Teatro/CRÍTICA
"Sentimendo do mundo - Trilogia filosófica cantante"
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O amor em delicioso encontro
Lionel Fischer
Em certa ocasião, em meio a informal conversa (creio que todas as conversas devam ser informais, posto que do contrário não são conversas, mas depoimentos, confissões etc.), Domingos Oliveira me disse que eu havia nascido com a vocação do aplauso. Naturalmente que recebi tal avaliação como um elogio, pois aquele que reluta em aplaudir o outro acaba enveredando pelo abjeto campo da inveja.
Assim sendo, nada mais natural que tenha me encantado com a presente montagem, que integra a trilogia "Sentimento do Mundo" e está dividida em três partes: "Da condição humana e da sociedade", "Do amor" e "Do mistério e da arte" - a presente crítica se refere ao segundo segmento, ora em cartaz no Teatro dos Quatro. Domingos responde pelo texto e direção, dividindo a cena com Priscilla Rozenbaum, Ricardo Kosovski, Dedina Bernardelli, Waldimir Pinheiro, Letícia Carvalho, Domenico Lancellotti, Lincoln Vargas, Rubinho Jacobina e Clarisse Magalhães.
Também em informal conversa (assim como por escrito, em algumas críticas), disse certa vez a Domingos Oliveira que o considerava o autor nacional que mais entendia de amor - não me lembro sua reação: se baixou os olhos, rubro de modéstia, ou se apenas sorriu, dispensando qualquer comentário. Mas ratifico minha opinião: Domingos realmente entende de amor e o encara como uma premissa essencial para que ao menos consigamos nos aproximar desta senhora não raro tão fugidia: a felicidade.
Alternando textos deliciosos com canções não menos significativas, o espetáculo propõe uma espécie de informal encontro com a platéia, como se todos - espectadores e elenco - tivessem por acaso se encontrado num bar e decicido se sentar na mesma mesa.
Mas ainda que despretensiosa e simples em termos formais, a montagem faculta ao público sábias reflexões sobre o tema que lhe deu origem, algumas muito divertidas, outras impregnadas da mais genuína emoção; algumas dirigidas diretamente ao público, outras encenadas na forma de pequenos esquetes.
E assim, em meio a reflexões e breves encenações, sempre materializadas na cena com irrepreensível competência por todo o elenco, o público pode usufruir a notável capacidade de Domingos Oliveira de pensar o amor, certamente nos ajudando a compreendê-lo mais profundamente em suas múltiplas variantes.
Na equipe técnica, Ronald Teixeira e Gika Vereza respondem por uma cenografia que atende às necessidades do espetáculo, o mesmo ocorrendo com os figurinos de Angèle Fróes e a iluminação de Paulo César Medeiros. Domenico Lancellotti responde por ótima direção musical, cabendo ainda destacar a trilha sonora de Domingos e a colaboração no roteiro de Tatiana Muniz.
DO AMOR - Texto e direção de Domingos Oliveira. Com Domingos, Priscilla Rozenbaum, Ricardo Kosovski, Dedina Bernardelli e outros. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 19h.
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
Teatro/CRÍTICA
"Nise da Silveira - Senhora das Imagens"
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Deslumbrante encontro nos Correios
Lionel Fischer
O presente espetáculo está em sua quarta temporada em 2011 e, por razões que a razão desconhece, não o tinha assistido até este último sábado. Mas como a vida, quase sempre, nos faculta a possibilidade de redenção, felizmente pude agora me redimir e assim ter o privilégio de testemunhar umas das montagens que mais me tocaram desde que exerço o ofício de crítico teatral.
Em cartaz no Centro Cultural Correios, "Nise da Silveira - Senhora das Imagens" presta um emocionado e poético tributo a uma das mulheres mais extraordinárias já nascidas neste país, cujo principal mérito - dentre muitos outros - foi o de perceber que já não era mais possível encarar os doentes mentais como seres inferiores e tratá-los com uma mescla de violência e descaso. Assim, criou terapias alternativas através das quais procurava ter acesso ao inconsciente de seus pacientes, que se materializava em obras de arte - obras estas, naturalmente, que os críticos de arte não consideravam arte...
Contando com direção e dramaturgia de Daniel Lobo (co-dramaturgia de Mariana Terra) e esta última como a única intérprete, "Nise da Silveira..." faculta ao público a oportunidade de conhecer não apenas a história pessoal e profissional desta mulher absolutamente fantástica, mas também a de um país cuja classe dominante continua a ignorar aqueles que da vida só estão fadados a conhecer seu lado mais amargo. Se aos menos favorecidos já não é oferecido praticamente nada, imagine-se então aos chamados "loucos"...
Como já foi dito, este espetáculo só conta com uma atriz em cena. Mas Ana Terra, além de dar vida a Nise da Silveira, interpreta muitos outros personagens, todos eles criados a partir de pessoas que existiram. Afora isto, lança mão de belíssimos vídeos, um deles exibindo comovente depoimento do poeta Ferreira Gullar - em outro, Ednaldo Lucena e Gilray Coutinho interpretam dois psiquiátras retrógrados que contestam os métodos terapêuticos de Nise. E também escutamos a Voz do Inconsciente (Carlos Vereza). Esta última, em dado momento, diz o seguinte:
"Um sonho. Uma caverna. O inconsciente rasga o ventre de uma tigresa. A vida chegou aqui a seu ponto máximo. A obra está terminada. O caminho do homem se eleva na direção do céu. É como o vôo dos gansos selvagens que se mantêm a grande altura. Suas plumas caem na terra e ornamentam os templos. A vida de um homem que se aperfeiçoou é uma luz resplandecente para a humanidade".
Texto belíssimo, sem dúvida. E não menos belo é tudo que escutamos nos Correios, sendo tal beleza impregnada de humor, humanidade e eventualmente de um furor semelhante ao das grandes tempestades - isto ocorre nas passagens em que Nise mostra-se indignada com sua prisão e mais ainda quando, ao ser libertada e reassumir suas funções como psiquiatra, é apresentada ao revolucinário tratamento à base de eletrochoques, que se recusa terminantemente a adotar.
Tendo como ponto de partida um material dramatúrgico excelente, o diretor Daniel Lobo criou uma encenação fascinante, expressiva em todos os momentos, alternando cenas, vídeos, coreografias e em alguns momentos uma relação direta entre a intérprete e a platéia. E aqui chegamos a Ana Terra.
Sem nenhum temor de parecer (ou ser) enfadonho, torno a repetir o que já disse inúmeras vezes: este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. E Ana Terra é uma inérprete brilhante. E aqui não estou me referindo apenas aos seus vastíssimos recursos expressivos, tanto no que diz respeito ao corpo como à voz, mas também à sua visceral capacidade de entrega, sendo tal predicado fundamental para o estabelecimento de uma fortíssima cumplicidade entre palco e platéia. Sob todos os pontos de vista, uma das mais impactantes atuações que já assisti em toda a minha vida.
Na equipe técnica, Ana Botafgo assina coreografias belíssimas, sendo maravilhosa a iluminação de Djalma Amaral, que, com grande sutileza e sensibilidade, reforça de forma admirável todos os climas emocionais em jogo. Igualmente irrepreensíveis a cenografia e figurino de Ronald Teixeira, o mesmo aplicando-se à direção musical e trilha sonora original de João Carlos Assis Brasil - assim como a luz, é impressionante como a trilha sublinha não somente as emoções explícitas, mas também aquelas ainda sob o domínio do Inconsciente. Cabe também destacar a preciosa colaboração de Angela Herz na preparação vocal da atriz.
NISE DA SILVEIRA: SENHORA DAS IMAGENS - Texto e direção de Daniel Lobo. Co-dramaturgia de Ana Terra. Com Ana Terra. Centro Cultural Correios. Quarta a domingo, 19h.
"Nise da Silveira - Senhora das Imagens"
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Deslumbrante encontro nos Correios
Lionel Fischer
O presente espetáculo está em sua quarta temporada em 2011 e, por razões que a razão desconhece, não o tinha assistido até este último sábado. Mas como a vida, quase sempre, nos faculta a possibilidade de redenção, felizmente pude agora me redimir e assim ter o privilégio de testemunhar umas das montagens que mais me tocaram desde que exerço o ofício de crítico teatral.
Em cartaz no Centro Cultural Correios, "Nise da Silveira - Senhora das Imagens" presta um emocionado e poético tributo a uma das mulheres mais extraordinárias já nascidas neste país, cujo principal mérito - dentre muitos outros - foi o de perceber que já não era mais possível encarar os doentes mentais como seres inferiores e tratá-los com uma mescla de violência e descaso. Assim, criou terapias alternativas através das quais procurava ter acesso ao inconsciente de seus pacientes, que se materializava em obras de arte - obras estas, naturalmente, que os críticos de arte não consideravam arte...
Contando com direção e dramaturgia de Daniel Lobo (co-dramaturgia de Mariana Terra) e esta última como a única intérprete, "Nise da Silveira..." faculta ao público a oportunidade de conhecer não apenas a história pessoal e profissional desta mulher absolutamente fantástica, mas também a de um país cuja classe dominante continua a ignorar aqueles que da vida só estão fadados a conhecer seu lado mais amargo. Se aos menos favorecidos já não é oferecido praticamente nada, imagine-se então aos chamados "loucos"...
Como já foi dito, este espetáculo só conta com uma atriz em cena. Mas Ana Terra, além de dar vida a Nise da Silveira, interpreta muitos outros personagens, todos eles criados a partir de pessoas que existiram. Afora isto, lança mão de belíssimos vídeos, um deles exibindo comovente depoimento do poeta Ferreira Gullar - em outro, Ednaldo Lucena e Gilray Coutinho interpretam dois psiquiátras retrógrados que contestam os métodos terapêuticos de Nise. E também escutamos a Voz do Inconsciente (Carlos Vereza). Esta última, em dado momento, diz o seguinte:
"Um sonho. Uma caverna. O inconsciente rasga o ventre de uma tigresa. A vida chegou aqui a seu ponto máximo. A obra está terminada. O caminho do homem se eleva na direção do céu. É como o vôo dos gansos selvagens que se mantêm a grande altura. Suas plumas caem na terra e ornamentam os templos. A vida de um homem que se aperfeiçoou é uma luz resplandecente para a humanidade".
Texto belíssimo, sem dúvida. E não menos belo é tudo que escutamos nos Correios, sendo tal beleza impregnada de humor, humanidade e eventualmente de um furor semelhante ao das grandes tempestades - isto ocorre nas passagens em que Nise mostra-se indignada com sua prisão e mais ainda quando, ao ser libertada e reassumir suas funções como psiquiatra, é apresentada ao revolucinário tratamento à base de eletrochoques, que se recusa terminantemente a adotar.
Tendo como ponto de partida um material dramatúrgico excelente, o diretor Daniel Lobo criou uma encenação fascinante, expressiva em todos os momentos, alternando cenas, vídeos, coreografias e em alguns momentos uma relação direta entre a intérprete e a platéia. E aqui chegamos a Ana Terra.
Sem nenhum temor de parecer (ou ser) enfadonho, torno a repetir o que já disse inúmeras vezes: este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. E Ana Terra é uma inérprete brilhante. E aqui não estou me referindo apenas aos seus vastíssimos recursos expressivos, tanto no que diz respeito ao corpo como à voz, mas também à sua visceral capacidade de entrega, sendo tal predicado fundamental para o estabelecimento de uma fortíssima cumplicidade entre palco e platéia. Sob todos os pontos de vista, uma das mais impactantes atuações que já assisti em toda a minha vida.
Na equipe técnica, Ana Botafgo assina coreografias belíssimas, sendo maravilhosa a iluminação de Djalma Amaral, que, com grande sutileza e sensibilidade, reforça de forma admirável todos os climas emocionais em jogo. Igualmente irrepreensíveis a cenografia e figurino de Ronald Teixeira, o mesmo aplicando-se à direção musical e trilha sonora original de João Carlos Assis Brasil - assim como a luz, é impressionante como a trilha sublinha não somente as emoções explícitas, mas também aquelas ainda sob o domínio do Inconsciente. Cabe também destacar a preciosa colaboração de Angela Herz na preparação vocal da atriz.
NISE DA SILVEIRA: SENHORA DAS IMAGENS - Texto e direção de Daniel Lobo. Co-dramaturgia de Ana Terra. Com Ana Terra. Centro Cultural Correios. Quarta a domingo, 19h.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
Teatro/CRÍTICA
"Isopor"
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Instigante metáfora da contemporaneidade
Lionel Fischer
Nininha é uma mulher solitária, de caráter duvidoso (segundo ela mesma) e não sabe o que fazer no reveillon. Resolve assistir à queima de fogos em Copacabana. Rosival ganha a vida vendendo cervejas e refrigerantes num lugar mal cheiroso, tendo por companhia um anão de jardim - talvez o Zangado. É também uma mulher solitária. Finalmente, Ariádne é uma jovem que vende produtos de beleza e, como as anteriores, padece de solidão.
Este é, digamos assim, o perfil das três personagens. Mas seriam mesmo três personagens? E o tempo em que se dá a ação: seria apenas o cronológico ou a ele se mesclaria um outro, pouco atrelado ao real, e assim capaz de avançar e retroceder? Enfim...estas são algumas das questões que o presente texto propõe. Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea), "Isopor" foi escrita e dirigida por Rafael Souza-Ribeiro, estando o elenco formado por Paula Valente (Nininha), Sabrina Araújo Costa (Rosival) e Letícia Guimarães (Ariádne), sendo esta a mais recente criação do Grupo Garbo.
Como já foi dito, "Isopor" propõe, fundamentalmente, reflexões sobre identidade e tempo. E embora julgue conveniente não explicitar em detalhes todas as reviravoldas da trama, já que isso privaria o espectador de muitas e inesperadas surpresas, ainda assim torna-se imperioso ressaltar alguns méritos deste jovem autor que até então não conhecia. E o principal é sua capacidade de trabalhar a narrativa de forma tal que, a partir de um certo ponto, já não sabemos exatamente se o que vemos são fatos ou projeções oriundas do inconsciente das personagens.
E mais: como também já sugerido acima, seriam mesmo três personagens ou todas elas deveriam ser encaradas mais como símbolos de um tempo como o nosso, em que a solidão e o desamparo são a tônica? É claro que posso estar completamente enganado, mas creio que Rafael Souza-Ribeiro possa ter pretendido criar um texto que, em permanente processo de construção e desconstrução, fosse capaz de retratar, mesmo que em termos metafóricos, algumas das mais cruéis mazelas que caracterizam a sociedade em que vivemos.
Bem escrito, contendo personagens instigantes e diálogos fluentes, "Isopor" recebeu uma versão cênica que, sabiamente, prioriza o que aqui de fato importa: o jogo cênico entre as intérpretes. E estas correspondem inteiramente aos desafios propostos. Um deles, por sinal, muito curioso: praticamente todas as falas são acompanhadas de gestos, inicialmente individualizados, mas que logo passam a ser utilizados por todas as personagens - esta, digamos, "mecanicidade" gestual revela-se, não raro, muito engraçada.
Paula Valente, Sabrina Araújo Costa e Letícia Guimarães são jovens atrizes já totalmente preparadas para estar no palco sem conspurcá-lo com o menor resquício de incompetência. Possuem voz, excelente preparo corporal e, não custa nada ressaltar, entregam-se com enorme prazer à sólida contracena que estabelecem. A todas, portanto, desejo que contem com as bênçãos dos sempre caprichosos deuses do teatro.
Na equipe técnica, o músico Paulinho Marburg faz preciosa contribuição ao espetáculo com sua cuíca, sublinhando e enfatizando, de forma extremamente sensível, os múltiplos climas emocionais em jogo. Núbia Leite responde por encantadores e eventualmente divertidos adereços, sendo correta a iluminação de Marcio Leandro Oliveira.
ISOPOR - Texto e direção de Rafael Souza-Ribeiro. Com Paula Valente, Sabrina Araújo Costa e Letícia Guimarães. Montagem do Grupo Garbo. Teatro Maria Clara Machado. Terças e quartas às 21h.
"Isopor"
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Instigante metáfora da contemporaneidade
Lionel Fischer
Nininha é uma mulher solitária, de caráter duvidoso (segundo ela mesma) e não sabe o que fazer no reveillon. Resolve assistir à queima de fogos em Copacabana. Rosival ganha a vida vendendo cervejas e refrigerantes num lugar mal cheiroso, tendo por companhia um anão de jardim - talvez o Zangado. É também uma mulher solitária. Finalmente, Ariádne é uma jovem que vende produtos de beleza e, como as anteriores, padece de solidão.
Este é, digamos assim, o perfil das três personagens. Mas seriam mesmo três personagens? E o tempo em que se dá a ação: seria apenas o cronológico ou a ele se mesclaria um outro, pouco atrelado ao real, e assim capaz de avançar e retroceder? Enfim...estas são algumas das questões que o presente texto propõe. Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea), "Isopor" foi escrita e dirigida por Rafael Souza-Ribeiro, estando o elenco formado por Paula Valente (Nininha), Sabrina Araújo Costa (Rosival) e Letícia Guimarães (Ariádne), sendo esta a mais recente criação do Grupo Garbo.
Como já foi dito, "Isopor" propõe, fundamentalmente, reflexões sobre identidade e tempo. E embora julgue conveniente não explicitar em detalhes todas as reviravoldas da trama, já que isso privaria o espectador de muitas e inesperadas surpresas, ainda assim torna-se imperioso ressaltar alguns méritos deste jovem autor que até então não conhecia. E o principal é sua capacidade de trabalhar a narrativa de forma tal que, a partir de um certo ponto, já não sabemos exatamente se o que vemos são fatos ou projeções oriundas do inconsciente das personagens.
E mais: como também já sugerido acima, seriam mesmo três personagens ou todas elas deveriam ser encaradas mais como símbolos de um tempo como o nosso, em que a solidão e o desamparo são a tônica? É claro que posso estar completamente enganado, mas creio que Rafael Souza-Ribeiro possa ter pretendido criar um texto que, em permanente processo de construção e desconstrução, fosse capaz de retratar, mesmo que em termos metafóricos, algumas das mais cruéis mazelas que caracterizam a sociedade em que vivemos.
Bem escrito, contendo personagens instigantes e diálogos fluentes, "Isopor" recebeu uma versão cênica que, sabiamente, prioriza o que aqui de fato importa: o jogo cênico entre as intérpretes. E estas correspondem inteiramente aos desafios propostos. Um deles, por sinal, muito curioso: praticamente todas as falas são acompanhadas de gestos, inicialmente individualizados, mas que logo passam a ser utilizados por todas as personagens - esta, digamos, "mecanicidade" gestual revela-se, não raro, muito engraçada.
Paula Valente, Sabrina Araújo Costa e Letícia Guimarães são jovens atrizes já totalmente preparadas para estar no palco sem conspurcá-lo com o menor resquício de incompetência. Possuem voz, excelente preparo corporal e, não custa nada ressaltar, entregam-se com enorme prazer à sólida contracena que estabelecem. A todas, portanto, desejo que contem com as bênçãos dos sempre caprichosos deuses do teatro.
Na equipe técnica, o músico Paulinho Marburg faz preciosa contribuição ao espetáculo com sua cuíca, sublinhando e enfatizando, de forma extremamente sensível, os múltiplos climas emocionais em jogo. Núbia Leite responde por encantadores e eventualmente divertidos adereços, sendo correta a iluminação de Marcio Leandro Oliveira.
ISOPOR - Texto e direção de Rafael Souza-Ribeiro. Com Paula Valente, Sabrina Araújo Costa e Letícia Guimarães. Montagem do Grupo Garbo. Teatro Maria Clara Machado. Terças e quartas às 21h.
terça-feira, 20 de setembro de 2011
Teatro/CRÍTICA
"Uãnuêi"
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Evento inesquecível no Tablado
Lionel Fischer
Como se verá em seguida, esta não é exatamente uma crítica, no sentido habitual do termo. E isto se dá em função da natureza do evento, em cartaz no Teatro Tablado, inserido nas comemorações de seus 60 anos. Uãnuêi" é um espetáculo baseado em improvisação e, portanto, jamais se repete. Assim sendo, comentarei o que presenciei na estréia, neste último sábado, e que suponho que jamais esquecerei.
O ator Pedro Cardoso e sua mulher, a atriz Graziella Moretto (acompanhados pelo pianista Dudu Trentin), propõem à platéia um tema - no sábado, alguém sugeriu "Corrupção" - e em seguida começam a improvisar, durante meia-hora. Na segunda parte, os atores trabalham um tema por eles escolhido (no caso, "Pobres e ricos no Brasil"), seguindo o mesmo formato. Finalmente, conversam com os espectadores sobre o que realizaram e respondem a todas as perguntas feitas.
No tocante aos dois segmentos improvisados, revelou-se fantástica a capacidade de Pedro e Graziella de criarem histórias com começo, meio e fim, repleta de personagens que surgem, somem e retornam, cada qual com características próprias que se mantêm ao longo do improviso - trata-se, sem a menor dúvida, de um grande desafio, já que improvisar durante meia-hora, com apenas dois personagens, já constitui tarefa dificílima.
Isto posto, caberia uma pergunta: a que atribuir o maravilhoso resultado? Apenas ao talento de Pedro e Graziella no tocante à arte de improvisar? Obviamente que o talento é indispensável, assim como a prática. Mas há algo que trascende ambas as premissas e que Pedro Cardoso explicitou, visivelmente emocionado, ao responder a um espectador que lhe perguntou o que o Tablado representava para ele - Cardoso foi aluno da escola criada por Maria Clara Machado dos 12 aos 18 anos. "Liberdade", foi a resposta.
E ela sintetiza, em minha opinião, aquilo que está na essência da arte de representar, seja numa peça ou numa criação espontânea a partir de um tema. Maria Clara Machado teve a sagacidade de perceber que o aluno precisa, mais do que qualquer outra coisa, sentir-se livre para dar vazão a todos os seus impulsos, trabalhar sua imaginação, experimentar sem o temor do erro. No Tablado não são dadas notas, ninguém é aprovado ou reprovado, você pode ficar um mês ou durante toda a sua vida, com o mesmo professor ou com vários. Em resumo: o aluno é totalmente livre para fazer suas escolhas.
E aqueles que acompanham a trajetória de Pedro Cardoso já perceberam, evidentemente, que o grande ator faz absoluta questão de manter intocável o espaço do ator, jamais renunciando à sua assinatura, quando o normal é o intérprete acomodar-se às imposições do diretor. Salvo monumental engano de minha parte, a figura do encenador, da forma como está constituída, tem no máximo cento e poucos anos; já a do ator me parece existir há bem mais tempo...
Ou seja: o que Pedro Cardoso propõe e exercita é a permanente legitimização do ator como pilar fundamental do teatro, juntamente com o autor. Cardoso não entra em cena para obedecer ordens, mas para exercer, sem amarras e em toda a sua plenitude, um ofício que objetiva materializar no palco as questões essenciais do homem, sendo tal tarefa impossível de ser realizada se o porta-voz de tais questões renuncia à própria voz, seja por conveniência ou simplesmente porque não tem nada a dizer. Em ambos os casos, melhor seria que seguisse um outro caminho, ao invés de conspurcar o palco com sua inútil e desprezível presença.
Estamos, portanto, diante de um evento absolutamente imperdível, protagonizado por dois excelentes intérpretes e um não menos notável pianista - e aqui não me refiro à técnica pianística de Dudu Trentin, por sinal irretocável; o fundamental é a capcidade do músico de integrar-se ao espetáculo, criando sonoridades que contribuem, de forma decisiva, para a valorização dos múltiplos climas emocionais em jogo.
UÃNUEI - Espetáculo de improviso com Pedro Cardoso e Graziella Moreto. Ao piano, Dudu Trentin. Teatro Tablado. Sábado e domingo, 20h30.
"Uãnuêi"
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Evento inesquecível no Tablado
Lionel Fischer
Como se verá em seguida, esta não é exatamente uma crítica, no sentido habitual do termo. E isto se dá em função da natureza do evento, em cartaz no Teatro Tablado, inserido nas comemorações de seus 60 anos. Uãnuêi" é um espetáculo baseado em improvisação e, portanto, jamais se repete. Assim sendo, comentarei o que presenciei na estréia, neste último sábado, e que suponho que jamais esquecerei.
O ator Pedro Cardoso e sua mulher, a atriz Graziella Moretto (acompanhados pelo pianista Dudu Trentin), propõem à platéia um tema - no sábado, alguém sugeriu "Corrupção" - e em seguida começam a improvisar, durante meia-hora. Na segunda parte, os atores trabalham um tema por eles escolhido (no caso, "Pobres e ricos no Brasil"), seguindo o mesmo formato. Finalmente, conversam com os espectadores sobre o que realizaram e respondem a todas as perguntas feitas.
No tocante aos dois segmentos improvisados, revelou-se fantástica a capacidade de Pedro e Graziella de criarem histórias com começo, meio e fim, repleta de personagens que surgem, somem e retornam, cada qual com características próprias que se mantêm ao longo do improviso - trata-se, sem a menor dúvida, de um grande desafio, já que improvisar durante meia-hora, com apenas dois personagens, já constitui tarefa dificílima.
Isto posto, caberia uma pergunta: a que atribuir o maravilhoso resultado? Apenas ao talento de Pedro e Graziella no tocante à arte de improvisar? Obviamente que o talento é indispensável, assim como a prática. Mas há algo que trascende ambas as premissas e que Pedro Cardoso explicitou, visivelmente emocionado, ao responder a um espectador que lhe perguntou o que o Tablado representava para ele - Cardoso foi aluno da escola criada por Maria Clara Machado dos 12 aos 18 anos. "Liberdade", foi a resposta.
E ela sintetiza, em minha opinião, aquilo que está na essência da arte de representar, seja numa peça ou numa criação espontânea a partir de um tema. Maria Clara Machado teve a sagacidade de perceber que o aluno precisa, mais do que qualquer outra coisa, sentir-se livre para dar vazão a todos os seus impulsos, trabalhar sua imaginação, experimentar sem o temor do erro. No Tablado não são dadas notas, ninguém é aprovado ou reprovado, você pode ficar um mês ou durante toda a sua vida, com o mesmo professor ou com vários. Em resumo: o aluno é totalmente livre para fazer suas escolhas.
E aqueles que acompanham a trajetória de Pedro Cardoso já perceberam, evidentemente, que o grande ator faz absoluta questão de manter intocável o espaço do ator, jamais renunciando à sua assinatura, quando o normal é o intérprete acomodar-se às imposições do diretor. Salvo monumental engano de minha parte, a figura do encenador, da forma como está constituída, tem no máximo cento e poucos anos; já a do ator me parece existir há bem mais tempo...
Ou seja: o que Pedro Cardoso propõe e exercita é a permanente legitimização do ator como pilar fundamental do teatro, juntamente com o autor. Cardoso não entra em cena para obedecer ordens, mas para exercer, sem amarras e em toda a sua plenitude, um ofício que objetiva materializar no palco as questões essenciais do homem, sendo tal tarefa impossível de ser realizada se o porta-voz de tais questões renuncia à própria voz, seja por conveniência ou simplesmente porque não tem nada a dizer. Em ambos os casos, melhor seria que seguisse um outro caminho, ao invés de conspurcar o palco com sua inútil e desprezível presença.
Estamos, portanto, diante de um evento absolutamente imperdível, protagonizado por dois excelentes intérpretes e um não menos notável pianista - e aqui não me refiro à técnica pianística de Dudu Trentin, por sinal irretocável; o fundamental é a capcidade do músico de integrar-se ao espetáculo, criando sonoridades que contribuem, de forma decisiva, para a valorização dos múltiplos climas emocionais em jogo.
UÃNUEI - Espetáculo de improviso com Pedro Cardoso e Graziella Moreto. Ao piano, Dudu Trentin. Teatro Tablado. Sábado e domingo, 20h30.
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
Teatro/CRÍTICA
"O patinho feio"
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Delicada e comovente jornada
Lionel Fischer
Antes de mais nada, gostaria de esclarecer que só muito raramente faço crítica de espetáculos infantis. E por uma razão muito simples: seria literalmente impossível assistir a espetáculos adultos e destinados às crianças de forma sistemática. No entanto, eventualmente abro algumas exceções e em 99% dos casos quando se trata de uma montagem do Tablado ou de uma equipe ligada ao Teatro/Escola fundado por Maria Clara Machado, ainda que em outro espaço. Eis a razão que me leva a escrever sobre "O patinho feio".
Um dos textos mais delicados e singelos de Maria Clara Machado, destinado sobretudo a espectadores "bem pequenininhos", a obra em questão está agora em cartaz no Teatro dos 4. Bernardo Jablonski e Fabiana Valor respondem pela direção da montagem, estando o elenco formado por George Sauma, Fabiana Valor, Nedira Campos, Claudia Paiva, Zé Helou, Eduardo Rios, Mariah Viamonte, Thaissa Yumi, Isabella Serricella, Mônica Loppi e Mariana Bassoul.
Como dito acima, trata-se de um texto delicado e singelo, mas nem por isso simplório e muito menos destituído de comovente poesia - Maria Clara Machado seria incapaz de escrever algo que prescindisse de tais predicados. E o enredo não deixa de exibir uma das premissas essenciais de quase toda a obra da maior autora de peças para crianças que já existiu: a necessidade de vencer o medo e enfrentar o desconhecido, única possibilidade de se chegar a um real crescimento.
Aqui estamos diante de uma família "normal" de patos que, de repente, ganha um novo membro: um patinho completamente diferente dos outros, portador de suposta e irremediável feiúra. Sentindo-se deslocado em sua família, ele a abandona e parte para a vida. Após algumas rejeições, que o levam a duvidar da possibilidade de escapar das mesmas, mas ainda assim prosseguindo em sua jornada, eis que um dia ele se converte em deslumbrante cisne,
passando a ser por todos admirado. Tal metamorfose, evidentemente, deve ser encarada não como fruto de um "milagre" e sim da tenacidade do patinho de enfrentar e finalmente transcender todos os obstáculos.
Para materializar na cena esta breve, divertida, comovente e poética peça, os diretores Bernardo Jablonski e Fabiana Valor valeram-se de uma dinâmica simples e eficiente, em total sintonia com os conteúdos essenciais propostos pela autora. E para tanto contaram com muitos "aliados". A começar pelo elenco, harmonioso e cúmplice, perfeitamente integrado ao contexto.
Ainda assim, torna-se impossível não destacar a performance de George Sauma na pele do protagonista - o jovem ator, um dos melhores de sua geração, consegue não apenas valorizar as passagens cômicas, mas também aquelas em que o poético predomina. Sem dúvida, uma atuação brilhante.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de John Neschling (direção musical e arranjos), Clívia Cohen (cenário e figurinos), Renato Machado (iluminação), Renato Vieira (coreografias), Jardel Maia (preparação vocal) e Luciana Belchior (preparação de circo).
O PATINHO FEIO - Texto de Maria Clara Machado. Direção de Bernardo Jablonski e Fabiana Valor. Com George Sauma, Fabiana Valor, Nedira Campos e grande elenco. Teatro dos 4. Sábado e domingo, 17h.
"O patinho feio"
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Delicada e comovente jornada
Lionel Fischer
Antes de mais nada, gostaria de esclarecer que só muito raramente faço crítica de espetáculos infantis. E por uma razão muito simples: seria literalmente impossível assistir a espetáculos adultos e destinados às crianças de forma sistemática. No entanto, eventualmente abro algumas exceções e em 99% dos casos quando se trata de uma montagem do Tablado ou de uma equipe ligada ao Teatro/Escola fundado por Maria Clara Machado, ainda que em outro espaço. Eis a razão que me leva a escrever sobre "O patinho feio".
Um dos textos mais delicados e singelos de Maria Clara Machado, destinado sobretudo a espectadores "bem pequenininhos", a obra em questão está agora em cartaz no Teatro dos 4. Bernardo Jablonski e Fabiana Valor respondem pela direção da montagem, estando o elenco formado por George Sauma, Fabiana Valor, Nedira Campos, Claudia Paiva, Zé Helou, Eduardo Rios, Mariah Viamonte, Thaissa Yumi, Isabella Serricella, Mônica Loppi e Mariana Bassoul.
Como dito acima, trata-se de um texto delicado e singelo, mas nem por isso simplório e muito menos destituído de comovente poesia - Maria Clara Machado seria incapaz de escrever algo que prescindisse de tais predicados. E o enredo não deixa de exibir uma das premissas essenciais de quase toda a obra da maior autora de peças para crianças que já existiu: a necessidade de vencer o medo e enfrentar o desconhecido, única possibilidade de se chegar a um real crescimento.
Aqui estamos diante de uma família "normal" de patos que, de repente, ganha um novo membro: um patinho completamente diferente dos outros, portador de suposta e irremediável feiúra. Sentindo-se deslocado em sua família, ele a abandona e parte para a vida. Após algumas rejeições, que o levam a duvidar da possibilidade de escapar das mesmas, mas ainda assim prosseguindo em sua jornada, eis que um dia ele se converte em deslumbrante cisne,
passando a ser por todos admirado. Tal metamorfose, evidentemente, deve ser encarada não como fruto de um "milagre" e sim da tenacidade do patinho de enfrentar e finalmente transcender todos os obstáculos.
Para materializar na cena esta breve, divertida, comovente e poética peça, os diretores Bernardo Jablonski e Fabiana Valor valeram-se de uma dinâmica simples e eficiente, em total sintonia com os conteúdos essenciais propostos pela autora. E para tanto contaram com muitos "aliados". A começar pelo elenco, harmonioso e cúmplice, perfeitamente integrado ao contexto.
Ainda assim, torna-se impossível não destacar a performance de George Sauma na pele do protagonista - o jovem ator, um dos melhores de sua geração, consegue não apenas valorizar as passagens cômicas, mas também aquelas em que o poético predomina. Sem dúvida, uma atuação brilhante.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de John Neschling (direção musical e arranjos), Clívia Cohen (cenário e figurinos), Renato Machado (iluminação), Renato Vieira (coreografias), Jardel Maia (preparação vocal) e Luciana Belchior (preparação de circo).
O PATINHO FEIO - Texto de Maria Clara Machado. Direção de Bernardo Jablonski e Fabiana Valor. Com George Sauma, Fabiana Valor, Nedira Campos e grande elenco. Teatro dos 4. Sábado e domingo, 17h.
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
Teatro/CRÍTICA
"Nem um dia se passa sem notícias suas"
..............................................................
Comovente embate com a memória
Lionel Fischer
"Joaquim, um bem sucedido cirurgião, por volta dos 50 anos, acabou de perder o pai. E agora tem que se desfazer de todas as coisas que pertenciam a ele - a casa, a coleção de discos, todas as coisinhas. À sua volta, Joaquim tem seu irmão caçula, Juliano. Entretanto, nesse momento extremo de mudança, uma surpreendente revelação emerge. O tempo da peça é o tempo da memória. Joaquim vive um delírio antes que todo o seu passado, sua origem, o abandone de vez no presente. Nesse jogo entre atores e a platéia, teremos a possibilidade de repensar a família, suas mudanças e suas esperanças".
O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o essencial da presente trama. E se mais não explicita, é apenas porque isso privaria o espectador de uma inesperada e impactante surpresa. De autoria de Daniela Pereira de Carvalho, "Nem um dia se passa sem notícias suas" acaba de estrear na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Gilberto Gawronski assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Edson Celulari e Pedro Garcia Netto.
Quem já viveu essa situação sabe o quanto é difícil retornar à casa paterna - no caso, recém vendida - quando todos já se foram. Cada objeto, cada canto da residência, o cheiro dos móveis, enfim, tudo contribui para o aflorar de lembranças, algumas agradavéis, outras extremamente penosas. Como todos sabemos, lidar com o real é sempre mais fácil do que com o impalpável, com a memória de coisas e afetos que, queiramos ou não, praticamente se materializam diante de nós. O que fazer diante de um tal quadro? Tentar manter a lucidez? Ou, ainda que involuntariamente, se deixar levar por uma espécie de delírio afetivo, capaz de tornar reais coisas ou pessoas que já não mais existem? É o que acontece com Joaquim, renomado cirurgião, especialista em transplante de corações, que não conseguiu salvar o irmão Juliano, que se matou aos 37 anos.
E aqui me vejo forçado a abandonar o enredo, pois, como disse ao comentar o release, ir mais além privaria o espectador de uma impactante surpresa. Mas posso, evidentemente, afirmar que Daniela Pereira de Carvalho escreveu um texto belíssimo, impregnado de múltiplas variações emocionais que muito me comoveram. E que certamente geraram um sentimento análogo nos que estiveram presentes à estréia. Bem escrito, contendo ótimos personagens e diálogos fluentes e emocionados - e eventualmente muito divertidos -, o texto se insere entre os melhores da atual temporada.
No tocante à encenação, Gilberto Gawronski investe todas as suas fichas no jogo entre os intérpretes, dispensando inúteis mirabolâncias formais. E justamente em função desta opção é que a inesperada surpresa causa um grande impacto, posto que não "preparada". Ou seja, o irreal se sobrepõe ao real de forma tal que se torna totalmente crível, o que só contribui para estimular nossa fantasia e capacidade de vivenciar experiências próprias com a mesma intensidade do protagonista. Além disso, e certamente pelo fato de ser um excelente ator, Gawronski extrai atuações maravilhosas dos dois intérpretes.
Na pele de Joaquim, Edson Celulari exibe aqui um dos melhores trabalhos de sua bem sucedida carreira de ator. Vivendo intensamente todas as emoções implícitas, mas sem jamais apelar para soluções melodramáticas, Celulari convence plenamente em todos os momentos. O mesmo se aplica a Pedro Garcia Netto, irretocável tanto em sua interpretação de Juliano quanto na do filho de Joaquim, a ambos impondo características totalmente diversas e sempre condizentes. Em resumo: uma ótima oportunidade para se aferir a beleza e profundidade de uma visceral contracena.
Com relação à equipe técnica, Nelo Marrese responde por figurinos em total sintonia com a personalidade e condição social dos personagens. Já a cenografia de Gawronski, embora contendo elementos condizentes com o contexto, lança mão de alguns objetos iluminados de forma feérica, por razões que não cheguei a compreender - é possível que a intenção tenha sido a de estabelecer um contraste entre o passado e o presente, mas ainda assim tal opção me soou um tanto estranha. Paulo César Medeiros ilumina a cena de forma sutil e delicada, exceção feita aos tais objetos, e aqui não tenho como saber se atendeu a um pedido do diretor ou foi sua a iniciativa. Rodrigo Marçal assina uma trilha sonora eficiente, mas que poderia, a meu ver, dispensar uma ou outra obviedade - batidas de coração, por exemplo, quando tal órgão é mencionado. Finalmente, Márcia Rubin presta preciosa colaboração na direção de movimento.
NEM UM DIA SE PASSA SEM NOTÍCIAS SUAS - Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de Gilberto Gawronski. Com Edson Celulari e Pedro Garcia Netto. Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Quintas, 18h (a partir de 15/09), sexta e sábado às 21h30, domingo às 20h.
"Nem um dia se passa sem notícias suas"
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Comovente embate com a memória
Lionel Fischer
"Joaquim, um bem sucedido cirurgião, por volta dos 50 anos, acabou de perder o pai. E agora tem que se desfazer de todas as coisas que pertenciam a ele - a casa, a coleção de discos, todas as coisinhas. À sua volta, Joaquim tem seu irmão caçula, Juliano. Entretanto, nesse momento extremo de mudança, uma surpreendente revelação emerge. O tempo da peça é o tempo da memória. Joaquim vive um delírio antes que todo o seu passado, sua origem, o abandone de vez no presente. Nesse jogo entre atores e a platéia, teremos a possibilidade de repensar a família, suas mudanças e suas esperanças".
O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o essencial da presente trama. E se mais não explicita, é apenas porque isso privaria o espectador de uma inesperada e impactante surpresa. De autoria de Daniela Pereira de Carvalho, "Nem um dia se passa sem notícias suas" acaba de estrear na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Gilberto Gawronski assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Edson Celulari e Pedro Garcia Netto.
Quem já viveu essa situação sabe o quanto é difícil retornar à casa paterna - no caso, recém vendida - quando todos já se foram. Cada objeto, cada canto da residência, o cheiro dos móveis, enfim, tudo contribui para o aflorar de lembranças, algumas agradavéis, outras extremamente penosas. Como todos sabemos, lidar com o real é sempre mais fácil do que com o impalpável, com a memória de coisas e afetos que, queiramos ou não, praticamente se materializam diante de nós. O que fazer diante de um tal quadro? Tentar manter a lucidez? Ou, ainda que involuntariamente, se deixar levar por uma espécie de delírio afetivo, capaz de tornar reais coisas ou pessoas que já não mais existem? É o que acontece com Joaquim, renomado cirurgião, especialista em transplante de corações, que não conseguiu salvar o irmão Juliano, que se matou aos 37 anos.
E aqui me vejo forçado a abandonar o enredo, pois, como disse ao comentar o release, ir mais além privaria o espectador de uma impactante surpresa. Mas posso, evidentemente, afirmar que Daniela Pereira de Carvalho escreveu um texto belíssimo, impregnado de múltiplas variações emocionais que muito me comoveram. E que certamente geraram um sentimento análogo nos que estiveram presentes à estréia. Bem escrito, contendo ótimos personagens e diálogos fluentes e emocionados - e eventualmente muito divertidos -, o texto se insere entre os melhores da atual temporada.
No tocante à encenação, Gilberto Gawronski investe todas as suas fichas no jogo entre os intérpretes, dispensando inúteis mirabolâncias formais. E justamente em função desta opção é que a inesperada surpresa causa um grande impacto, posto que não "preparada". Ou seja, o irreal se sobrepõe ao real de forma tal que se torna totalmente crível, o que só contribui para estimular nossa fantasia e capacidade de vivenciar experiências próprias com a mesma intensidade do protagonista. Além disso, e certamente pelo fato de ser um excelente ator, Gawronski extrai atuações maravilhosas dos dois intérpretes.
Na pele de Joaquim, Edson Celulari exibe aqui um dos melhores trabalhos de sua bem sucedida carreira de ator. Vivendo intensamente todas as emoções implícitas, mas sem jamais apelar para soluções melodramáticas, Celulari convence plenamente em todos os momentos. O mesmo se aplica a Pedro Garcia Netto, irretocável tanto em sua interpretação de Juliano quanto na do filho de Joaquim, a ambos impondo características totalmente diversas e sempre condizentes. Em resumo: uma ótima oportunidade para se aferir a beleza e profundidade de uma visceral contracena.
Com relação à equipe técnica, Nelo Marrese responde por figurinos em total sintonia com a personalidade e condição social dos personagens. Já a cenografia de Gawronski, embora contendo elementos condizentes com o contexto, lança mão de alguns objetos iluminados de forma feérica, por razões que não cheguei a compreender - é possível que a intenção tenha sido a de estabelecer um contraste entre o passado e o presente, mas ainda assim tal opção me soou um tanto estranha. Paulo César Medeiros ilumina a cena de forma sutil e delicada, exceção feita aos tais objetos, e aqui não tenho como saber se atendeu a um pedido do diretor ou foi sua a iniciativa. Rodrigo Marçal assina uma trilha sonora eficiente, mas que poderia, a meu ver, dispensar uma ou outra obviedade - batidas de coração, por exemplo, quando tal órgão é mencionado. Finalmente, Márcia Rubin presta preciosa colaboração na direção de movimento.
NEM UM DIA SE PASSA SEM NOTÍCIAS SUAS - Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de Gilberto Gawronski. Com Edson Celulari e Pedro Garcia Netto. Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Quintas, 18h (a partir de 15/09), sexta e sábado às 21h30, domingo às 20h.
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Teatro/CRÍTICA
"Tim Maia - Vale Tudo, o musical!"
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Emocionado e divertido tributo
Lionel Fischer
Lançada em 2008, a biografia "Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia", escrita por Nelson Motta, foi agora transposta para o palco, com Motta assinando o texto, contando com a colaboração do diretor João Fonseca. E o emocionado e divertido tributo faculta ao público uma visão abrangente da vida e trajetória artística do controverso e talentosíssimo cantor/compositor, personalidade anárquica que jamais se enquadrou nos padrões vigentes exigidos pelo mercado fonográfico.
Em cartaz no Teatro Carlos Gomes até dia 11 de setembro (o espetáculo retornará três semanas depois no Oi Casagrande), "Tim Maia - Vale Tudo, o musical" chega à cena com elenco formado por Tiago Abravanel, Isabella Bicalho, Lilian Valeska, Pedro Lima, André Vieri, Bernardo La Roque, Reiner Tenente, Evelyn Castro, Pablo Ascoli, Anna Carbatti e Letícia Pedroza - o primeiro vive o protagonista, com os demais interpretando de três a sete personagens, dentre eles Roberto e Erasmo Carlos, Elis Regina, Jorge Benjor, Carlos Imperial, Chico Buarque e o próprio Nelson Motta.
Não li a biografia escrita por Nelson Motta, mas a julgar por sua transposição para o palco, só posso acreditar que seja igualmente deliciosa. Estruturada em blocos temáticos, a narrativa aborda desde a infância de Tim Maia até sua morte, o que possibilita não apenas conhecer a fundo fatos inerentes ao artista, mas também as várias fases por que passou a MPB a partir do início dos anos 60 até a morte do cantor, em 1998.
Bem escrito, contendo ótimos personagens, pleno de humor e humanidade, o belo texto de Nelson Motta é sem dúvida um dos melhores da atual temporada. E o mesmo se aplica à direção de João Fonseca, que trabalha de forma irretocável os múltiplos climas emocionais propostos pelo autor. Para tanto, naturalmente, contou com a preciosa colaboração de todos os profissionais envolvidos. A começar pelo elenco.
Na pele do protagonista, Tiago Abravanel, de apenas 23 anos, exibe performance deslumbrante. E não por imitar Tim Maia, mas por recriá-lo em suas características essenciais, a elas certamente agregando aspectos de sua própria personalidade. Excelente cantor, carismático e também plenamente convincente no que diz respeito ao texto articulado, Tiago Abravanel é a grande surpresa da presente temporada.
Quanto aos demais atores, cumpre destacar a ótima contracena que estabelecem, a contagiante alegria que exibem de estar em cena, a impecável forma como cantam e interpretam dezenas de personagens. Sem este seletíssimo elenco de atores/cantores o espetáculo em hipótese alguma se converteria neste estrondoso sucesso, sob todos os aspectos mais do que merecido. Simplesmente imperdível, já que promove o que de mais essencial existe no teatro: um verdadeiro encontro entre quem faz e quem assiste.
Na equipe técnica, destaco inicialmente, e com total entusiasmo, a direção musical e arranjos de Alexandre Elias - os arranjos são belíssimos e executados com maestria por Cássio (teclado), Leandro Vasques (baixo), Bezaleel (sax tenor), Marcelo Rezende (guitarra), Josias Franco (trompete) e Tiago Silva (bateria).
Cumpre igualmente destacar as inestimáveis colaborações de Paulo César Medeiros (iluminação), Rui Cortez (figurinos) e Sueli Guerra (coreografia), que muito contribuem para tornar inesquecível esta mais do que pertinente homenagem ao "síndico do Brasil".
TIM MAIA - VALE TUDO, O MUSICAL! - Texto de Nelson Motta. Direção de João Fonseca. Com Tiago Abravanel, Isabella Bicalho e grande elenco. Teatro Carlos Gomes. Quinta a domingo, 20h.
"Tim Maia - Vale Tudo, o musical!"
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Emocionado e divertido tributo
Lionel Fischer
Lançada em 2008, a biografia "Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia", escrita por Nelson Motta, foi agora transposta para o palco, com Motta assinando o texto, contando com a colaboração do diretor João Fonseca. E o emocionado e divertido tributo faculta ao público uma visão abrangente da vida e trajetória artística do controverso e talentosíssimo cantor/compositor, personalidade anárquica que jamais se enquadrou nos padrões vigentes exigidos pelo mercado fonográfico.
Em cartaz no Teatro Carlos Gomes até dia 11 de setembro (o espetáculo retornará três semanas depois no Oi Casagrande), "Tim Maia - Vale Tudo, o musical" chega à cena com elenco formado por Tiago Abravanel, Isabella Bicalho, Lilian Valeska, Pedro Lima, André Vieri, Bernardo La Roque, Reiner Tenente, Evelyn Castro, Pablo Ascoli, Anna Carbatti e Letícia Pedroza - o primeiro vive o protagonista, com os demais interpretando de três a sete personagens, dentre eles Roberto e Erasmo Carlos, Elis Regina, Jorge Benjor, Carlos Imperial, Chico Buarque e o próprio Nelson Motta.
Não li a biografia escrita por Nelson Motta, mas a julgar por sua transposição para o palco, só posso acreditar que seja igualmente deliciosa. Estruturada em blocos temáticos, a narrativa aborda desde a infância de Tim Maia até sua morte, o que possibilita não apenas conhecer a fundo fatos inerentes ao artista, mas também as várias fases por que passou a MPB a partir do início dos anos 60 até a morte do cantor, em 1998.
Bem escrito, contendo ótimos personagens, pleno de humor e humanidade, o belo texto de Nelson Motta é sem dúvida um dos melhores da atual temporada. E o mesmo se aplica à direção de João Fonseca, que trabalha de forma irretocável os múltiplos climas emocionais propostos pelo autor. Para tanto, naturalmente, contou com a preciosa colaboração de todos os profissionais envolvidos. A começar pelo elenco.
Na pele do protagonista, Tiago Abravanel, de apenas 23 anos, exibe performance deslumbrante. E não por imitar Tim Maia, mas por recriá-lo em suas características essenciais, a elas certamente agregando aspectos de sua própria personalidade. Excelente cantor, carismático e também plenamente convincente no que diz respeito ao texto articulado, Tiago Abravanel é a grande surpresa da presente temporada.
Quanto aos demais atores, cumpre destacar a ótima contracena que estabelecem, a contagiante alegria que exibem de estar em cena, a impecável forma como cantam e interpretam dezenas de personagens. Sem este seletíssimo elenco de atores/cantores o espetáculo em hipótese alguma se converteria neste estrondoso sucesso, sob todos os aspectos mais do que merecido. Simplesmente imperdível, já que promove o que de mais essencial existe no teatro: um verdadeiro encontro entre quem faz e quem assiste.
Na equipe técnica, destaco inicialmente, e com total entusiasmo, a direção musical e arranjos de Alexandre Elias - os arranjos são belíssimos e executados com maestria por Cássio (teclado), Leandro Vasques (baixo), Bezaleel (sax tenor), Marcelo Rezende (guitarra), Josias Franco (trompete) e Tiago Silva (bateria).
Cumpre igualmente destacar as inestimáveis colaborações de Paulo César Medeiros (iluminação), Rui Cortez (figurinos) e Sueli Guerra (coreografia), que muito contribuem para tornar inesquecível esta mais do que pertinente homenagem ao "síndico do Brasil".
TIM MAIA - VALE TUDO, O MUSICAL! - Texto de Nelson Motta. Direção de João Fonseca. Com Tiago Abravanel, Isabella Bicalho e grande elenco. Teatro Carlos Gomes. Quinta a domingo, 20h.
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
Teatro/CRÍTICA
"Na selva das cidades"
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O homem e suas impossibilidades
Lionel Fischer
Ambientada em Chicago (1912-1915), a peça tem como ponto de partida o encontro entre Shlink, um negociante malaio de madeiras, de 51 anos, e o jovem George Garga, na livraria em que este trabalha. Com a desculpa de querer comprar um livro, Shlink oferece dinheiro a Garga para que dê sua opinião a respeito de um livro de histórias de mistérios. Este se recusa, deixando claro que suas opiniões não estão à venda. Mas Shlink já sabia perfeitamente disso e usou tal estratagema apenas para dar início ao "combate".
A partir daí, uma avalanche de fatos se acumulam: Shlink e seus capangas convertem Jane, amante de Garga, e Marie, sua irmã, em prostitutas. A primeira casa-se com George e a segunda apaixona-se inutilmente por Shlink. Este acaba passando seu negócio para Garga, que o arruína e acaba por ser preso. Na cadeia, Garga denuncia Shlink como sedutor das moças e traça um plano para que Shlink seja linchado no exato momento em que for posto em liberdade, após três anos de reclusão.
E mais situações poderiam ser citadas, mas suponho que estas facultem um razoável resumo do enredo de "Na selva das cidades", terceira peça escrita por Bertolt Brecht (1898-1956) e no momento em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil. Aderbal Freire-Filho assina a direção da montagem, estando o elenco formado por Daniel Dantas, Fernanda Boechat, Inez Viana, Joelson Medeiros, Leonardo Netto, Marcelo Olinto, Maria Luisa Mendonça, Milton Filho e Patrick Pessoa.
Muito já se escreveu sobre este texto e por críticos e ensaístas infinitamente mais competentes do que eu, tais como Robert Brustein, Martin Essling etc. Seja como for, e se reduzida à sua essência, a peça me parece ter como tema central a total impossibilidade que os homens possuem de estabelecer um real e enriquecedor contato entre si, em todos os planos: sexual, social e espiritual.
Temas pertinentes, sem dúvida, mas trabalhados de forma um tanto tortuosa e ambígüa. Afora o fato de o autor estender em demasia algumas cenas, mesmo quando muitas delas exibem diálogos que já deixavam claro serem fruto de um jovem que se tornaria, sem a menor dúvida, um dos maiores dramaturgos do século XX - ao longo de sua carreira, Brecht escreveu 40 peças.
Com relação à montagem, Aderbal Freire-Filho impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com as premissas básicas do autor, que fazia questão absoluta de retirar do teatro seu caráter ilusório, para tanto valendo-se de vário recursos - as cenas são anunciadas, os atores permanecem quase todo tempo no palco, mesmo quando não estão atuando etc.
Isto posto, cumpre ressaltar a expressividade da maior parte de suas marcações, a precisão com que trabalha os tempos rítmicos e sua notável capacidade de extrair atuações fortes, seguras e convincentes de todo o elenco. Neste particular, e por uma questão de espaço - esta crítica será publicada no Jornal Folha Zona Sul - gostaria de destacar as performances de Maria Luisa Mendonça, Marcelo Olinto e Daniel Dantas.
Maria Luisa, que dá vida a Marie, irmã de Garga, nos oferece um retrato comovente da trajetória de uma jovem ingênua, romântica e sonhadora que é forçada a se prostituir, mas que mesmo com a lama até o pescoço, de certa forma ainda consegue manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. A mesma eficiência se faz presente na performance de Marcelo Olinto - o ator materializa toda a complexa trajetória de seu personagem, que vai da integridade até o mais selvagem desespero, sendo este impregnado de grande violência e não menor sarcasmo.
Quanto a Daniel Dantas, a primeira coisa a ser destacada é seu impecável trabalho corporal, que sugere sutilmente um chinês sem partir para nenhum tipo de caricatura. Outro aspecto importante, e sempre presente nos trabalhos do ator, é sua extraordinária capacidade de atuar em silêncio, sempre preenchendo-o de múltiplos significados. Finalmente, sua abordagem de Shlink traduz o que imagino que Brecht pretendeu ao escrever o papel: um ser dotado de grande inteligência, possuidor de fina ironia e capaz de desenvolver idéias e pensamentos dificilmente refutáveis, ainda que eventualmente cruéis ou repugnantes. Enfim, alguém que poderíamos considerar completamente amoral ou, se preferirem, absolutamente realista. Um trabalho brilhante, sem dúvida, que se insere entre os melhores da atual temporada.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as contribuições de Aderbal Freire-Filho, Nehle Franke, Patrick Pessoa e Roberto Franke (tradução), Fernando Mello da Costa (cenografia), Juliana Nicolay (figurinos), Maneco Quinderé (iluminação) e Marcelo Alonso Neves (direção musical).
NA SELVA DAS CIDADES - Texto de Bertolt Brecht. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Daniel Dantas, Marcelo Olinto e outros. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.
"Na selva das cidades"
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O homem e suas impossibilidades
Lionel Fischer
Ambientada em Chicago (1912-1915), a peça tem como ponto de partida o encontro entre Shlink, um negociante malaio de madeiras, de 51 anos, e o jovem George Garga, na livraria em que este trabalha. Com a desculpa de querer comprar um livro, Shlink oferece dinheiro a Garga para que dê sua opinião a respeito de um livro de histórias de mistérios. Este se recusa, deixando claro que suas opiniões não estão à venda. Mas Shlink já sabia perfeitamente disso e usou tal estratagema apenas para dar início ao "combate".
A partir daí, uma avalanche de fatos se acumulam: Shlink e seus capangas convertem Jane, amante de Garga, e Marie, sua irmã, em prostitutas. A primeira casa-se com George e a segunda apaixona-se inutilmente por Shlink. Este acaba passando seu negócio para Garga, que o arruína e acaba por ser preso. Na cadeia, Garga denuncia Shlink como sedutor das moças e traça um plano para que Shlink seja linchado no exato momento em que for posto em liberdade, após três anos de reclusão.
E mais situações poderiam ser citadas, mas suponho que estas facultem um razoável resumo do enredo de "Na selva das cidades", terceira peça escrita por Bertolt Brecht (1898-1956) e no momento em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil. Aderbal Freire-Filho assina a direção da montagem, estando o elenco formado por Daniel Dantas, Fernanda Boechat, Inez Viana, Joelson Medeiros, Leonardo Netto, Marcelo Olinto, Maria Luisa Mendonça, Milton Filho e Patrick Pessoa.
Muito já se escreveu sobre este texto e por críticos e ensaístas infinitamente mais competentes do que eu, tais como Robert Brustein, Martin Essling etc. Seja como for, e se reduzida à sua essência, a peça me parece ter como tema central a total impossibilidade que os homens possuem de estabelecer um real e enriquecedor contato entre si, em todos os planos: sexual, social e espiritual.
Temas pertinentes, sem dúvida, mas trabalhados de forma um tanto tortuosa e ambígüa. Afora o fato de o autor estender em demasia algumas cenas, mesmo quando muitas delas exibem diálogos que já deixavam claro serem fruto de um jovem que se tornaria, sem a menor dúvida, um dos maiores dramaturgos do século XX - ao longo de sua carreira, Brecht escreveu 40 peças.
Com relação à montagem, Aderbal Freire-Filho impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com as premissas básicas do autor, que fazia questão absoluta de retirar do teatro seu caráter ilusório, para tanto valendo-se de vário recursos - as cenas são anunciadas, os atores permanecem quase todo tempo no palco, mesmo quando não estão atuando etc.
Isto posto, cumpre ressaltar a expressividade da maior parte de suas marcações, a precisão com que trabalha os tempos rítmicos e sua notável capacidade de extrair atuações fortes, seguras e convincentes de todo o elenco. Neste particular, e por uma questão de espaço - esta crítica será publicada no Jornal Folha Zona Sul - gostaria de destacar as performances de Maria Luisa Mendonça, Marcelo Olinto e Daniel Dantas.
Maria Luisa, que dá vida a Marie, irmã de Garga, nos oferece um retrato comovente da trajetória de uma jovem ingênua, romântica e sonhadora que é forçada a se prostituir, mas que mesmo com a lama até o pescoço, de certa forma ainda consegue manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. A mesma eficiência se faz presente na performance de Marcelo Olinto - o ator materializa toda a complexa trajetória de seu personagem, que vai da integridade até o mais selvagem desespero, sendo este impregnado de grande violência e não menor sarcasmo.
Quanto a Daniel Dantas, a primeira coisa a ser destacada é seu impecável trabalho corporal, que sugere sutilmente um chinês sem partir para nenhum tipo de caricatura. Outro aspecto importante, e sempre presente nos trabalhos do ator, é sua extraordinária capacidade de atuar em silêncio, sempre preenchendo-o de múltiplos significados. Finalmente, sua abordagem de Shlink traduz o que imagino que Brecht pretendeu ao escrever o papel: um ser dotado de grande inteligência, possuidor de fina ironia e capaz de desenvolver idéias e pensamentos dificilmente refutáveis, ainda que eventualmente cruéis ou repugnantes. Enfim, alguém que poderíamos considerar completamente amoral ou, se preferirem, absolutamente realista. Um trabalho brilhante, sem dúvida, que se insere entre os melhores da atual temporada.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as contribuições de Aderbal Freire-Filho, Nehle Franke, Patrick Pessoa e Roberto Franke (tradução), Fernando Mello da Costa (cenografia), Juliana Nicolay (figurinos), Maneco Quinderé (iluminação) e Marcelo Alonso Neves (direção musical).
NA SELVA DAS CIDADES - Texto de Bertolt Brecht. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Daniel Dantas, Marcelo Olinto e outros. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.