terça-feira, 31 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO IX


Não gastarei o precioso tempo do amigo leitor relatando as minúcias do inferno em que vivi durante quinze dias até recolocar na ordem correta a vida de Ambrosina, o que só foi possível com a ajuda do vinho que ingeria em grande quantidade, sempre que meus nervos ameaçavam se despedaçar. Talvez seja mais apropriado falar de um outro calvário, paralelo à insana tarefa acima mencionada: o meu isolamento. Assim que retornei de minha expedição e comuniquei à irmã Geovana que estava de posse de tudo o que precisava para dar início à hercúlea missão que me impusera, ela teve comigo uma longa conversa, que pode ser assim resumida:

1) Minha presença ali quebrava uma tradição, nascida com a Ordem, de jamais admitir um homem no convento e no convívio;

2) Se ela havia resolvido abrir uma exceção para mim isto se devia, por um lado, a um sentimento de gratidão por minha atuação no que diz respeito à tragédia e por outro ao fato de que eu teria que morar em algum lugar até a chegada do próximo trem, que só passava pela cidadezinha uma vez por mês;

3) Quanto ao livro que pretendia escrever, do ponto de vista da comunidade religiosa ele não constituía um motivo suficientemente forte para justificar minha presença no convento;

4) Mas eu poderia permanecer ali pelos próximos vinte e seis dias, desde que recluso ao meu quarto e sem nenhum contato com quem quer que fosse, exceção feita à irmã que me levaria comida.

Tal proposta, por me parecer não apenas desumana como contraditória, nos levou a um acalorado debate. Disse-lhe, entre outras coisas, que não acreditava na rigidez da Ordem no tocante ao sexo masculino, já que só entrara ali porque fora raptado e justamente pela facção mais ortodoxa do convento, em princípio a mais interessada na preservação dos ancestrais costumes. Questionei igualmente meu confinamento forçado, já que não era nenhum criminoso e como tal não merecia ser tratado. E terminei meu inflamado discurso afirmando, como Hamlet, que havia algo de podre naquele reino e que partiria imediatamente, nem que fosse para agonizar aos pés daquelas inóspitas muralhas.

Foi a primeira vez que vi irmã Geovana alterar-se. Tendo-me levantado, dando a entender que por mim a conversa estava terminada, foi com surpresa que a vi erguer-se também e me ordenar, com certa rispidez, que voltasse a me sentar, alegando que ainda tinha coisas a me dizer. Obviamente que obedeci de imediato, não apenas porque não tinha a menor vontade de ir embora, mas igualmente para usufruir a visão de minha deusa, cuja cólera tornava isuportavelmente bela.

- Escuta aqui, Gabriel - a inesperada intimidade fez meu coração dar forte bombada - se você acredita ou não na rigidez da Ordem no que se refere à presença de homens nesta casa, isso me parece tão ridículo que não me darei sequer ao trabalho de explicar-lhe as razões de tal costume. E por que será que você tem que assumir esse ar de condenado, já que nada lhe faltará enquanto estiver sob nossa guarda?

- Me faltará o essencial! - bradei -: a liberdade de ir e vir, garantida pela Constituição!

- Eu fiz por você tudo o que estava ao meu alcance! - retrucou no mesmo tom a materialização perfeita da beleza -: permiti até mesmo que você trouxesse para cá os escritos de Ambrosina, porque achei que isso o ajudaria a se sentir menos só. Mais é impossível, você não percebe? - e me olhou de forma tão direta e intensa que quase desmaiei. Em seguida, deu-me as costas e iniciou circular e tensa caminhada pela sala, o que me pareceu indício de que nada mais diria e apenas aguardava que eu me manifestasse. E eu o fiz, naturalmente, só que formulando um desejo inteiramente descabido:

- Irmã, já que falamos em solidão, a minha haveria de ser menos dolorosa se eventualmente aplacada pela visão daquela que ora circula à minha frente com injustificada cólera...

Assim que ouviu minha frase, cujo absurdo conteúdo e afetada construção fugiam por completo ao contexto, irmã Geovana me fitou, inicialmente com espanto, e logo com incredulidade:

- Você está me propondo que lhe faça visitas?

- Que mal há nisso? Ou será que este bendito regimento interno também proíbe a superiora da Ordem de circular por onde lhe der na telha?

- Este bendito regimento interno, ao qual você se refere com tanta ironia, deve ser seguido por todas as irmãs. E mais ainda pela superiosa, a quem cabe dar o exemplo!

- Irmã Geovana, tenha a santa paciência! - e então eu me ergui, com um desembaraço que desconhecia. - Nem mesmo nos quartéis mais rigorosos...

- Mesmo porque, senhor Aquino - bradou a divina serva de Jesus, interrompendo-me e retomando a forma de tratamento cerimoniosa, com o evidente propósito de me exasperar - eu não teria nenhuma razão suficientemente forte para querer visitá-lo. Tudo o que tínhamos a nos dizer já me parece que foi dito...- e ao inflexionar tal frase o fez com uma ponta de ironia, tal como o faria uma mulher "normal" ao descartar um pretendente indesejado.

- Nem tudo! - retruquei, tentando ao máximo camuflar o brutal sentimento de rejeição que me invadira. - Se me fosse dada, por exemplo, a oportunidade de vir mais vezes a este soturno gabinete, eu sugeriria algumas alterações, como enfeitá-lo com begônias e acácias. Também aposentaria aquele quadro pavoroso - e apontei para a reprodução de um mártir qualquer sendo espancado por centuriões romanos - cuja única finalidade parece ser a de nos convencer de que a vida não passa de um interminável calvário. E outras sugestões me ocorreriam, certamente capazes de tornar menos melancólico o diário exercício de suas nobilíssimas funções...

Ao concluir minha bizarra réplica, fiquei um tempo sem me atrever a olhar para irmã Geovana. Mas quando o fiz, não percebi nenhum sintoma de cólera ou ironia em sua renascentista face. Pelo contrário: sua expressão denotava, ainda que de forma discretíssima, a possibilidade de um iminente sorriso, que em minha opinião só não se consumou porque irmã Vôncia surgiu do nada, assustando-nos com sua cavernosa voz:

- Já é pra levar ele? - inquiriu o colosso abestalhado.

- Sim...- e então minha deusa desapareceu por uma porta, após contemplar-me com um gracioso aceno de cabeça. Ao me ver a sós com Vôncia, tive vontade de estrangulá-la, só não o fazendo por razões óbvias. Mas a possibilidade daquele sorriso não consumado me gerou tal felicidade que, ao ser escoltado por Vôncia até meu quarto, eu me sentia flutuar, como se irmã Geovana e eu tivéssemos agendado um novo encontro!

Ao me ver a sós, abri uma das inúmeras garrafas de vinho que roubara e comecei a festejar. E foram tantas as canções românticas que recordei, tantas as danças que dancei, tantos os copos que inebriado esvaziei que, quando irmã Vôncia irrompeu trazendo o jantar, eu quase já nem me lembrava com clareza do motivo que me fizera tomal a memorável bebedeira. Tinha uma vaga idéia de que ela se relacionava com o amor, mas seria incapaz de garantí-lo. Tanto isso é verdade que a primeira coisa que fiz foi indagar à mitológica figura, cujo tamanho a bebida aumentava em mais de um metro, se ela poderia me ajudar a descobrir a causa de tão poderoso efeito. Depois de uma breve reflexão, se é que tal termo pode ser aplicado à dita Vôncia, a giganta retrucou:

- Senhor Aquino: não sei nem estou interessada em saber por que o senhor tomou esse porre. Sei apenas que neste estado o senhor não pode ficar ...- e logo começou a arregaçar as mangas de seu hábito.

Ao vê-la fazer isso, mesmo embriagado como estava, me invadiu a suspeita de que Vôncia preparava alguma ação que não me agradaria. Mas quando a vi descalçar os botinões e enrolar o hábito até os joelhos, aí então tive certeza. Temendo pelo pior, escapei do quarto e saí tropeçando pelos corredores aos gritos de "socorro!". Mas fui alcançado antes da primeira curva e reconduzido nos ares para o quarto. Aliás, só não morri durante este trajeto porque ele era curto. A energúmena Vôncia, temendo que meus gritos pudessem ser ouvidos, resolveu tapar minha boca. Acontece que, devido às dimensões de sua mão, a mesma me tapava tanto a boca como as narinas, de maneira que quando ela me depositou no chão do banheiro, por sinal demonstrando total desconhecimento da fragilidade da ossatura humana, eu estava roxo como um bebê recém nascido.

Em seguida, ela fechou a porta do banheiro com um coice, abriu a torneira do chuveiro - de onde só rolava uma água absolutamente gélida - e nele me enfiou de roupa e tudo. Escusado dizer que, a essa altura, o pânico praticamente já me havia curado. Tentei, inclusive, explicar esse detalhe, mas irmã Vôncia fazia ouvidos de mercadora. Manipulando-me como se eu fosse um abjeto pequinês - o único cachorro que, exceção feita às pessoas idosas, toda as demais têm vontade de estrangular - a sequoia tanto me girou e sacudiu que acabei vomitando tudo o que em meu êxtase amoroso ingerira. E quando começaram as golfadas, a torturadora teve o desplante de me virar de cabeça para baixo, agarrando-me pelos tornozelos, ao mesmo tempo em que soltava estranhos grunhidos, provavelmente de satisfação. Irmã Vôncia só interrompeu o massacre quando, penso eu, concluiu que se o prolongasse mais alguns segundos meu estômago, baço e demais órgãos sairíam pela minha boca. Então ela desligou o chuveiro, me estendeu no chão como um tapete de cozinha e desapareceu.

Foi somente às custas de enorme esforço que consegui chegar até o quarto. Não deveria, por orgulho, tocar na refeição que ela me trouxera, mas como estava morto de fome, devorei-a com a maior sofreguidão. Em seguida, coloquei a bandeja do lado de fora - não tinha a menor intenção de rever a louca Vôncia, cujo nome retratava perfeitamente sua dona: uma mistura de violência e onça. Depois, pendurei no banheiro as roupas encharcadas, me deitei e adormeci.

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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Negrinha"

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Iluminando a História


Lionel Fischer


Em cena, poucos elementos: panelas, grãos, uma boneca, fitas de amarrar cabelo. Em cena, uma única personagem: uma menina sem nome, a quem chamavam de Negrinha em função de sua raça, nascida na senzala e por isso, como não poderia deixar de ser, vítima de contínuos abusos de sua patroa na época anterior à abolição. Fascinada com as cores, sobretudo a das pessoas, a criança nomeia tudo ao seu redor a partir das tonalidades que enxerga. Ao mesmo tempo, e de forma muito sutil, recorda seus sofrimentos e exercita o perdão.

Eis, em resumo, o enredo de "Negrinha", baseado no conto homônimo de Monteiro Lobato. Em cartaz na Casa da Gávea, a montagem chega à cena com direção de Luiz Fernando Marques e dramaturgia e atuação a cargo de Sara Antunes - cumpre ressaltar que o espetáculo já cumpriu temporada em diversas cidades, inclusive aqui no Rio de Janeiro, mas só agora pude assistí-lo.
Enfim...antes tarde do que nunca.

E esta última frase se deve ao fato de que estamos diante de um texto que consegue, ao mesmo tempo, materializar as fantasias, carências e desejos de uma menina, e também empreende uma reflexão (nada erudita, graças a Deus!) sobre o Brasil escravagista. E não sendo tal reflexão, como acaba de ser dito, de natureza erudita, a poesia e o lúdico predominam, facultando ao espectador uma estreita aproximação com uma versão, digamos, não oficial, de um um períodos mais abjetos de nossa história.

Sozinha em cena, Sara Antunes somente pode ser vista através de algumas velas, que ela própria manipula, às vezes apagando-as ou reduzindo drasticamente seu número. Mas isso pouco importa, pois a atriz, mesmo que representasse na mais completa escuridão, haveria de iluminar o espaço e tornar-se visível, graças, por um lado, à beleza e originalidade do texto, mas também à forma como o interpreta, valorizando ao extremo sua sonoridade, os eventuais silêncios, as quebras de ritmo, as modulações que impõe à sua voz.

Mas tudo isto, naturalmente, contou com a preciosa e sensível colaboração do diretor Luiz Fernando Marques, que impõe à cena uma dinâmica feita de delicadeza, humor e permanente interação da intérprete com a platéia. E é certamente por isso que os espectadores permanecem o tempo todo fascinados com o que assistem, inteiramente cúmplices de uma história que evidentemente não viveram, mas que agora passam a enxergar de forma diferente do que lhes foi ensinado nos quase sempre tendenciosos livros escolares.

Com relação à equipe técnica, destaco com o mesmo e irrestrito entusiasmo a direção de arte e cenografia de Renato Bolelli Rebouças e a iluminação, criada pela atriz em parceria com o encenador e o cenógrafo.

NEGRINHA - Texto e interpretação de Sara Antunes. Direção de Luiz Fernando Marques. Casa da Gávea. Sábado, 21h. Domingo, 20h.
Teatro/CRITICA

"O livro"

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E a raposa estava certa...


Lionel Fischer


"Numa noite, um homem recebe de seu pai um livro e uma sentença: ele cegará dentro de alguns minutos. O livro é deixado em seu quarto e o rapaz começa a organizar seus últimos momentos de visão, tentanto entender porque aquele objeto que lhe foi entregue lhe trará a escuridão". Este fragmento, extraído do release que me foi enviado, sintetiza com inteira propriedade o, digamos, enredo do espetáculo. Mas este, evidentemente, não pode ser encarado de forma literal, pois ningúém fica cego a partir da leitura de um livro. E se a inevitável cegueira do rapaz fosse fruto, como em um momento é sugerido, de uma doença familiar degenerativa que acomete todos os homens da família, então lendo ou não o tal livro o personagem haveria de ficar cego.

Portanto, tanto o livro, como a inexorável cegueira, não podem ser encarados em seu sentido real e sim metafórico. Mas que metáforas estariam em questão? Bem, a seguir tentarei explicitar minha opinião a respeito, fazendo como sempre a ressalva de que, como toda opinião, a minha pode estar sujeita a todos os enganos. De autoria de Newton Moreno, "O livro" chega à cena (Sala Multiuso do Espaço Sesc) com direção de Christiane Jatahy e interpretação de Du Moscovis.

Numa sociedade que cada vez mais prioriza o visual, perder a visão equivaleria a uma tragédia. No entanto, não custa nada lembrar as imortais palavras de uma sábia raposa, que sustentava que "o essencial é invisível para os olhos". E sendo isto verdadeiro, só restaria ao cego sua visão interior, estando aí implícita a possibilidade de vir a abençoar as trevas, como um dia abençoou a luz. Mas isso só pode se tornar viável desde que esse homem consiga encarar a total escuridão a que foi relegado não como sintoma de irremediável desampararo e sim como um recomeço, ponto de partida para novas percepções, uma espécie de iluminação capaz de alargar sua consciência a respeito de si mesmo e do mundo que o cerca, e então construir uma nova jornada, certamente mais lúcida e enriquecedora do que aquela que anteriormente trilhava.

Com relação ao espetáculo, mais uma vez Crristiane Jatahy dirige seu talento e sensibilidade por um caminho que despreza totalmente as "exigências do mercado", tanto no que diz respeito à temática quanto à forma. Aqui, como já fizera no recente e brilhante "Corte seco", estamos diante de um ator e de um homem - o ator interpreta um personagem, o homem o comenta, assim como ao processo de ensaio. E esse "corte" em nada atrapalha a narrativa, jamais contribui para que o espectador se distancie do que lhe é apresentado. Muito pelo contrário: como teatro e vida caminham sempre de mãos dadas, creio que todos que assistirem a essa montagem sairão do Sesc plenamente convictos de que, ao menos numa certa medida, também estiveram em cena, trabalharam junto com o ator e o homem algumas de suas questões essenciais, e suas reflexões posteriores certamente haverão de contribuir para a iluminação de seus particulares caminhos.

E ainda sobre o espetáculo, cumpre registrar a singularidade desta inquieta encenadora, a inteligência e criatividade de suas escolhas, a originalidade das soluções que encontra, sempre inesperadas, sempre em total sintonia com os mais do que pertinentes conteúdos propostos pelo autor. Sem dúvida, estamos diante de um espetáculo que se insere entre os melhores da presente temporada e que por isso deve ser prestigiado de forma incondicional pelo público carioca. Além disso, cabe enfatizar sua atuação junto ao protagonista.

Ao longo desses 21 anos de exercício ininterrupto de crítica teatral, é possível que tenha trocado com Du Moscovis no máximo dois ou três cumprimentos. Portanto, só o conheço de vê-lo em cena e de alguns de seus trabalhos na televisão. E acho admirável um ator com sólido espaço conquistado na TV jamais tentar se aproveitar de tal sucesso no palco, protagonizando pecinhas digestivas e inexpressivas. Muito pelo contrário: Du Moscovis me dá a sensação de estar cada vez mais empenhado em crescer como intérprete, em aceitar desafios que estrelas televisivas jamais o fariam, sob o ridículo temor de não agradar ao "seu público". E como, além de inegável talento, também possui notável capacidade de entrega e um permanente estado de inquietação, vê-lo em cena está se constituindo, para mim, um privilégio que a cada montagem se renova, assim como meu desejo de que prossiga nesta trajetória, a única, em meu entendimento, que confere a um ator o direito de estar num palco, este sagrado espaço de encontro entre quem faz e quem assiste e no qual o homem discute, há quase três mil anos, suas questões fundamentais.

No tocante à equipe técnica, Rodrigo Marçal assina uma trilha sonora irretocável, o mesmo ocorrendo com a cenografia criada pela diretora e a iluminação de Paulo César Medeiros, determinante para a enfatização dos múltiplos conteúdos emocionais em jogo. Destaco também, e com o mesmo entusiasmo, a preciosa coloboração de Dani Lima na orientação corporal de Du Moscovis e a belíssima programação visual feita por Chris Lima.

O LIVRO - Texto de Newton Moreno. Direção de Crhistiane Jatahy. Com Du Moscovis. Sala Mustioso do Espaço Sesc. Quinta, sexta e sábado, 20h. Domingo, 19h - no dia 5 de setembro haverá sessão às 19h e 2030h.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO VIII


A primeira etapa da expedição consistia em atravessar a enorme planura. E ela ficou registrada em minha memória como um dos momentos mais tranquilos e felizes de minha vida. A tranquilidade surgiu como decorrência de minha já conhecida incapacidade de exercer qualquer tipo de comando sobre a raça eqüina. Convencido de que segurar as rédeas seria inútil, já que a parelha ignorava os estímulos que enviava, deixei-as soltas sobre o lombo dos animais, que, possivelmente acostumados a realizar o mesmo trajeto, seguiam na direção que me convinha, o que me permitia apreciar a paisagem totalmente à vontade. Quanto à felicidade, esta deve ser creditada aos deliciosos pensamentos que me ocorreram.

Quando atravessara aquele local pela primeira vez, carecia de uma charrete, estava com o organismo debilitado e tinha como única meta sobreviver, o que só parecia possível se conseguisse chegar até o convento. Nas duas vezes seguintes, motivações nada aprazíveis absorveram-me por completo. Mas agora, considerando-me a salvo e já tendo pranteado os mortos, eu me permitia usufruir a beleza do lugar e tecer inúmeras conjecturas sobre o amor.

Embora não me considere um especialista no assunto - e muito menos o seria na época em que se deram os fatos que estou narrando - estou convencido de que um sentimento, para merecer a alcunha de paixão (e eu me sentia perdidamente apaixonado), necessita que algum tipo de barreira o ameaçe, proíba, o torne condenável, pois só assim encontra forças para superar-se, pulverizar os obstáculos e concretizar-se como fato. O único inconveniente é que quando isto chega a acontecer, quase sempre um dos amantes morre, tanto na vida real como na ficção, possivelmente devido à ausência de energia para viver, enfim, o grande amor, já que grande parte dela teve que ser empregada em árdua batalha contra os preconceitos, a moral e sobretudo a hipocrisia.

No meu caso, a consciência do que acabo de dizer não me impressionava nem um pouco, pois no íntimo nutria a esperança - originalíssima - de que comigo tudo seria diferente. Não sei se já o confessei, mas tenho um temperamento épico. As pequenas causas e as pequenas coisas jamais me sensibilizaram. Apenas para citar um exemplo: quando li a peça "Calígula", do africano Camus, fiquei tão impressionado com o imperador que desejava a lua que encomendei secretamente, à costureira de minha mãe, uma túnica igual àquela que supunha que ele usava em suas peregrinações noturnas. Mas não cheguei a usá-la, pois a dita costureira, certamente inquieta, delatou o fato à minha mãe, que não apenas sustou a encomenda como me tomou o texto. Eu teria, nessa época, no máximos uns treze anos e, como Calígula, já sonhava com o impossível. Mas prossigamos, senão minha natural prolixidade acabará despertando a justa ira do amigo leitor.

Mais ou menos uma hora depois de haver partido, atingi os limites da cidade. Lá chegando, os cavalos interromperam a marcha. Fiquei bastante preocupado, na presunção de que tivessem decidido não seguir adiante - na realidade, eles haviam sido treinados para chegar sozinhos até aquele ponto e daí para a frente a tarefa ficava a cargo do condutor. Mas isso eu só percebi quando, já temendo pelo fracasso da expedição, peguei as rédeas e as agitei. Assombrado, vi a parelha pôr-se em movimento e seguir todas as indicações que transmitia. Confiante, enveredei pela avenida principal, ao fim da qual ficava a casa de Ambrosina.

Mas meu objetivo imediato era achar a estação ferroviária, cuja localização esquecera. Tinha apenas uma vaga idéia de que ficava a pouca distância do término dessa avenida. Portanto, se não quisesse me perder, teria que passar pela porta da espantosa dama e depois me deixar guiar pela intuição. Entretanto, quando lá cheguei, tive uma desagradável surpresa: do outro lado da rua, sentada numa cadeira de balanço, estava a hedionda Ecúria, tecendo um enorme bordado. Embora a soubesse viva, a visão de sua abjeta figura me deu um calafrio. Pensei, inclusive, em contornar o quarteirão, mas desisti ao perceber que ela me avistara e poderia interpretar essa atitude como medo.

Assim, prossegui lentamente, cabeça erguida, tentando demonstrar superioridade. Mas ao chegar à sua frente, o monstro soltou - como de hábito, de boca fechada - uma tonitroante gargalhada. Assustados, os cavalos ameaçaram disparar, mas consegui contê-los graças a um desses milagres inexplicáveis. Em seguida, dirigi violentamente a carroça até a pavorosa bruxa. Ela, imaginando que por trás dessa atitude houvesse uma intenção homicida, ergueu-se de um salto, transformando a cadeira em escudo e agitando nos ares o bordado. Então, com a altivez típica de um cavaleiro medieval, bradei:

- Por acaso esse esgar medonho teve como alvo a minha pessoa?

Os cabelos da velha Ecúria tornaram-se verdes e se eriçaram mais do que as cerdas bravas do javali, como dizia nosso maior damaturgo. O pavor e o ódio disputavam, frenéticos, a posse de seu corpo. Com a cadeira se protegia, com o bordado me ameaçava - nesse momento me lembrei de uma cena do filme "Spartacus" em que o herói enfrenta e vence um negro gigantesco armado de um escudo e uma rede. Na esperança de que a vida continuasse imitando a arte, tornei-me ainda mais agressivo:

- E então, coisa horrorosa? Tens ainda uma chance de salvar a pele. Responde!

Visivelmente impressionada com a minha valentia, ela recuou até a porta de sua casa. Se eu tivesse, nesse momento, um conhecimento mais preciso acerca da extensão dos poderes da velha Ecúria, é claro que teria saído correndo sem o menor constrangimento. Como não o possuía, não vi por que fazê-lo, nem mesmo quando ela, ao transpor os umbrais de sua casa, vociferou:

- Tal acomo a peste, tua chegada dizimou nossa cidade. Mas este cenário te servirá de túmulo, maldito! Não viverás para contar a história de Ambrosina e teu amor, tu o celebrarás no sangue! - e batendo a porta atrás de si, em sua casa desapareceu.

Devo admitir que toda a minha valentia se esvaiu ao ouvir as palavras da megera. Não foram muitas, mas o suficiente para me deixar atônito. Em primeiro lugar, ela me responsabilizava pelo desaparecimento da população, ao comparar-me à peste. Ora, justiça seja feita, eu não tivera nenhuma participação na catástrofe. Alguém poderia, no máximo, censurar a passividade com que a assistira, mas mesmo assim só em termos, pois se descesse daquela árvore certamente esta história não estaria sendo narrada. Portanto, era uma acusação descabida. Depois, ela vaticinou que eu morreria na cidade Quando a isso, é uma opinião como outra qualquer, já que temos que morrer em algum lugar. Mas meu maior espanto deveu-se às duas últimas afirmativas: como poderia estar informada tanto dos meus projetos literários quanto do meu amor?

Ao retomar a marcha, a tranquilidade e felicidade anteriores haviam desaparecido. O personagem medieval, cheio de altivez e coragem, diluíra-se no meu cagaço. Voltava a ser o Gabriel de sempre, personagem sem nenhuma grandeza e com sérias propensões ao ridículo. Em todo o caso, era imprescindível prosseguir no rumo traçado. Assim, após serpentear por uma meia-hora, finalmente avistei a estação. O resgate de meus bens, que se limitavam a uma mala, foi facílimo, pois ela havia sido guardada num armário coletivo cujas principais características eram a imudície e ausência de fechadura. Portanto, só tive o trabalho de abrí-lo e pegar minha mala, que mais tarde constatei estar intacta - graças a Deus, porque ela também não tinha chave.

O retorno à casa de Ambrosina, que aparentava ser tão simples, acabou sendo patético, pois consegui me perder de tal forma que uma hora depois, ao invés de já estar a caminho do convento, encontrava-me fora da cidade, numa espécie de granja. Desolado, mas acalentando a remota esperança de encontrar um sobrevivente que pudesse me fornecer as informações indispensáveis, saltei da carroça e percorri a propriedade. Mas não havia ninguém ali. Ao retomar meu assento no coche, que a esta altura assumia contornos fúnebres, incentivei os cavalos para írem aonde quisessem. No entanto, pouco depois me surpreeendi ao constatar que estávamos de novo na avenida central e bem próximos da casa de Ambrosina. Já deveriam ser umas quatro da tarde.

Antes, porém, da dar início à operação, procurei me cercar de alguns cuidados, temendo uma possível iniciativa criminosa da famigerada vizinha. A primeira providência foi a de inspecionar sua casa. Ela estava toda trancada, inclusive as janelas, dando a impressão de que a velha Ecúria viajara. Como essa hipótese era de todo improvável, deduzi que a hedionda, sensibilizada com o encontro que tivera comigo, procurara se resguardar em sua intimidade, embora devesse estar arquitetando as mais sórdidas vinganças. Por isso prendi os cavalos num poste de luz que havia na calçada, tendo o cuidado de fazê-lo com uma impressionante quantidade de nós. E ao entrar na casa de Ambrosina, levei comigo minha mala, pois a maldita poderia sequestrá-la.

A casa de Ambrosina tinha dois andares e era de construção bem antiga. Em nada se assemelhava àquelas que a rodeavam, pois estas possuíam uma estrutura bem mais simples e eram muito parecidas, o que me levou à suposição de terem sido projetadas por um mesmo e socialista arquiteto. Já a da esperpêntica dama fora construída em estilo clássico e sem ser propriamente grande, se impunha com uma certa majestade. Por falar em majestade, devo admitir que sou muito sensível à existência de colunas numa casa, pois em todas as histórias de reis e de princesas os palácios sempre as exibem. Na casa de Ambrosina elas eram em número de quatro e serviam de sustentação ao gracioso telhado que cobria a varanda, à qual se chegava mediante a transposição de quatro degraus. Esse detalhe dos degraus é relevante na medida em que forçava o visitante a elevar-se para dialogar com a proprietária do imóvel. Em resumo: o exterior da casa de Ambrosina casava perfeitamente com a imagem que dela conservara: sua altivez, não carente de nobreza, encontrava sua perfeita representação nas brancas colunas; sua superioridade, nos sete degraus.

Quanto ao interior, também achei que estava em perfeita consonância com a personalidade dela. Tudo o que havia lá dentro refletia a classe, o humor e a fantasia de Ambrosina Sarmento. Nada parecia ter sido colocado para causar impressão ou dar prazer a ninguém que não ela própria. Desprezando os mais rudimentares conceitos de decoração, ela pendurava chapéus na cozinha, peles no banheiro e usava a sala para se vestir. Como mais tarde vim a saber, Ambrosina funcionava exclusivamente à base de emoção, se lixava para a lógica e obedecia cegamente aos seus impulsos. Isso não significa que não possuísse alto grau de raciocínio e percepção da realiadde, mas ambos pouco significavam quando seu coração batia mais forte por alguém ou por alguma causa. Sabia sempre os riscos que corria e os possíveis sofrimentos que teria que amargar caso determinado plano não desse certo, mas acaba invariavelmente levando-o até o fim. Muitos a julgavam louca, mas como não sou psiquiatra e, além de tudo, o conceito de loucura é não só bastante elástico quanto questionável, prefiro considerá-la, acima de tudo, uma mulher apaixonada. E, obviamente, apaixonante.

Confiando plenamente nas informações que ela me passara naquele sonho, galguei uma curiosa escadinha em forma de caracol e me enfurnei no quarto que minha intuição sugeriu ser o que ela utilizava para dormir. No entanto, e para meu total pasmo, dei de cara com Anacleto, refestelado na cama de Ambrosina!? E o bode tinha um ar tão cínico que por um segundo tive ganas de agarrá-lo pelas barbas e atirá-lo pela janela. Só não o fiz por temor de que, não o conseguindo, fosse eu o atirado lá de cima. Mas essa reviravolta em minhas intenções não me impediu de passar em Anacleto uma descompostura em regra, pois me pareceu um acinte ele invadir uma propriedade e passar a ocupá-la como se fosse sua. Dentre os muitos adjetivos que lhe enderecei constaram os de aproveitador e delirante. Aproveitador porque se aproveitava de uma circunstância especialíssima para usufruir benefícios que normalmente lhe estariam vedados. E delirante porque, ao deitar-se numa cama, dava a entender que não se conformava com sua condição de bode e procurava transcendê-la, agindo como um ser humano.

Como era de se esperar, meu inflamado discurso não provocou em Anacleto a menor reação. Ele se manteve na mesma postura, mascando um tufo de sua asquerosa barba, o olhar perdido no infinito. Ao me convencer de que continuar a admoestá-lo não nos levaria a nada, deixei-o de lado e comecei a procurar os tais manuscritos. Mas estes deveriam ter sido encafifados com incomparável maestria, ao invés de colocados no tal baú (que, por sinal, não existia ou havia sido surrupiado) junto à janela. Olhei em baixo da cama, em cima, vasculhei um velho armário, estive na varanda, em seguida em dois outros quartos, depois voltei à sala, apalpei a grama do jardim. Enfim, fiz de tudo que estava ao meu alcance e nada obtive.

Foi então que, completamente taquicárdico e silvando de forma operística - acho que ainda não mencionei que grandes ansiedades disparam em meu frágil organismo um inquietante processo de asma histérica - regressei ao quarto de Ambrosina, disposto a implorar a ajuda de Anacleto. Mas ele, alardeando inconcebível insensibilidade, teve o desplante de dormir enquanto eu falava, apoiando a cabeçorra nas patas dianteiras e arqueando as de trás, como se estivesse numa sauna. Foi demais para minha frágil estrutura emocional. Esquecendo inteiramente os riscos que corria, avancei para Anacleto disposto a lhe arrancar o chifre. Em minha fúria cega, no entanto, não considerei a existência do tapete sob a cama e numa de suas dobras acabei tropeçando, o que me fez alçar vôo e em seguida cair sobre o leito de Ambrosina, que imediatamente desabou. Anacleto, intuinto que momentos difíceis o aguardavam, saltou sobre minha cabeça e desapareceu.

Demorei alguns minutos para me refazer da patuscada que armara, mas quando isso aconteceu tive uma surpresa que me gerou uma alegria indescritível: o tesouro que tanto procurava estava esparramado à minha volta! Ambrosina, quem sabe por temer a ação de um gatuno contratado pela irmã, a hedionda Ecúria, ocultara seus escritos sob uma tripla camada composta por um lençol e duas pesadas colchas, arrumando-os com tal habilidade que a ninguém ocorreria procurá-los ali. Fizera deles seu colchão e se porventura sacrificara por uns tempos sua coluna, em troca garantira a própria imortalidade.

Embriagado de felicidade, comecei a beijar os manuscritos e a atirá-los para o alto. As decepções, os amores, as alegrias e os medos de Ambrosina esvoaçavam pelo quarto feito borboletas alucinadas. Como um garimpeiro que houvesse descoberto ouro, eu manipulava seu passado com a certeza de que ele me facultaria um futuro sublime. Em resumo, festejava uma mulher pensando em outra - só mais tarde, ao constatar que as folhas não estavam numeradas, é que pude avaliar a extensão de minha leviandade, tendo sido necessárias duas semanas inteiras para que o material recobrasse sua cronologia e eu pudesse iniciar meu trabalho...

Uma vez serenados os arroubos de minha paixão, comecei a reagrupar os papéis. E só quando me preparava para iniciar a operação translado é que me dei conta de algo que até então me passara despercebido. Na embriaguez da vitória, esquecera-me de como a havia obtido!? E esse triunfo eu devia literalmente a Anacleto, que se por um lado me levara à loucura ao dormir enquanto lhe dirigia a palavra, em contrapartida é óbvio que procurara me ajudar ao esticar sua carcaça sobre o leito, sem o que eu jamais teria tido acesso ao legado de Ambrosina. Na verdade, o formidável hirco nada mais fizera do que repetir o mesmo mecanismo adotado no episódio do convento, só que dessa vez, ao invés de me indicar o objeto procurado, sobre ele se deitara. Portanto, a culpa de nossa desavença cabia exclusivamente a mim, que não soubera interpretar uma atitude repleta de boas intenções.

A consciência de que cometera uma injustiça me fez deixar a casa de Ambrosina algo surumbático. Mas, após percorrer um pequeno trecho da avenida, vi a uns cem metros, defronte ao botequim de vidro, uma manchinha clara, estendida no chão, que mais parecia um tapete. Cheio de esperança, atiçei os cavalos, pois algo me dizia que dentro de poucos segundos poderia ao menos tentar resgatar a bizarra amizade que imaginava haver perdido para sempre. Sim, a tal machinha era o próprio Anacleto, que recebeu meu abraço e comovido pedido de desculpas sem alterar minimamente sua expressão indiferente e algo cínica. Mas tal deslize não me incomodou nem um pouco, pois para mim o fundamental é que tivera a grandeza de reconhecer que fora injusto.

Após múltiplos afagos na cabeça e pescoço do espantoso bode, preparava-se para retornar ao convento quando Anacleto se ergueu, como se objetivasse me seguir. Mas apenas caminhou alguns passos e se imobilizou na entrada do boteco. Foi então que tive a idéia de saqueá-lo, pois o unicórnio poderia estar sugerindo a conveniência de armazenar guloseimas, em face, quem sabe, de uma estadia no convento que poderia se prolongar por um tempo superior ao que imaginara. Como disse no final do capítulo anterior, até hoje não sei se agi corretamente, mas o fato é que ao deixar a cidadezinha trazia comigo uma fantásica quantidade de conservas, balas, doces e bebidas, afora presunto, queijo, pão, cigarros e outras iguarias que não vale a pena detalhar. E se minha consciência ficou um tanto incomodada, o mesmo não se aplica ao meu estômago, que viveu quinze dias gloriosos, durante os quais, totalmente isolados das irmãs e de minha amada, dei início à organização da saga de Ambrosina.

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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Teatro Desagradável

Nelson Rodrigues


Pedem-me que resuma minhas idéias e experiências teatrais. Não me custa um esforço nesse sentido. Escrevi minha primeira peça - A mulher sem pecado - em 1940 e andei, de porta em porta, atrás de um benemérito, que quisesse encená-la. Eu era, então, bem mais modesto. Admitia todas as hipóteses, menos a de ser, com o tempo, um autor discutido ou, como sugerem pessoas amáveis, "o autor mais discutido do Brasil". Justa esta humildade, pois minha inocência teatral era imensa.

Tentava, pela primeira vez, um texto dramático. Para meu azar ou sorte - não sei bem - já A mulher sem pecado inspirou debates. O que era a peça? Uma repetição exasperante. Os espectadores se entreolhavam, assustados e desconfiados. O drama não andava; o primeiro ato, era uma coisa; o segundo, a mesma coisa; o terceiro, idem.

Lembro-me que, na estréia, coloquei-me, estrategicamente, para ouvir os comentários. Constatei que o público, na maioria absoluta dos casos, saía indignado. Por vários motivos: porque a peça não tinha ação; era mórbida; inverossímil; os mais gentis admitiam que fosse cansativa ou monótona; os mais sinceros, usavam a expressão "chata". Esta, a reação do público.

Já a crítica portou-se com mais ferocidade. Li comentários particularmente agressivos contra a avó doida, personagem que se conserva, durante os três atos do drama, sem fazer nada. Minto - esta senhora tinha uma atividade bastante singular, qual seja a de enrolar um eterno paninho. Mas não dizia uma palavra, não ensaiava outro gesto além do mencionado, nem saía de sua confortabilíssima poltrona. Ninguém entendeu esta imobilidade.

E certo crítico interpelou-me, de público, achando que, inclusive, o papel era um desaforo atirado à face da intérprete. Esboçou-se mesmo um movimento de classe contra a desconsideração à colega. Fiquei preocupado e quase autorizei a intérprete a virar umas cambalhotas, em cena.

Não foram estas, porém, as únicas objeções. Reclamava-se contra a interferência de uma morta na ação. Uma morta que aparecia fisicamente, para atormentar o marido! Surgiu uma blague - "A peça era espírita". Mas A mulher sem pecado não conseguiu um ruído considerável. Era imoral, sim, mas de uma imoralidade bem comportada. Não dava para assustar ninguém.

Já, então, além dos detratores, havia, também, os entusiastas. Uns e outros, frenéticos. Se os primeiros me achavam idiota, os segundos usavam o termo "gênio". E, fazendo um balanço, verifiquei que minha primeira experiência fora bastante animadora. Eu fizera A mulher sem pecado com a intenção de conhecer a minha própria capacidade teatral e de operar uma sondagem no público.

Ora, diziam o diabo do público. Atribuíam ao público todas as culpas. E se usava uma lógica muito sutil e que posso assim resumir: "Se não havia nem autores, nem peças geniais, o culpado era o público?". Raciocínio que parecia, a mim, vagamente suspeito. Devo acrescentar que, na época, eu não acreditava em mim. Em compensação acreditava muito menos no teatro brasileiro e na nossa dramaturgia.

No meu exagero, dividia os nossos autores em duas classes, a saber: a dos falsos profundos e a dos patetas. Esta última sempre me pareceu a melhor, a mais simpática. Julgamento, como se vê, sumário e injusto, pois sempre tivemos alguns valores solitários e irrefutáveis. Em face desse estado de coisas, senti no semi-fracasso de A mulher sem pecado algo como uma apoteose. E resolvi realizar o Vestido de noiva.

Na minha primeira peça - a título de sondagem - introduzira uma defunta falante, opinante, uma meia dúzia de visões, uma personagem incumbida de não fazer nada, uns gritos sem dono. Eram algumas extravagâncias tímidas, sem maiores conseqüências. Mas tanto bastou para que alguns críticos me atirassem o que lhes parecia ser a suprema injúria: me compararam a Picasso, a Portinari etc.

Fiz Vestido de noiva com outro ânimo. Esta peça pode não ter alcançado um resultado estético apreciável, mas era, cumpre-se confessá-lo, uma obra ambiciosa. A começar pelo seu processo. Eu me propus a uma tentativa que, há muito, me fascinava: contar uma história, sem lhe dar uma ordem cronológica. Deixava de existir o tempo dos relógios e das folhinhas. As coisas aconteciam simultaneamente.

Por exemplo: determinado personagem nascia, crescia, amava, morria, tudo ao mesmo tempo. A técnica usada viria a ser a de superposições, claro. Antes de começar a escrever a tragédia em apreço, eu imaginava coisas a ssim: "A personagem X, que foi assassinada em 1905, assiste em 1943 a um casamento, para, em seguida, voltar a 1905, a fim de fazer quarto a si mesma...".

Senti, nesse processo, um jogo fascinante, diabólico e que implicava, para o autor, numa série de perigos tremendos. Inicialmente, havia um problema patético: a peça, por sua própria natureza, e pela técnica que lhe era essencial e inalienável, devia ser toda ela construída na base de cenas desconexas. Como, apesar disso, criar-lhe uma unidade, uma linguagem inteligível, uma ordem íntima e profunda? Como ordenar o caos, torná-lo harmonioso, inteligente?

Tal problema, evidentemente, só interessava ao autor. De qualquer maneira, completei Vestido de noiva. Como sucedera com A mulher sem pecado, fui levar o novo original de porta em porta. Tive pena de mim mesmo e pior do que isso: tive consciência de que meu ridículo era dessas coisas tenebrosas e definitivas. Recebi, muitas vezes, este conselho:"Você precisa perder a mania de ser gênio incompreendido!".

Mas insisti, com uma tenacidade em que havia algo de obtuso. E insisti porque acreditava, sobretudo, numa coisa: na forma de Vestido de noiva, no seu processo de ações simultâneas, em tempos diferentes. Alguns intelectuais me estimularam, inclusive Manuel Bandeira. Baseei-me, então, numa hipótese amável: em caso de um espetacular fracasso de bilheteria, haveria um certo êxito literário.

Veio a estréia. E com o maior pasmo, vi-me diante do que, com certa ênfase, poderia chamar de consagração. Chamaram à cena o autor; fomos depois, elenco e eu, à Americana, celebrar o triunfo, numa ceia eufórica. Em 1943, ninguém sabia, aqui, da existência de Eugene O'Neill; o único autor que se usava, com abundância, era Pirandello. Qualquer coisa que não fosse uma chanchada ignominiosa era pirandeliana; qualquer autor que não fosse um débil mental - virava um Pirandelozinho indígena. Tive também, com Vestido de noiva, a minha hora pirandeliana. Paravam-me no meio da rua para que eu confirmasse esta influência - "Você lê muito Pirandello, não lê?"

Eu, cínico, dizia que sim. A pessoa partia, radiante. Mas ai de mim! Com Vestido de noiva, conheci o sucesso; com a peças seguintes, perdi-o, e para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação. Pois a partir de Álbum de família - drama que se seguiu a Vestido de noiva - enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito.

Que caminho será esse? Respondo: de um teatro que se poderia chamar assim - desagradável. Numa palavra, estou fazendo um "teatro desagradável", peças desagradáveis. No gênero destas, incluí, desde logo, Álbum de família, Anjo negro e a recente Senhora dos afogados. E por que peças desagradáveis? Segundo já se disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir o tifo e a malária na platéia.

Álbum de família não conheceu o destino para o qual foi escrito - o palco. Antes de levar a malsinada tragédia a uma companhia, ocorreu-me um escrúpulo - submeti-a à censura. O primeiro censor concluiu que nenhuma linha da peça devia ficar de pé. Condenou-a em bloco. Estava assim proibida a encenação. Álbum de família só pôde ser apresentado ao público na forma de livro.

Em torno desta minha peça, operou-se um grande e furioso movimento crítico. Em todo o Brasil, escreveu-se sobre o drama que, segundo Leitão de Barros, estava colocado num "plano ginecológico". A maioria foi passionalmente contra. Só algumas figuras, abnegadas e corajosas, conferiram à peça uma categoria artística - os srs. Prudente de Morais, neto, Manuel Bandeira, Sérgio Milliet, Santa Rosa, Pompeu de Sousa, Accioly Netto, Monte Brito, Lêdo Ivo, as sras. Dinah Silveira de Queiroz, Lúcia Miguel Pereira e pouco mais.

Os detratores da peça se colocavam em pontos de vista curiosos. Por exemplo: dizia-se que havia incesto demais, como se pudesse haver incesto de menos. Esse critério numérico foi adotado por quase todo mundo. Alguns críticos estariam dispostos a admitir um incesto ou dois; mais não. Outros assinalavam minha "insistência na torpeza"; terceiros, arrasavam a "incapacidade literária"; ficou patenteada também a inexistência de um "diálogo nobre".

Este último defeito, por si só, parecia excluir Álbum de família do gênero trágico. Onde já se viu uma tragédia sem um "diálogo nobre?". E não foi tudo. Houve, ainda, acusações de morbidez, imoralidade, obscenidade, sacrilégio etc. etc.

Nunca me esqueço de certas indignações com efeito retroativo. Eram pessoas que na base de Álbum de família negavam rancorosamente Vestido de noiva e Mulher sem pecado. Como autor, pus-me a pensar: não havia nessa oposição nenhuma atitude crítica, que se caracterizasse pela isenção e lucidez. Era como se os detratores se julgassem diretamente ofendidos e colocassem um problema teatral, estilístico, estético, em termos passionais. Como explicar de outra maneira o tom dos debates, a violência, a paixão por vezes obtusa, os desaforos? Afinal de contas, uma pessoa pode gostar ou não de uma obra de arte. Mas sem direito de ficar furiosa.

Como autor, fiquei à margem de tudo. Não articulei uma frase, não usei um contra-argumento. E, no entanto, muitos dos críticos eram de uma fragilidade de meter dó. Eu poderia alegar, a favor de Álbum de família, várias coisas, inclusive que, para fins estéticos, tanto fazia um, dois, três, quatro, cinco incestos ou meia dúzia. Podiam ser duzentos. Na verdade, visei um certo resultado emocional pelo acúmulo, pela abundância, pela massa de elementos.

Outro autor, ou eu mesmo, podia fazer do incesto uma exceção, dentro da peça, um fato solitário. Mas não quis, por um motivo muito simples: porque esta exclusividade, esta exceção, não pertencia à concepção original do drama, à sua lógica íntima e irredutível. Por outras paavras: para a minha visão pessoal e intransferível de autor, o número exato de incestos eram quatro ou cinco e não dois ou três.

O nível estilístico das falas foi outro problema. Todo mundo observou que o diálogo "não era nobre". Com efeito, não era, nem precisava sê-lo. Sempre me pareceu ingênuo discutir os meios de que se serve uma autor para atingir certo efeito emocional. Evidentemente, os meios são lícitos se o efeito é atingido. No Álbum de família, porém, colocou-se mal a questão. Afirmou-se que o diálogo não era nobre. E nada mais. Ora, o problema que se apreesentava ao crítico era menos simples, ou seja: saber se através deste diálogo se podia chegar a uma grande, irrefutável altura dramática.

Que se diga isso de mim, pobre autor brasileiro, apenas esforçado, está certo. Mas contra Eugene O'Neill se articulam as mesmas objeções. Nega-se O'Neill estilisticamente. Consagrou-se a sua força poética, a sua potencialidade dramática, o seu sentimento trágico da vida. Mas sua linguagem é considerada pobre, vulgar, sem correspondência com a vocação teatral.

E, recentemente, um crítico americano reconhecia que as cenas de Eugene O'Neill são inesquecíveis, as situações de uma potência incomparável, os personagens eternos. Mas o estilo, a frase, nem tanto. Não ocorreu ao crítico que se as cenas, as situações, os personagens têm esse relevo, é porque tudo está estilisticamente certo.

Anjo negro é a última das minhas peças representadas. Mais feliz do que Álbum de família, porque foi encenada - graças a uma decisão pessoal do sr. ministro Adroaldo Mesquita Costa - produziu, no entanto, a mesma irritação. Ora, o Álbum de família, peça genesíaca, devia ter por isso mesmo alguma coisa de atroz, de necessariamente repulsivo, um odor de parto, de algo uterino. Já o Anjo negro pôde se manter num plano menos espantoso. Ainda assim, o furor crítico excedeu todas as expectativas. O drama de Ismael foi considerado mórbido, imoral, monstruoso. Também se afirmou que me repito nos assuntos e personagens.

Passada a tempestade, vejo que muitas das opiniões, que se levantaram contra mim e meu drama, são procedentes. Com efeito, Anjo negro é mórbido; e eu, mórbido também. Aliás, jamais discuti ou relutei a minha morbidez. Dentro de minha obra, ela me parece incontestável e, sobretudo, necessária. Artisticamente falando, sou mórbido, sempre fui mórbido, e pergunto: "será um defeito?". Nem defeito, nem qualidade, mas uma marca de espírito, um tipo de criação dramática.

Fosse Anjo negro uma peça sadia, e não vejo em que teria melhorado a sua hierarquia estética. Centenas e centenas de dramas, poemas, romances, quadros, repousam seu valor estético numa morbidez rica, densa, criadora, transfigurante. Parece-me idiota ir-se ao teatro expressamente para ver uma peça mórbida; ou, então, para não ver uma peça mórbida.

Anjo negro é monstruoso? Inclino-me por uma resposta afirmativa. Se considerarmos os seus fatos, paixões e personagens, sob um arejado critério de dona de casa ou de lavadeira - o drama será monstruosíssimo. Com efeito, Virgínia mata três filhos, e semelhante operação está longe de ser meritória. A maioria dos críticos se baseou no "onde já se viu fazer uma coisa dessas?". Ora, cada um faz seu juízo como quer, entende ou pode.

De qualquer maneira, parece-me precário o crítico que se enfurece contra os personagens e se põe a insultá-los. Imagino uma pessoa que, perante O avarento, de Molière, invalidasse a peça, sob a alegação de que o personagem é um pão duro, um unha de fome. Ou, então, que, em face de Otelo, se pusesse a berrar, da platéia: "Canalha!".

De um certo ponto de vista, Otelo não deixa de ser um canalha. E talvez, até, o crítico tenha razão. Pois os meus personagens possuem a glória invejabilíssima de irritar a crítica. Virgínia sofreu as mais graves restrições de ordem moral. Ismael, idem. Até o "homem de seis dedos" foi destratado. E, no entanto, eu, como autor, possuo outros pontos de vista. Sempre me pareceu que, para fins estéticos, tanto faz um canalha, como um benemérito. Acrescentarei mais: é possível que a importância dramática do canalha seja mais positiva. Se Virgínia fosse uma mãe exemplar, uma heroína do tanque e da cozinha, não haveria o drama.

O caso de Ismael foi interessante. Alegou-se, por exemplo, que não existia negro como Ismael. Entre parênteses, acho que existem negros e brancos piores do que Ismael. Mas admitamos que a acusação seja justa. Para mim, tanto faz, nem me interessa. Anjo negro jamais quis ser uma fidelíssima, uma veracíssima reportagem policial. Ismael não existe em lugar nenhum; mas vive no palco. E o que importa é essa autenticidade teatral.

Outra objeção contra o drama e o autor: insistência de um tema que já foi usado em outras obras minhas. Seria um sintoma de fadiga, um colapso - quem sabe definitivo - de imaginação criadora? Não, segundo o meu suspeito modo de ver as coisas. Aliás, de todos os meus possíveis defeitos, este é o que menos me preocupa. Ser autor de um tema único, não me parece nem defeito, nem qualidade, mas uma pura e simples questão de gosto, de arbítrio pessoal.

Por outro lado, um autor que volta a um assunto, só se repete de modo muito relativo. Creio mesmo que não se repete nada. Cada assunto tem em si mesmo uma variedade que o torna infinitamente mutável. Sobre o ciúme o mesmo autor poderia escrever 250 peças diferentes, sendo 250 vezes original. Sobre o amor, também. Sobre a morte, idem.

Críticos fizeram uma observação restritiva: minha obra gravitava em torno de - "sexo", "sexo", "sexo". Sendo isso verdade, qual o inconveniente? Já disse que não vejo como qualquer assunto possa esgotar-se e muito menos o sexual. Todavia, no caso particular desta observação, há uma malícia sensível. Já não importa tanto o fenômeno da repetição e sim a natureza e a gravidade do tema. O assunto sexual ainda dá motivo de escândalo. Amigos e conhecidos meus, interpelam-me na rua: "Você só sabe escrever sobre isso?"

Isso é o amor. Há nesta pergunta um fundo de indignação, que eu não devia compreender e que talvez não compreenda mesmo. Afinal de contas, por que o assunto amoroso produz essa náusea incoercível? Por que se tapa o nariz ao mencioná-lo? E, sobretudo, por que investem contra mim, como se fosse eu o inventor do sexo e como se ele não existisse na vida real, nem tivesse a menor influência na natalidade, aqui e alhures? São perguntas que formulo e desisto de responder.

Peçam tudo, menos que eu renuncie às atrocidades habituais dos meus dramas. Considero legítimo unir elementos atrozes, fétidos, hediondos ou o que seja, numa composição estética. Qualquer um pode, tranqüilamente, extrair poesia de coisas aparentemente contra-indicadas. Isso é tão óbvio, que me envergonho de repeti-lo.

E continuarei trabalhando com monstros. Digo monstros, no sentido de que superam ou violam a moral prática e cotidiana. Quando escrevo para teatro, as coisas atrozes e não atrozes não me assustam. Escolho meus personagens com a maior calma e jamais os condeno. Quando se trata de operar dramaticamente, não vejo em que o bom seja melhor que o mau. Passo a sentir os tarados como seres maravilhosamente teatrais. E no mesmo plano de validade dramática, os loucos varridos, os bêbados, os criminosos de todos os matizes, os epiléticos, os santos, os futuros suicidas. A loucura daria imagens plásticas e inesquecíveis, visões sombrias e deslumbrantes para uma transposição teatral!

Certa vez, o sr. Carlos Drummond de Andrade falou em "obras-primas fulgurantes...e podres". Infelizmente, minhas peças não são obras-primas. Se o fossem, teriam direito de ser podres.
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Artigo publicado no primeiro número da Revista Dionysos, editada pelo então Serviço Nacional de Teatro em outubro de 1949.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO VII


Como havíamos regressado tarde, exaustos e muito tensos, não fui levado à presença de irmã Geovana, como havia sido combinado. Mas nossa entrevista, assim me disse irmã Ocampo, ocorreria ainda naquele dia. Assim, aproveitei toda a manhã para dormir, só sendo despertado ao meio-dia, quando irmã Vôncia irrompeu no meu quarto trazendo o almoço. Apenas para brincar com ela, perguntei-lhe se não achava mais prudente bater à porta antes de entrar, pois eu poderia estar nu - e estava, só que debaixo dos lençois.

- Depois de ontem, nunca mais bato na porta. E se você inventa de sair de novo pelos telhados? Vê lá se eu vou arriscar de novo minha vida...

- Por falar nisso, gostaria de manifestar minha profunda gratidão - atalhei, procurando conquistar sua simpatia. Mas ela, ao responder, me deu a impressão de que não ouvira minhas palavras, ou então não as levara em consideração.

- E essa sua nudez, senhor Aquino ...- e desatou numa risada tão violenta e gutural que julguei ter à minha frente um gigantesco e obsceno ogro. Ato contínuo, virou-se para a porta, que atingiu com apenas duas passadas, embora a mesma estivesse a uns cinco metros de distância. Vendo que ela iria desaparecer, perguntei:

- Irmã: posso saber o seu nome?

- Vôncia - retrucou, sem se virar.

Deveria me dar por satisfeito, não é mesmo? Mas não: ao escutar seu nome achei-o tão esquisito que não resisti e lhe fiz uma pergunta que entrou para o meu vasto acervo na qualidade de uma das mais cretinas que já fizera a alguém:

- Mas...por que Vôncia?

Ela recebeu minha pergunta fisicamente. Primeiro, se imobilizou; em seguida, começou a se virar lentamente, do mesmo modo que um célebre ator japonês o fez para encarar os matadores de seu filho, num filme cujo título me escapa; recordo-me apenas de que a filmagem fora feita de tal forma que nós, espectadores, nos transformávamos nos assassinos e éramos forçados a encarar de frente a ira épica daquele pai dilacerado. Tudo isso me veio à mente enquanto contemplava, profundamente inquieto, o vagaroso rodopio da gigantesca irmã e depois sua lenta aproximação de meu leito - sem querer havia tocado no calcanhar de Aquiles do colosso, que mais tarde vim a saber que abominava seu próprio nome.

Ao atingir a beirada da cama, ela me lançou um olhar em tudo semelhante ao de um algoz que meditasse sobre o local de sua vítima em que desferiria a primeira cacetada. Nesse momento, intuí que estava perdido. Renunciando, então, a toda e qualquer esperança, fiz-lhe um último pedido:

- Irmã, eu quero um padre!

Ao ouvir tal solicitação, irmã Vôncia assumiu o mesmo ar apatetado que exibira no pátio e que tanto me fascinara. Aproveitando esse momento de indecisão, emendei uma segunda frase, já na segunda pessoa, visando impressioná-la.

- Se me impedires a confissão arderei no Inferno, pois tenho a alma entupida de pecados!

Ela então se transformou na materialização perfeita da burrice. Pela primeira vez me deparava com um substantivo. Acreditando então na possibilidade de um milagre, erguí-me no leito e lhe toquei as faces com ambas as mãos, ao mesmo tempo em que lhe disse:

- Não te esqueças, irmã Vôncia, de que se conseguires recalcar esse minuto de cólera estarás economizando cem anos de arrependimento!

Incrível a minha capacidade de despejar um disparate após o outro!? E confesso que realmente não sei até onde chegaria se ela, totalmente confusa, não tivesse se retirado do meu quarto praguejando coisas incompreensíveis e arrastando consigo uma das cadeiras, que em seu hábito se enganchara. Fiquei espantado, inclusive, de ela ter-se lembrado de abrir a porta - no estado em que estava, não seria nem um pouco improvável que a carregasse também, não para me dar uma demonstração suplementar de sua força, mas apenas por ignorá-la.

Quando me senti a salvo, almocei rapidamente, não dando muito importância à comida, pois pressentia que a qualquer momento poderia ser chamado. Assim que terminei, peguei minhas roupas e só então reparei no seu estado lastimável, parcialmente rasgadas e manchadas de sangue, resquícios de meu combate com os urubus. Ao olhar-me no espelho do banheiro, constatei também que meu corpo apresentava inúmeros ferimentos, que embora de pouca gravidade, requeriam alguns cuidados, já que poderiam infeccionar. Mas como nada havia ali que pudesse utilizar, vestí-me e passei a aguardar. Passados alguns minutos, irmã Silvia apareceu e pediu-me que a acompanhasse.

Depois de ziguezaguearmos por infindáveis corredores, chegamos à mesma sala onde quase Semibreve me castrara. Ela já estava apinhada. De pé, as irmãs conversavam em voz baixa e pareciam tensas. O altar onde fora colocado não estava mais lá e o lugar, na verdade, era uma espécie de anfiteatro, com escadarias até a metade das paredes. Sem pronunciar uma única palavra, embora lhe perguntasse o que estava se passando, irmã Silvia me conduziu ao lugar que me fora destinado e se afastou, numa atitude tipicamente feminina. Em seguida surgiu irmã Geovana, caminhando majestosa até colocar-se ao meu lado.

- Irmãs, podem se sentar. - falou, aparentando serenidade.

Todas se afastaram até as escadarias e nelas se sentaram. Deveriam ser umas trezentas e ocuparam quase todos os lugares disponíveis, com exceção de um espaço situado à minha direita, junto à entrada. Irmã Geovana o notou de imediato, assim como a presença ali de uma única irmã que não havia procedido como as outras, e que lhe disse:

- Irmã Anilec (era esse o verdadeiro nome da Semibreve) manda lhe comunicar que não comparecerá à reunião. Solicita que se lhe enviado um relatório - e ostensivamente deu as costas à assembléia, desaparecendo.

Então era isso! Havia no convento uma pequena mas atuante facção rival, que obedecia ao pavoroso aleijão!? E fora esse grupo que me sequestrara na porta do convento e me submetera
àquela humilhação. Tudo agora se explicava. Tão logo se informara do que estava acontecendo, irmã Geovana mandou que as irmãs de sua maior confiança me libertassem e conduzissem à sua presença. Em represália, Semibreve e suas comparsas se negavam a participar da reunião.

Mas irmã Geovana não me pareceu preocupar-se com este incidente, como se já o tivesse previsto. Ao cabo de alguns momentos de reflexão, durante os quais algumas irmãs brindaram as ausentes com adjetivos um tanto deslocados naquele contexto, irmã Geovana foi até o centro da sala e com um gesto pediu silêncio.

- Irmãs...- iniciou, como se medindo as palavras. - As notícias trazidas pelo senhor Aquino se confirmaram. Todos os habitantes da cidade estão mortos.

Ao ouvirem a terrível novidade, algumas irmãs ergueram-se de um salto, mas irmã Geovana prosseguiu:

- Não nos cabe neste momento refletir sobre as possíveis causas da tragédia, mas sim tomar as providências que ela nos impõe. Peço a presença de trinta voluntárias para enterrar o pouco que ainda resta dos mortos, antes que seja tarde demais.

Ao impacto da brutal revelação, a maioria das irmãs desatou em prantos, mas ainda assim logo surgiram as trinta voluntárias, que sem perda de tempo abandonaram a sala capitaneadas por irmã Ocampo - esta, mais uma vez, dava mostras de ser o braço direito da jovem superiora. Ato contínuo, irmã Geovana se ajoelhou e começou a rezar.

Imediatamente, todas a imitaram, mesmo aquelas que pareciam ter perdido o controle. E então eu pude presenciar o mais fervoroso Pai Nosso de toda a minha vida. Foi realmente incrível. Cada palavra tinha um peso e todas as frases um sentido profundo. A oração, proferida dessa maneira, em nada se parecia com as rezas de colégio ou de cerimônias oficiais, onde normalmente, por absoluta falta de convicção, produz-se uma cantilena amorfa e descaracterizada. Ali, ao contrário, por acreditarem firmemente que Deus ouviria seus apelos, todas a Ele se entregavam sem reservas. E sua crença era tão mais apaixonada quanto nela não se percebia nenhum sintoma de histeria. Depois desse episódio, passei a achar que o teatro e a fé têm muito em comum, na medida em que dependem essencialmente de um encontro. No teatro, com o ator. Na religião, com Deus.

Ao final da oração, irmã Geovana declarou que as atividades do dia deveriam ser cumpridas normalmente, salvo por aquelas que não se julgassem em condições. As irmãs, então, foram se retirando lentamente, até que só restamos irmã Geovana e eu. Como tinha muitas coisas a lhe dizer, caminhei até onde ela estava.

- Irmã...sei que a hora não é oportuna, mas eu preciso conversar com a senhora.

Ela ergueu os olhos para mim, dando-me a impressão de fazer um esforço muito grande para me reconhecer. Claro está que essa impressão só surgiu em função de meu desmesurado complexo de rejeição, pois irmã Geovana, como não poderia deixar de ser, ainda se encontrava visivelmente abalada com os acontecimentos. Em todo o caso, tive o bom senso de não lhe recordar quem eu era.

- Como a irmã sabe, eu me comprometi a escrever a história de Ambrosina.

- Em sonhos, se bem me recordo.

- Sim, mas de qualquer forma eu gostaria de cumprir minha promessa. E para tanto eu preciso não só de sua autorização para permanecer aqui enquanto seleciono o material que levarei comigo, quanto de sua ajuda para retirá-lo da casa dela. Espero, sinceramente, contar com sua boa vontade. Esteja certa de que é muito importante para mim.

Uma hora mais tarde, estava a caminho da cidade, aboletado numa carroça puxada por dois magníficos cavalos - escolhidos, naturalmete, entre os mais calmos. A tal carroça, aliás, fora idéia da própria irmã Geovana, e revelou-se de extrema utilidade, pois me possibilitou transportar não apenas o gigantesco acervo de Ambrosina, mas também algumas outras coisas que, não sei se agindo bem, comigo resolvi trazer.

Essa nova expedição, creio eu, merece um capítulo à parte.

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Um teatro de defasagem:
John Arden

Bernard Dort


O teatro de John Arden se inscreve entre a anedota e a parábola. À primeira vista algumas de suas peças parecem inclinadas para a reprodução da 'fatia de vida' naturalista (por exemplo, "O Asno do Hospício"), outras para a "moralidade" ("O Asilo da Felicidade"). Mas se as olharmos mais de perto, perceberemos que todas contêm elementos dos dois gêneros. Ou, melhor ainda, que John Arden não cessa de fazer seu jogo, no interior de cada uma delas, sobre o desnível entre estas formas dramatúrgicas.

Em primeiro lugar, no que se refere ao lugar e ao tempo. Ora, Arden reproduz minuciosamente os locais reais: é uma "cidade industrial do Norte da Inglaterra; mais exatamente uma dessas cidades compostas de pavilhões de aluguel moderado, construídas e geridas por certas municipalidades" - e descreve em detalhes o interior e o exterior desses pavilhões, que servirão de local para a ação ("Vocês vivem como porcos"). Ou então "é uma cidade industrial de Yorkshire, em algum ponto entre Sheffield e Leeds, nos dias de hoje", com suas ruas, seus canteiros de obras, suas delegacias de polícia, suas clínicas, seus bares e seu cabaré ("O Asno do Hospício").

Mas, nesse caso, Arden toma o cuidado de especificar que "um realismo arquitetural demasiado não é desejável"; suas "descrições devem ser entendidas como de indicações e não como imperativos" ("Vocês vivem como porcos"). Além disso, o cenário não é o reflexo de uma realidade imutável que preexiste à ação. Ele se modifica no decorrer da representação. Por exemplo, em "Vocês vivem como porcos", "paulatinamente o palco será cada vez mais obstruído por um monte de objetos extravagantes que os Sawney trazem em cada ocasião, e no final estará literalmente invadido". Este cenário não é desde o início estático, constrangedor; é dinâmico, maleável. Trata-se de sugerir menos um local particular e mais um certo espaço complexo e variado. A imagem de uma cidade, de um bairro que escapa ao estrito determinismo do ambiente naturalista e assume um valor geral, poético.

Outras vezes Arden situa suas peças em lugares quase imaginários ou, pelo menos, recuados no tempo: é o caso da pequena cidade mineira do "Norte da Inglaterra, há cerca de oitenta anos" de "A dança do sargento Musgrave"; é ainda mais o caso da "Escócia do início do segundo quarto do século XVI" de "O último adeus de Armstrong". Mas, em ambos os casos, a desorientação provocada pela evocação de épocas históricas encerradas, tratadas sem cuidado pela exatidão histórica, não serve senão para nos remeter a acontecimentos de hoje. O que se perfila por trás da "Dança do soldado Musgrave" é, de maneira evidente (Arden faz alusões precisas e explícitas), a guerra que a Inglaterra trava com Chipre; e por trás de "O último adeus de Armstrong", as lutas de Lumumba e de Tschombe no Congo ex-belga.

Arden não cessa de jogar em dois planos: o real em parte ligado ao imaginário, a anedota com a parábola. Obriga-nos a um perpétuo vaivém entre o presente e o passado, o privado e o público, o particular e o geral. Suas peças possuem movimentos. Não se fixam numa forma, num estilo, nem num local definido por referência a uma realidade concreta ou, ao contrário, abandonada à fantasia do realizador. Habituados que estamos, nós franceses, a um estilo teatral "uniforme", corremos o forte risco de ficarmos desconcertados pela variedade das formas da escritura de Arden. Por suas bruscas passagens da prosa ao verso, do diálogo cotidiano à interjeições líricas ou aos romances populares, do debate cerrado entre várias personagens ao monólogo ou ao aparte etc.

É que nenhuma de suas peças nos propõe o desenvolvimento unilinear de uma situação inicial: na verdade, Arden decompõe esta situação em elementos separados, trata cada um deles à parte, mesmo em suas conseqüências extremas. E deixa ao espectador o cuidado de reaproximar, comparar estes fragmentos autônomos. Nisto revela não somente o gosto pelo jogo teatral (que certamente não está ausente: Arden evidencia um prazer manifesto pelos golpes de teatro, pelos saltos inesperados), mas também uma vontade de reencontrar, através da construção dramatúrgica, a própria complexidade da realidade, que, não podendo ser apanhada em bloco, deve ser descoberta progressivamente, sob um ângulo cada vez mais amplo.

Cada peça de Arden nos propõe, portanto, uma dupla aventura: a das personagens, que constitui a ação, e a do espectador, chamado a gradualmente tomar conhecimento desta ação. Nada é proposto de uma vez por todas. Arden recusa todo destino que constrange seus heróis a partir do exterior, assim como recusa todo determinismo psicológico que "agiria" neles a partir do interior.

Suas personagens, apesar de traçadas em cores fortes e desenhadas com brio, nao estão fixadas. Quer estejam lutando contra tal obstáculo ou se encontrem em tais circunstâncias, eis que se transformam: são os Jackson que, diante dos Sawney, se tornam literalmente furiosos ao ponto de provocarem o linchamento dos últimos; ou, ao inverso, são os Sawney que, por mais boêmios que sejam e que queiram ser, preferem o "conforto" de seu pavilhão de aluguel moderado...("Vocês vivem como porcos"). Porque Arden não cessa de repetir: não existe verdade (do "coração" ou da "alma") dos homens, fora da situação que ocupam na sociedade. Ou, ainda mais exatamente, o sentido desta verdade é função desta situação. É neste ponto que se evidencia totalmente esta técnica apreciada por Arden, a defasagem dramatúrgica.

Basta tomar um grupo, geralmente constituído em torno de uma pesonagem central (por exemplo, o grupo de desertores da "Dança do sargento Musgrave") e colocá-lo em cena: aparecerá heróico ou ridículo, segundo o ponto de vista sob o qual for apresentado. Diante deste grupo, vamos colocar outro: o dos mineiros em greve. Então duas possibilidades se oferecem ao autor dramático. Ou estes dois grupos hão de estar em oposição, e então será a partir do conflito entre ambos que emanará o sentido da obra, cada grupo encarnando uma posição ideológica (em "A dança do sargento Musgrave", os desertores tomam partido por uma moral estritamente individualista e os mineiros grevistas por uma ação política coletiva). Ou ambos os grupos hão de ser arrastados por um movimento mais amplo e suas relações mútuas se modificarão: entre eles não mais existirá apenas oposição, mas também incompreensão, contaminação e troca.

Evidentemente é este segundo método que Arden escolhe. E assim conduz o espectador a retificar todo tempo o julgamento sobre a situação de conjunto. Impossível decidir, inteiramente, entre um e outro campo: o espectador ora está com os desertores, ora com os grevistas. Evidentemente os grevistas estão errados quando vêem os desertores como soldados trazidos para acabar com a greve. Mas apesar disso têm razão em considerá-los perigosos, já que, afinal, a aventura individualista dos desertores será a causa do fracasso da greve e do restabelecimento da ordem em favor dos patrões. Acrescentemos que, se tivessem compreendido o que realmente eram estes soldados, os mineiros poderiam ter tirado proveito da situação e, mesmo sem aderir às suas causas, poderiam ter utilizado a revolta dos desertores em favor da própria greve.

Arden não somente substitui o conflito bem nítido do teatro tradicional - no qual indívíduos e grupos encarnam, cada um, uma posição intangível - por uma série de trocas e de tentações, nas quais se dividem as opiniões radicais. Também explora ao máximo tudo que separa as intenções e os desejos dos personagens, dos atos que eles cometem precisamente em nome dessas intenções.

Nisto se resume toda a aventura de Sir David Lindsay em "O último adeus a Armstrong": quer salvar Gilnockie, que pessoalmente lhe é simpático, e termina por perdê-lo de forma mais segura - ele se acomoda como "poeta" e "Tutor do Rei". Por isso as peças de Arden, em sua maioria, não se fecham em si mesmas e abandonam o espectador numa espécie de embaraço (daí, sem dúvida, o fato de nunca alcançarem êxito imediato, quando criadas; somente pouco a pouco, e no decorrer de sucessivas reprises, se impuseram).

Nenhuma conclusão definitiva é proposta ao público. Ele não pode concentrar sua simpatia nesta ou naquela personagem, nem aderir a uma lição ideológica formulada com clareza. O tempo todo é obrigado a modificar sua maneira de ver, de conceber o sentido da ação dramática. No final não é neste herói ou naquele grupo, portadores de uma verdade incontestável, que se deve deter: o público é remetido a uma sociedade e ao funcionamento da mesma. Remetido à sua própria sociedade: pois, através de defasagens no espaço e no tempo, é esta sociedade que é posta em questão.

A extraordinária vitalidade da obra de Arden não vem, portanto, como se poderia crer ao primeiro relance, da atualidade de algumas de suas peças, nem do vigor com o qual são instalados seus heróis (estes "insociáveis", como Rachel, Musgrave ou Armstrong, pelos quais Arden alimenta inegável ternura e que o fascinam). Ela nasce da riqueza e da complexidade da estrutura dramatúrgica. Nasce precisamente destas defasagens entre a época figurada e a época evocada, entre o indivíduo e o grupo, entre as motivações e os atos etc. Através destes recursos o próprio espectador é provocado, abalado, ameaçado e levado a refletir sobre sua própria situação na sociedade - pois ele constitui, em definitivo, o objeto do grande jogo teatral de John Arden.
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Artigo extraído do livro "O teatro e sua realidade" / Editora Perspectiva, 1977.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Living Theatre

Odette Aslan


Dirigido por Julien Beck e Judith Malina nos Estados Unidos, conhecido por suas turnês pela Europa após a revelação do grupo no Teatro das Nações em 1961, O Living Theatre ofereceu seus primeiros espetáculos em 1951, em New York. Beck, enquanto pintor, havia frequentado o círculo surrealista americano por volta de 1945. Malina havia estudado teatro com Piscator, que trabalhou nos Estados Unidos de 1939 a 1951 e a levou a conhecer as teorias de Brecht e de Meyerhold. Por que chamaram a companhia de Living Theatre? Porque desejavam "acentuar o instante que se vive, no meio atual" das peças que representariam.

Perseguindo um certo fantástico, bucaram na linguagem poética a apreensão de um além do real, uma oportunidade de agarrar o inconsciente. Montaram alguns dramas em verso, mas parece que a poesia lhes colocou um problema difícil de resolver. Queriam somente a sua essência e não sabiam como conciliar tecnicamente a dicção poética e o novo estilo de atuação que estavam elaborando, unir um texto em verso com os movimentos do corpo, torná-lo vivo. Escolheram autores contemporâneos: Paul Goodman, Gertrude Stein, Kenneth Rexrotts, Picasso, Eliot, Cocteau etc. Montaram também Jarry, Strindberg,Pirandello e Brecht.

Rapidamente comprometeram o espectador na representação, montrando-lhe acontecimentos da vida, cruamente, sem trapacear, sem esconder nada, incitando-o a reagir. Em "Faustina", de Paul Goodman, uma comediante interpelava o público: "Vocês acabam de assistir a um assassinato, por que não o impediram?". Com "Connection" (peça sobre as drogas) e "The Brig" (sobre a disciplina numa prisão de fuzileiros navais americanos), afirma-se um estilo: o documentário provocador. Já se vêem aí inserções de seqüências que são o resultado de improvisações sobre o tema da peça; a duração da representação varia segundo o tempo maior ou menor dessas improvisações a cada noite.

Mas, pouco a pouco, a companhia se renovou, novos atores vieram amalgamar-se nessa trupe boêmia e anarquizante, e mordidos pela improvisação, impacientes para se exprimir na primeira pessoa, contribuíram para a criação de espetáculos coletivos: "Mysteries", "Paradise Now". Entrementes, o Living Theatre encenou duas peças escritas por autores: "As criadas", de Genet, e "Antígona", de Brecht.

O Living preocupa-se muito mais em fazer teatro do que existir enquanto grupo que se propõe problemas e os propõe ao espectadores. Beck e Malina contestam a sociedade capitalista, recusam o circuito comercial do teatro, a própria forma do teatro, desde a arquitetura até a escrita e a atuação. Tendem a um novo modo de vida. Trabalham pela liberação do homem em todos os níveis. Queriam abolir a entrada paga no teatro. Aceitar a circulação do dinheiro é aceitar todo o sistema de uma civilização que não os satisfaz. Querem abrir o teatro a todos, partilhar seus sonhos e suas revoltas. Desejam chocar o espectador e recusam-lhe qualquer pretexto à ilusão, como belos cenários e belos figurinos para olhar. Não hesitam em experimentar um realismo cruel a confinar no verismo. Em outros espetáculos recorreram aos símbolos mais abstratos. Acabaram por criar um novo tipo de ator.


O Ator do Living
(segundo período, a partir de "Connection")

Ele se apresenta em cena tal como o é na cidade: geralmente em blue-jean e pulôver gola rolê, alpargatas ou descalço - em "Paradise Now", usa só uma sunga). Em algumas peças conserva seu próprio nome e representa sua própria personagem. É um "criador": o encenador lhe dá apenas o ponto de partida, um estímulo e ele deve reagir com sua personalidade. Não uma personalidade de cabotino exibicionista, porém de indivíduo consciente, responsável, microcosmo da sociedade na qual ele vive e que busca em si mesmo as fontes necessárias para exprimir-se. Por que eu quero ser ator? O que tenho a dizer? O que posso fazer para que o mundo viva em paz e no amor? Eis o tipo de perguntas que o ator do Living faz a si mesmo. Quando o recrutam, não se examina a sua técnica, pergunta-se-lhe se aceita as regras de vida da comunidade.

Do ponto de vista da formação, eles vêm de todos os lugares: teatro, cinema, cabaré. Um estudou no Actor's Studio, outro no Herbert Berghof Studio, outro na Universidade de Winconsin. O passado e as convenções dos outros teatros pouco importam. No Living, as pessoas se questionam, participam de uma experiência em todos os instantes, têm espírito anarquista, estão "à margem". No meio profissional, alguns os desprezam, achando que a eles faltam método e técnica, que seus comediantes, formados de qualquer jeito, são amadores que, por seu aspecto andrajoso, desconsideram a profissão, que eles uivam e chafurdam no chão por não saberem dizer um texto nem se movimentar em cena, que sua histeria impede qualquer atitude crítica do espectador. Se os espetáculos do Living nem sempre atingem a perfeição formal, contribuíram grandemente para derrubar os tabus e os trabalhos banais e tornaram a dar ao público jovem a vontade de ir ao teatro.

Com freqüência cita-se Artaud a propósito dos espetáculos do Living. De fato, Beck e Malina conheceram-no muito tarde, porque ele não havia sido traduzido para o inglês. Viram que suas idéias de certo modo coincidiam: agredir o espectador, mergulhá-lo num estado físico mais do que lhe dar explicações, provocá-lo para que participe de uma improvisação coletiva, a fim de que reaja. Fraternidade e crueldade. Espectador, meu irmão, você não está aqui para se divertir, mas para protestar conosco contra a guerra e contra todos os crimes da sociedade de consumo. Beck está também muito próximo de uma técnica de agitação e propaganda (agit-prop), mas ele se sente cidadão do mundo e do universo espiritual mais do que sustentáculo de um partido. Gastaria de "acentuar o caráter sagrado da vida, aumentar o campo da consciência, destruir muros e barreiras".

Em 1963, quis desencadear uma greve mundial pela paz. Ao montar a "Antígona" de Brecht, pensava no pacifismo de Gandhi. A pluralidade das influências em Beck e Malina, de Piscator ao Oriente, no entanto não redunda em desaparecimento de um lado especificamente americano, onde a psicanálise mantém seus direitos: "Procedemos de modo que os arquétipos do subconsciente se depositem na consciência, começamos a utilizá-los, dirigimos nossos corpos segundo as mensagens que recebemos do sub-consciente", diz Henry Howard. Como faria um membro do Actor's Studio, Beck diz: "Em 'Antígona', não somos personagens. Não faço Creonte, faço Julien Beck". Ele evoca até a memória emotiva:

No início, não chegava a chorar enquanto Creonte. Tentava todas as combinações sensoriais e nada ocorria. Não chegava a sentir profundamente o suficiente, eis o problema; só fui capaz de chorar no coro dos Monstros quando o diafragma começava a me impedir de respirar.

O ator do Living não tem de adquirir uma dicção de teatro, uma voz de teatro. Atua como é. Sem cenário, sem móveis. Três comediantes fazem o trono de Creonte. Para servir de assento a Tirésias, um comediante deitado levanta o traseiro. Os comediantes sugerem as celas da prisão onde Antígona se debate, através da posição de seus corpos. Este velho procedimento é retomado agora por todas as jovens companhias. O Living também cai na tendência que prolifera na era do audiovisual, a multiplicação das imagens, a transposição de tudo o que, no texto, pode dar lugar a uma ilustração plástica.

Em "Antígona", em "essa carne exposta aos pássaros", três comediantes fazem os pássaros. "Não havia guerra": o povo e os Anciãos mimam a guerra. Posturas, agrupamentos, inspiram-se na pintura ou escultura (J. Bosch, o Egito, os astecas). Com freqüência é por meio da postura, do gesto, que se traduz uma relação entre duas personagens, uma vontade ou um pensamento não contido nas palavras. Creonte torce o braço de Antígona, castra os homens, monta sobre seu dorso. Quase se pode seguir as falas pelo encadeamento das imagens.

Iniciada na biomecânica de Meyerhold através de Piscator, Judith Malina viu que uma ação exata do corpo podia favorecer certos sons. Sem estender tal estudo como Grotowski, o Living construiu com base nesse princípio a partitura sonora de representação. Apela à ioga para desenvolver a respiração. Uma comediante se iniciou nas ragas indianas. Há esforços a fim de se passar da voz falada à cantada sem chegar à arte lírica. Trata-se de proferir e encadear sons numa empreitada coral. Um universo sonoro integra-se à ação, além das palavras: ambiência, sonoplastia. O verbo se prolonga. Instaura-se uma melopéia, inspirada nos negros spirituals ou no ritual hebraico. Alternam-se respostas cantadas e faladas.

Em "The Brig", um comediante faz uma noite o prisioneira, noutra o carcereiro. Nas peças seguintes, a noção de personagem explode: cada ator desempenha vinte ou trinta, passando livremente de um a outro sem trocar de maquiagem, vestuário ou de comportamento. Em "Frankenstein", vários intérpretes formam coletivamente uma criatura. Em "Antígona", a fala no presente sofre distorções: um ator representa o que se passa na imaginação ou na lembrança do outro. A fala do guarda relatando a falta de Antígona é mimada por ela que torna a executar a ação passada. O cadáver de Polinices, em vez de estar lá onde o guarda o descobriu, encontra-se ao lado de Creonte, de quem é obsessão. Junto com a própria ação, a encenação representa igualmente o imaginário. O jogo do ator é dispensado de todos os embaraços da psicologia.

O ator não é obrigado a ser, cada noite, idêntico a si mesmo. Em "Connection", e em "The Apple", há mistura de cenas fixas e improvisadas, sendo que estas últimas ocorrem sempre no mesmo lugar, num determinado quadro. Como em um happemimg, enfim, os comediantes mesclados ao público dão aos espectadores a possibilidade de intervir. No Living, quebram-se todos os tabus. Ao montar "Connection", queriam mostrar que "todos nós temos necessidades de uma droga e que se os drogados chegam lá onde chegam, isto não provinha de sua natureza diabólica, mas dos erros do mundo inteiro.

Depois, a trupe entrega-se aos alucinógenos. Quebrar tabus é também desnudar-se para encorajar os espectadores a realizarem o mesmo. É demolir todas as inibições entre si. No exercício em que cada ator é um dia o sujeito, um dia uma das "forças" que agridem o sujeito, cada um inventa meios de agredir: gritos, golpes, toques, carícias no sexo do ator-cobaia.
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Artigo extraído, e aqui muito pouco reduzido, do livro " O ator no séculoXX" (Editora Perspectiva, 2010).

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO VI


Passei um dia absolutamente tranquilo. Ao voltar para o meu quarto, constatei que agradáveis surpresas me haviam sido reservadas. À escassa mobília tinha sido acrescentada uma cadeira e uma ampla escrevaninha contendo papéis, caneta e tinta. Eu fiquei felicíssimo, pois o que mais queria era registrar a extraordinária experiência que estava vivendo e meu minguado bloquinho não me permitiria fazê-lo. Além disso, uma esplêndida refeição, colocada numa bandeja com rodas, estava à minha espera. Assim que a vi me lembrei de que não me alimentava desde o dia anterior e foi portanto com volúpia que devorei tudo o que havia nas travessas, só não pedindo para repetir porque achei que não seria educado. Sentindo-me, então um outro homem - é impressionante a facilidade com que me sinto um outro homem - entreguei-me à tarefa de passar para o papel tudo o que testemunhara desde minha chegada àquela cidade.

Às cinco da tarde minha missão estava concluída. Tendo escrito sete horas consecutivas, tinha a mão direita destroçada e os olhos turvos. Foi então que me lembrei da magnífica banheira e resolvi repousar imerso até que me chamassem para a expedição noturna. Tão relaxado me senti que acabei adormecendo, e, para minha surpresa, não sonhei. Passei duas horas à margem da vida, como diria Tennessee Williams, sem visões ou sobressaltos de qualquer espécie. Fui acordado por sacudidelas que verifiquei, ao abrir os olhos, terem sido dadas por uma irmã que me olhava com um misto de simpatia e severidade.

- Sou irmã Ocampo. Fui eu que lhe entreguei o traje de monge, lembra-se?

- Ah, claro...- eu não me lembrava, am absoluto.

- Nós formaremos um grupo de sete pessoas. Todas as que estavam naquela sala, com exceção de irmã Geovana, e o senhor.

- Quer dizer que irmã Vantini também irá?

- Sim.

- A presença dela é absolutamente necessária?

- Sim. - e esta segunda assertiva foi articulada com certa impaciência.

- Por quê?

- Senhor Aquino: fui incumbida de chamá-lo, apenas isso. O senhor provavelmente ainda terá inúmeras oportunidades de resolver sua relação com irmã Vantini.

- Eu não tenho nada para resolver com ela.

- Então por que questiona sua presença em nosso grupo?

- Acho-a uma grossa.

- E ela o acha um mentiroso.

Ao ouvir tal confidência, erguí-me de um salto na banheira, exibindo sem querer minha nudez ensaboada.

- Mentiroso, eu? Escute, baseada em que ela se atreve a...

Mas irmã Ocampo, em atitude que me pareceu algo deselegante, simplesmente deu-me as costas e se foi, apenas me avisando que me aguardava no corredor. Deixei a banheira indignado e depois de me enxugar rapidamente, contemplei-me no espelho e murmurei, rangendo minha frágil destição: "Não se deixe encharcar de bílis, Gabriel, pois a desconfiança que ora pesa sobre você logo se converterá em gratidão eterna".

Ao chegarmos à estrebaria do convento, cuja existência até aquele momento desconhecia, já nos aguardavam montadas as irmãs Fernanda, Marcela, Clara, Silvia e, naturalmente, a antipática e descrente Vantini. Irmã Ocampo me indicou o corcel que deveria montar e subiu no seu com uma destreza de profissional. Curiosamente, todos os cavalos eram brancos, excetuando-se o meu, negro como uma graúna. E todos eram enormes e extremamente fogosos. Como até então só andara em cavalos de pracinha, não tive o menor constrangimento de declarar que, em nenhuma hipótese, subiria num monstro daquele tamanho. Ante meu tom categórico, as irmãs entreolharam-se em silêncio. Subitamente, irmã Vantini se aproximou de mim com sua montada e disse:

- Venha comigo, já que não tem coragem...

Pensei em lhe dar uma boa resposta, mas preferi engolir em seco a ofensa, certo de que horas mais tarde ela se veria obrigada a desculpar-se. Contudo, embora tenha aceito sua proposta, não conseguia achar um jeito de trepar no maldito cavalo, que não parava quieto. Em vista disso, irmã Vantini foi obrigada a desmontar, a trazer um banquinho e a me ajudar, com ambas as mãos, a me instalar na corcova do neurastênico equino. Em seguida, deu-se início à operação que a levaria ao seu lugar, ainda mais complexa: tive que me deitar sobre o animal enquanto ela engatava o pé esquerdo no estribo e girava a perna direita sobre meu corpo, sentando-se literalmente em cima de mim. Depois, erguendo-se nos estribos, ordenou-me que recuasse até sair debaixo dela. Estando numa posição desconfortável e um tanto aterrorizado, demorei um tempo enorme para cumprrir sua ordem e creio mesmo ter ouvido sair de sua boca a expressão "mas que merda!" enquanto sob suas saias eu me debatia. Quando finalmente deu-se início à cavalgada, o amigo leitor bem pode imaginar o humor daquela que, à sua revelia, comigo partilhava sua montada.

Nossa tropa deixou o convento em fila indiana, tendo a comandá-la irmã Ocampo e fechando o grupo, irmã Vantini e eu. Uma vez no prado, puseram-se a galopar, aproveitando-se da magnífica visibilidade que a lua proporcionava e do conhecimento do terreno que possuíam. Quanto a mim, temendo despencar a qualquer momento, sem pedir licença grudei-me como um carrapato ao corpo de irmã Vantini e fechei os olhos, não sem antes entregar minha alma a Deus.

Confesso que tentei ocupar minha cabeça com pensamentos suaves e isentos de risco, mas o terror bloqueava minha fantasia e nada me ocorria de reconfortante. Impossibilitado de pensar, concentrei-me apenas no sentido de não levar um tombo, ajustando-me de tal forma ao corpo à minha frente que à distância deveríamos parecer uma só pessoa. Com os dois braços enlaçava a cintura de irmã Vantini, sendo que o direito, colocado acima do esquerdo, recebia constantemente o afago de dois seios que me pareceram magníficos. Nossas coxas, que a necessidade grudava, se roçavam sempre que o animal fazia um súbito desvio ou dava um pequeno salto. E suas nádegas, comprimidas contra o meu ventre, faziam-me sentir o delicado córrego que as dividia.

Involuntariamente, fui ficando excitado. Meu pênis inflava dando a sensação de que a qualquer momento explodiria. É claro que tentei o mais que pude refrear esse ímpeto, procurando pensar em coisas que, em condições normais, arrefeceriam o tesão do mais lúbrico dos mortais. Mas ainda assim meu caralho, tal qual uma injeção gigante, continuava a fustigar a bunda de irmã Vantini, dando-me a impressão de que a qualquer momento iria penetrá-la. E o pior é que a noviça tinha necessariamente que estar sentindo o tremendo ariete que a fustigava!? E se resolvesse interromper aquele sarro surrealista - seria absurdo supor que eu estaria tirando proveito da situação - e me desse uma bundada? Esta fatalmente me atiraria ao solo, onde encontraria morte imediata!

Sinceramente apavorado, segurei-a pelos quadris e tentei me afastar, nem que fosse uns míseros centímetros, a fim de aliviar a bárbara pressão. Mas quanto mais tentava, mais tesão sentia. Graças ao bom Deus - foi o que ingenuamente pensei - quando já estava a ponto de desistir, os cavalos foram sofreados, pois chegáramos às portas da cidade. Aliviado, já que a partir desse momento poderia me equilibrar sem tanta necessidade de apoio, soltei os quadris da ninfa malcriada e afastei meu corpo. Mas aí se deu o inesperado...

Contrariando toda a lógica, senti em minhas entranhas o inequívoco sinal de que iria gozar. Ainda tentei pular do animal, mas o orgasmo me pegou no meio do caminho e então não me restou outra alternativa a não ser a de me agarrar violentamente àquela que, totalmente a contragosto, teve que receber nas ancas minha desproposital demonstração de virilidade. E para piorar ainda mais o quadro, gozei como um condenado, exibindo caras e bocas, tentando ao máximo não rebolar - mas rebolando!? -, enfim, fazendo alarde de tudo a que não tinha direito. Quando por fim foi-se amenizando o espasmo, enfiei o rosto nas costas de irmã Vantini, disposto a nunca mais voltar a exibí-lo para aquelas mulheres, consciente da abjeção - ainda que involuntária - que perpetrara e da impossibilidade de obter perdão. Entretanto, passados alguns instantes, escutei a voz de irmã Ocampo, que a mim se dirigia sem trair nenhuma emoção especial:

- Será que já podemos prosseguir, senhor Aquino?

Mas, como? Nada me seria dito? Nenhuma humilhação imposta? Não me obrigariam a escutar severas reprimendas e quem sabe até a receber, sem reagir, alguns tabefes? Não, tudo o que lhes interessava era continuar a expedição. Em vista disso, e ainda que surpreso, ergui o polegar direito e reiniciou-se a marcha.

A cidadezinha, naturalmente, estava deserta. Parecia que todos os habitantes haviam saído de férias. Nada levava a crer que uma catástrofe vitimara todos eles, cujos corpos apodreciam ao ar livre justamente no lugar onde deveriam apodrecer enterrados. Mas sigamos. À medida que percorríamos a cidade, embora nada fosse dito, fui percebendo que a tensão do grupo aumentava. É evidente que, embora tenham optado pela expedição, no fundo as irmãs deveriam nutrir a esperança de que tudo se resumisse a um delírio de minha parte, pois a história que lhes relatara poderia perfeitamente ter sido engendrada por um louco. Mas, infelizmente para elas, a cada passo surgiam evidências de que eu não mentira. Quando chegamos ao botequim de vidro, irmã Ocampo, que seguuia puxando a marcha, estaqueou seu cavalo. Após contemplar por alguns instantes os vidros estilhaçados e os restos de meu vômito, se aproximou de mim com um ar algo transtornado:

- Até o momento, tudo que o senhor disse corresponde à realidade. Mas para que não reste a menor dúvida, é preciso ir até o cemitério. O senhor tem certeza de que não se enganou quanto ao essencial?

- Tenho. - repondi, sem a menor hesitação.

- Se tudo não passou de uma brincadeira de sua parte, ainda há tempo de voltar atrás! - insistiu, trêmula.

- Eu não iria brincar com algo tão sério.

Ficamos nos encarando algum tempo; ela, procurando detectar em mim algum sintoma de que mentira; eu, limitando-me a sustentar minha verdade. Finalmente, irmã Ocampo se afastou num rápido galope, para retornar em seguida até onde eu estava, sofreando sua montada quando já imaginava que ela resolvera saltar sobre minha cabeça.

- E lhe juro, senhor Aquino, que se isto for uma piada, o senhor não viverá o sufficiente para contá-la a mais ninguém!

E arrancou em louca disparada, no que foi seguida por todas as demais. Agarrei-me novamente à irmã Vantini e pela primeira vez me deu uma certa dúvida quanto ao meu relato. Até então seria capaz de jurar, por tudo que me era mais sagrado, de que não inventara um mísero detalhe. Mas agora, devido à lúgubre ameaça, eu vacilava. E se tudo não tivessse passado de uma alucinação? Afinal, a minha história parecia coisa de místico ou de drogado. E eu não era nada disso. Sempre acreditara em Deus mais por hábito do que por convicção e quanto às drogas, estas se limitavam às injeções de Baralgin que eu tomava quando meus rins se revoltavam. Além de tudo, sendo boa pessoa, não iria brincar com o sentimento das irmãs. Portanto, o meu perfil, no sentido moderno do termo, era o de um homem superficial - admito - mas incapaz de produzir sofrimento de forma deliberada.

Raciocínio profundo e conclusão óbvia. No entanto, para não fugir à regra, cheguei ao final dessas conjecturas mais inquieto do que quando as iniciei. Se fosse uma outra pessoa, teria sem dúvida me acalmado. Mas não era. O exercício da lógica produzia em meu organismo neurastênico o efeito inverso do esperado, da mesma forma que as bebidas alcoólicas acabavam me fazendo lembrar de tudo que visava esquecer ao ingerí-las. Em suma: sempre fora e continuava sendo o fim da picada.

Em função desta amarga constatação, já me preparava para iniciar uma longa sessão auto-depreciativa quando notei que nos aproximávamos do cemitério. Ou por outra, senti. O cheiro nauseabundo de cadáveres em decomposição tornava-se cada vez mais forte. Subitamente, irmã Ocampo sofreou seu cavalo e em torno dela se agruparam todas as irmãs. Nada diziam, apenas se entreolhavam, mas em todas se notava a mesma angústia. Agora se tornava evidente que eu não mentira. Não seria nem mesmo necessário prosseguir com a expedição: poderíamos voltar dali mesmo nos poupando um sofrimento inútil. Por isso me ocorreu sugerir um retorno imediato ao convento. Mas logo me detive ao reparar que irmã Ocampo chorava, as mãos crispadas no pescoço do animal.

Consciente de que a qualquer momento também começaria a soluçar - além de tremendamente influenciável, estava triste - saltei do meu cavalo (nem sei como) e corri até ela, comprimindo minhas mãos contra as suas, como se isso pudesse minimizar seu sofrimento. Foi aí que todas as irmãs, ao perceberem que a líder se descontrolava, começaram a chorar ao mesmo tempo. Meu trabalho, então, multiplicou-se por seis, e tal qual uma abnegada enfermeira da Cruz Vermelha, passei a correr de um lado para o outro, consolando e apertando, até que eu próprio não aguentei e me afastei correndo.

Eu não pretendia, em absoluto, penetrar no cemitériio, mas quando dei por mim era lá que estava. E o espetáculo que fui forçado a contemplar era dantesco: centenas de urubus disputavam sofregamente o que ainda restava dos cadáveres. À visão do macabro festim, minha angústia deu lugar ao mais profundo ódio. De posse de um galho seco que avistara casualmente, irrompi no meio das horripilantes criaturas distribuindo golpes para todos os lados. Muitas delas, devido à volúpia com que se entregavam à rapina, não percebiam minha aproximação e pagavam com a vida - não sei se Deus guiava minhas mãos, mas o fato é que a cada cacetada correspondia um urubu a menos sobre a Terra.

Num dado momento, alguns mais atrevidos me atacaram furiosamente. E embora conseguissem de vez em quando me bicar, acabei conseguindo afugentar todos aqueles que minha cólera ainda não vitimara - muitos, em sua debandada igualmente colérica, vomitavam os pedaços que não tiveram tempo de engolir. Então, exausto e ensangüentado, me ajoelhei na terra pútrida, fechei os olhos e também me permiti chorar. Alguns minutos depois, já mais calmo, reabri os olhos e dei de cara com irmã Vantini, que a curta distância me fitava.

- Venha rezar conosco - falou, num tom que mais se assemelhava a uma súplica do que a um mero e formal convite.

- Eu não sou católico. Quer dizer, não a ponto de...

- Não faz mal - interrompeu, com firme delicadeza. - O que importa, nesse momento, é que pensemos juntos naqueles que se foram. Venha...

Deu-me então as costas e começou a caminhar. Eu a seguui, um tanto perturbado por aquela inesperada mudança de atitude. Talvez por isso, quando nos aproximávamos do local onde nos aguardavam as demais irmãs, murmurei, baixinho:

- Irmã Vantini...eu lhe peço perdão.

Ao ouvir essas palavras, ela parou de caminhar e virou-se para mim:

- Eu também....- e se juntou às demais.

Fizemos um círculo e de mãos dadas nos ajoelhamos. E foi assim, em meio ao mais absoluto silêncio, que dedicamos um pouco de nós mesmos aos que se tinham ido. Em seguida, nos dirigimos até os cavalos, que, surpreendentemente dóceis, não armaram nenhuma cena. Voltamos a passo para o convento, como se o peso de tantas mortes nos tivesse convertido em chumbo.

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