O credo do crítico
H. Clurman
Todo tipo de talento, por menor que seja, deve ser sempre levado a sério, principalmente os que estão perto de nós. Não sugiro que sigamos a recomendação de Herman Melville: "A América deve primeiro exaltar suas crianças medíocres, antes de elogiar...as crianças de mérito de outros países". Admito, no entanto, que é insensato deixar passar ou subestimar fatores como uma percepção do presente e de presença. Mas a aptidão crítica não consiste somente em reconhecer o talento: também tem que ter capacidade de avaliá-lo. O teatro americano está ricamente suprido de talentos, mas quase sempre de talentos insuficientemente grandes para serem bem aproveitados.
Isto nos mostra um aspecto da crítica de teatro que decididamente somos culpados. Nossos elogios são normalmente a resposta de um efeito, um registro de estímulo. Aplaudimos a pessoa que produz o efeito, com uma aclamação que vai de um elogio à engenhosidade até uma declaração de genialidade. Mas o que conta no talento é a sua seriedade própria, seu significado, como e de que maneira nos afeta, o sustento humano que nos oferece. Cianeto de potássio é tremendamente eficaz, mas não é alimento...
Tudo, mesmo o condenável, deve ser expresso no teatro. Não posso ter certeza de nada, a não ser que seja testado pelo seu oposto. Preciso das negações de Beckett, mesmo que seja só porque elas fortalecem minhas afirmações. Preciso da "deteorização" de Genet para manter minha saúde. Aceito a loucura em certos dramaturgos modernos para encontrar meu equilíbrio. Existe um discurso não convencional autêntico e a sua imitação da moda; é obrigação do crítico diferenciá-los.
Ele deve peneirar a substância que compõe cada talento, em relação a ele mesmo como uma pessoa representativa de um certo público. Expressões como "interessante", "uma boa peça", "uma beleza" não são suficientes. Temos que saber o que estas qualidades realmente produzem, como funcionam. O trabalho mais importante do crítico, repito, não é falar do que gosta ou não gosta, como se existisse apenas agrado ou desagrado, mas definir com exatidão a natureza do que ele analisa.
O que falei sobre julgamento de textos se aplica igualmente à situação e aos elementos que fazem parte da produção de uma peça de teatro. Hoje em dia a maioria das críticas refere-se muito menos à atuação, direção e cenários do que a avaliação dos textos. O valor da atuação é medido principalmente pelo grau de atração que ela exerce. Raramente o ator é julgado pela sua relevância na peça como um todo, pois, para começar, o significado da peça raramente é especificado. Falando em atuação, o crítico deve julgar a textura e composição do papel, na medida em que o ator o molda através de seu dom natural e do domínio de sua arte.
Talvez não se devesse ser tão rigoroso com o crítico, quando é negligente ou omisso em relação à atuação, direção etc., já que a maior parte das atuações e direções nos nossos palcos hoje, por razões que não vêm ao caso comentar no presente contexto, raramente pode ser considerada melhor do que competente. Em tais casos, uma reflexão "profunda" torna-se supérflua, quando não pretenciosa.
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Este artigo, aqui bastante resumido, está publicado na íntegra na revista Cadernos de Teatro
nº 119/1988. Extraído de Encore. 11. 2. 1964. Tradução de Maria Cristina F. Barros. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio.
terça-feira, 27 de outubro de 2009
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Causas ou fontes do riso
Henrique Oscar
As causas ou fontes do riso têm sido formuladas por estudiosos, críticos, filósofos e psicólogos, e embora seus esforços tenham levado a respostas contraditórias, podemos aproveitar algo de suas idéias. Allardyce Nicoll, em sua teoria do drama, apresenta três temas.
DERRISÃO - A observação de Aristóteles de que a comédia lida com "homens piores do que eles são", implica numa teoria cômica da derrisão ou da degradação. A comédia grega ridicularizou deformidades físicas e de conduta. A teoria cômica da derrisão é especialmente verificada quando o autor traça idéias e personagens satiricamente. Embora a degradação física, os personagens excêntricos e a linguagem insultuosa limitem-se praticamente à farsa, o autor satírico, atacando idéias, recorre igualmente ao ridículo. Aristófanes, Molière e Ben Jonson a ela recorreram.
INCONGRUÊNCIA - É a segunda teoria da origem da comicidade, segundo Nicoll. Talvez por ser a mais elástica e extensiva teoria da comédia, a idéia da incongruência é a mais ampla explicação da matéria. A incongruência resulta da tensão ou dissonância determinada pela justaposição de dois objetos ou personagens que expressem um contraste risível, como uma mulher gorda e grande casada com um homem magro e pequeno, ou uma pessoa deslocada no seu ambiente, como alguém de roupa de banho no teatro ou de traje a rigor na praia. O contraste usualmente depende do estabelecimento de um tipo de regra cuja desobediência é realçada.
A incongruência pode tomar várias formas: pode ser de situação, de personagens, de diálogo. A situação cômica baseada na incongruência apresenta um contraste entre o comportamento usual ou aceito e um desusado ou inaceitável. A incongruência de personagens envolve um choque entre o ideal e o real ou entre a aparência e a realidade.
A incongruência da linguagem ocorre quando o diálogo está em violento contraste com o seu contexto social, como, por exemplo, o emprego de uma interjeição numa conversação polida ou quando as palavras ditas causam o efeito oposto àquele desejado pelo personagem. Outra forma de incongruência na linguagem é quando ocorre uma maneira de falar que não combina com o personagem, como, por exemplo, refinados epigramas na boca de rústicos ou afirmações sábias feitas por crianças.
AUTOMATISMO - É a terceira fonte de riso, ainda segundo Nicoll. Uma das mais ricas e frutíferas teorias sobre o cômico é a de Bergson, quando afirma que a essência do risível é o automatismo. "Algo mecânico está incrustrado na vida. O homem se torna um objeto de riso quando se torna rígido e parece uma máquina ou perde o controle de si mesmo ou rompe o contato com a humanidade".
O automatismo do personagem ocorre quando ele perde sua flexibilidade humana e seu comportamento se torna mecânico na sua repetição, ou quando ele se torna um boneco sem controle de suas ações. O automatismo de situação é frequentemente baseado em repetições. Os pesonagens são apanhados pelas garras das circunstâncias e submetidos a uma dominação mecânica. Chaplin fez muito uso deste recurso.
Na comédia Dr. Knock, de Jules Romains, um charlatão repete exames e diagnósticos sempre idênticos. O automatismo do diálogo adquire formas diversas. Bergson fala em fazer ou dizer inadvertidamente o que não se tem intenção de dizer ou fazer. Ou então na repetição de uma frase, insistentemente, como em A cantora careca, de Ionesco: "Isto é curioso, como é bizarro, que coincidência", repetido inúmeras vezes.
Em resumo: uma comédia pode ao mesmo tempo lançar mão da derrisão, da incongruência e do automatismo.
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Este artigo, aqui resumido, consta da revista Cadernos de Teatro nº 140/1995.
Henrique Oscar
As causas ou fontes do riso têm sido formuladas por estudiosos, críticos, filósofos e psicólogos, e embora seus esforços tenham levado a respostas contraditórias, podemos aproveitar algo de suas idéias. Allardyce Nicoll, em sua teoria do drama, apresenta três temas.
DERRISÃO - A observação de Aristóteles de que a comédia lida com "homens piores do que eles são", implica numa teoria cômica da derrisão ou da degradação. A comédia grega ridicularizou deformidades físicas e de conduta. A teoria cômica da derrisão é especialmente verificada quando o autor traça idéias e personagens satiricamente. Embora a degradação física, os personagens excêntricos e a linguagem insultuosa limitem-se praticamente à farsa, o autor satírico, atacando idéias, recorre igualmente ao ridículo. Aristófanes, Molière e Ben Jonson a ela recorreram.
INCONGRUÊNCIA - É a segunda teoria da origem da comicidade, segundo Nicoll. Talvez por ser a mais elástica e extensiva teoria da comédia, a idéia da incongruência é a mais ampla explicação da matéria. A incongruência resulta da tensão ou dissonância determinada pela justaposição de dois objetos ou personagens que expressem um contraste risível, como uma mulher gorda e grande casada com um homem magro e pequeno, ou uma pessoa deslocada no seu ambiente, como alguém de roupa de banho no teatro ou de traje a rigor na praia. O contraste usualmente depende do estabelecimento de um tipo de regra cuja desobediência é realçada.
A incongruência pode tomar várias formas: pode ser de situação, de personagens, de diálogo. A situação cômica baseada na incongruência apresenta um contraste entre o comportamento usual ou aceito e um desusado ou inaceitável. A incongruência de personagens envolve um choque entre o ideal e o real ou entre a aparência e a realidade.
A incongruência da linguagem ocorre quando o diálogo está em violento contraste com o seu contexto social, como, por exemplo, o emprego de uma interjeição numa conversação polida ou quando as palavras ditas causam o efeito oposto àquele desejado pelo personagem. Outra forma de incongruência na linguagem é quando ocorre uma maneira de falar que não combina com o personagem, como, por exemplo, refinados epigramas na boca de rústicos ou afirmações sábias feitas por crianças.
AUTOMATISMO - É a terceira fonte de riso, ainda segundo Nicoll. Uma das mais ricas e frutíferas teorias sobre o cômico é a de Bergson, quando afirma que a essência do risível é o automatismo. "Algo mecânico está incrustrado na vida. O homem se torna um objeto de riso quando se torna rígido e parece uma máquina ou perde o controle de si mesmo ou rompe o contato com a humanidade".
O automatismo do personagem ocorre quando ele perde sua flexibilidade humana e seu comportamento se torna mecânico na sua repetição, ou quando ele se torna um boneco sem controle de suas ações. O automatismo de situação é frequentemente baseado em repetições. Os pesonagens são apanhados pelas garras das circunstâncias e submetidos a uma dominação mecânica. Chaplin fez muito uso deste recurso.
Na comédia Dr. Knock, de Jules Romains, um charlatão repete exames e diagnósticos sempre idênticos. O automatismo do diálogo adquire formas diversas. Bergson fala em fazer ou dizer inadvertidamente o que não se tem intenção de dizer ou fazer. Ou então na repetição de uma frase, insistentemente, como em A cantora careca, de Ionesco: "Isto é curioso, como é bizarro, que coincidência", repetido inúmeras vezes.
Em resumo: uma comédia pode ao mesmo tempo lançar mão da derrisão, da incongruência e do automatismo.
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Este artigo, aqui resumido, consta da revista Cadernos de Teatro nº 140/1995.
Teatro/CRÍTICA
"A janela e o jardim"
..........................................
Pertinências e oscilações
Lionel Fischer
No release que nos foi enviado, em dado momento o autor e diretor Paulo Biscaia diz o seguinte: "O eixo conceitual desta investigação cênica gira em torno da relação fenomenológica do ser humano com a memória e o tempo". Tal formulação me remeteu, de imediato, à de uma tese de mestrado. Já no programa distribuído ao público, o mesmo Paulo Biscaia fala de seu texto e do espetáculo numa linguagem bem menos acadêmica, não isenta de humor e de pertinentes reflexões sobre os temas abordados. Então, pensei: afinal, o que irei assistir?
Ainda no mesmo release, chega a informação de que a companhia paranaense Vigor Mortis, fundada por Biscaia em 1997, em Curitiba, segue uma linha de atuação baseada na tradição do Grand Guignol - "leva cena, texto e interpretação ao limite entre a linguagem teatral e audivisual". E embora tal definição me pareça questionável, seja como for não foi exatamente isto o que vi, pelas razões que apresentarei mais adiante. Mas por ora registremos que "A janela e o jardim" está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal, com elenco formado por Clara Serejo (Carmella, maquiadora) e Mônica Bassan (Catarina, cirurgiã plástica).
Fundada em Paris, em 1895, por Oscar Métenier, a companhia Théâtre du Grand Guignol ficou célebre por apresentar peças de terror, que contribuíram para fixar um gênero próprio associado ao nome da companhia. "Guignol" era o nome original de uma personagem de fantoche, de comportamento violento e satírico, protagonista de espetáculos de fantoches na França do século XVIII. Mais adiante, os bonecos foram substituídos por atores, que representavam pequenos enredos violentos, macabros e repletos de crimes horrendos, sendo Le jardin des suplices (1899), de Octave Mirbeau, uma peça referência do gênero.
Entretanto, e como já foi dito acima, nada no texto ou no espetáculo remete ao Grand Guignol - ao menos no sentido que a ele atribuo. O enredo gira em torno de duas amigas, filhas de mães suicidas, cujas profissões de certa maneira têm algo em comum - a maquiadora impõe aos rostos transformações provisórias, enquanto a cirurgiã molda faces, mas nenhuma das duas consegue alterar o que de fato importa: a essência de suas clientes. Isto, por sinal, é dito por Paulo Biscaia em seu ótimo texto do programa.
Estaríamos, portanto, diante de um tema com grande potencial dramático. E não resta dúvida de que muitas passagens contêm observações pertinentes sobre sobre a insatisfação humana e nossa relativa impotência em empreender transformações significativas. Mas a estrutura narrativa é não raro um tanto confusa, sobretudo quando a ação é interrompida para a maquiadora, por exemplo, explicar para a platéia a suposta eficácia de seus métodos.
E quanto à encenação - esqueçamos o Grand Guignol - Paulo Biscaia consegue muitas vezes criar uma atmosfera bastante instigante, um tanto surreal e alucinatória, pois a cena é trabalhada de tal forma que jamais chegamos a ter certeza sobre a natureza do encontro entre as duas amigas, interpretadas com segurança e sensibilidade por Clara Serejo e Mônica Bassan. Este encontro pode ser real ou fictício, ou quem sabe estar ocorrendo tanto no presente como na memória de cada uma delas. Ou até mesmo podemos especular que ambas não passam das faces de uma mesma moeda. Enfim...cada espectador fará a sua leitura.
Com relação à equipe técnica, Carla Berri assina uma cenografia em sintonia com o material dramatúrgico, sendo correta a iluminação de Paulo César Medeiros, a mesma correção aplicando-se aos figurinos criados pelas duas atrizes e à trilha sonora de Maurício Benghi.
A JANELA E O JARDIM - Texto e direção de Paulo Biscaia. Codireção de Cesar Augusto. Com Clara Serejo e Mônica Bassan. Centro Cultural Justiça Federal. Sexta a domingo às 19h.
"A janela e o jardim"
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Pertinências e oscilações
Lionel Fischer
No release que nos foi enviado, em dado momento o autor e diretor Paulo Biscaia diz o seguinte: "O eixo conceitual desta investigação cênica gira em torno da relação fenomenológica do ser humano com a memória e o tempo". Tal formulação me remeteu, de imediato, à de uma tese de mestrado. Já no programa distribuído ao público, o mesmo Paulo Biscaia fala de seu texto e do espetáculo numa linguagem bem menos acadêmica, não isenta de humor e de pertinentes reflexões sobre os temas abordados. Então, pensei: afinal, o que irei assistir?
Ainda no mesmo release, chega a informação de que a companhia paranaense Vigor Mortis, fundada por Biscaia em 1997, em Curitiba, segue uma linha de atuação baseada na tradição do Grand Guignol - "leva cena, texto e interpretação ao limite entre a linguagem teatral e audivisual". E embora tal definição me pareça questionável, seja como for não foi exatamente isto o que vi, pelas razões que apresentarei mais adiante. Mas por ora registremos que "A janela e o jardim" está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal, com elenco formado por Clara Serejo (Carmella, maquiadora) e Mônica Bassan (Catarina, cirurgiã plástica).
Fundada em Paris, em 1895, por Oscar Métenier, a companhia Théâtre du Grand Guignol ficou célebre por apresentar peças de terror, que contribuíram para fixar um gênero próprio associado ao nome da companhia. "Guignol" era o nome original de uma personagem de fantoche, de comportamento violento e satírico, protagonista de espetáculos de fantoches na França do século XVIII. Mais adiante, os bonecos foram substituídos por atores, que representavam pequenos enredos violentos, macabros e repletos de crimes horrendos, sendo Le jardin des suplices (1899), de Octave Mirbeau, uma peça referência do gênero.
Entretanto, e como já foi dito acima, nada no texto ou no espetáculo remete ao Grand Guignol - ao menos no sentido que a ele atribuo. O enredo gira em torno de duas amigas, filhas de mães suicidas, cujas profissões de certa maneira têm algo em comum - a maquiadora impõe aos rostos transformações provisórias, enquanto a cirurgiã molda faces, mas nenhuma das duas consegue alterar o que de fato importa: a essência de suas clientes. Isto, por sinal, é dito por Paulo Biscaia em seu ótimo texto do programa.
Estaríamos, portanto, diante de um tema com grande potencial dramático. E não resta dúvida de que muitas passagens contêm observações pertinentes sobre sobre a insatisfação humana e nossa relativa impotência em empreender transformações significativas. Mas a estrutura narrativa é não raro um tanto confusa, sobretudo quando a ação é interrompida para a maquiadora, por exemplo, explicar para a platéia a suposta eficácia de seus métodos.
E quanto à encenação - esqueçamos o Grand Guignol - Paulo Biscaia consegue muitas vezes criar uma atmosfera bastante instigante, um tanto surreal e alucinatória, pois a cena é trabalhada de tal forma que jamais chegamos a ter certeza sobre a natureza do encontro entre as duas amigas, interpretadas com segurança e sensibilidade por Clara Serejo e Mônica Bassan. Este encontro pode ser real ou fictício, ou quem sabe estar ocorrendo tanto no presente como na memória de cada uma delas. Ou até mesmo podemos especular que ambas não passam das faces de uma mesma moeda. Enfim...cada espectador fará a sua leitura.
Com relação à equipe técnica, Carla Berri assina uma cenografia em sintonia com o material dramatúrgico, sendo correta a iluminação de Paulo César Medeiros, a mesma correção aplicando-se aos figurinos criados pelas duas atrizes e à trilha sonora de Maurício Benghi.
A JANELA E O JARDIM - Texto e direção de Paulo Biscaia. Codireção de Cesar Augusto. Com Clara Serejo e Mônica Bassan. Centro Cultural Justiça Federal. Sexta a domingo às 19h.
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
"A arte é um delito"
(A entrevista que se segue foi concedida por Tadeuz Kantor (1915-1990) a Irene Maslinka. Mais informações sobre o notável e polêmico encenador polonês podem ser obtidas neste blog, na seção "Personalidades")
I.M - Abril de 1990 marcou seu 75º aniversário. O senhor é 15 anos mais jovem que nosso século em declínio. Considera nossa époa um período de decadência?
T.K - Ao meu ver, é preciso esquecer este termo tipicamente marxista: "uma arte em declínio", "uma arte decadente". Tal arte não existe. Para mim as épocas decadentes produziram na arte as maiores obras-primas. Sempre foi assim. Era então que se fazia o maior número de descobertas.
I.M - Não tomando como algo negativo, este termo "decadente" teria algum sentido?
T.K - O tempo na arte é muito relativo. Do ponto de vista, por exemplo, do existencialismo é possível dizer que o naturalismo do século XIX provinha da decadência; ora, agora que este naturalismo renasce no novo realismo não se sabe mais o que é decadente. O que quer que seja, existe em meu caráter, em minha natureza uma queda pelo declínio, a decadência, o mal, a tragédia, o desvio, o ciúme, e é esta inclinação a causa da arte. Não fui eu, mas Bataille quem escreveu que a arte é uma contravenção, um delito relativo às normas sociais. De fora da vida social, é exatamente por isso que eu digo: não significa que eu seja um niilista ou um anarquista.
I.M - Mas o senhor não é menos contra qualquer forma de autoridade.
T.K - A noção de arte é contrária a de qualquer autoridade, de qualquer poder. Em um tratado sobre o poder eu teria escrito, antes de mais nada, que os únicos competentes e capazes de assumir esta noção são os artistas. Mas é difícil imaginar homens poderosos que tivessem exercido seu poder em nome da arte.
I.M - O senhor quer dizer que só o universo artístico permite ser realmente livre?
T.K - O poder dos artistas se exerce na esfera espiritual, mas comparado ao poder material, dotado de todos os meios possíveis, ele se revela bastante fraco. É isso o que me torna um tanto pessimista.
I.M - Se o impacto da arte é pouco perceptível, isso se deve talvez ao seu efeito atrasado, e, ainda assim, muito marcante?
T.K - Não. A questão não está aí. Eu não sou sociólogo, mas consegui formular uma idéia levando em consideração meu próprio caso. Eu acredito ter de algum modo criado alguma coisa, digamos meu teatro, que, em toda parte, alcança um sucesso arrebatador. Mas como efeito é zero...
I.M - O senhor sempre se refere ao início do nosso século e aos anos 20. A fé daquela época no poder da arte viu se opor a ela um cruel desmentido. Nem os ardentes manifestos dos artistas, nem suas obras previram a carnificina dos povos: a Primeira, e depois, a Segunda Guerra Mundial.
T.K - Nada impede que aquela fé fosse, na época, real. Quando o maior pintor russo do século XX, Malevitch, veio a bordo de um trem especial a Berlim, no Bauhaus, o acolhimento com que ele foi recebido era comparável ao que hoje em dia se recebe um Gorbatchev ou um Bush.
I.M - Parece que o senhor também é acolhido como um ídolo no estrangeiro...
T.K - Isto, por exemplo! Mas de que adianta?! Hoje em dia, é unicamente uma questão de público. Sabe, minha intenção nunca é a de salvar o mundo com minha obra. Eu me interesso em extorquir de mim mesmo o que me atormenta no fundo do meu eu, e nada mais. Disposto a descobrir mais tarde que isto exalta as pessoas ou pode fazê-las mudar de opinião. Mas no momento em que a obra se esboça, eu só trabalho para mim mesmo. Mente aquele que afirma fazer obra de criação artística para a sociedade.
I.M - No teatro, o senhor deve, no entanto, atrair imediatamente o público. Sem dúvida o senhor pensa nisso, quando prepara seus espetáculos?
T.K - Não. Três vezes, não. Eu só procuro resolver meus próprios problemas. Como todo homem, eu sou levado a isso, e é somente quanto esta necessidade se afirma com um vigor particular, que se adquire uma força colossal e se chega a realizações muito válidas quando se é artista.
I.M - Em "Eu nunca mais voltarei", o senhor diz: "É então que nasce neste lixo de homem uma força sagrada. É infelicidade, depois, nesta força".
T.K - Eu sei disto por minha própria experiência. Se começo alguma coisa na arte é porque tenho que resolver um problema que é meu. Se este se resolve em mim mesmo sozinho, isto me faz perder de chofre a força necesária para terminar o trabalho. O que decide a criação de uma obra grande ou medíocre, é a criação do debate interior.
I.M - O senhor é profundamente apegado à formação artística dos anos 20.
T.K - O que me distingue dos adeptos do cubismo, da arte abstrata, do construtivismo, do dadaísmo etc., é que eu não tenho confiança na eficácia formal da minha arte. Daí a definição que formulei, e devo dizer que a despeito da natureza espontânea e fortuita da criação, dou importância às definições: eu disse, pois, que a obra mais válida se concebe sempre a partir de necessidades individuais. Não universais, não coletivas, não sociais.
I.M - No entanto, o senhor é um homem que conseguiu atingir um sucesso mundial. Como se deu isso? Que condições foram cumpridas? Uma resposta existe: "eu sou um grande artista", mas foi o individualismo que favoreceu sua comunicação e entendimento com o mundo? Pois é possível, no seu caso, falar de entendimento: o mundo inteiro quer assistir aos seus espetáculos.
T.K - Eu não sei. E acredito que todo artista autêntico lhe dará a mesma resposta e lhe dirá sempre: eu ignoro a que se deve o fato de eu ter me entendido com o mundo inteiro, quando era unicamente comigo que eu me entendia constantemente.
I.M - Seu sucesso mundial só aconteceu, entretanto, em um momento. O senhor se perguntou naquele momento o por quê do seu sucesso?
T.K - Não. Nunca. O sucesso veio? Melhor, ponto final. Sabe, talvez isso se deva à minha natureza profunda, mas eu não tenho em absoluto a ambição de fazer deste sucesso um método de salvação do mundo. Diferentemente de alguns artistas, que qualifico de "homens de visão".
I.M - Por exemplo?
T.K - Não, isso eu não lhe direi...(risos). Também houve alguns deles no passado...
I.M - O mundo de hoje está mais unido do que nunca e a situação do artista, este "homem diferente", é também diferente do que foi outrora. O paradoxo que diz que só a expressão individual tem chance de encontrar o caminho dos outros, encontra-se acentuada aí?
T.K - De tanto me perguntar porque eu insisto tanto no individual, eu percebo também causas muito concretas. Sebe-se que todas as tendências que procuraram escrever a atividade artística na História e na ação social, fracassaram. Isto significa que esta atitude continha uma parte falsa. Mas ao mesmo tempo eu acho que não tem fundamento justificar nem verificar programas artísticos com seu fracasso ou vitória social. Isso não tem fundamento, mas nós vivemos em sociedade, nós somos homens, e acima de tudo formados pelo racionalismo. O raciocínio é o seguinte: se as idéias de construtivismo, de arte abstrata, de supremacia russa estavam ligadas ao movimento revolucionário, e este movimento fracassou, estas correntes artísticas fracassaram com ele. Nos anos 1938-1940 eu ligava indissoluvelmente o construtivismo à revolução. Os próprios construtivistas declaravam, aliás, que em um momento a arte construtivista cessaria de existir, de tanto se fundir à vida: era o ideal ao qual eles aspiravam. Se a realidade se inscreve em falso contra um termo deste raciocínio, perde-se a confiança também no outro. E é isto o que faz com que, apesar de compreender a arte abstrata e depositar nela os valores de minha confiança, ela torna-se, subconscientemente, um pouco suspeita.Eu até escrevi um dia que a arte abstrata era uma corrente artística que correspondia ao poder totalitário.
I.M - A arte abstrata corresponde ao poder totalitário? Não seria o realismo socialista?
T.K - Existe aí um fundo de verdade, pois os abstratos também faziam proibições àqueles que não os seguiam, e os tratavam de maneira negligente. Era o totalitarismo e pode-se dizer que houve um terror de arte abstrata, um terror de surrealismo, de cubismo etc. Eu mesmo senti nos anos 70, quando, após meu período de arte abstrata e "informal", passei a pintar personagens, telas figurativas. Meus colegas então me acusaram de reacionário e de traidor.
I.M - Um vocabulário bastante sugestivo.
T.K - Ah, sim, eram acusações muito graves. Por ocasião de uma de minhas conferências, um senhor gritou: "E quais eram as suas idéias cinco anos atrás?". Eu lhe rspondi: "Isso lhe interessa?". A arte não é a política para me perguntarem como posso ser assim agora, se eu era outro há cinco anos atrás. Assim toda arte abstrata é herdeira do terrorismo. É por isso que, em 1970, decidi deixar o campo de batalha da vanguarda.
I.M - Da vanguarda no sentido estrito, histórico, do termo?
T.K - O que era da vanguarda no início do nosso século, nos anos 20, 30 e mesmo 40, depois se tornou uma moda, uma maneira de viver que leva à notoriedade e ao sucesso comercial. Eu tinha então escrito no manifesto "Teatro da Morte" que eu deixava este caminho oficial e universal e começava a procurar meu próprio caminho.
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Entrevista extraída, e aqui um pouco reduzida, de Theatre in Polland. I. 1991. Tradução de Elisa Duarte. Uma colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio. A íntegra da entrevista está publicada na Revista Cadernos de Teatro nº 127/1991.
(A entrevista que se segue foi concedida por Tadeuz Kantor (1915-1990) a Irene Maslinka. Mais informações sobre o notável e polêmico encenador polonês podem ser obtidas neste blog, na seção "Personalidades")
I.M - Abril de 1990 marcou seu 75º aniversário. O senhor é 15 anos mais jovem que nosso século em declínio. Considera nossa époa um período de decadência?
T.K - Ao meu ver, é preciso esquecer este termo tipicamente marxista: "uma arte em declínio", "uma arte decadente". Tal arte não existe. Para mim as épocas decadentes produziram na arte as maiores obras-primas. Sempre foi assim. Era então que se fazia o maior número de descobertas.
I.M - Não tomando como algo negativo, este termo "decadente" teria algum sentido?
T.K - O tempo na arte é muito relativo. Do ponto de vista, por exemplo, do existencialismo é possível dizer que o naturalismo do século XIX provinha da decadência; ora, agora que este naturalismo renasce no novo realismo não se sabe mais o que é decadente. O que quer que seja, existe em meu caráter, em minha natureza uma queda pelo declínio, a decadência, o mal, a tragédia, o desvio, o ciúme, e é esta inclinação a causa da arte. Não fui eu, mas Bataille quem escreveu que a arte é uma contravenção, um delito relativo às normas sociais. De fora da vida social, é exatamente por isso que eu digo: não significa que eu seja um niilista ou um anarquista.
I.M - Mas o senhor não é menos contra qualquer forma de autoridade.
T.K - A noção de arte é contrária a de qualquer autoridade, de qualquer poder. Em um tratado sobre o poder eu teria escrito, antes de mais nada, que os únicos competentes e capazes de assumir esta noção são os artistas. Mas é difícil imaginar homens poderosos que tivessem exercido seu poder em nome da arte.
I.M - O senhor quer dizer que só o universo artístico permite ser realmente livre?
T.K - O poder dos artistas se exerce na esfera espiritual, mas comparado ao poder material, dotado de todos os meios possíveis, ele se revela bastante fraco. É isso o que me torna um tanto pessimista.
I.M - Se o impacto da arte é pouco perceptível, isso se deve talvez ao seu efeito atrasado, e, ainda assim, muito marcante?
T.K - Não. A questão não está aí. Eu não sou sociólogo, mas consegui formular uma idéia levando em consideração meu próprio caso. Eu acredito ter de algum modo criado alguma coisa, digamos meu teatro, que, em toda parte, alcança um sucesso arrebatador. Mas como efeito é zero...
I.M - O senhor sempre se refere ao início do nosso século e aos anos 20. A fé daquela época no poder da arte viu se opor a ela um cruel desmentido. Nem os ardentes manifestos dos artistas, nem suas obras previram a carnificina dos povos: a Primeira, e depois, a Segunda Guerra Mundial.
T.K - Nada impede que aquela fé fosse, na época, real. Quando o maior pintor russo do século XX, Malevitch, veio a bordo de um trem especial a Berlim, no Bauhaus, o acolhimento com que ele foi recebido era comparável ao que hoje em dia se recebe um Gorbatchev ou um Bush.
I.M - Parece que o senhor também é acolhido como um ídolo no estrangeiro...
T.K - Isto, por exemplo! Mas de que adianta?! Hoje em dia, é unicamente uma questão de público. Sabe, minha intenção nunca é a de salvar o mundo com minha obra. Eu me interesso em extorquir de mim mesmo o que me atormenta no fundo do meu eu, e nada mais. Disposto a descobrir mais tarde que isto exalta as pessoas ou pode fazê-las mudar de opinião. Mas no momento em que a obra se esboça, eu só trabalho para mim mesmo. Mente aquele que afirma fazer obra de criação artística para a sociedade.
I.M - No teatro, o senhor deve, no entanto, atrair imediatamente o público. Sem dúvida o senhor pensa nisso, quando prepara seus espetáculos?
T.K - Não. Três vezes, não. Eu só procuro resolver meus próprios problemas. Como todo homem, eu sou levado a isso, e é somente quanto esta necessidade se afirma com um vigor particular, que se adquire uma força colossal e se chega a realizações muito válidas quando se é artista.
I.M - Em "Eu nunca mais voltarei", o senhor diz: "É então que nasce neste lixo de homem uma força sagrada. É infelicidade, depois, nesta força".
T.K - Eu sei disto por minha própria experiência. Se começo alguma coisa na arte é porque tenho que resolver um problema que é meu. Se este se resolve em mim mesmo sozinho, isto me faz perder de chofre a força necesária para terminar o trabalho. O que decide a criação de uma obra grande ou medíocre, é a criação do debate interior.
I.M - O senhor é profundamente apegado à formação artística dos anos 20.
T.K - O que me distingue dos adeptos do cubismo, da arte abstrata, do construtivismo, do dadaísmo etc., é que eu não tenho confiança na eficácia formal da minha arte. Daí a definição que formulei, e devo dizer que a despeito da natureza espontânea e fortuita da criação, dou importância às definições: eu disse, pois, que a obra mais válida se concebe sempre a partir de necessidades individuais. Não universais, não coletivas, não sociais.
I.M - No entanto, o senhor é um homem que conseguiu atingir um sucesso mundial. Como se deu isso? Que condições foram cumpridas? Uma resposta existe: "eu sou um grande artista", mas foi o individualismo que favoreceu sua comunicação e entendimento com o mundo? Pois é possível, no seu caso, falar de entendimento: o mundo inteiro quer assistir aos seus espetáculos.
T.K - Eu não sei. E acredito que todo artista autêntico lhe dará a mesma resposta e lhe dirá sempre: eu ignoro a que se deve o fato de eu ter me entendido com o mundo inteiro, quando era unicamente comigo que eu me entendia constantemente.
I.M - Seu sucesso mundial só aconteceu, entretanto, em um momento. O senhor se perguntou naquele momento o por quê do seu sucesso?
T.K - Não. Nunca. O sucesso veio? Melhor, ponto final. Sabe, talvez isso se deva à minha natureza profunda, mas eu não tenho em absoluto a ambição de fazer deste sucesso um método de salvação do mundo. Diferentemente de alguns artistas, que qualifico de "homens de visão".
I.M - Por exemplo?
T.K - Não, isso eu não lhe direi...(risos). Também houve alguns deles no passado...
I.M - O mundo de hoje está mais unido do que nunca e a situação do artista, este "homem diferente", é também diferente do que foi outrora. O paradoxo que diz que só a expressão individual tem chance de encontrar o caminho dos outros, encontra-se acentuada aí?
T.K - De tanto me perguntar porque eu insisto tanto no individual, eu percebo também causas muito concretas. Sebe-se que todas as tendências que procuraram escrever a atividade artística na História e na ação social, fracassaram. Isto significa que esta atitude continha uma parte falsa. Mas ao mesmo tempo eu acho que não tem fundamento justificar nem verificar programas artísticos com seu fracasso ou vitória social. Isso não tem fundamento, mas nós vivemos em sociedade, nós somos homens, e acima de tudo formados pelo racionalismo. O raciocínio é o seguinte: se as idéias de construtivismo, de arte abstrata, de supremacia russa estavam ligadas ao movimento revolucionário, e este movimento fracassou, estas correntes artísticas fracassaram com ele. Nos anos 1938-1940 eu ligava indissoluvelmente o construtivismo à revolução. Os próprios construtivistas declaravam, aliás, que em um momento a arte construtivista cessaria de existir, de tanto se fundir à vida: era o ideal ao qual eles aspiravam. Se a realidade se inscreve em falso contra um termo deste raciocínio, perde-se a confiança também no outro. E é isto o que faz com que, apesar de compreender a arte abstrata e depositar nela os valores de minha confiança, ela torna-se, subconscientemente, um pouco suspeita.Eu até escrevi um dia que a arte abstrata era uma corrente artística que correspondia ao poder totalitário.
I.M - A arte abstrata corresponde ao poder totalitário? Não seria o realismo socialista?
T.K - Existe aí um fundo de verdade, pois os abstratos também faziam proibições àqueles que não os seguiam, e os tratavam de maneira negligente. Era o totalitarismo e pode-se dizer que houve um terror de arte abstrata, um terror de surrealismo, de cubismo etc. Eu mesmo senti nos anos 70, quando, após meu período de arte abstrata e "informal", passei a pintar personagens, telas figurativas. Meus colegas então me acusaram de reacionário e de traidor.
I.M - Um vocabulário bastante sugestivo.
T.K - Ah, sim, eram acusações muito graves. Por ocasião de uma de minhas conferências, um senhor gritou: "E quais eram as suas idéias cinco anos atrás?". Eu lhe rspondi: "Isso lhe interessa?". A arte não é a política para me perguntarem como posso ser assim agora, se eu era outro há cinco anos atrás. Assim toda arte abstrata é herdeira do terrorismo. É por isso que, em 1970, decidi deixar o campo de batalha da vanguarda.
I.M - Da vanguarda no sentido estrito, histórico, do termo?
T.K - O que era da vanguarda no início do nosso século, nos anos 20, 30 e mesmo 40, depois se tornou uma moda, uma maneira de viver que leva à notoriedade e ao sucesso comercial. Eu tinha então escrito no manifesto "Teatro da Morte" que eu deixava este caminho oficial e universal e começava a procurar meu próprio caminho.
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Entrevista extraída, e aqui um pouco reduzida, de Theatre in Polland. I. 1991. Tradução de Elisa Duarte. Uma colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio. A íntegra da entrevista está publicada na Revista Cadernos de Teatro nº 127/1991.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
Todos adoram dançar
Derek Browskill
Uma atitude típica ocidental em relação à percepção corporal deprecia a própria movimentação corporal. Ainda não é considerado correto expressar livremente os sentimentos por meio da dança ou de movimentos - apesar de que, no íntimo, todos adorem dançar. O movimento e a dança foram provavelmente as primeiras formas de expressão humana. Sem dúvida alguma, foram as primeiras formas de expressão artística - o teatro do movimento, da dança e dos rituais.
Lembro-me da visita que fiz a uma escola primária, onde pediram-me que observasse uma aula de "movimento". Uma das meninas não reagia aos sons dos instrumentos musicais de acordo com as expectativas da professora, que comentou: "Ela não consegue; aquela lá nunca vai conseguir. Já tentei tudo, mas ela não faz os movimentos certos".
O que chamou minha atenção neste julgamento foi que, uns 15 minutos antes, a mesma menina transbordava de entusiasmo, ao mostrar para a professora os presentes de aniversário que havia ganho. Estava cheia de vida, fervilhando de movimento, querendo mostrar sua boneca à professora. Para expressar seu entusiasmo, ela torcia e retorcia a barra do vestido, num movimento que só posso descrever como uma dança de pura alegria, executada por seus dedinhos. Infelizmente, a professora não vira a coisa do mesmo modo, dizendo tantas vezes à menina para "ficar quieta" e "parar quieta" que ela acabou por desistir e voltar ao lugar.
A dança dos dedos, em homenagem à boneca, tinha sido importante e necessária, mas suas implicações não foram percebidas pela professora. A aula de "movimento" não tinha relação alguma com o estado de espírito da menina, não sendo surpeendente que ela hesitasse em expressar seus sentimentos através da "dança".
O impulso de dançar - e mesmo a vontade - está presente em todos. Mas isso raramente é estimulado e alimentado. Mais raramente ainda oferecemos o melhor tipo de estímulo - desenvolvimento de um estilo pessoal de movimento e dança. Com freqüência , a maioria das crianças que demonstram qualquer habilidade para dançar ou apreciar movimento é atirada nos carinhosos braços de uma professora de dança que insistirá, cedo demais, no ensino rígido das técnicas de balé.
Um estilo pessoal de movimento e dança proporciona uma firme plataforma de confiança, da qual o indivíduo poderá lançar-se com segurança à exploração, inovação e busca de flexibilidade. O aprendizado precoce de técnicas só prejudicará o estilo, além de provavelmente enterrar qualquer entusiasmo e alegria.
Um ator tem que ser dançarino, no sentido de que dança é qualquer série de movimentos conscientes que expressem um estado mental ou sentimento. Talvez ele não precise do estilo clássico, ou talvez não queira utilizar-se dos serviços de um coreógrafo, mas seus movimentos se transformarão em dança. Assim como algumas peças exigem que em determinado momento os atores cantem, outras exigem que em determinados momentos os atores dancem, e também existe uma terra-de-ninguém entre movimentar-se e dançar. Sempre que as alegrias e medos da condição humana são expressos em movimento, uma qualidade simbólica tende a emergir, e como resultado disso, nasce a dança.
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Fragmento do artigo Corpo e Movimento, extraído de Acting and Stagecraft Made Simple, W. H. Allen, 1979. Tradução de Lívia Mazzocato. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio.
Derek Browskill
Uma atitude típica ocidental em relação à percepção corporal deprecia a própria movimentação corporal. Ainda não é considerado correto expressar livremente os sentimentos por meio da dança ou de movimentos - apesar de que, no íntimo, todos adorem dançar. O movimento e a dança foram provavelmente as primeiras formas de expressão humana. Sem dúvida alguma, foram as primeiras formas de expressão artística - o teatro do movimento, da dança e dos rituais.
Lembro-me da visita que fiz a uma escola primária, onde pediram-me que observasse uma aula de "movimento". Uma das meninas não reagia aos sons dos instrumentos musicais de acordo com as expectativas da professora, que comentou: "Ela não consegue; aquela lá nunca vai conseguir. Já tentei tudo, mas ela não faz os movimentos certos".
O que chamou minha atenção neste julgamento foi que, uns 15 minutos antes, a mesma menina transbordava de entusiasmo, ao mostrar para a professora os presentes de aniversário que havia ganho. Estava cheia de vida, fervilhando de movimento, querendo mostrar sua boneca à professora. Para expressar seu entusiasmo, ela torcia e retorcia a barra do vestido, num movimento que só posso descrever como uma dança de pura alegria, executada por seus dedinhos. Infelizmente, a professora não vira a coisa do mesmo modo, dizendo tantas vezes à menina para "ficar quieta" e "parar quieta" que ela acabou por desistir e voltar ao lugar.
A dança dos dedos, em homenagem à boneca, tinha sido importante e necessária, mas suas implicações não foram percebidas pela professora. A aula de "movimento" não tinha relação alguma com o estado de espírito da menina, não sendo surpeendente que ela hesitasse em expressar seus sentimentos através da "dança".
O impulso de dançar - e mesmo a vontade - está presente em todos. Mas isso raramente é estimulado e alimentado. Mais raramente ainda oferecemos o melhor tipo de estímulo - desenvolvimento de um estilo pessoal de movimento e dança. Com freqüência , a maioria das crianças que demonstram qualquer habilidade para dançar ou apreciar movimento é atirada nos carinhosos braços de uma professora de dança que insistirá, cedo demais, no ensino rígido das técnicas de balé.
Um estilo pessoal de movimento e dança proporciona uma firme plataforma de confiança, da qual o indivíduo poderá lançar-se com segurança à exploração, inovação e busca de flexibilidade. O aprendizado precoce de técnicas só prejudicará o estilo, além de provavelmente enterrar qualquer entusiasmo e alegria.
Um ator tem que ser dançarino, no sentido de que dança é qualquer série de movimentos conscientes que expressem um estado mental ou sentimento. Talvez ele não precise do estilo clássico, ou talvez não queira utilizar-se dos serviços de um coreógrafo, mas seus movimentos se transformarão em dança. Assim como algumas peças exigem que em determinado momento os atores cantem, outras exigem que em determinados momentos os atores dancem, e também existe uma terra-de-ninguém entre movimentar-se e dançar. Sempre que as alegrias e medos da condição humana são expressos em movimento, uma qualidade simbólica tende a emergir, e como resultado disso, nasce a dança.
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Fragmento do artigo Corpo e Movimento, extraído de Acting and Stagecraft Made Simple, W. H. Allen, 1979. Tradução de Lívia Mazzocato. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio.
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
O circo e o novo teatro
Brooks McNamara
Sempre existiu um fluorescente teatro em barracas de feira, casas de espetáculos burlescos e em picadeiros de circo. Mas, como formas de representação, o circo, o teatro de bonecos, o vaudeville, os "medicine shows" (onde se intercalam a oferta de remédios de pouco ou nenhum valor medicinal e pequenas demonstrações artísticas) e outros divertimentos populares, não têm sido levados a sério pela maioria das pessoas ligadas ao teatro.
Desde o final do século XIX, especialmente, o realismo tem dado forte ênfase a diferentes valores de representação - "scrips" com motivação estritamente lógica, representação orientada pelo personagem e cenários que apresentem pelo menos uma ilusão razoável da realidade. Sendo o realismo considerado padrão de teatro sério, foi fácil rejeitar as formas de divertimento populares tidas como exóticas e encantadoras, mas também como teatro fundamentalmente insignificante. Nos últimos anos, entretanto, tem-se tornado cada vez mais claro que as formas populares são baseadas em conceitos de representação vitais e importantes.
O circo é um caso em pauta. O circo moderno desenvolveu-se em fins do século XVIII, a partir de exibições de acrobacia em cavalos apresentadas por mestres de equitação que se tornaram "shomen". Pouco a pouco, acrobatas, funâmbulos, malabaristas, adestradores, palhaços e outros artistas procedentes das feiras populares uniram-se aos "shomen" da equitação, fazendo suas apresentações no picadeiro do circo. O resultado foi uma forma "sui generis" de show de variedades, mais simples na estrutura e menos dependente da linguagem do que o teatro, e enfatizando valores de representação bastante diferentes: a agilidade, a força, o talento e a perícia no manejo de animais e conjunto de acessórios circenses.
Basicamente, o circo é o teatro do povo, sem muitas pretensões artísticas e intelectuais comuns ao palco de teatro. Tem sempre adotado os pontos de vista de pessoas simples, no que se refere ao critério de julgamento do que é emocionante, cômico e belo e, na maioria das vezes, tem deixado as preocupações com a sutileza e o "bom gosto" convencional para outras formas de manifestação, preferindo, ao invés disso, enfatizar a parte física, a ação e a imaginação.
O circo tem dado pouca atenção a valores literários tradicionais. Um "script" de uma produção circense é um texto puramente técnico - uma narrativa ou um esquema da organização -, não sendo em si mesmo uma obra de arte consciente, como o é o "script" de uma peça teatral. O circo somente existe como produção, e a própria produção (diferente de muito do que tem sido feito em teatro no século XX) não depende de uma estrutura rígida de causa e efeito.
Uma representação circense é composta de atos essencialmente não relacionados entre si (por exemplo, um número de um palhaço é seguido de outro de malabarismo) e não interligados por um enredo coerente, mas através do equilíbrio, da tensão e da complexidade que cada um desses fatores adiciona à representação no seu todo. A organização está mais próxima de uma peça musical do que da peça tradicional bem elaborada.
Neste tipo de representação, a língua se torna rudimentar, servindo freqüentemente apenas para anunciar as seqüências dos números. O diálogo, no sentido teatral costumeiro, geralmente desaparece por completo. Talvez porque se faça tão pouco uso da língua, o circo tem permanecido inalterado, pouco sujeito a alterações modistas quanto ao modo de representar. Muito do que é feito no circo é pura atuação na qual não se faz qualquer tentativa de criar um personagem à parte, e distinto da personalidade do ator.
É uma proeza do próprio ator no trapézio ou mesmo na corda bamba, o que nos interessa e emociona. Quando a representação aparece no circo - como é o caso dos palhaços - tende a centralizar-se em personagens arquetípicos e sem complexidade, em cenas simples e altamente pantomímicas. É a representação teatral em sua forma mais antiga e tradicional.
Da mesma forma que a representação, o cenário circense tende a ser teatral e direto. O picadeiro do circo é constantemente transformado pelo jogo de luzes, pelo vestuário e por composições cênicas, mas permanece sempre como um espaço de trabalho totalmente prático. Ele contém acessórios puramente funcionais, tais como iluminação, cordas, jaulas etc., sem haver nenhuma tentativa real no sentido de ocultar suas funções ou "integrá-las" num esquema de cenário global.
Estes acessórios existem simplesmente porque precisam existir. Outros elementos cênicos são francamente gratuitos; estão presentes simplesmente em função do espetáculo. O efeito total - como o de um desfile de carnaval - é rigorosamente direto em termos de cor, formas e técnicas e, genuinamente, não possui sutilezas em termos de conteúdo. É uma evocação do fantástico que não depende do tipo de "bom gosto" próprio do teatro.
Finalmente, o circo cria um relacionamento com o público diferente daquele encontrado na maioria dos teatros. Ao invés de exigir profunda atenção e concentração do público, o circo permite considerável liberdade ao espectador - pode-se observar alguns números e outros não; conversar com os amigos durante o espetáculo ou mesmo sair um pouco, se alguém assim o quiser. Porque o circo é claro e direto, e possui uma organização simples, fazendo então pouca diferença se o espectador se envolve ou não com cada número. O público permanece ligado ao espetáculo global - um espetáculo que é tanto uma celebração ou um festival, quanto uma forma de teatro.
___________________________
Este artigo, aqui reduzido, foi extraído de Theatre Grafts, september, 1972, tradução de J. L. Pôrto de Magalhães. A íntegra do artigo está publicada na revista Cadernos de Teatro nº 75/1977, edição já esgotada.
Brooks McNamara
Sempre existiu um fluorescente teatro em barracas de feira, casas de espetáculos burlescos e em picadeiros de circo. Mas, como formas de representação, o circo, o teatro de bonecos, o vaudeville, os "medicine shows" (onde se intercalam a oferta de remédios de pouco ou nenhum valor medicinal e pequenas demonstrações artísticas) e outros divertimentos populares, não têm sido levados a sério pela maioria das pessoas ligadas ao teatro.
Desde o final do século XIX, especialmente, o realismo tem dado forte ênfase a diferentes valores de representação - "scrips" com motivação estritamente lógica, representação orientada pelo personagem e cenários que apresentem pelo menos uma ilusão razoável da realidade. Sendo o realismo considerado padrão de teatro sério, foi fácil rejeitar as formas de divertimento populares tidas como exóticas e encantadoras, mas também como teatro fundamentalmente insignificante. Nos últimos anos, entretanto, tem-se tornado cada vez mais claro que as formas populares são baseadas em conceitos de representação vitais e importantes.
O circo é um caso em pauta. O circo moderno desenvolveu-se em fins do século XVIII, a partir de exibições de acrobacia em cavalos apresentadas por mestres de equitação que se tornaram "shomen". Pouco a pouco, acrobatas, funâmbulos, malabaristas, adestradores, palhaços e outros artistas procedentes das feiras populares uniram-se aos "shomen" da equitação, fazendo suas apresentações no picadeiro do circo. O resultado foi uma forma "sui generis" de show de variedades, mais simples na estrutura e menos dependente da linguagem do que o teatro, e enfatizando valores de representação bastante diferentes: a agilidade, a força, o talento e a perícia no manejo de animais e conjunto de acessórios circenses.
Basicamente, o circo é o teatro do povo, sem muitas pretensões artísticas e intelectuais comuns ao palco de teatro. Tem sempre adotado os pontos de vista de pessoas simples, no que se refere ao critério de julgamento do que é emocionante, cômico e belo e, na maioria das vezes, tem deixado as preocupações com a sutileza e o "bom gosto" convencional para outras formas de manifestação, preferindo, ao invés disso, enfatizar a parte física, a ação e a imaginação.
O circo tem dado pouca atenção a valores literários tradicionais. Um "script" de uma produção circense é um texto puramente técnico - uma narrativa ou um esquema da organização -, não sendo em si mesmo uma obra de arte consciente, como o é o "script" de uma peça teatral. O circo somente existe como produção, e a própria produção (diferente de muito do que tem sido feito em teatro no século XX) não depende de uma estrutura rígida de causa e efeito.
Uma representação circense é composta de atos essencialmente não relacionados entre si (por exemplo, um número de um palhaço é seguido de outro de malabarismo) e não interligados por um enredo coerente, mas através do equilíbrio, da tensão e da complexidade que cada um desses fatores adiciona à representação no seu todo. A organização está mais próxima de uma peça musical do que da peça tradicional bem elaborada.
Neste tipo de representação, a língua se torna rudimentar, servindo freqüentemente apenas para anunciar as seqüências dos números. O diálogo, no sentido teatral costumeiro, geralmente desaparece por completo. Talvez porque se faça tão pouco uso da língua, o circo tem permanecido inalterado, pouco sujeito a alterações modistas quanto ao modo de representar. Muito do que é feito no circo é pura atuação na qual não se faz qualquer tentativa de criar um personagem à parte, e distinto da personalidade do ator.
É uma proeza do próprio ator no trapézio ou mesmo na corda bamba, o que nos interessa e emociona. Quando a representação aparece no circo - como é o caso dos palhaços - tende a centralizar-se em personagens arquetípicos e sem complexidade, em cenas simples e altamente pantomímicas. É a representação teatral em sua forma mais antiga e tradicional.
Da mesma forma que a representação, o cenário circense tende a ser teatral e direto. O picadeiro do circo é constantemente transformado pelo jogo de luzes, pelo vestuário e por composições cênicas, mas permanece sempre como um espaço de trabalho totalmente prático. Ele contém acessórios puramente funcionais, tais como iluminação, cordas, jaulas etc., sem haver nenhuma tentativa real no sentido de ocultar suas funções ou "integrá-las" num esquema de cenário global.
Estes acessórios existem simplesmente porque precisam existir. Outros elementos cênicos são francamente gratuitos; estão presentes simplesmente em função do espetáculo. O efeito total - como o de um desfile de carnaval - é rigorosamente direto em termos de cor, formas e técnicas e, genuinamente, não possui sutilezas em termos de conteúdo. É uma evocação do fantástico que não depende do tipo de "bom gosto" próprio do teatro.
Finalmente, o circo cria um relacionamento com o público diferente daquele encontrado na maioria dos teatros. Ao invés de exigir profunda atenção e concentração do público, o circo permite considerável liberdade ao espectador - pode-se observar alguns números e outros não; conversar com os amigos durante o espetáculo ou mesmo sair um pouco, se alguém assim o quiser. Porque o circo é claro e direto, e possui uma organização simples, fazendo então pouca diferença se o espectador se envolve ou não com cada número. O público permanece ligado ao espetáculo global - um espetáculo que é tanto uma celebração ou um festival, quanto uma forma de teatro.
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Este artigo, aqui reduzido, foi extraído de Theatre Grafts, september, 1972, tradução de J. L. Pôrto de Magalhães. A íntegra do artigo está publicada na revista Cadernos de Teatro nº 75/1977, edição já esgotada.
Teatro/CRÍTICA
"O bem do mar"
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O bem que nos faz um gênio
Lionel Fischer
Como se sabe, existem discussões tolas e pertinentes. Dentre as primeiras, uma delas diz respeito à conceituação do que é ou deixa de ser "teatro". E aqui chegamos aos musicais isentos de qualquer texto. Para certos sábios ou especialistas, não seria teatro, posto que renuncia à palavra. No entanto, em minha modesta opinião, "palavra" não se limita a algo articulado em um determinado idioma, mas também a uma narrativa (ainda que simples) que pode ser apreendida através das letras das canções. Ou será que tais letras não constituem palavras, não abordam sentimentos, não geram reflexões? É evidente que sim. E por isso julgamos TEATRO o presente espetáculo, estruturado a partir de 68 canções de um gênio chamado Dorival Caymmi.
Em cartaz no Teatro do Leblon, "O bem do mar" chega à cena com concepção e direção de Antonio De Bonis, direção musical e arranjos vocais de Ricardo Rente, arranjos de Ricardo Rente (Parte I - Bahia, lembranças), Wagner Tiso (Parte II - Copacabana by night, anos 50) e Leandro Braga (Parte III - Histórias de pescadores) e elenco formado por Ana Velloso, Dandara Mariana, Daúde, Dério Chagas, Fábio Ventura, Fael Mondego, Flavia Santana, Gabriel Tavares, Izabella Bicalho, Lilian Valeska, Marcelo Capobianco, Marcelo Vianna, Patrícia Costa e Thiago Thomé, além dos músicos Alfredo Machado (violão), Fernando Pereira (bateria), Firmino (percussão), Flávia Chagas (violoncelo), Luiz Flavio Alcofra (violão), Ricardo Rente (sopros) e Rodrigo Villa (contrabaixo).
Como já foi dito, a presente montagem leva a assinatura de Antonio De Bonis, que embora já tenha encenado musicais com texto, como "Dolores" e "Orlando Silva, o cantor das multidões", também fez várias e bem-sucedidas incursões em musicais desprovidos de palavras, tais como "Lamartine pra inglez ver" (1989), "Lamartine II - o resgate" (1991) e "É no toco da goiaba" (1995), dentre outros. Portanto, nada mais natural que retome um formato tão teatral quanto qualquer outro. E que o faça de forma brilhante.
É claro que os invejosos de plantão, sempre atentíssimos ao sucesso alheio e incapazes de refrear sua inveja patológica, poderão argumentar: "Ah, mas qual a dificuldade de se montar um musical tendo por base canções de um gênio?". Todas, eu diria. Porque uma coisa é você colocar em cena cantores (ou atores/cantores, que seja) apenas cantando. Aí seria um show. Outra coisa, completamente diversa e que acontece nesta irrepreensível montagem, é você conseguir criar uma dinâmica cênica em que os atores/cantores estabeleçam relações com a platéia e entre eles em total sintonia com os conteúdos das letras e a força das melodias, que também contribuem para enfatizar os múltiplos climas emocionais propostos pelo compositor - ou será que existe alguém tão desprovido de neurônios que ainda acredite que a palavra cantada tenha menos força do que quando apenas falada?
Enfim...tais considerações eu as fiz apenas para reforçar minha certeza absoluta de que estamos diante de um espetáculo maravilhoso - um espetáculo TEATRAL maravilhoso -, repleto de humor, fantasia, lirismo e dramaticidade. E que exibe marcações sensíveis e criativas, executadas com paixão e competência pelo excelente elenco, todo ele empenhado em valorizar ao máximo as 68 canções deste verdadeiro patrimônio nacional que é Caymmi.
Com relação à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos, além dos já mencionados arranjadores e músicos - Duda Maia (direção de movimento), Débora Garcia (preparação vocal), Jaime Arôxa (coreografias das músicas "Saudade da Bahia", Samba da minha terra" e "Acontece que eu sou baiano"), Sérgio Marimba (cenografia), Ney Madeira (figurinos) e Aurélio de Simoni (iluminação), cabendo registrar que as coloaborações destes três últimos estão certamente dentre as melhores que já realizaram em suas carreiras, sendo de fundamental importância para o êxito indiscutível desta montagem imperdível. E finalizamos fazendo um singelo apelo àqueles que, a exemplo das viúvas machadianas, pouco fazem além de ficar se corroendo de inveja pelos cantos: dêem uma passada no Teatro do Leblon e é possível que um milagre se produza, levando-os a adotar uma postura bem mais salutar e produtiva do que esta que mantêm ferrenhamente e a nada conduz.
O BEM DO MAR - Concepção e direção de Antonio De Bonis. Músicas de Dorival Caymmi. Com grande elenco. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
Conversas íntimas
Domingos Oliveira
A única coisa - única - que realmente me interessa, é desenvolver minha capacidade de ouvir minha voz interna. A voz interna existe e sempre nos diz o que devemos fazer. Nunca está errada, é sublime, é música. Mas não grita. Fala mansamente, de modo que é muito difícil ouvi-la. E cada vez mais difícil nos tempos que correm. Essa voz, pelo menos até hoje, ordenou que eu trabalhasse muito, escrevesse, dirigisse, contasse histórias. Que histórias? Também sobre isso não tive dúvidas: minhas histórias.
Não importa se com esta ou aquela tendência política, cultural, se velhas ou originais. Sou artista, estou aqui para dar meu depoimento sobre o que vivo, sobre o mistério da vida. Na certeza de que esse depoimento é único, insubstituível, portanto importante. Um depoimento. Todas as pessoas têm o seu, e nenhum é, no critério do eterno, melhor ou pior que o outro. Mas poucos têm a compulsão estranha e inexplicável de prestá-lo. Estes se chamam artistas.
Grupo e indivíduo
Nunca duvidei de que sou artista. Porque isso depende da qualidade da minha obra. A obra é um fato circunstancial. Não sei se o que faço é bom ou mau, não cabe a mim julgar. Não tenho a menor idéia de como o mundo me vê. Sei, porém, que minha visão do mundo é deslumbrante. Na medida em que eu puder romper a alma e narrá-la, é nesta medida que todos cairão de joelhos e chorarão, de alegria. Repito, isso não me envaidece. Não tem nenhum sentido comparativo. Não me faz maior ou menor. Quer dizer apenas que sou um artista.
Por isso, tenho uma personalidade individualizada. Na verdade não pertenci nunca a grupo nenhum. Nem a partido político, corrente ideológica, clube, time, nem mesmo à minha família; nem mesmo a mim mesmo...nunca realmente pertenci. Preciso da alma vagabunda. Por mais que isso custe. Sem ela não sobrevivo. Este dado, esta individualização além do normal, sempre me criou problemas de vários níveis. Mas não me arrependo. Pedir a um artista que não seja especialmente individualizado é o mesmo que pedir a um atleta que não seja especialmente musculoso.
Ninguém extrai um bom espetáculo de um mau texto. O texto é mais importante. Talvez pense assim por ser escritor. Na verdade, gosto da atividade de diretor. A do ator me fascina, mas, na verdade, somente as exerço para transmitir, sem distorções, o que o autor criou.
Tenho dirigido nos últimos anos várias peças. Melhores ou piores (a gente sempre faz o possível), e a verdade é que vivo disso. Tenho tido uma estréia aproximadamente de quatro em quatro meses, isso há dez peças. Levando em conta que, além de dirigir, estou sempre em outras funções (autor, adpatador, ator, luz, trilha, cenários) verifica-se que é muito trabalho. Isso não é bom.
Um querido amigo que tive sempre contava a história do mestre Zen. Um homem foi procurá-lo no alto da montanha distante e disse: "Mestre, eu estudei muito para vir aqui, aprofundei-me em filosofia, psicologia, matemática. Sou também professor de literatura e artes, doutor em biologia e medicina...e só agora me senti pronto para chegar ao Mestre e perguntar-lhe sobre a verdade da vida". O Zen sorriu e ofereceu-lhe um chá. Serviu o chá pessoalmente e, depois que a taça encheu, continuou inexplicavelmente a derramar o líquido. A situação ficou embaraçosa. Nosso intelectual, perplexo e de calças molhadas. Então, o Mestre docemente explicou: "O Senhor é como esta taça. Está cheia. Não se pode botar mais nada dentro dela. Por favor, vá embora daqui, esvazie um pouco e depois volte. Talvez então eu possa lhe dizer alguma coisa".
Tentando uma síntese, creio firmemente (conforme me ensinou o amigo Simão) que fazer parte de um grupo (seja um grupo de teatro, uma nação ou um partido político) é apenas uma etapa para chegar a outro lugar. O grupo é o caminho do indivíduo. Quando um homem se individualiza (cumprindo assim uma potencialidade que faz parte de sua essência), ele deixa de pertencer ao grupo e passa, naturalmente, a ser seu líder. A contragosto, com certeza. Pois preferiria estar livre dessa responsabilidade. Ainda assim ele é o líder, posto que o grupo segue seus desígnios.
Como reunir pessoas para fazer teatro?
Que critérios conduzem à equipe mais produtiva?
Tenho visto vários modos diferentes de unir pessoas. Através das mesmas idéias, por exemplo, como nos partidos políticos (ou nos grupos de teatro político). Não dá certo depois de algum tempo. Pelo menos é o que tenho visto. As pessoas brigam, disputam o poder depois de algum tempo. Os mais nobres ideais transformam-se com rapidez espantosa em mesquinhas discussões. Nunca entendi bem por que, mas as pessoas que têm as mesmas idéias conseguem discordar infinitamente sobre elas. As reuniões, discussões ou seja que nome tiverem custam mais tempo e tornam-se mais importantes que o projeto em si. Não dá certo, não é produtivo. Pelo menos é o que tenho visto.
Esqueçamos então as idéias e caminhemos mais concreto: unamos as pessoas através de seus interesses. O interesse comum, como nas grandes firmas e indústrias (ou nas poucas companhias profissionais que possuímos). Não dá certo. Acaba dando nas mesmas brigas, em geral por dinheiro e poder, exatamente como no caminho político comentado acima. Não é produtivo. É feio. Nem pelas idéias nem pelos interesses. Como, então?
Existe um terceiro critério, o único no qual estou interessado. Embora este ainda não esteja tão codificado como os anteriores. Unir as pessoas que se gostam. Não sei o que é gostar, mas quem gosta sabe que gosta. Há pessoas que não vejo há muito, encontro na rua e parece que foi ontem: a gente se gosta. Há pessoas que têm interesses completamente desinteressantes, e eu gosto. Pessoas que pensam completamente diferente, e eu gosto. Às vezes gosto de pessoas que não pensam, às vezes gosto de pessoas que detesto! Por ser indefinível, este critério, o do amor, possui grande flexibilidade. É por este critério que as pessoas devem se reunir para fazer teatro. Ou para fazer outra coisa qualquer. Este é o único critério inteligente. Conduz ao único tipo de união verdadeiramente...produtiva.
Como receber opiniões?
Antes de estrear um trabalho, é preciso que saibamos o seguinte: é natural e obrigatório que muita gente não goste dele, seja qual for. Quanto menos convencional o espetáculo, mais chance isso tem de acontecer. Quando é exageradamente convencional, também muitos não gostam. Quando é muito ruim, também muitos não gostam.
Se o espetáculo é informal, natural que os formais não gostem. Se é livre, os reprimidos não gostarão. Se for muito pessoal, será antagonizado pelos amantes do coletivo. E vice-versa. Se tiver ótimo astral ou vier depois de um sucesso anterior causará corrosivas invejas. E assim por diante. Observemos que todas essas opiniões contrárias independem da qualidade do espetáculo. Entendem o que quero dizer? Mesmo que seja ótimo, tudo o que se disse acima acontecerá.
Não devemos esquecer também que, segundo a mais óbvia psicologia, são as pessoas altamente dependentes que apresentam maior agressividade na crítica. A crítica corrosiva é um método eficaz para pessoas de baixa auto-estima. Ao expressarem sua opinião negativa criam a ilusão de que, se fossem elas a fazer "aquela merda", teriam feito melhor. O exemplo clássico é o do passageiro do banco de trás do automóvel, ditando ao motorista como ele deve guiar. Aliás, a maioria das pessoas desse tipo não dirige automóvel.
Claro que isto não exclui a pergunta, que devemos constantemente nos fazer, se nosso espetáculo é bom ou ruim. Nosso espetáculo é bom, senão o teríamos feito de outra forma. Pode ser também que tenhamos enlouquecido, que sejamos umas bestas e que, no que se refere à platéia que virá ao teatro ou à eternidade da espécie, não tenhamos nenhuma significação. Mas se isso estiver acontecendo, não teremos a menor possibilidade de descobri-lo! O que signifca que essas hipóteses não merecem um segundo de preocupação, sendo fútil gastar energia com elas.
O valor do nosso trabalho não depende da opinião dos outros. Faremos tudo para que eles gostem, sem dúvida. Mas se não gostaram é porque não entenderam. Posto que representaremos com prazer, mãos estendidas e coração aberto. A boa intenção é tudo que se pode exigir no teatro. Uma peça é apenas uma peça. O teatro é sempre uma festa. Estão chegando as pessoas, o grande momento de amor se aproxima. Divirtam-se.
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Extraído de Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro. (Minc-INACEM, Coleção Documentos, 1987)
Domingos Oliveira
A única coisa - única - que realmente me interessa, é desenvolver minha capacidade de ouvir minha voz interna. A voz interna existe e sempre nos diz o que devemos fazer. Nunca está errada, é sublime, é música. Mas não grita. Fala mansamente, de modo que é muito difícil ouvi-la. E cada vez mais difícil nos tempos que correm. Essa voz, pelo menos até hoje, ordenou que eu trabalhasse muito, escrevesse, dirigisse, contasse histórias. Que histórias? Também sobre isso não tive dúvidas: minhas histórias.
Não importa se com esta ou aquela tendência política, cultural, se velhas ou originais. Sou artista, estou aqui para dar meu depoimento sobre o que vivo, sobre o mistério da vida. Na certeza de que esse depoimento é único, insubstituível, portanto importante. Um depoimento. Todas as pessoas têm o seu, e nenhum é, no critério do eterno, melhor ou pior que o outro. Mas poucos têm a compulsão estranha e inexplicável de prestá-lo. Estes se chamam artistas.
Grupo e indivíduo
Nunca duvidei de que sou artista. Porque isso depende da qualidade da minha obra. A obra é um fato circunstancial. Não sei se o que faço é bom ou mau, não cabe a mim julgar. Não tenho a menor idéia de como o mundo me vê. Sei, porém, que minha visão do mundo é deslumbrante. Na medida em que eu puder romper a alma e narrá-la, é nesta medida que todos cairão de joelhos e chorarão, de alegria. Repito, isso não me envaidece. Não tem nenhum sentido comparativo. Não me faz maior ou menor. Quer dizer apenas que sou um artista.
Por isso, tenho uma personalidade individualizada. Na verdade não pertenci nunca a grupo nenhum. Nem a partido político, corrente ideológica, clube, time, nem mesmo à minha família; nem mesmo a mim mesmo...nunca realmente pertenci. Preciso da alma vagabunda. Por mais que isso custe. Sem ela não sobrevivo. Este dado, esta individualização além do normal, sempre me criou problemas de vários níveis. Mas não me arrependo. Pedir a um artista que não seja especialmente individualizado é o mesmo que pedir a um atleta que não seja especialmente musculoso.
Ninguém extrai um bom espetáculo de um mau texto. O texto é mais importante. Talvez pense assim por ser escritor. Na verdade, gosto da atividade de diretor. A do ator me fascina, mas, na verdade, somente as exerço para transmitir, sem distorções, o que o autor criou.
Tenho dirigido nos últimos anos várias peças. Melhores ou piores (a gente sempre faz o possível), e a verdade é que vivo disso. Tenho tido uma estréia aproximadamente de quatro em quatro meses, isso há dez peças. Levando em conta que, além de dirigir, estou sempre em outras funções (autor, adpatador, ator, luz, trilha, cenários) verifica-se que é muito trabalho. Isso não é bom.
Um querido amigo que tive sempre contava a história do mestre Zen. Um homem foi procurá-lo no alto da montanha distante e disse: "Mestre, eu estudei muito para vir aqui, aprofundei-me em filosofia, psicologia, matemática. Sou também professor de literatura e artes, doutor em biologia e medicina...e só agora me senti pronto para chegar ao Mestre e perguntar-lhe sobre a verdade da vida". O Zen sorriu e ofereceu-lhe um chá. Serviu o chá pessoalmente e, depois que a taça encheu, continuou inexplicavelmente a derramar o líquido. A situação ficou embaraçosa. Nosso intelectual, perplexo e de calças molhadas. Então, o Mestre docemente explicou: "O Senhor é como esta taça. Está cheia. Não se pode botar mais nada dentro dela. Por favor, vá embora daqui, esvazie um pouco e depois volte. Talvez então eu possa lhe dizer alguma coisa".
Tentando uma síntese, creio firmemente (conforme me ensinou o amigo Simão) que fazer parte de um grupo (seja um grupo de teatro, uma nação ou um partido político) é apenas uma etapa para chegar a outro lugar. O grupo é o caminho do indivíduo. Quando um homem se individualiza (cumprindo assim uma potencialidade que faz parte de sua essência), ele deixa de pertencer ao grupo e passa, naturalmente, a ser seu líder. A contragosto, com certeza. Pois preferiria estar livre dessa responsabilidade. Ainda assim ele é o líder, posto que o grupo segue seus desígnios.
Como reunir pessoas para fazer teatro?
Que critérios conduzem à equipe mais produtiva?
Tenho visto vários modos diferentes de unir pessoas. Através das mesmas idéias, por exemplo, como nos partidos políticos (ou nos grupos de teatro político). Não dá certo depois de algum tempo. Pelo menos é o que tenho visto. As pessoas brigam, disputam o poder depois de algum tempo. Os mais nobres ideais transformam-se com rapidez espantosa em mesquinhas discussões. Nunca entendi bem por que, mas as pessoas que têm as mesmas idéias conseguem discordar infinitamente sobre elas. As reuniões, discussões ou seja que nome tiverem custam mais tempo e tornam-se mais importantes que o projeto em si. Não dá certo, não é produtivo. Pelo menos é o que tenho visto.
Esqueçamos então as idéias e caminhemos mais concreto: unamos as pessoas através de seus interesses. O interesse comum, como nas grandes firmas e indústrias (ou nas poucas companhias profissionais que possuímos). Não dá certo. Acaba dando nas mesmas brigas, em geral por dinheiro e poder, exatamente como no caminho político comentado acima. Não é produtivo. É feio. Nem pelas idéias nem pelos interesses. Como, então?
Existe um terceiro critério, o único no qual estou interessado. Embora este ainda não esteja tão codificado como os anteriores. Unir as pessoas que se gostam. Não sei o que é gostar, mas quem gosta sabe que gosta. Há pessoas que não vejo há muito, encontro na rua e parece que foi ontem: a gente se gosta. Há pessoas que têm interesses completamente desinteressantes, e eu gosto. Pessoas que pensam completamente diferente, e eu gosto. Às vezes gosto de pessoas que não pensam, às vezes gosto de pessoas que detesto! Por ser indefinível, este critério, o do amor, possui grande flexibilidade. É por este critério que as pessoas devem se reunir para fazer teatro. Ou para fazer outra coisa qualquer. Este é o único critério inteligente. Conduz ao único tipo de união verdadeiramente...produtiva.
Como receber opiniões?
Antes de estrear um trabalho, é preciso que saibamos o seguinte: é natural e obrigatório que muita gente não goste dele, seja qual for. Quanto menos convencional o espetáculo, mais chance isso tem de acontecer. Quando é exageradamente convencional, também muitos não gostam. Quando é muito ruim, também muitos não gostam.
Se o espetáculo é informal, natural que os formais não gostem. Se é livre, os reprimidos não gostarão. Se for muito pessoal, será antagonizado pelos amantes do coletivo. E vice-versa. Se tiver ótimo astral ou vier depois de um sucesso anterior causará corrosivas invejas. E assim por diante. Observemos que todas essas opiniões contrárias independem da qualidade do espetáculo. Entendem o que quero dizer? Mesmo que seja ótimo, tudo o que se disse acima acontecerá.
Não devemos esquecer também que, segundo a mais óbvia psicologia, são as pessoas altamente dependentes que apresentam maior agressividade na crítica. A crítica corrosiva é um método eficaz para pessoas de baixa auto-estima. Ao expressarem sua opinião negativa criam a ilusão de que, se fossem elas a fazer "aquela merda", teriam feito melhor. O exemplo clássico é o do passageiro do banco de trás do automóvel, ditando ao motorista como ele deve guiar. Aliás, a maioria das pessoas desse tipo não dirige automóvel.
Claro que isto não exclui a pergunta, que devemos constantemente nos fazer, se nosso espetáculo é bom ou ruim. Nosso espetáculo é bom, senão o teríamos feito de outra forma. Pode ser também que tenhamos enlouquecido, que sejamos umas bestas e que, no que se refere à platéia que virá ao teatro ou à eternidade da espécie, não tenhamos nenhuma significação. Mas se isso estiver acontecendo, não teremos a menor possibilidade de descobri-lo! O que signifca que essas hipóteses não merecem um segundo de preocupação, sendo fútil gastar energia com elas.
O valor do nosso trabalho não depende da opinião dos outros. Faremos tudo para que eles gostem, sem dúvida. Mas se não gostaram é porque não entenderam. Posto que representaremos com prazer, mãos estendidas e coração aberto. A boa intenção é tudo que se pode exigir no teatro. Uma peça é apenas uma peça. O teatro é sempre uma festa. Estão chegando as pessoas, o grande momento de amor se aproxima. Divirtam-se.
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Extraído de Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro. (Minc-INACEM, Coleção Documentos, 1987)
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Teatro/CRÍTICA
"Palavras na brisa noturna"
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Bela e expressiva montagem
Lionel Fischer
O autor, ator e diretor Fábio Porchat tem apenas 25 anos e até agora, salvo monumental engano de nossa parte, todas as suas atividades - ou praticamente todas - estiveram voltadas para o humor. No entanto, e certamente para surpresa de todos, resolveu escrever e dirigir um espetáculo de grande dramaticidade. Livremente inspirado no livro homônimo, da autora chinesa Xinran Xue, o texto se baseia nos depoimentos verídicos de cinco mulheres, colhidos por Xinran, em especial no período em que a China vivia a Revolução Cultural. E embora os cinco relatos sejam diferentes, possuem a perda como tema predominante.
Em cartaz no Teatro dos Quatro (terças e quartas, 21h), Palavras na brisa noturna exibe cinco monólogos, interpretados por cinco atrizes diferentes: Patrícia Vazques (A mosca), Regina Gutman (A esperança), Cristina Rudolph (Quarenta e cinco anos), Pollyana Rocha (O pai) e Fernanda Maia (Terremoto).
Quando nos referimos à perda como tema principal, isto deve ser entendido de forma abrangente, pois em todas as histórias as personagens perdem algo, seja por circunstâncias alheias à sua vontade, seja por imposição de alguém ou mesmo de algum fenômeno natural. Em
A mosca, ambientada em um hospital, uma menina fala, ainda que metaforicamente, de um abuso sexual por ela sofrido. A esperança gira em torno de uma mulher madura que não consegue rever o filho. Já em 45 anos, a personagem relata o que se passou com ela, durante esse tempo, após ter sido abandonada pelo marido. Em O pai, uma jovem nos conta como foi violentada por três homens - ou teria sido seu próprio pai? Finalmente, Terremoto é centrada na leitura que uma jovem faz do que lhe aconteceu durante um tremor de terra que destruiu sua cidade - e este é o segmento, digamos, mais poético e menos realista.
Como não lemos o original, não sabemos em que medida Fábio Porchat o recriou. Mas o que importa ressaltar é a qualidade do material ao qual temos acesso, invariavelmente impregnado de dor, perplexidade, amargura, desesperança e mais alguns sentimentos análogos. Trata-se, sem a menor dúvida, de um texto de grande qualidade, que permite ao espectador não apenas acompanhar as histórias com emoção, mas também refletir sobre o conteúdo das mesmas.
Fábio Porchat faz, aqui, uma bela estréia como autor dramático.
Com relação ao espetáculo, este se desenvolve em um atmosfera ritualística, quase sempre em um ritmo lento, mas nem por isso monótono. Isto se deve não apenas à expressividade do desenho cênico, mas também às ótimas atuações de todas as atrizes. Cada uma delas consegue extrair todo o potencial de seus monólogos, sem lançar mão de expedientes facilitadores, cabendo ressaltar a paixão com que se entregam à tarefa de materializar conteúdos tão dolorosos.
Na equipe técnica, destacamos com entusiasmo os belíssimos figurinos de Samuel Abrantes, a despojada e expressiva cenografia de Cláudio Torrres Gonzaga e Mayra Renna, a sensível e soturna iluminação de Russinho e a surpreende trilha sonora de Paulo Carvalho, que mescla canções e depoimentos de personalidades ou artistas congrados, em projeção sonora propositadamente "arranhada e suja", como a sugerir um tempo passado que já deveria ter desaparecido de nossa memória, mas que volta e meia retorna, dificultando o iniciar de novas caminhadas guiadas por renovadas esperanças.
PALAVRAS NA BRISA NOTURNA - Texto e direção de Fábio Porchat. Teatro dos Quatro. Terça e quarta, 21h.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Teatro/CRÍTICA
"A noite mais fria do ano"
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Ficção e realidade no Poeira
Lionel Fischer
Uma peça dentro da outra. O recurso não é novo, mas Marcelo Rubens Paiva vale-se dele para, aparentemente, contar duas histórias, quando na verdade trata-se de uma só: uma fictícia, a outra real. Em sua primeira metade, "A noite mais fria do ano" mostra o embate verbal entre o editor de uma revista e seu fotógrafo, dando a entender que o primeiro teria sido amante da mulher do segundo, Carla. No "segundo ato", um autor teatral está em seu apartamento quando recebe a inesperada visita de Carla, atriz com quem vivera e trabalhara, e que o abandonou, estando no momento casada com um homem que a espancara. Então fica claro que a primeira história é uma criação oriunda do drama vivido pelo dramaturgo.
Após cumprir bela temporada em São Paulo, com casas lotadas em todas as sessões - segundo o release que nos foi enviado - "A noite mais fria do ano" acaba de entrar em cartaz no Teatro Poeira. Marcelo Rubens Paiva assina aqui sua primeira direção, estando o elenco formado por Paula Cohen, Hugo Possolo, Mário Bortolloto e Alex Gruli.
Sendo Marcelo Rubens Paiva um autor de grande talento, nada mais natural que se esperar dele um texto à sua altura. Mas este deixa um pouco a desejar. Na primeira história, o embate entre os dois homens soa um tanto irreal, pois as revelações de natureza lúbrica feita pelo editor ao fotógrafo, envolvendo a mulher deste, o levariam a ir embora ou tomar uma atitude drástica. E de fato, em dado momento, tudo leva a crer que chegaremos a um destino trágico, pois o editor saca uma pistola e o fotógrafo pega o facão do responsável por um quiosque, que, por sinal, não apenas assiste à cena como nela intervém com observações, digamos, engraçadas. Mas ambos não se ferem, e voltam a trocar confidências e acusações por um tempo excessivo.
Já na segunda parte, o encontro entre o dramaturgo e sua ex-mulher é bem mais interessante, pois aí o autor levanta pertinentes questões sobre o amor, a convivência, o ciúme, o sexo, a dificuldade de se seguir em frente sem a pessoa amada etc. Mas mesmo aqui o autor prolonga excessivamente a história, que, se um pouco reduzida, provocaria na platéia um impacto ainda maior do que o obtido.
Com relação ao espetáculo, Marcelo Rubens Paiva faz boa estréia como diretor. Além de criar marcas expressivas em total sintonia com os conteúdos em jogo, e trabalhar muito bem os tempos rítmicos, o encenador extrai ótimas atuações de todo o elenco, formado por intérpretes de grande experiência, dois deles também autores e diretores - Mário Bortolotto e Hugo Possolo. Mas o grande destaque é sem dúvida Paula Cohen. Possuidora de vastos recursos expressivos, a atriz convence em todos os momentos, sejam eles dramáticos ou engraçados, imponto ao texto variações surpreendentes e criativas, além de exibir um notável trabalho corporal.
No tocante à equipe técnica, Rui Mendes responde por uma iluminação que enfatiza com grande sensibilidade todas as emoções em causa, em especial no segundo ato. Zé Carratu assina uma cenografia que atende a todas as exigências do espetáculo, sendo corretos os figurinos não assinados.
A NOITE MAIS FRIA DO ANO - Texto e direção de Marcelo Rubens Paiva. Com Paula Cohen, Hugo Possolo, Alex Gruli e Mário Bortolotto. Teatro Poeira. Terças e quartas, 21h.
"A noite mais fria do ano"
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Ficção e realidade no Poeira
Lionel Fischer
Uma peça dentro da outra. O recurso não é novo, mas Marcelo Rubens Paiva vale-se dele para, aparentemente, contar duas histórias, quando na verdade trata-se de uma só: uma fictícia, a outra real. Em sua primeira metade, "A noite mais fria do ano" mostra o embate verbal entre o editor de uma revista e seu fotógrafo, dando a entender que o primeiro teria sido amante da mulher do segundo, Carla. No "segundo ato", um autor teatral está em seu apartamento quando recebe a inesperada visita de Carla, atriz com quem vivera e trabalhara, e que o abandonou, estando no momento casada com um homem que a espancara. Então fica claro que a primeira história é uma criação oriunda do drama vivido pelo dramaturgo.
Após cumprir bela temporada em São Paulo, com casas lotadas em todas as sessões - segundo o release que nos foi enviado - "A noite mais fria do ano" acaba de entrar em cartaz no Teatro Poeira. Marcelo Rubens Paiva assina aqui sua primeira direção, estando o elenco formado por Paula Cohen, Hugo Possolo, Mário Bortolloto e Alex Gruli.
Sendo Marcelo Rubens Paiva um autor de grande talento, nada mais natural que se esperar dele um texto à sua altura. Mas este deixa um pouco a desejar. Na primeira história, o embate entre os dois homens soa um tanto irreal, pois as revelações de natureza lúbrica feita pelo editor ao fotógrafo, envolvendo a mulher deste, o levariam a ir embora ou tomar uma atitude drástica. E de fato, em dado momento, tudo leva a crer que chegaremos a um destino trágico, pois o editor saca uma pistola e o fotógrafo pega o facão do responsável por um quiosque, que, por sinal, não apenas assiste à cena como nela intervém com observações, digamos, engraçadas. Mas ambos não se ferem, e voltam a trocar confidências e acusações por um tempo excessivo.
Já na segunda parte, o encontro entre o dramaturgo e sua ex-mulher é bem mais interessante, pois aí o autor levanta pertinentes questões sobre o amor, a convivência, o ciúme, o sexo, a dificuldade de se seguir em frente sem a pessoa amada etc. Mas mesmo aqui o autor prolonga excessivamente a história, que, se um pouco reduzida, provocaria na platéia um impacto ainda maior do que o obtido.
Com relação ao espetáculo, Marcelo Rubens Paiva faz boa estréia como diretor. Além de criar marcas expressivas em total sintonia com os conteúdos em jogo, e trabalhar muito bem os tempos rítmicos, o encenador extrai ótimas atuações de todo o elenco, formado por intérpretes de grande experiência, dois deles também autores e diretores - Mário Bortolotto e Hugo Possolo. Mas o grande destaque é sem dúvida Paula Cohen. Possuidora de vastos recursos expressivos, a atriz convence em todos os momentos, sejam eles dramáticos ou engraçados, imponto ao texto variações surpreendentes e criativas, além de exibir um notável trabalho corporal.
No tocante à equipe técnica, Rui Mendes responde por uma iluminação que enfatiza com grande sensibilidade todas as emoções em causa, em especial no segundo ato. Zé Carratu assina uma cenografia que atende a todas as exigências do espetáculo, sendo corretos os figurinos não assinados.
A NOITE MAIS FRIA DO ANO - Texto e direção de Marcelo Rubens Paiva. Com Paula Cohen, Hugo Possolo, Alex Gruli e Mário Bortolotto. Teatro Poeira. Terças e quartas, 21h.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
Teatro/CRÍTICA
"O arquiteto e o imperador da Assíria"
...........................................
Bela versão de obra-prima
Lionel Fischer
Escritor, cineasta e autor dramático, Fernando Arrabal, nascido na Espanha, em 1932, vive na França desde 1955. Mas apesar de exercer múltiplas atividades, ficou mundialmente conhecido por seu trabalho como dramaturgo. Admirador de Kafka, Breton, Beckett e Tzara, Arrabal define seu teatro de raiz dadaísta como "teatro pânico", com alguma sintonia com o Teatro do Absurdo. Suas obras dos anos 60, sucesso na França e em todo o mundo, incluem, entre outras, Piquenique no front, Oração, Os dois carrascos, Fando e Lis, O cemitério de automóveis, O labirinto, Cerimônia por um negro assassinado e O arquiteto e o imperador da Assíria. Celebrado internacionalmente, muitas de suas obras - invariavelmente provocadoras - exibem temas polêmicos, como sadomasoquismo, perversão sexual, blasfêmia e necrofilia.
E tais temas não deixam de estar presentes em O arquiteto e o imperador da Assíria, montada pela primeira vez no Brasil em 1970, no Teatro Ipanema, com direção de Ivan Albuquerque e elenco formado por Rubens Corrêa e José Wilker. Passados 39 anos, o texto volta à cena, no Teatro do Leblon (Sala Tônia Carrero), com Haroldo Costa Ferrari assinando a direção e Paulo Vilhena e Beto Bellini encarnando os dois únicos personagens - o primeiro faz o Arquiteto e o segundo, o Imperador.
Tendo por cenário uma ilha deserta, a peça exibe a relação de um homem primitivo (Arquiteto) e um civilizado (Imperador), este último sobrevivente de um desastre aéreo. Mas além dos temas mencionados, talvez o principal aqui seja a relação de poder - o Imperador o exerce implacavelmente, na suposição de que tem esse direito por deter o monopólio do conhecimento. Entretanto, aos poucos vai ficando claro que ambos não passam de náufragos perdidos num oceano de incertezas, frustrações e carências, que procuram minimizar (ou tentar entender) através de jogos em que interpretam personagens - não raro invertendo-os - inseridos em contextos religiosos, políticos, metafísicos e afetivos, dentre outros. Até que finalmente fica sugerido que a questão do poder, nos tempos atuais, pouco tem a ver com pessoas que ocupam cargos privilegiados, seja por nascença ou votos. A televisão seria o "grande pai" (ou mãe, se preferirem) de um mundo cada vez mais dominado por um caos aparentemente irreversível.
Com relação ao espetáculo, Haroldo Costa Ferrari impõe à cena uma dinâmica violenta e difersificada, valendo-se de marcas criativas e imprevistas, em total sintonia com os conteúdos propostos pelo autor. Cabe também destacar sua proposta de fisicalizar ao máximo as emoções em causa e neste sentido, seu trabalho junto aos intérpretes é realmente notável, pois tanto Paulo Vilhena como Beto Bellini conseguem converter seus corpos no que poderíamos definir como "massas expressivas". A mesma eficiência é exibida pelos atores no que concerne ao texto, trabalhado com absoluta paixão e riquíssimo em nuances.
Na equipe técnica, destacamos com entusiasmo a tradução de Leyla Ribeiro e Ivan de Albuquerque, assim como a trilha sonora de Ivan Cabral, a soturna iluminação de Rodolfo Garcia Vázques, e os criativos e críticos figurinos de Márcio Vinicius, também responsável pelos ótimos adereços e expressiva cenografia, esta última sugerindo um mundo completamente desolado, provavelmente incapaz de ser reconstruído.
O ARQUITETO E O IMPERADOR DA ASSÍRIA - Texto de Fernando Arrabal. Direção de Haroldo Costa Ferrari. Com Paulo Vilhena e Beto Bellini. Teatro do Leblon. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
"O arquiteto e o imperador da Assíria"
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Bela versão de obra-prima
Lionel Fischer
Escritor, cineasta e autor dramático, Fernando Arrabal, nascido na Espanha, em 1932, vive na França desde 1955. Mas apesar de exercer múltiplas atividades, ficou mundialmente conhecido por seu trabalho como dramaturgo. Admirador de Kafka, Breton, Beckett e Tzara, Arrabal define seu teatro de raiz dadaísta como "teatro pânico", com alguma sintonia com o Teatro do Absurdo. Suas obras dos anos 60, sucesso na França e em todo o mundo, incluem, entre outras, Piquenique no front, Oração, Os dois carrascos, Fando e Lis, O cemitério de automóveis, O labirinto, Cerimônia por um negro assassinado e O arquiteto e o imperador da Assíria. Celebrado internacionalmente, muitas de suas obras - invariavelmente provocadoras - exibem temas polêmicos, como sadomasoquismo, perversão sexual, blasfêmia e necrofilia.
E tais temas não deixam de estar presentes em O arquiteto e o imperador da Assíria, montada pela primeira vez no Brasil em 1970, no Teatro Ipanema, com direção de Ivan Albuquerque e elenco formado por Rubens Corrêa e José Wilker. Passados 39 anos, o texto volta à cena, no Teatro do Leblon (Sala Tônia Carrero), com Haroldo Costa Ferrari assinando a direção e Paulo Vilhena e Beto Bellini encarnando os dois únicos personagens - o primeiro faz o Arquiteto e o segundo, o Imperador.
Tendo por cenário uma ilha deserta, a peça exibe a relação de um homem primitivo (Arquiteto) e um civilizado (Imperador), este último sobrevivente de um desastre aéreo. Mas além dos temas mencionados, talvez o principal aqui seja a relação de poder - o Imperador o exerce implacavelmente, na suposição de que tem esse direito por deter o monopólio do conhecimento. Entretanto, aos poucos vai ficando claro que ambos não passam de náufragos perdidos num oceano de incertezas, frustrações e carências, que procuram minimizar (ou tentar entender) através de jogos em que interpretam personagens - não raro invertendo-os - inseridos em contextos religiosos, políticos, metafísicos e afetivos, dentre outros. Até que finalmente fica sugerido que a questão do poder, nos tempos atuais, pouco tem a ver com pessoas que ocupam cargos privilegiados, seja por nascença ou votos. A televisão seria o "grande pai" (ou mãe, se preferirem) de um mundo cada vez mais dominado por um caos aparentemente irreversível.
Com relação ao espetáculo, Haroldo Costa Ferrari impõe à cena uma dinâmica violenta e difersificada, valendo-se de marcas criativas e imprevistas, em total sintonia com os conteúdos propostos pelo autor. Cabe também destacar sua proposta de fisicalizar ao máximo as emoções em causa e neste sentido, seu trabalho junto aos intérpretes é realmente notável, pois tanto Paulo Vilhena como Beto Bellini conseguem converter seus corpos no que poderíamos definir como "massas expressivas". A mesma eficiência é exibida pelos atores no que concerne ao texto, trabalhado com absoluta paixão e riquíssimo em nuances.
Na equipe técnica, destacamos com entusiasmo a tradução de Leyla Ribeiro e Ivan de Albuquerque, assim como a trilha sonora de Ivan Cabral, a soturna iluminação de Rodolfo Garcia Vázques, e os criativos e críticos figurinos de Márcio Vinicius, também responsável pelos ótimos adereços e expressiva cenografia, esta última sugerindo um mundo completamente desolado, provavelmente incapaz de ser reconstruído.
O ARQUITETO E O IMPERADOR DA ASSÍRIA - Texto de Fernando Arrabal. Direção de Haroldo Costa Ferrari. Com Paulo Vilhena e Beto Bellini. Teatro do Leblon. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
A CENSURA E O TEATRO
- Uma perspectiva histórica -
J. R. Stephens
(O presente ensaio, extraído do The Cambridge Guide to World Theatre (E. M. Banham), foi escrito em 1988 e por isso algumas de suas colocações já não encontram - felizmente - respaldo na realidade. Entretanto, possibilita uma visão abrangente de todo o processo desta funesta atividade chamada Censura. O ensaio, aqui reduzido, fala da censura desde os seus primórdios até o final do século XIX, mas pode ser lido na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 153/1998. A tradução ficou a cargo de Milena Cunha de Uzeda - Curso de Tradução: Departamento de Letras, PUC-Rio)
O poder do teatro como uma arma no arsenal da propaganda tem sido reconhecido por todas as formas de autoridade, desde democracias liberais a ditaduras totalitárias. Esta crença no impacto persuasivo do palco explica a longevidade da censura teatral, algumas vezes em contraposição a outros tipos de censura. Enquanto a censura literária na Europa Ocidental foi, na maioria dos casos, abandonada (como ocorreu na Inglaterra desde 1695), a censura teatral sobreviveu em algumas democracias ocidentais do século XX. Embora freqüentemente camuflada sob mantos religiosos ou morais, a censura teatral é fundamentalmente um ato político. Um teatro inofensivo é um aliado da máquina do Estado; o indisciplinado é, potencialmente, seu mais feroz crítico e inimigo.
Todo tipo de censura é, por natureza, prescritiva e autoritária. Funesta e ameaçadora em seus aspectos mais severos, irritante e ridícula em suas características mais extravagantes, a censura atual exerce um controle sobre o teatro mundial que talvez jamais tenha exercido anteriormente. Seus agentes são figuras sombrias, kafkianas, cujas decisões raramente são sujeitas a questionamento ou apelação. A censura visa controlar e restringir a liberdade intelectual e artística do dramaturgo. E pode envolver a proibição de uma publicação ou de um espetáculo.
Roma e Grécia Antiga
Talvez os primeiros verdadeiros censores foram os arcontes da antiga Atenas que julgavam, baseados em méritos puramente artísticos, os competidores dos grandes festivais dramáticos. Porém, segundo o modelo moderno, não há evidências totalmente confiáveis de censura teatral na antigüidade clássica. Entretanto, referências esparsas (como a de Cícero em A República) sugerem que a quantidade de sátira pessoal na comédia clássica pode eventualmente ter levado a tentativas de freiá-la, embora não de forma sistemática e nem necessariamente induzida pelo Estado. Por outro lado, a liberdade de expressão era um conceito ateniense extremamente enraizado e Aristófanes, em Os Pássaros, mostra que os limites, se é que existiam, eram muito amplos. Já a natureza mais contida da comédia da Roma Antiga pode ter sido o resultado do aviso sinalizado pela prisão de Névius, ordenada pela família Metelli, a quem ele supostamente insultara em suas peças.
Certamente a lei romana relacionada à calúnia e à difamação (como consta na Lei das XII Tábuas) era bastante rígida e pode ter surtido efeito em dramaturgos como Plauto. Algumas formas de censura estão sugeridas pelas reclamações de Donato, as quais alegavam que na fabula togata (comédia nativa) era proibido mostrar mestres sendo sobrepujados pelos escravos; mas não se sabe ao certo a extensão desta proibição. Apesar de sua popularidade, o teatro era algumas vezes objeto de desconfiança, principalmente no século II a. C, quando o senado desaprovava a disseminação dos teatros. Já nos primeiros sinais da queda do Império Romano, Tertuliano ( De Spetaculis) questiona a crescente animosidade da Igreja cristã relativa ao aspecto da atividade dramática.
Europa do século XV ao XX
As raízes da censura européia estão associadas ao teatro medieval, quando vigoravam forças conflitantes, tanto religiosas como políticas, tanto locais como nacionais. Na Inglaterra, a Igreja Católica exercia considerável controle sobre os conteúdos dos Autos de Mistério e parece ter sido responsável, mesmo antes da Restauração, pela remoção de peças dedicadas à Virgem Maria dos Autos de York e Chester. Mas foram as autoridades laicas de Chester que, em 1531, procuraram remover os Autos da cidade qualquer referência ao poder do Papa. Na França, em 1402, Charles VI tentou afirmar a autoridade da corte sobre a apresentação das peças religiosas concedendo à Confrérie de la Passion o direito de encenar Mistérios, sob a condição de que os próprios representantes pudessem manter um olhar crítico com relação às apresentações.
Tais controles, de efeitos limitados, representavam o começo de tentativas mais agressivas de regulamentação do teatro na Europa Ocidental, ao se tornar mais laicizado. Uma preocupação acerca de elementos profanos, que adulteravam o teatro religioso, era expressa na Espanha, nas Assembléias Eclesiásticas de Aranda (1473) e Henares (1480), enquanto na França as façanhas sarcásticas de companhias de autores como Les Basochiens e Les Clercs deram a deixa para decretos contra eles próprios, em 1442 e 1448. No início do século XVI, autoridades locais ficavam cada vez mais impacientes com companhias de atores itinerantes e com seu potencial para ruptura. Em 1514, proibiram Farcer les Princes; em 1522, atacaram a insolência dos atores e, em 1544, reprimiram Des Jeux Scandaleux.
O teatro religioso, deserdado pela Igreja e vexatório para o Estado, sofreu uma ameaça crescente durante o século XVI, principalmente na Inglaterra e na França. O Parlamento francês introduziu, em 1538, uma forma de censura preventiva que rapidamente resultou na retirada do privilégio da Confrérie de la Passion, em 1548, e em uma subseqüente proibição das apresentações de todas as peças de Mistério. Na Inglaterra, a regulamentação do teatro pelo governo foi um instrumento vital da política dos Tudor, motivando a reviravolta da Restauração inglesa no reinado de Henrique VIII, a reversão temporária ao catolicismo no reinado de Mary Stuart e a criação, no reinado de Elizabeth I, de uma forte nação sob a insígnia protestante.
A primeira tentativa de coibir o teatro a nível nacional pode ser detectada no ato "Para o avanço da verdadeira religião e para abolição do contrário" (1543), que proibia todas as peças propensas a desafiar a religião recém-estabelecida. Em 1581, Elizabeth I conseguiu estabelecer a proibição completa dos Autos de Mistério, seguida por uma interdição (por mais de 300 anos) de qualquer peça bíblica ou referente às Escrituras.
Segredo
O segredo para a censura eficaz era o poder centralizado. Em muitas partes da Europa Ocidental (como na Alemanha e na Itália) a situação política fragmentada impossibilitava isso. A França teve alguns êxitos através de seu Parlamento, em Paris, e a Espanha teve a sua Inquisição (embora o teatro nunca figurasse em destaque nas listas de condenação). Mas o método mais habilidoso de censura aconteceu na Inglaterra no período Elizabetano. Em 1559, autoridades locais foram instruídas a proibir peças "onde tanto questões de religião, como de decisão do Estado sobre o bem-estar comum fossem abordadas", embora Elizabeth I reconhecesse que o controle apropriado significava uma supervisão ativa pela própria corte. Os poderes do Mestre dos Foliões, nominalmente submetido ao Lorde Chamberlain, são mencionados pela primeira vez na patente concedida à Companhia dos Atores do Conde de Leicester, em 1574, que teve permissão de apresentar somente peças "assistidas e autorizadas" pelo Mestre.
O advento dos primeiros teatros permanentes em Londres (1576) impôs uma maior definição do Conselho dos Foliões e, em 1581, uma patente real deu ao titular, Edmund Tilney, plenos poderes "para ordenar e restaurar, autorizar e proibir, seguindo seu próprio juízo ou aconselhado por seus representantes" qualquer obra considerada prejudicial aos interesses do Estado. Na época em que Shakespeare chegou a Londres, vigorava um sistema canalizador de censura. Mas decretos reais de 1598, 1603 e 1622, além do ato de 1606, proibindo juramentos profanos, asseguraram ao Mestre dos Foliões o poder de principal árbitro do teatro até meados do século XVII, interrompido somente pelo fechamento dos teatros por Cromwell, de 1642 a 1660.
Cadeia
A supervisão da corte tinha efeitos positivos e negativos sobre o teatro. Enquanto ela oferecia às companhias de teatro uma proteção contra a interferência de autoridades hostis, isto também significava que as peças estavam sujeitas ao severo exame oficial antes de serem licenciadas. Até mesmo algumas das primeiras edições das peças de Shakespeare parecem ter sido afetadas, com alguns dramaturgos sendo presos por apresentar questões sediciosas - dentre eles, Ben Johson, Chapman e Martson, cujo Eastward Ho despertou cólera em James I, por abordar com irreverência seus cortesãos escoceses.
O poder de censura na Inglaterra do século XVII contrasta com sua relativa fraqueza em outros lugares, mesmo na França, onde a censura era limitada. Em 1609, os comediantes do Hôtel de Bourgogne foram impedidos de encenar comédias ou farsas sem a aprovação prévia do procurador do rei. Mas em 1641, Luís XII aboliu qualquer tipo de censura. Entretanto, os autores ainda poderiam ser punidos por indecência - Molière causou tanta polêmica com Tartufo que Luís XIV, embora pessoalmente solidário com Molière, foi obrigado a proibir a peça. Somente após muitas modificações ela foi liberada para apresentação pública, na presença do rei, em 1669.
Vítimas
Durante o século XVIII, a censura teatral se solidificou mais fortemente na Europa Ocidental, principalmente na Grã-Bretanha e na França, onde se implantaram medidas (com periódicas remissões, no caso da França), que se estenderiam até o final do século XX. Em 1701, Luís XVI reiplantou a censura formal, com uma ordem para que todas as novas peças fossem oficialmente examinadas antes da apresentação. O princípio foi confirmado em um outro decreto (1706), que inaugurou com sucesso o mecanismo de controle da pré-Revolução do palco, presidido por uma sucessão de censores, como Jolyot de Crébillon e seu filho, Marin, além de Suard (famoso por seus pontos de vista moderados), que moldou a prática do século XVIII. A principal vítima foi Beaumarchais (O Barbeiro de Sevilha e O Casamento de Fígaro).
O sistema de censura britânico sofreu uma drástica e abrangente reestruturação no começo do século XVIII, com a implantação de novos e extensos poderes no Ato de Licenciamento de palco introduzido por Robert Walpole, rapidamente incluído nos livros de estatuto, como resultado de difamações danosas ao governo, por Henry Field e outros. Embora inspirada na prática do Conselho dos Foliões, a nova lei estava nas mãos de Lorde de Chamberlain, que passou a ter plenos poderes para proibir "quantas vezes ele considerar pertinente" qualquer peça dramática apresentada "para fins lucrativos" em qualquer lugar da Grã-Bretanha - uma autoridade que, segundo a opinião de seu arqui-opositor, Lorde Chesterfeld, "desconhece nossas leis e é incoerente com nossa Constituição". Modificado em alguns detalhes pelo Ato de Regulamentação do Teatro, que o substitui em 1843, o ato de Walpole formeneu todas as fundações para o controle do teatro nos 231 anos seguintes.
Aliança
Em outras partes da Europa, o teatro também vinha sofrendo uma vigilância intensa. Nenhum sistema formal de censura existia na Rússia até o começo do século XIX, mas, assim como na Inglaterra, os czares tentaram estabelecer uma íntima aliança do teatro com a corte. Os motivos eram os mesmos, mas os métodos eram diferentes e mais limitados, já que a Rússia dependia do generoso patrocínio do Estado - do efetivo patrocínio do governo ao teatro - para assegurar que o que era apresentado fosse confeccionado de modo a atender às necessidades políticas.
Não sendo centralizadas no confuso clima político da Alemanha e da Áustria, a censura era exercida de forma diferenciada em cada local. A famosa peça The Robbers, de Schiller, amedrontou tanto o diretor da produção de Mannheim, em 1872, que ele deliberadamente camuflou o seu espírito revolucionário ao transpor a ação para o século XVI, impedindo qualquer medida por parte das autoridades. Mesmo assim, a peça foi proibida em outras partes da Alemanha e da Áustria, só estreando em Viena em 1808.
Terror
A censura, vista com hostilidade dentro do espírito da Revolução Francesa, foi abolida por ordem da Assembléia Legislativa, em 1791, mas este período de liberdade teria pouco tempo de vida. Em 1794, a censura foi reinstaurada e, junto com ela, uma tentativa de "republicanizar o teatro". Todos os teatros foram obrigados a retirar qualquer referência a duques, barões, marqueses ou condes, e nenhum dramaturgo estava imune, nem mesmo Molière e Racine.
Durante o verão de 1794 (no auge do Terror), observa-se uma rara demonstração de agressividade da censura francesa: dos 151 roteiros analisados, 33 foram proibidos e outros 25, severamente cortados. O medo de ser contaminado pelo espírito revolucionário francês induziu outros países a execer vigilância mais rígida de censura política. Na Inglaterra, sob o olhar permanente dos representantes do Lorde Chamberlain, temas revolucionários, regicídios e alusões à opressão e ao patriotismo eram excluídos de todos os roteiros teatrais.
Espionagem
Uma vigilância semelhante caracterizava o poder ascendente da censura de Habsburgo. A Ordem de Viena (1794) proibiu todas as obras políticas perigosas e na época dos famosos Decretos Karsbad (1819), Metternich, apoiado por um sistema de espionagem com ramificações que ultrapassavam a dramaturgia e a literatura, procurou impor uma rígida censura a todos os estados do Império Austríaco.
O teatro da Rússia czarista já era praticamente um departamento do Estado, quando a censura foi implantada, em 1804, seguida de uma rigidez progressiva dos regulamentos nos 50 anos seguintes. Em 1828, a censura ficou a cargo do Terceiro Departamento do Conselho Pessoal de Sua Majestade, que criou novas regras para a censura de Moscou, São Petersburgo e das províncias mais extensas, sendo que a partir de 1842 passou a abarcar todas as companhias de atores itinerantes.
Quando Nicolau I elaborou um comitê secreto especial para a censura (conhecido oficialmente como Comitê 2 de Abril), em 1848, o czar passou a controlar pssoalmente o sistema. Entre as vítimas mais notáveis da censura czarista (que não permitia nenhum tipo de representação do czar, de sátira à nobreza, a donos de terra, ao Estado ou aos seus membros) estavam Pushkin, Turguenev, Tolstoi e Gogol - este último, surpreendentemente, escapou de um veto em O Inspetor Geral: o czar parece ter se divertido com seus representantes temíveis e providencialmente corruptos.
Arma
No continente europeu, a censura política era geralmente utilizada como uma arma contra o crescente uso do teatro como veículo de expressão do sentimento libertário nacional. O sistema de espionagem de Metternich vigiava as atividades de um grupo de jovens escritores radicais, conhecidos como Junges Deutshland. Na França, Le Roi S'Amuse, de Victor Hugo, causou tumulto na estréia, por sua suposta referência a Luís Felipe, e foi imediatamente proibida, dando a deixa para a implantação da censura do Estado, depois de sua temporária abolição na Revolução de 1830.
A situação na Itália era mais caótica que em qualquer outro lugar. Em algumas regiões, como nas províncias de Lombardia e Vêneto, o censor austríaco detinha o controle. Mas na maioria dos outros estados e ducados o sistema era mais localizado - um comitê real foi criado em Nápoles, em 1807, para supervisionar todos os aspectos da produção teatral (incluindo cenário e figurino), enquanto no Vaticano, Pio VII criou uma junta de censura, com seis cavaliere e um abade. A fervorosa recepção de Nabuco, de Verdi, em Milão (1842), confirmou às autoridades a necessidade de anestesiar as emoções políticas e garantiu a Verdi, a partir de então, um controle rígido dos censores italianos e de outras partes da Europa. Entre os numerosos dramaturgos que sofreram censura política no período anterior à Unificação estavam Monti, Nicolini, D'Aste e Pellico.
Imoralidades
Mas o equilíbrio da Europa, depois de 1850, lentamente cedia lugar a uma preocupação mais profunda e persistente com as questões morais, principalmente na França e na Grã-Bretanha. Depois de 1852, os censores franceses voltaram sua atenção às supostas imoralidades das peças de, entre outros, Alexandre Dumas, Victorien Sardou e Emile Augier. Pelo fato de a vida teatral britânica do século XIX depender de importação e adaptação das inovações parisienses e também de sua censura moral ser mais rígida do que na França, o pedágio exigido pelo Lorde Chamberlain era alto, chegando ao máximo nos anos 80 e 90. O processo de "desinfecção" das peças francesas era bastante comum, mas muitas comédias e dramas (especialmente quando pareciam atacar a santidade da vida familiar) se mostravam ousados demais para passar imunes aos censores.
Talvez a mais conhecida de todas tenha sido a Dama das Camélias, do jovem Dumas, proibida primeiramente na Inglaterra em 1853 e muitas outras vezes, a partir de então, em diversas adaptações. Porém, ironicamente, La Traviata, de Verdi, foi aceita em 1856, porque, seguindo uma regra geral, a ópera gozava de maior tolerância do que o teatro. Contudo, a crescente natureza inibidora da censura foi realçada pela chegada do "teatro de vanguarda", introduzido por Ibsen, que acelerou uma campanha embrionária contra a censura, liderada por William Archer e Bernard Shaw.
Sexo
Este movimento foi fortalecido no período de 1880 e 1910 com a interdição de peças como Os Fantasmas (Ibsen) e O Poder da Escuridão (Tolstoi). Na ala inglesa, A Profissão da Sra. Warren, de Shaw, figurou entre as principais vítimas da censura, que parecia bestificada por uma peça teatral tentar abordar seriamente questões de natureza sexual e moral.
Uma solução para as restrições impostas à liberdade de expressão artística, e que funcionava com algum sucesso, principalmente na França, era um teatro dedicado a apresentações privadas - como em clubes - que assim escaparia à atenção do censor e acabaria se livrando das exigências do teatro comercial. O Théâtre Libre, de Antoine, fundado em Paris, em 1887, servia de modelo para empreendimentos semelhantes na Alemanha (Freie Bühne, Berlim, 1889) e na Grã-Bretanha (Independent Theatre Society, Londres, 1891). Nesta época, entretanto, foi somente na França, em 1906, que o "lobby" anti-censura se viu vitorioso, com o fim de qualquer tipo de censura pré-estabelecida.
- Uma perspectiva histórica -
J. R. Stephens
(O presente ensaio, extraído do The Cambridge Guide to World Theatre (E. M. Banham), foi escrito em 1988 e por isso algumas de suas colocações já não encontram - felizmente - respaldo na realidade. Entretanto, possibilita uma visão abrangente de todo o processo desta funesta atividade chamada Censura. O ensaio, aqui reduzido, fala da censura desde os seus primórdios até o final do século XIX, mas pode ser lido na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 153/1998. A tradução ficou a cargo de Milena Cunha de Uzeda - Curso de Tradução: Departamento de Letras, PUC-Rio)
O poder do teatro como uma arma no arsenal da propaganda tem sido reconhecido por todas as formas de autoridade, desde democracias liberais a ditaduras totalitárias. Esta crença no impacto persuasivo do palco explica a longevidade da censura teatral, algumas vezes em contraposição a outros tipos de censura. Enquanto a censura literária na Europa Ocidental foi, na maioria dos casos, abandonada (como ocorreu na Inglaterra desde 1695), a censura teatral sobreviveu em algumas democracias ocidentais do século XX. Embora freqüentemente camuflada sob mantos religiosos ou morais, a censura teatral é fundamentalmente um ato político. Um teatro inofensivo é um aliado da máquina do Estado; o indisciplinado é, potencialmente, seu mais feroz crítico e inimigo.
Todo tipo de censura é, por natureza, prescritiva e autoritária. Funesta e ameaçadora em seus aspectos mais severos, irritante e ridícula em suas características mais extravagantes, a censura atual exerce um controle sobre o teatro mundial que talvez jamais tenha exercido anteriormente. Seus agentes são figuras sombrias, kafkianas, cujas decisões raramente são sujeitas a questionamento ou apelação. A censura visa controlar e restringir a liberdade intelectual e artística do dramaturgo. E pode envolver a proibição de uma publicação ou de um espetáculo.
Roma e Grécia Antiga
Talvez os primeiros verdadeiros censores foram os arcontes da antiga Atenas que julgavam, baseados em méritos puramente artísticos, os competidores dos grandes festivais dramáticos. Porém, segundo o modelo moderno, não há evidências totalmente confiáveis de censura teatral na antigüidade clássica. Entretanto, referências esparsas (como a de Cícero em A República) sugerem que a quantidade de sátira pessoal na comédia clássica pode eventualmente ter levado a tentativas de freiá-la, embora não de forma sistemática e nem necessariamente induzida pelo Estado. Por outro lado, a liberdade de expressão era um conceito ateniense extremamente enraizado e Aristófanes, em Os Pássaros, mostra que os limites, se é que existiam, eram muito amplos. Já a natureza mais contida da comédia da Roma Antiga pode ter sido o resultado do aviso sinalizado pela prisão de Névius, ordenada pela família Metelli, a quem ele supostamente insultara em suas peças.
Certamente a lei romana relacionada à calúnia e à difamação (como consta na Lei das XII Tábuas) era bastante rígida e pode ter surtido efeito em dramaturgos como Plauto. Algumas formas de censura estão sugeridas pelas reclamações de Donato, as quais alegavam que na fabula togata (comédia nativa) era proibido mostrar mestres sendo sobrepujados pelos escravos; mas não se sabe ao certo a extensão desta proibição. Apesar de sua popularidade, o teatro era algumas vezes objeto de desconfiança, principalmente no século II a. C, quando o senado desaprovava a disseminação dos teatros. Já nos primeiros sinais da queda do Império Romano, Tertuliano ( De Spetaculis) questiona a crescente animosidade da Igreja cristã relativa ao aspecto da atividade dramática.
Europa do século XV ao XX
As raízes da censura européia estão associadas ao teatro medieval, quando vigoravam forças conflitantes, tanto religiosas como políticas, tanto locais como nacionais. Na Inglaterra, a Igreja Católica exercia considerável controle sobre os conteúdos dos Autos de Mistério e parece ter sido responsável, mesmo antes da Restauração, pela remoção de peças dedicadas à Virgem Maria dos Autos de York e Chester. Mas foram as autoridades laicas de Chester que, em 1531, procuraram remover os Autos da cidade qualquer referência ao poder do Papa. Na França, em 1402, Charles VI tentou afirmar a autoridade da corte sobre a apresentação das peças religiosas concedendo à Confrérie de la Passion o direito de encenar Mistérios, sob a condição de que os próprios representantes pudessem manter um olhar crítico com relação às apresentações.
Tais controles, de efeitos limitados, representavam o começo de tentativas mais agressivas de regulamentação do teatro na Europa Ocidental, ao se tornar mais laicizado. Uma preocupação acerca de elementos profanos, que adulteravam o teatro religioso, era expressa na Espanha, nas Assembléias Eclesiásticas de Aranda (1473) e Henares (1480), enquanto na França as façanhas sarcásticas de companhias de autores como Les Basochiens e Les Clercs deram a deixa para decretos contra eles próprios, em 1442 e 1448. No início do século XVI, autoridades locais ficavam cada vez mais impacientes com companhias de atores itinerantes e com seu potencial para ruptura. Em 1514, proibiram Farcer les Princes; em 1522, atacaram a insolência dos atores e, em 1544, reprimiram Des Jeux Scandaleux.
O teatro religioso, deserdado pela Igreja e vexatório para o Estado, sofreu uma ameaça crescente durante o século XVI, principalmente na Inglaterra e na França. O Parlamento francês introduziu, em 1538, uma forma de censura preventiva que rapidamente resultou na retirada do privilégio da Confrérie de la Passion, em 1548, e em uma subseqüente proibição das apresentações de todas as peças de Mistério. Na Inglaterra, a regulamentação do teatro pelo governo foi um instrumento vital da política dos Tudor, motivando a reviravolta da Restauração inglesa no reinado de Henrique VIII, a reversão temporária ao catolicismo no reinado de Mary Stuart e a criação, no reinado de Elizabeth I, de uma forte nação sob a insígnia protestante.
A primeira tentativa de coibir o teatro a nível nacional pode ser detectada no ato "Para o avanço da verdadeira religião e para abolição do contrário" (1543), que proibia todas as peças propensas a desafiar a religião recém-estabelecida. Em 1581, Elizabeth I conseguiu estabelecer a proibição completa dos Autos de Mistério, seguida por uma interdição (por mais de 300 anos) de qualquer peça bíblica ou referente às Escrituras.
Segredo
O segredo para a censura eficaz era o poder centralizado. Em muitas partes da Europa Ocidental (como na Alemanha e na Itália) a situação política fragmentada impossibilitava isso. A França teve alguns êxitos através de seu Parlamento, em Paris, e a Espanha teve a sua Inquisição (embora o teatro nunca figurasse em destaque nas listas de condenação). Mas o método mais habilidoso de censura aconteceu na Inglaterra no período Elizabetano. Em 1559, autoridades locais foram instruídas a proibir peças "onde tanto questões de religião, como de decisão do Estado sobre o bem-estar comum fossem abordadas", embora Elizabeth I reconhecesse que o controle apropriado significava uma supervisão ativa pela própria corte. Os poderes do Mestre dos Foliões, nominalmente submetido ao Lorde Chamberlain, são mencionados pela primeira vez na patente concedida à Companhia dos Atores do Conde de Leicester, em 1574, que teve permissão de apresentar somente peças "assistidas e autorizadas" pelo Mestre.
O advento dos primeiros teatros permanentes em Londres (1576) impôs uma maior definição do Conselho dos Foliões e, em 1581, uma patente real deu ao titular, Edmund Tilney, plenos poderes "para ordenar e restaurar, autorizar e proibir, seguindo seu próprio juízo ou aconselhado por seus representantes" qualquer obra considerada prejudicial aos interesses do Estado. Na época em que Shakespeare chegou a Londres, vigorava um sistema canalizador de censura. Mas decretos reais de 1598, 1603 e 1622, além do ato de 1606, proibindo juramentos profanos, asseguraram ao Mestre dos Foliões o poder de principal árbitro do teatro até meados do século XVII, interrompido somente pelo fechamento dos teatros por Cromwell, de 1642 a 1660.
Cadeia
A supervisão da corte tinha efeitos positivos e negativos sobre o teatro. Enquanto ela oferecia às companhias de teatro uma proteção contra a interferência de autoridades hostis, isto também significava que as peças estavam sujeitas ao severo exame oficial antes de serem licenciadas. Até mesmo algumas das primeiras edições das peças de Shakespeare parecem ter sido afetadas, com alguns dramaturgos sendo presos por apresentar questões sediciosas - dentre eles, Ben Johson, Chapman e Martson, cujo Eastward Ho despertou cólera em James I, por abordar com irreverência seus cortesãos escoceses.
O poder de censura na Inglaterra do século XVII contrasta com sua relativa fraqueza em outros lugares, mesmo na França, onde a censura era limitada. Em 1609, os comediantes do Hôtel de Bourgogne foram impedidos de encenar comédias ou farsas sem a aprovação prévia do procurador do rei. Mas em 1641, Luís XII aboliu qualquer tipo de censura. Entretanto, os autores ainda poderiam ser punidos por indecência - Molière causou tanta polêmica com Tartufo que Luís XIV, embora pessoalmente solidário com Molière, foi obrigado a proibir a peça. Somente após muitas modificações ela foi liberada para apresentação pública, na presença do rei, em 1669.
Vítimas
Durante o século XVIII, a censura teatral se solidificou mais fortemente na Europa Ocidental, principalmente na Grã-Bretanha e na França, onde se implantaram medidas (com periódicas remissões, no caso da França), que se estenderiam até o final do século XX. Em 1701, Luís XVI reiplantou a censura formal, com uma ordem para que todas as novas peças fossem oficialmente examinadas antes da apresentação. O princípio foi confirmado em um outro decreto (1706), que inaugurou com sucesso o mecanismo de controle da pré-Revolução do palco, presidido por uma sucessão de censores, como Jolyot de Crébillon e seu filho, Marin, além de Suard (famoso por seus pontos de vista moderados), que moldou a prática do século XVIII. A principal vítima foi Beaumarchais (O Barbeiro de Sevilha e O Casamento de Fígaro).
O sistema de censura britânico sofreu uma drástica e abrangente reestruturação no começo do século XVIII, com a implantação de novos e extensos poderes no Ato de Licenciamento de palco introduzido por Robert Walpole, rapidamente incluído nos livros de estatuto, como resultado de difamações danosas ao governo, por Henry Field e outros. Embora inspirada na prática do Conselho dos Foliões, a nova lei estava nas mãos de Lorde de Chamberlain, que passou a ter plenos poderes para proibir "quantas vezes ele considerar pertinente" qualquer peça dramática apresentada "para fins lucrativos" em qualquer lugar da Grã-Bretanha - uma autoridade que, segundo a opinião de seu arqui-opositor, Lorde Chesterfeld, "desconhece nossas leis e é incoerente com nossa Constituição". Modificado em alguns detalhes pelo Ato de Regulamentação do Teatro, que o substitui em 1843, o ato de Walpole formeneu todas as fundações para o controle do teatro nos 231 anos seguintes.
Aliança
Em outras partes da Europa, o teatro também vinha sofrendo uma vigilância intensa. Nenhum sistema formal de censura existia na Rússia até o começo do século XIX, mas, assim como na Inglaterra, os czares tentaram estabelecer uma íntima aliança do teatro com a corte. Os motivos eram os mesmos, mas os métodos eram diferentes e mais limitados, já que a Rússia dependia do generoso patrocínio do Estado - do efetivo patrocínio do governo ao teatro - para assegurar que o que era apresentado fosse confeccionado de modo a atender às necessidades políticas.
Não sendo centralizadas no confuso clima político da Alemanha e da Áustria, a censura era exercida de forma diferenciada em cada local. A famosa peça The Robbers, de Schiller, amedrontou tanto o diretor da produção de Mannheim, em 1872, que ele deliberadamente camuflou o seu espírito revolucionário ao transpor a ação para o século XVI, impedindo qualquer medida por parte das autoridades. Mesmo assim, a peça foi proibida em outras partes da Alemanha e da Áustria, só estreando em Viena em 1808.
Terror
A censura, vista com hostilidade dentro do espírito da Revolução Francesa, foi abolida por ordem da Assembléia Legislativa, em 1791, mas este período de liberdade teria pouco tempo de vida. Em 1794, a censura foi reinstaurada e, junto com ela, uma tentativa de "republicanizar o teatro". Todos os teatros foram obrigados a retirar qualquer referência a duques, barões, marqueses ou condes, e nenhum dramaturgo estava imune, nem mesmo Molière e Racine.
Durante o verão de 1794 (no auge do Terror), observa-se uma rara demonstração de agressividade da censura francesa: dos 151 roteiros analisados, 33 foram proibidos e outros 25, severamente cortados. O medo de ser contaminado pelo espírito revolucionário francês induziu outros países a execer vigilância mais rígida de censura política. Na Inglaterra, sob o olhar permanente dos representantes do Lorde Chamberlain, temas revolucionários, regicídios e alusões à opressão e ao patriotismo eram excluídos de todos os roteiros teatrais.
Espionagem
Uma vigilância semelhante caracterizava o poder ascendente da censura de Habsburgo. A Ordem de Viena (1794) proibiu todas as obras políticas perigosas e na época dos famosos Decretos Karsbad (1819), Metternich, apoiado por um sistema de espionagem com ramificações que ultrapassavam a dramaturgia e a literatura, procurou impor uma rígida censura a todos os estados do Império Austríaco.
O teatro da Rússia czarista já era praticamente um departamento do Estado, quando a censura foi implantada, em 1804, seguida de uma rigidez progressiva dos regulamentos nos 50 anos seguintes. Em 1828, a censura ficou a cargo do Terceiro Departamento do Conselho Pessoal de Sua Majestade, que criou novas regras para a censura de Moscou, São Petersburgo e das províncias mais extensas, sendo que a partir de 1842 passou a abarcar todas as companhias de atores itinerantes.
Quando Nicolau I elaborou um comitê secreto especial para a censura (conhecido oficialmente como Comitê 2 de Abril), em 1848, o czar passou a controlar pssoalmente o sistema. Entre as vítimas mais notáveis da censura czarista (que não permitia nenhum tipo de representação do czar, de sátira à nobreza, a donos de terra, ao Estado ou aos seus membros) estavam Pushkin, Turguenev, Tolstoi e Gogol - este último, surpreendentemente, escapou de um veto em O Inspetor Geral: o czar parece ter se divertido com seus representantes temíveis e providencialmente corruptos.
Arma
No continente europeu, a censura política era geralmente utilizada como uma arma contra o crescente uso do teatro como veículo de expressão do sentimento libertário nacional. O sistema de espionagem de Metternich vigiava as atividades de um grupo de jovens escritores radicais, conhecidos como Junges Deutshland. Na França, Le Roi S'Amuse, de Victor Hugo, causou tumulto na estréia, por sua suposta referência a Luís Felipe, e foi imediatamente proibida, dando a deixa para a implantação da censura do Estado, depois de sua temporária abolição na Revolução de 1830.
A situação na Itália era mais caótica que em qualquer outro lugar. Em algumas regiões, como nas províncias de Lombardia e Vêneto, o censor austríaco detinha o controle. Mas na maioria dos outros estados e ducados o sistema era mais localizado - um comitê real foi criado em Nápoles, em 1807, para supervisionar todos os aspectos da produção teatral (incluindo cenário e figurino), enquanto no Vaticano, Pio VII criou uma junta de censura, com seis cavaliere e um abade. A fervorosa recepção de Nabuco, de Verdi, em Milão (1842), confirmou às autoridades a necessidade de anestesiar as emoções políticas e garantiu a Verdi, a partir de então, um controle rígido dos censores italianos e de outras partes da Europa. Entre os numerosos dramaturgos que sofreram censura política no período anterior à Unificação estavam Monti, Nicolini, D'Aste e Pellico.
Imoralidades
Mas o equilíbrio da Europa, depois de 1850, lentamente cedia lugar a uma preocupação mais profunda e persistente com as questões morais, principalmente na França e na Grã-Bretanha. Depois de 1852, os censores franceses voltaram sua atenção às supostas imoralidades das peças de, entre outros, Alexandre Dumas, Victorien Sardou e Emile Augier. Pelo fato de a vida teatral britânica do século XIX depender de importação e adaptação das inovações parisienses e também de sua censura moral ser mais rígida do que na França, o pedágio exigido pelo Lorde Chamberlain era alto, chegando ao máximo nos anos 80 e 90. O processo de "desinfecção" das peças francesas era bastante comum, mas muitas comédias e dramas (especialmente quando pareciam atacar a santidade da vida familiar) se mostravam ousados demais para passar imunes aos censores.
Talvez a mais conhecida de todas tenha sido a Dama das Camélias, do jovem Dumas, proibida primeiramente na Inglaterra em 1853 e muitas outras vezes, a partir de então, em diversas adaptações. Porém, ironicamente, La Traviata, de Verdi, foi aceita em 1856, porque, seguindo uma regra geral, a ópera gozava de maior tolerância do que o teatro. Contudo, a crescente natureza inibidora da censura foi realçada pela chegada do "teatro de vanguarda", introduzido por Ibsen, que acelerou uma campanha embrionária contra a censura, liderada por William Archer e Bernard Shaw.
Sexo
Este movimento foi fortalecido no período de 1880 e 1910 com a interdição de peças como Os Fantasmas (Ibsen) e O Poder da Escuridão (Tolstoi). Na ala inglesa, A Profissão da Sra. Warren, de Shaw, figurou entre as principais vítimas da censura, que parecia bestificada por uma peça teatral tentar abordar seriamente questões de natureza sexual e moral.
Uma solução para as restrições impostas à liberdade de expressão artística, e que funcionava com algum sucesso, principalmente na França, era um teatro dedicado a apresentações privadas - como em clubes - que assim escaparia à atenção do censor e acabaria se livrando das exigências do teatro comercial. O Théâtre Libre, de Antoine, fundado em Paris, em 1887, servia de modelo para empreendimentos semelhantes na Alemanha (Freie Bühne, Berlim, 1889) e na Grã-Bretanha (Independent Theatre Society, Londres, 1891). Nesta época, entretanto, foi somente na França, em 1906, que o "lobby" anti-censura se viu vitorioso, com o fim de qualquer tipo de censura pré-estabelecida.
Teatro/CRÍTICA
"O homem da tarja preta"
..................................................
Em busca do homem perdido
Lionel Fischer
Assim como toda moeda possui duas faces, todos nós também as possuímos - em alguns casos, bem mais de duas. Aqui estamos diante de um homem que exibe, por um lado, uma face tradiconal, em perfeita consonância com os valores vigentes: é casado, ama a esposa, tem dois filhos e uma profissão estável. Por outro, no entanto, pratica uma atividade que a tradicional sociedade jamais veria com bom olhos: todas as noites, maquiado como uma prostituta e combinando roupas masculinas e femininas (terno e gravata na parte superior do corpo, salto vermelho e meia-calça preta na inferior), navega na internet fingindo-se de mulher em busca de avenuras sexuais com qualquer tipo de homem - cabendo registrar que jamais as materializa.
Eis, em resumo, o enredo de "O homem da tarja preta", de autoria do psicanalista Contardo Calligaris. Após cumprir bela temporada em São Paulo, a montagem está agora em exibição no Teatro do Leblon, com a mesma equipe: a atriz Bete Coelho assina a direção - além de interpretar em off a mulher do protagonista - e Ricardo Bittencourt dá vida ao único personagem, que atende por idêntico nome.
Com 35 anos de profissão, Calligaris possui vasta experiência na questão da masculinidade: "Passaram por mim neste tempo homens comicamente perplexos quanto ao destino, a missão e a significação de seu gênero. Ser homem não é mais fácil do que ser mulher: a masculinidade é, para os próprios homens, um drama, pois ela é, ao mesmo tempo, uma obrigação (seja homem!) e um enígma (tudo bem, mas como?)", diz o psicanalista no release que nos foi enviado. E certamente está coberto de razão.
E no texto que escreveu fica perfeitamente claro que, se por um lado, o casal só consegue se satisfazer através de fantasias envolvendo outras pessoas e até formula projetos de torná-las reais, por outro desejaria que as coisas voltassem a ser como no início da relação, quando ambos se bastavam. Mas tudo leva a crer que esse retorno não será mais possível, ao menos em princípio. Então Ricardo recorre ao expediente já mencionado numa desesperada tentativa de entender, afinal, o que é ser macho, o que é ser homem.
Estamos, portanto, diante de uma proposta da mais alta pertinência. Ocorre, no entanto, que certamente pelo fato de ser psicanalista, Calligaris constrói um personagem que, sem deixar de ser interessante, soa um pouco irreal. Isto se dá pelo fato dele se fazer muitas perguntas, respondê-las e em seguida negá-las, tornando a levantar questões ainda mais complexas, para as quais encontra respostas que não o satisfazem. E assim prossegue ao longo da peça, exibindo uma capacidade teórica de falar sobre o que o aflige que dificilmente alguém tão dilacerado possuiria. Seja como for, o texto tem o poder de incitar o espectador a pensar sobre sua própria sexualidade, seu universo afetivo e possíveis caminhos para encontrar seu verdadeiro papel em um universo tão conturbado quanto o nosso.
Com relação ao espetáculo, Bete Coelho cria uma dinâmica cênica em total sintonia com o texto, valendo-se de marcações expressivas e sobretudo trabalhando com grande sensibilidade os tempos silenciosos, impregnados de dúvidas, angústias e eventualmente de um humor que traz em seu bojo componentes sem dúvida trágicos. E certamente o êxito de sua montagem muito se deve à ótima atuação que conseguiu extrair de Ricardo Bittencourt, que mesmo levando-se em conta o que já foi dito a respeito do personagem, nele mergulha de forma apaixonada, conseguindo materializar as principais questões que o atormentam.
Na equipe técnica, Flavia Pedras Soares assina uma cenografia correta e funcional, a mesma correção e funcionalidade presentes no figurino de Rodrigo Fraga, na iluminação de Wagner Freire e na trilha sonora de Renato Godá.
O HOMEM DA TARJA PRETA - Texto de Contardo Calligaris. Direção de Bete Coelho. Com Ricardo Bittencourt. Teatro do Leblon. Terças e quartas, 21h.
"O homem da tarja preta"
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Em busca do homem perdido
Lionel Fischer
Assim como toda moeda possui duas faces, todos nós também as possuímos - em alguns casos, bem mais de duas. Aqui estamos diante de um homem que exibe, por um lado, uma face tradiconal, em perfeita consonância com os valores vigentes: é casado, ama a esposa, tem dois filhos e uma profissão estável. Por outro, no entanto, pratica uma atividade que a tradicional sociedade jamais veria com bom olhos: todas as noites, maquiado como uma prostituta e combinando roupas masculinas e femininas (terno e gravata na parte superior do corpo, salto vermelho e meia-calça preta na inferior), navega na internet fingindo-se de mulher em busca de avenuras sexuais com qualquer tipo de homem - cabendo registrar que jamais as materializa.
Eis, em resumo, o enredo de "O homem da tarja preta", de autoria do psicanalista Contardo Calligaris. Após cumprir bela temporada em São Paulo, a montagem está agora em exibição no Teatro do Leblon, com a mesma equipe: a atriz Bete Coelho assina a direção - além de interpretar em off a mulher do protagonista - e Ricardo Bittencourt dá vida ao único personagem, que atende por idêntico nome.
Com 35 anos de profissão, Calligaris possui vasta experiência na questão da masculinidade: "Passaram por mim neste tempo homens comicamente perplexos quanto ao destino, a missão e a significação de seu gênero. Ser homem não é mais fácil do que ser mulher: a masculinidade é, para os próprios homens, um drama, pois ela é, ao mesmo tempo, uma obrigação (seja homem!) e um enígma (tudo bem, mas como?)", diz o psicanalista no release que nos foi enviado. E certamente está coberto de razão.
E no texto que escreveu fica perfeitamente claro que, se por um lado, o casal só consegue se satisfazer através de fantasias envolvendo outras pessoas e até formula projetos de torná-las reais, por outro desejaria que as coisas voltassem a ser como no início da relação, quando ambos se bastavam. Mas tudo leva a crer que esse retorno não será mais possível, ao menos em princípio. Então Ricardo recorre ao expediente já mencionado numa desesperada tentativa de entender, afinal, o que é ser macho, o que é ser homem.
Estamos, portanto, diante de uma proposta da mais alta pertinência. Ocorre, no entanto, que certamente pelo fato de ser psicanalista, Calligaris constrói um personagem que, sem deixar de ser interessante, soa um pouco irreal. Isto se dá pelo fato dele se fazer muitas perguntas, respondê-las e em seguida negá-las, tornando a levantar questões ainda mais complexas, para as quais encontra respostas que não o satisfazem. E assim prossegue ao longo da peça, exibindo uma capacidade teórica de falar sobre o que o aflige que dificilmente alguém tão dilacerado possuiria. Seja como for, o texto tem o poder de incitar o espectador a pensar sobre sua própria sexualidade, seu universo afetivo e possíveis caminhos para encontrar seu verdadeiro papel em um universo tão conturbado quanto o nosso.
Com relação ao espetáculo, Bete Coelho cria uma dinâmica cênica em total sintonia com o texto, valendo-se de marcações expressivas e sobretudo trabalhando com grande sensibilidade os tempos silenciosos, impregnados de dúvidas, angústias e eventualmente de um humor que traz em seu bojo componentes sem dúvida trágicos. E certamente o êxito de sua montagem muito se deve à ótima atuação que conseguiu extrair de Ricardo Bittencourt, que mesmo levando-se em conta o que já foi dito a respeito do personagem, nele mergulha de forma apaixonada, conseguindo materializar as principais questões que o atormentam.
Na equipe técnica, Flavia Pedras Soares assina uma cenografia correta e funcional, a mesma correção e funcionalidade presentes no figurino de Rodrigo Fraga, na iluminação de Wagner Freire e na trilha sonora de Renato Godá.
O HOMEM DA TARJA PRETA - Texto de Contardo Calligaris. Direção de Bete Coelho. Com Ricardo Bittencourt. Teatro do Leblon. Terças e quartas, 21h.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
O enredo de O cerejal
Francis Fergusson
O cerejal (O jardim das cerejeiras) costuma ser acusado de não ter enredo algum, e é verdade que a história dá poucas indicações do significado ou conteúdo da peça; nada acontece, como costumam dizer os críticos da Broadway. Também não apresenta nenhuma tese, embora muitas tentativas tenham sido feitas para atribuir-lhe uma, fosse encaixando-a na linha marxista, ou numa defesa nostálgica do velho regime.
A peça não tem lá muito enredo em qualquer desses significados comuns da palavra, porque não é dirigida à mente racionalizadora, mas à sensibilidade poética e histriônica. É a imitação de uma ação no sentido mais restrito, e é estruturada de acordo com o primeiro significado dessa palavra que já caracterizei em outros contextos: os incidentes são escolhidos e arranjados para definir a ação dentro de uma determinada atmosfera; uma ação completa, com início, meio e fim no tempo. Mas que independe da ordem mecânica da tese ou intriga, o que tipifica a perfeição da arte realista de Tchecov. E seus incidentes, aparentemente naturais, são na realidade compostos com a mais elaborada e consciente perícia para revelar uma vida subjacente, e a forma objetiva e fluente da peça como um todo.
O cerejal é um drama de "motivação ética", um teatro-poesia sobre o sofrimento das transformações; e este tipo de ação e de consciência está muito mais perto das bases céticas do realismo moderno e das bases histriônicas de qualquer realismo. A intuição direta antes da doutrinação é sempre verdadeira, diz Aristóteles; e o feito extraordinário de Tchecov é não doutrinar coisa alguma. O que é conseguido através de seu enredo; selecionando apenas aqueles incidentes, aqueles momentos na vida dos personagens, entre os seus esforços racinalizantes, quando eles percebem a situação e o destino mais diretamente. É assim que ele faz aflorar a ação da peça - a tentativa falhada de permanecer no Cerejal - através de vários "refletores" diferentes e sem propor nenhuma tese a respeito.
O fino fio narrativo que amarra esses incidentes e personagens num todo para a mente inqusidora pode ser rapidamente resumido. A família, dona da velha propriedade a que dá nome o famoso pomar - Lyubov, seu irmão Gaev, e suas filhas Varya e Anya - está quase completamente falida e tem o problema de evitar que os credores vendam o Cerejal para recolher suas dívidas. Lopahin, cuja família fôra serva da propriedade, e que começa a tornar-se um rico homem de negócios, oferece-lhe o plano muito razoável: botem o Cerejal abaixo e dividam a propriedade em pequenos lotes, transformando-a em subúrbio residencial da pequena cidade industrial que cresce ali perto. Assim o valor da terra em dinheiro poderia não apenas ser preservado, mas aumentado. Isso, entretanto, não salvaria aquilo que Lyubov e seu irmão acham valioso na velha pripriedade: eles não podem consentir na destruição do velho pomar. Como não conseguem dinheiro, ganho ou emprestado para pagar as dívidas, tudo é afinal vendido em leilão para o próprio Lopahin, ativo e animado. Seus trabalhadores começam a cortar as árvores antes mesmo da família deixar a casa.
A peça pode ser resumidamente descrita como um pathos de grupo, de caráter realista; todos os personagens sofrem com a entrega da propriedade, cada um a seu modo, o conjunto pondo em evidência essa transformação num nível mais profundo e de significado mais amplo do que o de qualquer experiência individual. A ação que todos partilham por analogia, e que informa o sofrimento da transformação destinada ao Cerejal, é "salvar o Cerejal": isto é, cada personagem vê nele um valor - econômico, sentimental, social, cultural - e deseja conservá-lo. Por meio do enredo, Tchecov focaliza a ação geral: seu palco cheio de gente - os personagens que mencionei e meia dúzia mais de agregados - é como uma discussão implícita da fatalidade que concerne a todos; mas Tchecov não compartilha as idéias deles, e o intercâmbio que mostra entre suas dramatis personae não é tanto o do jogo de idéias quanto o da alternância das intuições dos personagens sobre a situação de cada um, conforme as tensões se modificam e a hora da decisão chega e passa.
Embora a ação escolhida por Tchecov para mostrar no palco seja "patética", isto é, sofrimento e intuição, ela é completa: O cerejal é armado diante de nossos olhos, e depois desarmado. O primeiro ato é um prólogo: é o momento em que Lyubov volta de Paris para tentar retomar o antigo modo de vida. Através de seus olhos e dos de sua filha Anya, bem como das perspectivas complementares de Lopahin e Trofimov, vemos a propriedade como se estivéssemos nela, sentindo suas várias possíveis significações.
O segundo ato corresponde ao agon: é quando percebemos os valores em conflito entre todos os personagens, e os esforços que fazem (fora do palco) para salvar, cada um, o seu Cerejal. O terceiro ato compreende o pathos e a peripécia da forma trágica tradicional. Trata-se de uma festa bastante histérica oferecida por Lyubov enquanto sua propriedade está sendo vendida em leilão na cidade vizinha; e que termina com a comunicação de Lopahin, orgulhoso, mas amargurado pelo sentimento de culpa, de ter sido ele o comprador.
O último ato é a epifania: vemos a ação, agora completa, sob uma luz nova e irônica. É o momento da partida da família: as janelas foram pregadas, a mobília está empilhada pelos cantos, e as malas prontas. Todos os personagens sentem, e o público vê, de mil maneiras, que a vontade de salvar o Cerejal redundou, de fato, em sua perda; o reencontro de seus moradores, em desencontro; a volta ao lar, em partida. O que isto "significa", não nos é dito. Mas a ação está completa, e o poema do sofrimento da transformação conclui com uma nova e final intuição e uma tocante nota sentimental.
_______________________________
O presente artigo, aqui um pouco resumido, foi extraído do livro Evolução e sentido do Teatro (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1964, tradução de Heloisa de Hollanda G. Ferreira)
Francis Fergusson
O cerejal (O jardim das cerejeiras) costuma ser acusado de não ter enredo algum, e é verdade que a história dá poucas indicações do significado ou conteúdo da peça; nada acontece, como costumam dizer os críticos da Broadway. Também não apresenta nenhuma tese, embora muitas tentativas tenham sido feitas para atribuir-lhe uma, fosse encaixando-a na linha marxista, ou numa defesa nostálgica do velho regime.
A peça não tem lá muito enredo em qualquer desses significados comuns da palavra, porque não é dirigida à mente racionalizadora, mas à sensibilidade poética e histriônica. É a imitação de uma ação no sentido mais restrito, e é estruturada de acordo com o primeiro significado dessa palavra que já caracterizei em outros contextos: os incidentes são escolhidos e arranjados para definir a ação dentro de uma determinada atmosfera; uma ação completa, com início, meio e fim no tempo. Mas que independe da ordem mecânica da tese ou intriga, o que tipifica a perfeição da arte realista de Tchecov. E seus incidentes, aparentemente naturais, são na realidade compostos com a mais elaborada e consciente perícia para revelar uma vida subjacente, e a forma objetiva e fluente da peça como um todo.
O cerejal é um drama de "motivação ética", um teatro-poesia sobre o sofrimento das transformações; e este tipo de ação e de consciência está muito mais perto das bases céticas do realismo moderno e das bases histriônicas de qualquer realismo. A intuição direta antes da doutrinação é sempre verdadeira, diz Aristóteles; e o feito extraordinário de Tchecov é não doutrinar coisa alguma. O que é conseguido através de seu enredo; selecionando apenas aqueles incidentes, aqueles momentos na vida dos personagens, entre os seus esforços racinalizantes, quando eles percebem a situação e o destino mais diretamente. É assim que ele faz aflorar a ação da peça - a tentativa falhada de permanecer no Cerejal - através de vários "refletores" diferentes e sem propor nenhuma tese a respeito.
O fino fio narrativo que amarra esses incidentes e personagens num todo para a mente inqusidora pode ser rapidamente resumido. A família, dona da velha propriedade a que dá nome o famoso pomar - Lyubov, seu irmão Gaev, e suas filhas Varya e Anya - está quase completamente falida e tem o problema de evitar que os credores vendam o Cerejal para recolher suas dívidas. Lopahin, cuja família fôra serva da propriedade, e que começa a tornar-se um rico homem de negócios, oferece-lhe o plano muito razoável: botem o Cerejal abaixo e dividam a propriedade em pequenos lotes, transformando-a em subúrbio residencial da pequena cidade industrial que cresce ali perto. Assim o valor da terra em dinheiro poderia não apenas ser preservado, mas aumentado. Isso, entretanto, não salvaria aquilo que Lyubov e seu irmão acham valioso na velha pripriedade: eles não podem consentir na destruição do velho pomar. Como não conseguem dinheiro, ganho ou emprestado para pagar as dívidas, tudo é afinal vendido em leilão para o próprio Lopahin, ativo e animado. Seus trabalhadores começam a cortar as árvores antes mesmo da família deixar a casa.
A peça pode ser resumidamente descrita como um pathos de grupo, de caráter realista; todos os personagens sofrem com a entrega da propriedade, cada um a seu modo, o conjunto pondo em evidência essa transformação num nível mais profundo e de significado mais amplo do que o de qualquer experiência individual. A ação que todos partilham por analogia, e que informa o sofrimento da transformação destinada ao Cerejal, é "salvar o Cerejal": isto é, cada personagem vê nele um valor - econômico, sentimental, social, cultural - e deseja conservá-lo. Por meio do enredo, Tchecov focaliza a ação geral: seu palco cheio de gente - os personagens que mencionei e meia dúzia mais de agregados - é como uma discussão implícita da fatalidade que concerne a todos; mas Tchecov não compartilha as idéias deles, e o intercâmbio que mostra entre suas dramatis personae não é tanto o do jogo de idéias quanto o da alternância das intuições dos personagens sobre a situação de cada um, conforme as tensões se modificam e a hora da decisão chega e passa.
Embora a ação escolhida por Tchecov para mostrar no palco seja "patética", isto é, sofrimento e intuição, ela é completa: O cerejal é armado diante de nossos olhos, e depois desarmado. O primeiro ato é um prólogo: é o momento em que Lyubov volta de Paris para tentar retomar o antigo modo de vida. Através de seus olhos e dos de sua filha Anya, bem como das perspectivas complementares de Lopahin e Trofimov, vemos a propriedade como se estivéssemos nela, sentindo suas várias possíveis significações.
O segundo ato corresponde ao agon: é quando percebemos os valores em conflito entre todos os personagens, e os esforços que fazem (fora do palco) para salvar, cada um, o seu Cerejal. O terceiro ato compreende o pathos e a peripécia da forma trágica tradicional. Trata-se de uma festa bastante histérica oferecida por Lyubov enquanto sua propriedade está sendo vendida em leilão na cidade vizinha; e que termina com a comunicação de Lopahin, orgulhoso, mas amargurado pelo sentimento de culpa, de ter sido ele o comprador.
O último ato é a epifania: vemos a ação, agora completa, sob uma luz nova e irônica. É o momento da partida da família: as janelas foram pregadas, a mobília está empilhada pelos cantos, e as malas prontas. Todos os personagens sentem, e o público vê, de mil maneiras, que a vontade de salvar o Cerejal redundou, de fato, em sua perda; o reencontro de seus moradores, em desencontro; a volta ao lar, em partida. O que isto "significa", não nos é dito. Mas a ação está completa, e o poema do sofrimento da transformação conclui com uma nova e final intuição e uma tocante nota sentimental.
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O presente artigo, aqui um pouco resumido, foi extraído do livro Evolução e sentido do Teatro (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1964, tradução de Heloisa de Hollanda G. Ferreira)
Teatro/CRÍTICA
"Além do Arco-Íris"
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Risos e lágrimas no Planetário
Lionel Fischer
Após a missa de 7º dia do marido Alex, diretor teatral com quem fora casada 26 anos, a atriz Rita Monfort está em seu apartamento. Objetos espalhados por toda a parte, assim como caixas vazias, sugerem a iminência de uma mudança. E a platéia "atua" como supostos amigos ou parentes da protagonista, como se ali estivessem para prestar condolências. E é basicamente com os espectadores que Rita se relaciona, ainda que eventualmente materialize recordações e troque algumas palavras com Chiquinho, camareiro do antigo casal, que está ali para ajudar a embalar o que será levado na mudança. Eis, em resumo, o enredo de Além do Arco-Íris, em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea). Flávio Marinho assina o texto e a direção do espetáculo, que tem elenco formado por Luciana Braga e Luciano Borges.
Como todos sabemos, a morte é algo com que lidamos com extrema dificuldade, ainda que tenhamos alguma crença capaz de apaziguar um pouco nossos corações diante de uma perda irreparável, como no presente caso. E talvez por isso Rita fale compulsivamente de sua relação com Alex, pois talvez acredite que, assim agindo, conseguirá ao menos minimizar a dor que a dilacera. E suas recordações são muito abrangentes - dentre outras, ela fala da trajetória artística do casal, da forma como ambos se relacionavam, das parcerias e cumplicidades, assim como das muitas brigas oriundas de duas personalidades com extrema dificuldade para ceder.
Estamos, portanto, diante de um contexto de grande potencial dramático. No entanto, Flávio Marinho optou por imprimir à maioria das recordações de Rita um tom de comédia, o que não deixa de ser surpreendente para alguém que perdeu o homem de sua vida há apenas uma semana. Mas a questão mais delicada do texto nem é exatamente esta, e sim uma permanente alternância de climas emocionais, o que gera uma certa dificuldade para entrarmos efetivamente - e afetivamente - no universo da protagonista.
Isto não significa que a situação não comporte momentos de humor, até porque o riso - mesmo que involuntário, descontrolado ou histérico - sempre pode gerar algum alívio. Mas aqui ele nos parece excessivo e como não há, quase nunca, uma transição para o drama, as já mencionadas alternâncias tornam-se por demais abruptas e um tanto injustificáveis. Por outro lado, cumpre ressaltar que o autor empreende pertinentes reflexões sobre vários temas, dentre eles o amor, o fazer teatral, a condição feminina e a relação conjugal.
Com relação ao espetáculo, Flávio Marinho impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, criando marcas diversificadass e expressivas, além de conseguir extrair de Luciana Braga uma atuação absolutamente irrepreensível.
Atriz completa, dotada de vastos recursos expressivos e grande inteligência cênica, Luciana Braga convence em todos os momentos, valorizando ao máximo tanto os mais dramáticos como aqueles em que o humor predomina. Sem dúvida, uma intepretação admirável, no mesmo nível de outras tantas da atual temporada, até aqui dominada amplamente pelas atrizes. Em papel de poucas possibilidades, Luciano Borges tem atuação correta.
Na equipe técnica, Maneco Quinderé responde por uma iluminação de altíssima qualidade, pois sutilmente consegue sublinhar todos os climas emocionais em jogo. Edward Monteiro assina uma cenografia por demais ilustrativa, pois a sensação é de que estamos não na sala do apartamento de um casal (ainda que de artistas do teatro), mas numa mistura de camarim com, digamos, um estúdio - fotográfico, cinematográfico ou destinado a ensaios. Ney Madeira criou um belíssimo vestido para Rita, que só contribui para ressaltar a beleza e charme natural da atriz. Flávio Marinho montou uma trilha sonora em total consonância com o contexto.
ALÉM DO ARCO-ÍRIS - Texto e direção de Flávio Marinho. Com Luciana Braga e Luciano Borges. Teatro Maria Clara Machado. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
"Além do Arco-Íris"
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Risos e lágrimas no Planetário
Lionel Fischer
Após a missa de 7º dia do marido Alex, diretor teatral com quem fora casada 26 anos, a atriz Rita Monfort está em seu apartamento. Objetos espalhados por toda a parte, assim como caixas vazias, sugerem a iminência de uma mudança. E a platéia "atua" como supostos amigos ou parentes da protagonista, como se ali estivessem para prestar condolências. E é basicamente com os espectadores que Rita se relaciona, ainda que eventualmente materialize recordações e troque algumas palavras com Chiquinho, camareiro do antigo casal, que está ali para ajudar a embalar o que será levado na mudança. Eis, em resumo, o enredo de Além do Arco-Íris, em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea). Flávio Marinho assina o texto e a direção do espetáculo, que tem elenco formado por Luciana Braga e Luciano Borges.
Como todos sabemos, a morte é algo com que lidamos com extrema dificuldade, ainda que tenhamos alguma crença capaz de apaziguar um pouco nossos corações diante de uma perda irreparável, como no presente caso. E talvez por isso Rita fale compulsivamente de sua relação com Alex, pois talvez acredite que, assim agindo, conseguirá ao menos minimizar a dor que a dilacera. E suas recordações são muito abrangentes - dentre outras, ela fala da trajetória artística do casal, da forma como ambos se relacionavam, das parcerias e cumplicidades, assim como das muitas brigas oriundas de duas personalidades com extrema dificuldade para ceder.
Estamos, portanto, diante de um contexto de grande potencial dramático. No entanto, Flávio Marinho optou por imprimir à maioria das recordações de Rita um tom de comédia, o que não deixa de ser surpreendente para alguém que perdeu o homem de sua vida há apenas uma semana. Mas a questão mais delicada do texto nem é exatamente esta, e sim uma permanente alternância de climas emocionais, o que gera uma certa dificuldade para entrarmos efetivamente - e afetivamente - no universo da protagonista.
Isto não significa que a situação não comporte momentos de humor, até porque o riso - mesmo que involuntário, descontrolado ou histérico - sempre pode gerar algum alívio. Mas aqui ele nos parece excessivo e como não há, quase nunca, uma transição para o drama, as já mencionadas alternâncias tornam-se por demais abruptas e um tanto injustificáveis. Por outro lado, cumpre ressaltar que o autor empreende pertinentes reflexões sobre vários temas, dentre eles o amor, o fazer teatral, a condição feminina e a relação conjugal.
Com relação ao espetáculo, Flávio Marinho impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, criando marcas diversificadass e expressivas, além de conseguir extrair de Luciana Braga uma atuação absolutamente irrepreensível.
Atriz completa, dotada de vastos recursos expressivos e grande inteligência cênica, Luciana Braga convence em todos os momentos, valorizando ao máximo tanto os mais dramáticos como aqueles em que o humor predomina. Sem dúvida, uma intepretação admirável, no mesmo nível de outras tantas da atual temporada, até aqui dominada amplamente pelas atrizes. Em papel de poucas possibilidades, Luciano Borges tem atuação correta.
Na equipe técnica, Maneco Quinderé responde por uma iluminação de altíssima qualidade, pois sutilmente consegue sublinhar todos os climas emocionais em jogo. Edward Monteiro assina uma cenografia por demais ilustrativa, pois a sensação é de que estamos não na sala do apartamento de um casal (ainda que de artistas do teatro), mas numa mistura de camarim com, digamos, um estúdio - fotográfico, cinematográfico ou destinado a ensaios. Ney Madeira criou um belíssimo vestido para Rita, que só contribui para ressaltar a beleza e charme natural da atriz. Flávio Marinho montou uma trilha sonora em total consonância com o contexto.
ALÉM DO ARCO-ÍRIS - Texto e direção de Flávio Marinho. Com Luciana Braga e Luciano Borges. Teatro Maria Clara Machado. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.