sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Antes da coisa toda começar"

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Náufragos de si mesmos


Lionel Fischer


"Quando principia...o espectro de um ator começa a materializar suas lembranças corporificando a memória. Dessa corporificação, surgem três personagens que espelham as facetas do seu eu. São três personagens que enfrentam impasses decisivos diante da vida. Téo é um ator em crise que começa a se questionar sobre o sentido de seu ofício. Zoé é uma jovem que avança sem amarras sobre as belezas e abismos da paixão. Léa é uma cantora que tenta se recuperar de uma tentativa de suicídio mal sucedida. Três personagens atravessando processos distintos, entre os impasses da vida e os impasses da morte, seguindo na tentativa de não se acomodarem diante das regras do mundo".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o que de mais essencial ocorre no presente espetáculo, mas sem com isso esgotar as possibilidades de apreensão do mesmo. Em cartaz no Teatro III do CCBB, "Antes da coisa toda começar" é o décimo nono espetáculo da Armazém Companhia de Teatro, fundada há 22 anos. Escrita em parceria por Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes, cabendo a este último a direção, a peça chega à cena com elenco formado por Patrícia Selonk (Zoé), Thales Coutinho (Téo), Simone Mazzer (Léa), Ricardo Martins (Espectro/Rufus), Marcelo Guerra (Irmão de Zoé/ator bufão/ pai de Téo/enfermeiro), Simone Vianna (enfermeira/mulher 1/atendente/Katrina/puta/amiga2) e Verônica Rocha (irmã de Léa/Marcele/mulher 2/namoradeira/viúva/amiga1).

Exibindo uma estrutura fragmentária, o texto mostra, como me parece já ter ficado implícito, três histórias paralelas - as de Téo, Zoé e Léa, fruto das recordações do espectro. Mas isso não significa que o espectador não possa estabelecer conexões entre elas, a partir de sua própria subjetividade. E nada também o impede de se colocar na pele do espectro e imaginar serem suas as lembranças do personagem. Enfim, são muitas as variantes propostas pelo texto, no tocante ao olhar de quem o vê materializado na cena.

Quanto a mim, acho que as três histórias têm pelo menos algo em comum: a aterradora possibilidade da não concretização de desejos essenciais, o que geraria a igualmente aterradora tarefa de tentar lidar com impensáveis renúncias. Uma cantora que perde a voz, uma mulher que não consegue consumar sua paixão, um ator forçado a admitir sua falta de talento, são evidentemente situações trágicas e, portanto, imunes a soluções ditadas pela razão e pelo bom senso.

Assim, nada mais natural que se comportem como náufragos de si mesmos, como espectros a promover orgias sobre a campa das próprias sepulturas, como se todos fossem portadores de um tumor cerebral. O real da vida se afigura como intolerável e a dor de existir passa a ser a tônica. Neste sentido, seria ridículo que os personagens, com a lama até o pescoço, tentassem manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. Até porque talvez até mesmo os dedos já tenham desaparecido...

Enfim...esta é apenas uma opinião e, como toda opinião, sujeita a todos os enganos. Mas foi assim que me relacionei com este texto belíssimo, que aborda temas da maior pertinência, e que me provocou internamente o mesmo efeito que causaria à minha pele a incisão (sem anestesia) de um afiado bisturi. E com a seguinte agravante: um "ferimento" físico tem sempre a possibilidade de cicratizar; já aqueles que nos atingem a alma, aí a questão é bem mais complexa.

Com relação ao espetáculo, este talvez seja o mais belo e inquietante da atual temporada. Sendo Paulo de Moraes um encenador de exceção, nada mais natural que crie soluções tão criativas como imprevistas, frutos de uma imaginação que parece não ter limites. E nenhuma delas, cumpre registrar, ocorre de forma gratuita, como pueril reafirmação de um talento já há muito comprovado. Pelo contrário: todas as marcações, as pausas, a exploração das muitas alterações cenográficas, o universo gestual, os tempos rítmicos, a forma como os atores proferem o texto, enfim, tudo ocorre no sentido de conferir unidade a algo que, supostamente, deveria prescindir dela. Mas, como todos sabemos, uma das missões mais difíceis para um artista é organizar o caos. E neste quesito, Paulo de Moraes é um mestre.

No que se refere ao elenco, mais uma vez os atores da Armazém Companhia de Teatro imprimem sua marca registrada: vastos recursos expressivos, total entendimento do que estão realizando e uma notável capacidade de entrega. Assim, seria de certa forma injusto destacar uma ou mais atuações. Mas como a injustiça é inerente ao humano, torna-se impossível para mim não destacar as performances de Patrícia Selonk e Simone Mazzer, ainda que as demais também mereçam incontidos aplausos. Mas ver Patrícia e Simone em cena constitui, para mim, um privilégio difícil de ser descrito com palavras. A ambas, portanto, agradeço mais esta oportunidade que me proporcionaram de sair do teatro muito mais enriquecido do que quando nele entrei.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as maravilhosas contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta inesquecível empreitada teatral - Ricco Viana (direção musical), Paulo de Moraes e Carla Berri (cenografia), Maneco Quinderé (iluminação), Rita Murtinho (figurinos), Rico e Renato Vilarouca (projeções de vídeo), Ana Beviláqua (preparação corporal), Simone Mazzer (preparação vocal) e Alexandre de Castro (programação visual).

ANTES DA COISA TODA COMEÇAR - Texto de Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes. Direção de Paulo de Moraes. Com a Armazém Companhia de Teatro. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 20h.

2 comentários:

  1. Concordo!!! Assisti essa semana e volto na semana que vem!!

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  2. Não sei como o espetáculo foi no CCBB, mas assisti ontem na sede da Companhia, na Fundição Progresso, e saí de lá completamente fastigado da falta de afeto que o espetáculo possui. Frio, monocórdio (os atores parecem que estão dublando um desenho animado chato), achei o texto péssimo e no mais, fora a já conhecida facilidade em criar modernidades cênicas (o que me agrada), Paulo de Moraes engessou seus atores como nunca. Já vi outros espetáculos da companhia que gostei (Alice, Da Arte...) mas este, foi de matar. Drama psicológico, morte, fracasso, tudo muito depressivo, tudo muito Paulo de Moraes demais. Saí de lá pensando em Teatro Morto e dei graças por haver lido Peter Brook e entender que, apesar de todo oba-oba em torno do espetáculo, ele não oferece nada de novo. O Armazém estagnou em sua fórmula, que funcionava em 2000, mas que agora já não diz nada de novo. Engraçado que ao ler o título da sua crítica, pensei que você se referia isso. Pois a subverto para dizer que o Armazém desta vez é náufrago de si mesmo, já que por sua "fórmula", está se "matando". Acontece.

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