamar de "massa expressiva".
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a excelência do trabalho de todos os profissionais envolvidos neste curioso e pertinente projeto - Lilian Meireles e Orlando Caldeira (figurinos), Jorge Florêncio, Natalie Rodrigues e Marcela Rodrigues (cenário e adereços), Rafael Juliani, Flavio Monteiro e Kátia Jórgensen (músicas) e Luiz Paulo Nenen (iluminação).
CIDADE DAS DONZELAS - Texto e direção de Marcela Rodrigues. Com o grupo Troupp Pas D'Argent. Teatro Municipal Café Pequeno. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
"Cidade das donzelas"
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Bizarra e divertida narrativa
Lionel Fischer
Como já dissemos inúmeras vezes ao longo desses 20 anos de exercício da crítica teatral, uma boa idéia não garante um produto final à sua altura. Mas é claro que é sempre melhor se partir de uma idéia potencialmente interessante, como no presente caso. O narrador Franzilino conta a história de um tal de Carolino que, ao chegar numa pequena cidade do sertão, toma conhecimento de que ali não existem homens e apenas mulheres muito feias. Por que seria?
Bem, ao longo da trama fica-se sabendo que as tais mulheres feias assassinam todos os homens que aparecem, só não ficando muito claro se antes mataram as mulheres belas por inveja ou qualquer outro impulso igualmente destrutivo.
Uma produção do grupo Troupp Pas D'Argent, "Cidade das donzelas" é o atual cartaz do Teatro Municipal Café Pequeno, após cumprir várias temporadas no Brasil e no exterior. Marcela Rodrigues assina o texto e a direção, estando o elenco formado por Carolina Garcês, Lilian Meireles, Natalie Rodrigues, Jorge Florêncio, Marcela Rodriues e Orlando Caldeira.
Escrita numa linguagem de cordel, a peça pode ser interpretada de várias maneiras. Se encarada apenas em seus aspectos mais evidentes, trata-se de uma história bizarra, com passagens muito engraçadas. Ao mesmo tempo, e ainda que não tenha sido esta a intenção da autora, a narrativa nos remete a alguns mitos, como o do canto das sereias que enfeitiçavam os navegantes e em seguida os matavam, assim como o de Meduza, que tinha serpentes no lugar dos cabelos e que também assassinava os incautos que dela se aproximavam.
Seja como for, Marcela Rodrigues revela muitas qualidades como autora, em especial no que concerne à sua capacidade de criar rimas inventivas e divertidas. Só achamos que seu texto poderia ser um pouco reduzido, pois há passagens que se alongam em demasia e assim retardam o desenvolvimento da narrativa.
Quanto à sua direção, esta impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, cabendo destacar a expressividade corporal que extrai do elenco, sem dúvida o ponto mais atraente do espetáculo. Carolina Garcês, Lilian Meireles, Natalie Rodrigues, Jorge Florêncio, Orlando Caldeira e a própria Marcela Rodrigues demonstram, de forma irrefutável, que os atores não apenas podem, como devem, utilizar não apenas suas vozes, mas todo o seu corpo, convertendo-o no que poderíamos chamar de "massa expressiva".
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a excelência do trabalho de todos os profissionais envolvidos neste curioso e pertinente projeto - Lilian Meireles e Orlando Caldeira (figurinos), Jorge Florêncio, Natalie Rodrigues e Marcela Rodrigues (cenário e adereços), Rafael Juliani, Flavio Monteiro e Kátia Jórgensen (músicas) e Luiz Paulo Nenen (iluminação).
CIDADE DAS DONZELAS - Texto e direção de Marcela Rodrigues. Com o grupo Troupp Pas D'Argent. Teatro Municipal Café Pequeno. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
Teatro para crianças
Maria Clara Machado
Um espetáculo de teatro bem feito é um estímulo inesgotável para a sensibilidade da criança. A emoção artística leva a criança a um mundo de fantasia e de sonho que corresponde ao que busca sua alma em desenvolvimento. Num espetáculo bem feito há perfeito entendimento entre os anseios, ainda desconhecidos, da criança e a realidade inexplicável do mundo misterioso que a rodeia. O mistério teatral é justamente esta identificação profunda de cores, ritmos, música, movimento e palavra com a alma do espectador.
Poesia
Antonin Artaud diz que teatro é poesia em movimento no espaço. O público espera este momento de poesia. E que público mais capaz, mais pronto a captar esta poesia solta no espaço que a criança? É difícil, nesta década de computadores, provar a importância do espetáculo teatral bem feito na alma da criança. Não há estatística que mostre o maior ou menor grau de sensibilidade captado numa sala de teatro. Mas, para o observador sensível, a transformação que sofre o pequeno público durante um espetáculo é inesquecível. Qual o segredo do encontro entre os autores de livros e peças para crianças e o menino? Quando uma obra escrita por um adulto, para a criança, é boa, em que é que ela toca a criança? Quem julga a obra para a criança? É o adulto?
Símbolos
O teatro dirigido para a criança é um teatro muito especial. Enquanto o público adulto pode "pensar" sobre o que viu, tem a capacidade, ou pelo menos deve ter, de criticar, de selecionar seus sentimentos para julgar o que está vendo, a criança só poderá captar o espírito da obra pelos seus símbolos. Ela adere totalmente ao que vê identificando-se com os personagens, não fazendo, ou não podendo fazer mais a divisão entre o que é ficção e o que é realidade. Enquanto a percepção do adulto é sempre vigiada pela compreensão, a criança é pura afetividade. Ela se engaja na história e passa a viver os personagens como se eles fossem reais. Para o espectador infantil, a inteligência conta muito pouco. O que está solta no espaço, como diria Artaud, é sua sensação, captando cores, sons, movimento, ação.
Magia
A magia teatral pode ser um fator de grande importância na educação emocional da criança. Se ela se identifica com os personagens, ela está também transferindo seus medos, suas ansiedades para estes personagens. Está pois aliviando suas tensões. Os personagens passam então a agir como símbolos. Daí a importância, por exemplo, da adaptação teatral das histórias de fadas para a formação psicológica da criança. Ela vê seus medos interiores exteriorizados e resolvidos através da ficção teatral. Quando ela entra no mundo do faz-de-conta, ela deixa o mundo concreto e hostil, para se transportar a um país longínquo, cheio de cavernas, de castelos, na pele de animais ou de fadas.
Influência
Ultimamente, foi publicado um livro do psicólogo Bruno Bettelheim, "A psicanálise nos contos de fada", onde ele faz, justamente, um estudo profundo da influência benéfica dos contos de fada no desenvolvimento emocional da criança. Este livro muito me ajudou a comprender o porquê dos fascínio que sempre exerceu sobre mim as histórias de fadas. Muita gente pensa, e eu mesmo fiquei muito tempo em dúvida sobre a importância de se transmitir à criança uma visão realista do mundo. O dever, o amor, a pátria, a família, até a luta pela sobrevivência, o combate aos preconceitos etc. Claro que esta realidade pode ser mostrada, mas de uma maneira mágica, transfigurada. A criança não está preparada para a realidade externa, porque ela ainda está mais ligada à sua realidade interna, ao esforço para crescer, vencendo medos e ansiedades. Os obstáculos a vencer ainda não são tão concretos (estes ainda estão nas mãos dos pais), ainda não preocupam a criança a injustiça social ou a bondade universal. Ela está mais perto das verdades essenciais, longe da lógica e da razão - a rejeição, a competição, o medo, a fome de amor.
Alimento
No reino da fantasia, ela vê os dragões serem vencidos, os castelos conquistados, o bem vencendo, o esforço do herói coroado. Tudo isto é o cotidiano da criança transfigurado pelo poder mágico do teatro. Apesar de saber que dragões não existem, e que animais não falam, a fantasia é alimento que marca profundamente o espírito da criança, porque representa símbolos eternos da luta pelo crescimento psicológico do homem. E os símbolos aliviam a criança de seus medos e ansiedades concretas, porque antes de abordar a realidade adulta, ela tem que aprender a controlar seu mundo emocional, para poder então crescer. Mas por que são necessários símbolos, para se chegar à realidade emocional da criança? Por que não abordar diretamente os problemas concretos, o relacionamento pai, filho, irmãos? Porque é mais fácil vencer um dragão de mentira, ser um herói corajoso num palco, ou entrar na pele de um animal do que ser ameaçado a se ver no palco na pele de um menino de verdade. Enfrentar o mundo lógico e materialista dos adultos é muito mais difícil do que envolver-se no mundo da fantasia.
Falsidade
E o que muitas vezes os autores adultos fazem é transformar este mundo difícil num mundo adocicado e falso de muitas histórias infantis, pensando estarem poupando a criança. A violência dos contos de fadas, com seus monstros, não mentem sobre as durezas da vida, apenas são mostrados através de símbolos, que chegam ao espírito da criança envoltos pela magia do faz-de-conta, mas na verdade muito mais perto da realidade mais profunda da criança. Justamente por desconhecer as verdadeiras necessidades da criança, porque a criança não sabe transmitir, à maneira do adulto, suas impressões sobre suas próprias emoções e vivências, é que o adulto comete tantos pequenos crimes contra a infância. Apesar de concordar com as idéias de Bruno Bettelheim sobre o valor dos contos de fadas na educação emocional da criança, penso que tudo que se fala e se analisa sobre a criança não passa de hipóteses, de observações baseadas no comportamento da criança.
Mistério
O encontro do adulto com o menino continua sendo um mistério. O que agrada ao menino nos contos e peças infantis é tão desconhecido como a própria alma do menino. É impossível para qualquer criador explicar sua obra. Em se tratando de obra para criança, então, a tarefa se torna muito mais difícil. Talvez o adulto tenha guardado melhor o seu lado menino e tenha podido, já com odomínio da técnica, passar para outros meninos seu mundo inconsciente, rico de vivência. Jung diz que o momento criador, que mergulha suas raízes na imensidade difusa do inconsciente, permanecerá indubitavelmente para sempre fechado aos assaltos do conhecimento humano. O autor de obras para crianças se pergunta sempre o que escrever para criança, o que é bom para elas. Quais os ingredientes para se fazer uma boa peça infantil?
Inútil
Não adianta diregir um tratado de pedagogia, de psicologia ou mesmo da arte de escrever, que de nada servirá para se escrever bem para a crianças. A arte de escrever para criança, como toda criação verdadeira, continua tão misteriosa como há um século. A criação artística, diz Jung, toma conta do criador como se ele fosse um mero instrumento de alguma coisa que o transcende. O autor pode ser uma pessoa comum como personalidade, ele não tem obrigação de estar à altura de sua obra...Sua biografia pessoal pode ser de um filisteu, de um homem maravilhoso, de um mendigo, de um louco, de um criminoso. Que ele seja interessante ou não é secundário para a essência da poesia. O melhor modo que encontrei para explicar minhas peças foi a maneira usada pelas próprias crianças quando perguntamos a elas porque fizeram um desenho daquele jeito.
- Porque saiu assim.
Problema
Exxiste o problema da qualidade. A obra é boa? Serve para a criança? É realmente uma obra de arte? É tão difícil a resposta quanto é difícil conhecer realmente as necessidades artísticas de uma criança. O crítico de uma obra para criança é um adulto. Quem faz coisas para crianças são os adultos. A frase "a criança gostou" é falsa. Porque ela gosta também dos programas de auditório nas TVs, e muitos adultos acham esses programas medíocres. A verdade é que muito pouca coisa escrita e feita para a criança resiste ao tempo. E nem semque o que resistiu ao tempo é aquilo que os educadores podem chamar de saudável para a criança. Estão aí os irmãos Grimm, Andersen, Perrault e outros, desafiando o tempo...
Nonsense
Lewis Carroll, com sua "Alice no país das maravilhas", Monteiro Lobato e a deliciosa Emília, são personagens onde o nonsense desenfreado faz lembrar aos adultos que é mais saudável não levar a sério demais as coisas tidas como certas e imutáveis. Uma cambalhota, à maneira dos irmãos Marx, está talvez mais perto da verdade das crianças do que uma enxurrada de ensinamentos morais duvidosos...
Buraquinho
Se a criação artística é um imenso mistério que vem das profundezas do inconsciente, a criança é outro mistério maravilhoso. A grande decepção do homem racional deste século é querer saber tudo que se passa no mundo infantil. Escreve livros, inventa teorias, faz congressos, e a criança continua fazendo seu buraquinho na areia para colocar o mar dentro, como na história de Sto. Agostinho. Não tente me desvendar, parece querer dizer a criança. Talvez o segredo daqueles que conseguiram ficar entre as crianças seja o de serem fiéis ao menino que vive dentro deles. De ouvirem a voz de seu próprio inconsciente, e de respeitarem o mistério da infância.
Respeito
Talvez a tão desejada liberdade que se reclama para a educação moderna seja apenas isso: respeitar o mundo misterioso do menino. E ele possui dentro de si mesmo o futuro e cabe ao adulto abrir o caminho apenas, deixando que a vida faça o resto. Quando escrevemos para a criança somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho, o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte, e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, misteriosa, clara, escura, feita de sonhos e de realidades.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 80/1979, edição já esgotada.
Maria Clara Machado
Um espetáculo de teatro bem feito é um estímulo inesgotável para a sensibilidade da criança. A emoção artística leva a criança a um mundo de fantasia e de sonho que corresponde ao que busca sua alma em desenvolvimento. Num espetáculo bem feito há perfeito entendimento entre os anseios, ainda desconhecidos, da criança e a realidade inexplicável do mundo misterioso que a rodeia. O mistério teatral é justamente esta identificação profunda de cores, ritmos, música, movimento e palavra com a alma do espectador.
Poesia
Antonin Artaud diz que teatro é poesia em movimento no espaço. O público espera este momento de poesia. E que público mais capaz, mais pronto a captar esta poesia solta no espaço que a criança? É difícil, nesta década de computadores, provar a importância do espetáculo teatral bem feito na alma da criança. Não há estatística que mostre o maior ou menor grau de sensibilidade captado numa sala de teatro. Mas, para o observador sensível, a transformação que sofre o pequeno público durante um espetáculo é inesquecível. Qual o segredo do encontro entre os autores de livros e peças para crianças e o menino? Quando uma obra escrita por um adulto, para a criança, é boa, em que é que ela toca a criança? Quem julga a obra para a criança? É o adulto?
Símbolos
O teatro dirigido para a criança é um teatro muito especial. Enquanto o público adulto pode "pensar" sobre o que viu, tem a capacidade, ou pelo menos deve ter, de criticar, de selecionar seus sentimentos para julgar o que está vendo, a criança só poderá captar o espírito da obra pelos seus símbolos. Ela adere totalmente ao que vê identificando-se com os personagens, não fazendo, ou não podendo fazer mais a divisão entre o que é ficção e o que é realidade. Enquanto a percepção do adulto é sempre vigiada pela compreensão, a criança é pura afetividade. Ela se engaja na história e passa a viver os personagens como se eles fossem reais. Para o espectador infantil, a inteligência conta muito pouco. O que está solta no espaço, como diria Artaud, é sua sensação, captando cores, sons, movimento, ação.
Magia
A magia teatral pode ser um fator de grande importância na educação emocional da criança. Se ela se identifica com os personagens, ela está também transferindo seus medos, suas ansiedades para estes personagens. Está pois aliviando suas tensões. Os personagens passam então a agir como símbolos. Daí a importância, por exemplo, da adaptação teatral das histórias de fadas para a formação psicológica da criança. Ela vê seus medos interiores exteriorizados e resolvidos através da ficção teatral. Quando ela entra no mundo do faz-de-conta, ela deixa o mundo concreto e hostil, para se transportar a um país longínquo, cheio de cavernas, de castelos, na pele de animais ou de fadas.
Influência
Ultimamente, foi publicado um livro do psicólogo Bruno Bettelheim, "A psicanálise nos contos de fada", onde ele faz, justamente, um estudo profundo da influência benéfica dos contos de fada no desenvolvimento emocional da criança. Este livro muito me ajudou a comprender o porquê dos fascínio que sempre exerceu sobre mim as histórias de fadas. Muita gente pensa, e eu mesmo fiquei muito tempo em dúvida sobre a importância de se transmitir à criança uma visão realista do mundo. O dever, o amor, a pátria, a família, até a luta pela sobrevivência, o combate aos preconceitos etc. Claro que esta realidade pode ser mostrada, mas de uma maneira mágica, transfigurada. A criança não está preparada para a realidade externa, porque ela ainda está mais ligada à sua realidade interna, ao esforço para crescer, vencendo medos e ansiedades. Os obstáculos a vencer ainda não são tão concretos (estes ainda estão nas mãos dos pais), ainda não preocupam a criança a injustiça social ou a bondade universal. Ela está mais perto das verdades essenciais, longe da lógica e da razão - a rejeição, a competição, o medo, a fome de amor.
Alimento
No reino da fantasia, ela vê os dragões serem vencidos, os castelos conquistados, o bem vencendo, o esforço do herói coroado. Tudo isto é o cotidiano da criança transfigurado pelo poder mágico do teatro. Apesar de saber que dragões não existem, e que animais não falam, a fantasia é alimento que marca profundamente o espírito da criança, porque representa símbolos eternos da luta pelo crescimento psicológico do homem. E os símbolos aliviam a criança de seus medos e ansiedades concretas, porque antes de abordar a realidade adulta, ela tem que aprender a controlar seu mundo emocional, para poder então crescer. Mas por que são necessários símbolos, para se chegar à realidade emocional da criança? Por que não abordar diretamente os problemas concretos, o relacionamento pai, filho, irmãos? Porque é mais fácil vencer um dragão de mentira, ser um herói corajoso num palco, ou entrar na pele de um animal do que ser ameaçado a se ver no palco na pele de um menino de verdade. Enfrentar o mundo lógico e materialista dos adultos é muito mais difícil do que envolver-se no mundo da fantasia.
Falsidade
E o que muitas vezes os autores adultos fazem é transformar este mundo difícil num mundo adocicado e falso de muitas histórias infantis, pensando estarem poupando a criança. A violência dos contos de fadas, com seus monstros, não mentem sobre as durezas da vida, apenas são mostrados através de símbolos, que chegam ao espírito da criança envoltos pela magia do faz-de-conta, mas na verdade muito mais perto da realidade mais profunda da criança. Justamente por desconhecer as verdadeiras necessidades da criança, porque a criança não sabe transmitir, à maneira do adulto, suas impressões sobre suas próprias emoções e vivências, é que o adulto comete tantos pequenos crimes contra a infância. Apesar de concordar com as idéias de Bruno Bettelheim sobre o valor dos contos de fadas na educação emocional da criança, penso que tudo que se fala e se analisa sobre a criança não passa de hipóteses, de observações baseadas no comportamento da criança.
Mistério
O encontro do adulto com o menino continua sendo um mistério. O que agrada ao menino nos contos e peças infantis é tão desconhecido como a própria alma do menino. É impossível para qualquer criador explicar sua obra. Em se tratando de obra para criança, então, a tarefa se torna muito mais difícil. Talvez o adulto tenha guardado melhor o seu lado menino e tenha podido, já com odomínio da técnica, passar para outros meninos seu mundo inconsciente, rico de vivência. Jung diz que o momento criador, que mergulha suas raízes na imensidade difusa do inconsciente, permanecerá indubitavelmente para sempre fechado aos assaltos do conhecimento humano. O autor de obras para crianças se pergunta sempre o que escrever para criança, o que é bom para elas. Quais os ingredientes para se fazer uma boa peça infantil?
Inútil
Não adianta diregir um tratado de pedagogia, de psicologia ou mesmo da arte de escrever, que de nada servirá para se escrever bem para a crianças. A arte de escrever para criança, como toda criação verdadeira, continua tão misteriosa como há um século. A criação artística, diz Jung, toma conta do criador como se ele fosse um mero instrumento de alguma coisa que o transcende. O autor pode ser uma pessoa comum como personalidade, ele não tem obrigação de estar à altura de sua obra...Sua biografia pessoal pode ser de um filisteu, de um homem maravilhoso, de um mendigo, de um louco, de um criminoso. Que ele seja interessante ou não é secundário para a essência da poesia. O melhor modo que encontrei para explicar minhas peças foi a maneira usada pelas próprias crianças quando perguntamos a elas porque fizeram um desenho daquele jeito.
- Porque saiu assim.
Problema
Exxiste o problema da qualidade. A obra é boa? Serve para a criança? É realmente uma obra de arte? É tão difícil a resposta quanto é difícil conhecer realmente as necessidades artísticas de uma criança. O crítico de uma obra para criança é um adulto. Quem faz coisas para crianças são os adultos. A frase "a criança gostou" é falsa. Porque ela gosta também dos programas de auditório nas TVs, e muitos adultos acham esses programas medíocres. A verdade é que muito pouca coisa escrita e feita para a criança resiste ao tempo. E nem semque o que resistiu ao tempo é aquilo que os educadores podem chamar de saudável para a criança. Estão aí os irmãos Grimm, Andersen, Perrault e outros, desafiando o tempo...
Nonsense
Lewis Carroll, com sua "Alice no país das maravilhas", Monteiro Lobato e a deliciosa Emília, são personagens onde o nonsense desenfreado faz lembrar aos adultos que é mais saudável não levar a sério demais as coisas tidas como certas e imutáveis. Uma cambalhota, à maneira dos irmãos Marx, está talvez mais perto da verdade das crianças do que uma enxurrada de ensinamentos morais duvidosos...
Buraquinho
Se a criação artística é um imenso mistério que vem das profundezas do inconsciente, a criança é outro mistério maravilhoso. A grande decepção do homem racional deste século é querer saber tudo que se passa no mundo infantil. Escreve livros, inventa teorias, faz congressos, e a criança continua fazendo seu buraquinho na areia para colocar o mar dentro, como na história de Sto. Agostinho. Não tente me desvendar, parece querer dizer a criança. Talvez o segredo daqueles que conseguiram ficar entre as crianças seja o de serem fiéis ao menino que vive dentro deles. De ouvirem a voz de seu próprio inconsciente, e de respeitarem o mistério da infância.
Respeito
Talvez a tão desejada liberdade que se reclama para a educação moderna seja apenas isso: respeitar o mundo misterioso do menino. E ele possui dentro de si mesmo o futuro e cabe ao adulto abrir o caminho apenas, deixando que a vida faça o resto. Quando escrevemos para a criança somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho, o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte, e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, misteriosa, clara, escura, feita de sonhos e de realidades.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 80/1979, edição já esgotada.