Teatro/ CRÍTICA
"Vulgar"
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Adaptação minimiza alcance do original
Lionel Fischer
Henrik Vogler, diretor de teatro experiente e perfeccionista, ensaia a peça O Sonho, de Strindberg. Depois de uma tarde de trabalho, ele está cochilando no palco quando volta ao teatro sua jovem protagonista, Anna, com a desculpa de procurar uma pulseira perdida. Durante o que seria uma conversa casual, surge uma avalanche de revelações pessoais, que vão transformando o texto em obra confessional. Em uma licença poética, ou num devaneio, ou mesmo em um sonho, mais adiante surge Raquel, mãe de Anna, que no passado interpretou o papel que hoje é da filha.
O trecho acima resume o enredo de "Depois do ensaio", de autoria de Ingmar Bergman, peça escrita em 1980 e quatro anos depois transformada em filme para a televisão. De acordo com o release que me foi enviado, o filme foi escolhido pela atriz Luisa Friese como "estímulo e fio condutor para a criação do novo trabalho". Um belo estímulo, sem dúvida, cujo resultado será avaliado em seguida.
"Vulgar" tem dramaturgia assinada por Diego de Angeli, estando a direção a cargo de Miwa Yanagizawa. No elenco, Lucas Gouvêa e Luisa Friese - o espetáculo deixa hoje a Sala Multiuso do Sesc, mas como acredito que prosseguirá temporada em outro espaço, acho que a presente crítica se justifica.
Nada tenho contra adaptações, estímulos ou fios condutores, mas o fato é que o texto de Diego de Angeli minimiza muito o alcance da belíssima reflexão que Bergman faz sobre a arte teatral. No original, a estrutura narrativa reforça de forma brilhante o caráter lúdico e mágico do teatro, pois jamais se chega a saber, com absoluta certeza, se alguns episódios aconteceram da forma como estão materializados (como a relação de Vogler e Raquel, esta última supostamente já falecida), ou se tudo se resume a um devaneio do diretor semi-adormecido. Ou seja: o espectador é convidado não a racionalizar sobre o que assiste, mas a liberar sua fantasia e deixar-se encharcar pela poesia do palco, que encontrará um campo muito mais fértil não em sua inteligência ou cultura, mas em seu inconsciente.
No entanto, como na presente adaptação o importantíssimo papel da mãe foi cortado (dentre outros cortes, mas fico apenas neste) a estrutura narrativa fica muito comprometida. E o texto apresentado, embora contenha bons diálogos e não deixe de abordar questões relativas à arte teatral, prioriza muito a relação homem/mulher entre o diretor e a atriz, que formaram um casal no passado. E esta relação, certamente muito mal resolvida, é reforçada em duas passagens em que a atriz fica nua, a meu ver sem a menor necessidade - na primeira, o diretor a manda tirar a roupa, obrigando-a a interromper o que faz em alguns momentos, o que talvez leve um espectador desavisado a supor que esteja diante de um outro tipo de peça; e na segunda ocasião, após ser assediada e sair de cena contrariada, surpreendentemente a atriz retorna vestindo só uma blusa...
Com relação ao espetáculo (e agora já não levando mais em conta as ressalvas dramatúrgicas e as referidas cenas de nudez) Miwa Yanagizawa impõe à cena uma dinâmica em sintonia com o texto de Diego de Angeli, valorizando todos os conteúdos através de marcas criativas e diversificadas, cabendo também destacar a habilidade da diretora no tocante aos tempos rítmicos. E no que diz respeito aos intérpretes, Lucas Gouvêa e Luisa Friese extraem o máximo dos personagens, materializando com inteligência e grande capacidade de entrega as muitas e não raro dolorosas emoções em causa.
Na equipe técnica, considero de ótima qualidade as contribuições de todos os profissionais envolvidos na produção - Ricardo Cutz (desenho de som e instalação), Maurício Shirakawa (iluminação), Yumi Sakate (figurino) e Toni Rodrigues (direção de movimento).
VULGAR - Dramaturgia de Diego de Angeli. Direção de Miwa Yanagizawa. Com Lucas Gouvêa e Luisa Friese. O espetáculo encerra hoje, às 18h, sua temporada na Sala Multioso, do Sesc.
sábado, 26 de setembro de 2015
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
CORPO E VOZ, UMA PREPARAÇÃO INTEGRADA
Maria Enamar Ramos Neherer Bento
(UNIRIO)
Marly Santoro de Brito
(UNIRIO)
Resumo
Este trabalho se baseia na trilogia dos aspectos essenciais ao ator – interpretação, corpo e voz – todos voltados para uma atuação mais verdadeira, procurando através dos sentidos, um conhecimento maior do funcionamento do ator como um todo. Partiu-se do princípio que, se podemos improvisar com corpo, podemos mais facilmente improvisar com palavras, com a voz. Neste trabalho foram selecionados exercícios de aquecimento de corpo e de voz, realizados simultaneamente, visando a preparação do ator para as encenações.
Palavras-chave | corpo | voz | preparação corporal e vocal
Neste trabalho foram selecionados exercícios de aquecimento de corpo e de voz, realizados simultaneamente, visando a preparação do ator para as encenações.
Muitos atores separam os exercícios de corpo dos de voz, esquecendo-se que corpo e voz trabalham indissoluvelmente ligados. O corpo funciona como uma caixa de ressonância amplificadora do som fundamental produzido na laringe pelas pregas vocais, resultando na sonoridade a que chamamos VOZ. Segundo GlorinhaBeuttenmüller, o “corpo é o controle remoto da voz” (1995).
Esse comportamento é repetido nas montagens teatrais pelo trabalho, em separado, dos preparadores corporal e vocal que, ao encerrarem suas funções nos ensaios, orientam os atores quanto ao seu próprio aquecimento durante a temporada da peça.
Este repertório de exercícios de aquecimento corporal e vocal cumpre, como observa Angel Vianna, “a missão de auxiliar os atores nas possibilidades interpretativas da voz, este termômetro infalível das emoções” (1999).
Um ator pode e deve tornar-se um “expert” em corporalidade, através da tomada de consciência das sensações físicas dos seus próprios movimentos, analisando os efeitos em sua própria movimentação.
Os alunos das escolas de teatro apresentam ao ingressarem nos cursos de Bacharelado, segundo a professora e fonoaudióloga Marly Santoro de Brito (2000), alterações vocais significativas numa proporção de 10% nas universidades privadas e 15% nas públicas. Essas alterações vocais ou disfonias, expressadas por rouquidões, são ocasionadas por nódulos ou calos nas cordas vocais, pólipos, fendas glóticas e espessamentos. Decorrem geralmente do abuso, do mau uso vocal e do desconhecimento dos fatores que desencadeiam os problemas vocais, como tensão excessiva na laringe e incoordenação fono-respiratória. É necessário instrumentalizar os alunos através de um trabalho de conscientização da importância do apoio no diafragma para o uso da voz com grande intensidade ou durante o esforço corporal. Durante movimentos que exigem força nos braços aliados à emissão vocal como numa luta, por exemplo, o ator precisa ter consciência da técnica vocal a ser empregada de modo a não prejudicar a sua saúde vocal. Quando se fala em “desconhecimento dos fatores desencadeantes dos problemas vocais”, englobamos aqui as posturas prejudiciais à emissão vocal, como elevação do queixo ou seu abaixamento, cabeça tombada, ombros tensos e deslocamentos corporais inadequados durante a vocalização. Após a instrumentalização desses alunos-atores, através de treinamento corporal vocal, há um decréscimo das alterações vocais.
No que se refere ao corpo abordamos basicamente quatro aspectos principais: respiração, coluna (flexibilidade, fortalecimento e postura), articulações (soltura de todas as articulações do corpo), eixo corporal / equilíbrio tomando como referências os trabalhos de Angel Vianna, Moshe Feldenkrais, Rudlof Laban e James Penrod. Na parte referente à voz foi usado o Método Espaço Direcional Beuttemmüller. Acrescentamos alguns exercícios do Método Pilates1 (só exercícios de solo) visando enriquecer o trabalho de postura e flexibilidade.
Durante o aquecimento corporal/vocal, os atores devem ser levados a perceber os movimentos que dificultam a vocalização, bem como em que momento da movimentação podem emitir sons sem prejuízo para a sua voz, sem danos ao seu aparelho fonador.
Ao elaborarmos uma seqüência de exercícios de corpo e voz, procuramos aliar o movimento corporal adequado ao uso concomitante da voz, levando-os a perceberem que o movimento corporal aliado à tônica das palavras, por exemplo, favorece a ampliação e o ritmo desse movimento, dando um equilíbrio vocal/corporal. Os atores têm que perceber que a inflexão da voz se modifica na dependência do corpo inteiro. Quanto maior a consciência do funcionamento do corpo e da respiração, melhor o resultado vocal. Citando Glorinha Beuttenmüller “a sonoridade é a resposta ao impulso de deslocamento do corpo através do espaço”. E mais “o ator tem que saber dar a intensidade (que é o volume da voz) e a altura (mais aguda ou mais grave) adequadas do som como resposta à atitude corporal”.
Objetivo
Temos como objetivo a conscientização corporal por parte do ator através da percepção do movimento executado, visando dar condições para a voz se lançar na direção desejada, com a intensidade adequada ao tamanho do espaço sem prejuízo da sua movimentação. Adequar respiração com movimento corporal, postura e flexibilidade é a meta a ser alcançada.
Procuramos dirigir o trabalho para um olhar do movimento priorizando a percepção total.
1 – olhar o movimento não só com os olhos, mas com a percepção total;
2 – descobrir as fontes físicas do movimento em si mesmo e nos outros;
3 – ter controle intelectual e físico sobre seus movimentos;
4 – aplicar essas habilidades para o desenvolvimento do papel.
Sabemos que professores e diretores podem guiar o aluno/ator através de técnicas especializadas relacionadas a uma forma de arte, tais como exercícios de voz ou dança. Podem ser capazes de dar assistência no desenvolvimento da expressividade, na prática da intuição. Entretanto, a grande responsabilidade sobre o desempenho artístico reside no próprio ator, no individual. Ele é a única pessoa que pode, através de trabalho duro, do estudo, da observação, inteligência e talento, desenvolver sua técnica. E é também a única pessoa que pode, transcendendo a técnica, expressar seus próprios sentimentos e uma visão da condição humana.
A- Inicia-se trabalhando a respiração na posição deitada:
1- Com uma das mãos no diafragma e outra no peito respirar naturalmente, sentindo o levantar e abaixar do seu diafragma. Sentir o ar entrando nos pulmões, percebendo o movimento dos mesmos. O exercício deve ser repetido várias vezes para que cada um descubra o tipo de esforço e tensão necessários para inspirar e segurar a respiração durante a pausa, bem como a sensação de alívio e o relaxamento na expiração. Após a percepção do mecanismo da respiração, acrescenta-se à expiração o som de ssssssiii ... direcionado para o espaço.
2- Deitado de costas com os olhos fechados imaginar o espaço dentro de cada um como sendo um enorme buraco; concentrar-se na relação entre a forma do corpo e o espaço em volta; fazer um inventário mental da relação das partes do corpo e o lugar que elas ocupam. Devem perceber as sensações das várias partes do corpo em contato com o chão ou o espaço que o circunda, e logo após, suspender conscientemente o controle sobre o seu corpo e “escutar” o que o corpo quer fazer.
As descobertas sobre a respiração devem ser usadas nos exercícios novos.
B- Fazer esse reconhecimento em posição sentada, realizando o mesmo inventário sobre as tensões.
1- Deixar que o peso da cabeça leve o tronco para frente até o chão, soltando o ar e alongando os músculos das costas. Nessa descida, durante a expiração, fazer a vibração dos lábios, conseguida através dos sons de prprprpr..., como se fosse um motor.
2- Ainda sentados, olhos fechados, palmas das mãos bem próximas, mas sem se tocarem, sentir o calor gerado entre as mãos. Mover as palmas das mãos lentamente passando uma pela outra várias vezes em direções opostas: mover para os lados, para frente, para trás e em círculo, juntar as palmas das mãos e separá-las, percebendo a sensação do movimento na ponta dos dedos, nas mãos e nos antebraços.
3- Juntar as pontas dos dedos das duas mãos com um toque bem suave, e em seguida, dar batidas leves várias vezes. Juntar as palmas das mãos e começar a esfregá-las lentamente. Progressivamente, ir aumentando a intensidade e a energia da esfregação, até separar as mãos. Levar o tempo necessário para cada ação de forma que a sensação do movimento possa ser sentida. Conscientizar-se de qualquer sensação que ocorra em outro lugar do corpo, especialmente na área da coluna. Ao sentir a energia que flui entre as mãos próximas emitir a ressonância com a percepção desse espaço entre elas, primeiramente com o zumbido hummm hummm e depois com o som mmommm mmoommm mmoommm.
C- Trabalhar isoladamente partes do corpo, na posição de pé:
1- De pé com as pernas separadas, olhos fechados e braços caídos, mover os braços em círculo:
1º círculo: pressionar a palma da mão contra a parte anterior da coxa contando até 6, levantar lentamente o braço para a frente até chegar acima da cabeça e concluir o círculo movendo o braço para trás até a posição inicial. Inspirar enquanto levanta o braço e emitir a vogal áfona [ a ] ao descê-lo.
2º círculo: inverter a direção e emitir a vogal áfona [ o ] ao descer o braço.
3º círculo: pressionar a palma da mão no lado da coxa, levantar lentamente o braço até chegar acima da cabeça e concluir o círculo cruzando o braço a frente até voltar à posição inicial. Inspirar na subida e emitir a vogal áfona [ e ] ao cruzar o braço à frente.
4º círculo: inverter o movimento e emitir a vogal áfona [ u ] ao cruzar o braço à frente.
Fazer os movimentos lentamente, mantendo a consciência da sensação do movimento, e particularmente da ação da gravidade no braço quando ele é levantado e o relaxamento dessa ação quando ele é abaixado.
Variantes do exercício:
– fazer com o mínimo de esforço
– repetir com os dedos expandidos amplamente separados e o braço esticado o mais longe possível do corpo
– repetir uma terceira vez com rápidas paradas e recomeços.
Enquanto estiver movendo, estar certo da energia requerida para fazer o movimento empurrado / puxado, da qualidade do movimento resultante e do sentimento no corpo todo durante essa movimentação.
2- Repetir esse exercício com a sonorização das vogais.
3- De pé, soltar um dos braços da articulação, deixando-o frouxo, pendurado do ombro. Movimento: começar pela rotação da mão para trás e para frente pelo punho e então ir lentamente envolvendo o braço todo. Trabalhar bem relaxado e suavemente. O braço deve mover-se pela força da gravidade, sem esforço. Acompanhar o movimento com a emissão da ressonância e adequar a sua projeção ao tamanho do segmento do membro que está sendo movimentado. Pode ser feito com hummmhummm ou com mini... mini... mini... mini...
4- Individual: Em pé, focalizar um ponto qualquer e manter o olhar fixo nele, emitindo a ressonância ou outros sons variados. Levantar uma das pernas levando o pé até o joelho da perna de sustentação; perceber ações e sensações no corpo quando tentar permanecer em pé. Relaxar e repetir o movimento emitindo ressonância ou sons direcionados para o espaço global, sentindo a diferença entre a emissão de sons com o olhar fixo e com olhar global, percebendo como a voz fica mais projetada com a percepção do espaço à sua volta.
5- Posição em pé: Sentir-se o centro de um cubo com linhas radiais saindo do seu corpo em todas as direções; imaginar as diferentes partes do corpo colocadas na mesma linha espacial; colocar um braço alinhado com esses vários raios; deixar o corpo torcer ou dobrar, se for necessário, para obter o braço em todas as direções possíveis. Tentar o exercício com a perna, ombros, quadris e tronco. Explorar a sua knesfera individual (espaço ocupado pelo corpo) nas posições: deitado no chão, ajoelhado, em pé, ao mover-se pela sala. A cada movimento, sentir que é circundado pela knesfera. Aliar aos movimentos a emissão das sílabas trtrammm trtremmm trtrimm trtrommm trtrrummm durante a maior expansão dos braços ou das pernas.
6- Em dupla: Empurrar o companheiro em várias partes do seu corpo usando também as diferentes partes do seu corpo: mão, ombro, cabeça, etc. Aquele que está parado faz a contra-força na mesma intensidade para que permaneça parado. Deve ter a consciência e o cuidado de não tensionar o pescoço ao fazer força com os braços para evitar problemas vocais. Emitir palavras ou textos ao executar o movimento, mantendo a voz firme e clara.
Exercícios que demandam uma contração excessiva da musculatura do pescoço, por exemplo, devem ser evitados, mesmo que trabalhem bem a coluna e o abdômen.
D- Para a flexibilidade da coluna:
1- Sentado com as pernas esticadas à frente e braços em direção ao teto. Alongar o braço direito para cima iniciando o movimento da cintura; depois o braço esquerdo para cima e os dois para cima; dobrar o corpo para frente, relaxando, dobrando a articulação coxo-femoral e esticando os músculos da parte inferior das costas e posterior das pernas. Voltar à posição inicial lentamente, trabalhando cada elo da coluna. Repetir o exercício com controle do diafragma para direcionar a pressão aérea, pressionando-o, e aliando as sílabas sssi-fffu-xxxii-pppa a cada movimento (Método Espaço Direcional).
2- Quatro apoios – Contrair e alongar a coluna indo até ao chão como se fosse um gato manhoso se espreguiçando; contrair e alongar até fazer a curva ao contrário com a coluna; quando alongar ir até quase sentar nos calcanhares. Durante o movimento, emitir ressonância com nhiau, nhiau, nhiau, nhiau, modulando-a de acordo com a maior ou menor expansão dos movimentos.
E- Para buscar o eixo:
1- Em pé, de costas para uma parede reta, tocar a parede com os calcanhares, o sacro, as costas, ombros e cabeça; sentir as várias partes do corpo onde os músculos estão ativamente trabalhando para manter o corpo ereto. Emitir a ressonância sentindo a vibração do som na coluna.
2- Na mesma posição, imaginar uma linha passando verticalmente pelo seu corpo. Sem forçar a ação, imagine que o corpo está sendo esticado para cima ao longo dessa linha imaginária; o corpo deve ter a sensação de leveza e flutuação. Perceber como cada parte do corpo, da cabeça até a pélvis e pernas, está mantendo o alinhamento básico. Imaginar seus ombros sendo dirigidos para os lados; sentir o contato do seu pé no chão, com o peso distribuído em três pontos – o dedão, o dedinho e o meio do calcanhar. A maioria dos grandes músculos estão envolvidos para manter a postura ereta. Sentir a inter-relação dos músculos que tornam isso possível. Inspirar e expirar alargando as costelas na inspiração: respiração costal-diafragmática.
3- Em decúbito dorsal, pernas dobradas, sola dos pés no chão, braços ao longo do corpo. Esticar a perna direita para baixo, umbigo em direção ao chão, sentindo o eixo, sem deixar o tronco mexer durante o movimento. Repetir com a outra perna, e depois com as duas. Repetir usando o braço. Associar a inspiração ao alongamento e a vibraçãotrtrtrtrtrtr... à troca de posições.
F- Para soltura das articulações:
Exercícios de rotação de pernas, ou de basculação. Durante esses exercícios, fazer vibrações com brbrbrbrbr...
G- Para trabalhar o andar:
Mover a perna de trás para frente e vice-versa. A perna vai dobrada, e objetiva trabalhar a soltura da articulação coxo-femural e o equilíbrio. Associar a esse exercício as sílabas pa-ca-tá, pa-cá-ta e pá-ca-ta ... marcando com a extensão da perna a tônica escolhida. Deve-se repetir este exercício variando as vogais: pequeté,piquití, pocotó, pucutú, observando a variação das tônicas como relatado acima.
H- Para a coluna: trabalhar dividindo os 3 terços:
1- Deitado de costas, levantar a região do sacro até a cintura e voltar; depois a coluna até a altura da omoplata e finalmente até a cervical. O movimento deve ser lento e consciente fazendo com que cada pedacinho da coluna trabalhe na ida e na volta. É um elevar na ida e um “carimbar” com cada vértebra na volta.
Associar os movimentos aos sons ssii-ffu-xxi-ppaa (Método Espaço Direcional).
I- Para a torção do tronco:
Deitado de costas com as pernas flexionadas, pés juntos, deixar cair os dois joelhos para o lado direito, fazendo com que as pernas formem um ângulo reto com o tronco; alongar o braço esquerdo ao lado e vir descendo passando pelos quadris, pela frente do corpo e continuar o movimento passando acima da cabeça e voltando para a posição de origem. Associar ao relaxamento de laringe: bocejar sem recuar a língua na cavidade bucal.
A voz, levada pelo corpo do ator, flui arredondada ou direta, na dependência do movimento executado. Ao lado desse trabalho podemos fazer um trabalho de improvisação, geralmente partindo de algum movimento mais trabalhado no aquecimento. Num aquecimento coletivo escolher um par e se relacionar com ele através do movimento. No momento em que o entrosamento do par é conseguido, pode ser assumido um sentimento/emoção visando uma troca entre os personagens. Os diálogos que surgirem desse relacionamento ajudam ao ator a ir formando o corpo do personagem. Partimos do princípio que, se podemos improvisar com corpo, podemos mais facilmente improvisar com palavras. A quebra das amarras que impedem a imaginação de agir era o objetivo dessa fase do trabalho. Algumas vezes trabalhamos em cima de um roteiro mínimo de acontecimentos para direcionar a improvisação. Foram elaboradas 15 seqüências básicas de exercícios de aquecimento de corpo e voz visando uma progressão crescente do trabalho e tomando por ponto de partida problemas apontados pelos atores. Essas seqüências foram trabalhadas por todos. Na fase final, cada ator, examinando sua situação corporal, montava sua própria seqüência de aquecimento.
Ao realizarmos esse trabalho, formamos a trilogia dos aspectos essenciais ao ator – interpretação, corpo e voz – todos voltados para uma atuação mais verdadeira, procurando através dos sentidos, um conhecimento maior do funcionamento do ator como um todo.
Referências
BEUTTENMULLER, Glória e LAPORT, Nelly. Expressão Vocal e Expressão Corporal. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1974.
___Maria da Gloria. Dicção-Método Espaço-Direcional. FEFIERJ, Escola de Teatro da Federação das Escolas Isoladas da Guanabara, RJ, 1971.
___ Gloria. O Despertar da Comunicação Vocal. Rio de Janeiro: Enelivros, 1995.
BRITO, Marly Santoro. Abordagem Fonoaudiológica nas Escolas de Teatro Públicas e Privadas. Revista CientíficaFonoaudiologia Brasil (ISSN 1616-8131) Brasília, n.3, ano 3, abril. 2000.
FELDENKRAIS, Moshe. Consciência pelo movimento. São Paulo: Summus, 1977.
___ Vida e movimento. São Paulo: Summus, 1988. LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
KUSNET, Eugênio. O Ator e o Método. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – MEC, 1975.
LITVINOFF, Valentina. The use of Stanislsvsky wthin Modern Dance. New York, American Dance Guild, 1972.
PENROD, James. Movement for the performing artist. California: Mayfield Publishing Company, 1974.
STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
___ A construção do Personagem. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.
___ A Criação do Papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
TEIXEIRA, Letícia. Conscientização do movimento. S.Paulo, Caioá Editora, 1998.
VIDEO Working out the Pilates way. Institute for the Pilates Method.
1 Pilates: sistema de exercícios não aeróbicos, usados para bailarinos,atores e performers; é um método de condicionamento físico que melhora a postura e a resistência física diminuindo os riscos de acidentes.
MARLY SANTORO DE BRITO é fonoaudióloga Especialista em Voz, Professora de Técnica Vocal da Escola de Teatro da UNIRIO, Co-autora do livro VOZ EM CENA. Preparadora vocal de atores de teatro, cinema e TV.
ENAMAR RAMOS é pedagoga e Orientadora Educacional, Mestre em Educação Doutora em Teatro Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Execução da Dança, atuando principalmente nos seguintes temas: movimento e voz, dança, pedagogia do corpo, Angel Vianna. Coordena e ministra aulas no Curso de Pós Graduação Lato Sensu Especialização em Teatro Musicado da Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
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Crítica ou críticos: um dilema do teatro
Eberto García Abreu
Tradutor: Almir Ribeiro
Pensemos no teatro como calor e como bondade (Giorgio Strehler)
Quando perguntaram pela primeira vez o que era para mim o teatro, pensei que minhas palavras podiam abarcar os confins cada vez mais distantes desta expressão artística. Não me recordo com precisão minha resposta na ocasião, mas agora sim, tenho muito clara a consciência de que, com o tempo, responder semelhante pergunta se tornou um enigma perigoso. Ao adentrarmos nas complexidades e nas seduções da linguagem teatral, mais inefável ele se revela e mais difícil de se capturar em poucas palavras ele se torna. O mesmo me acontece, de forma natural, com a definição precisa do que é ou deve ser a crítica teatral.
Talvez seja mais viável nos desvencilharmos do que suspeitamos ou estamos convencidos do que não deve ser a crítica, não apenas no âmbito teatral, mas em qualquer universo artístico. Mas, por esse caminho podemos cair em um campo ainda mais improdutivo: padronizar regras, prescrever normas, estabelecer cânones. Para missões semelhantes me declaro totalmente incompetente. Por isso prefiro compartilhar as visões pessoais, mais ou menos certas, demonstradas durante quase duas décadas no exercício do critério, como certezas derivadas de um longo e permanente caminho de aprendizagem e prática do teatro a partir de seu corpo profundo e não a partir do limite que a condição de um espectador atento, avisado, especializado ou não, faz supor. Ainda que todas estas condições, logicamente, façam parte dessa segunda identidade, característica dos indivíduos dedicados, de uma ou outra forma, a oferecer suas opiniões sobre uma peça e desta maneira intervir na prática teatral.
Ao desenvolver a crítica no teatro, o que fazemos nada mais é que simplesmente ler através dos espetáculos, dos espectadores, dos textos dramáticos, da história do teatro, das poéticas e dos livros, e até mesmo de muitas outras fontes, do imaginário subjacente a todo o momento e nas dimensões da teatralidade que a cada um lhe são contemporâneas e, a partir dessa perspectiva, interpretar, reinterpretar e inventar várias noções do teatro no futuro. A crítica acompanha o exercício cotidiano da criação teatral. Deixa sinais de seus passos em uma ou outra direção, mas estes sinais não devem ser vistos como referências inequívocas ou infalíveis. São registros que foram e continuarão sendo resultado dos olhares pessoais daqueles que a partir de diferentes posições, leram, concluíram, instrumentalizaram, descobriram os possíveis alcances das imagens teatrais, não importando seu suporte nem a forma concreta com que são apresentadas ao espectador ou ao leitor.
Alcançada esta primeira etapa de definições acerca da crítica, quero citar meu professor Rine Leal em seu livro indispensável Em Primera persona:
Entre as muitas e variadas definições do homo criticus existe uma que sempre recebeu minha preferência: o crítico é um espectador especializado. Acredito entrever nestas palavras a chave fundamental da razão crítica. Nada de definições doutorais ou proveniente de algum tipo especial de inteligência, mas simplesmente uma condição profissional, uma presença assídua aos espetáculos e, claro, uma paciência jacobina. O crítico, portanto, não nasce espontaneamente, mas é formado com o fórceps da especialização. Como alguém pode se tornar um crítico de teatro? Certamente, e a história tanto cubana quanto universal comprovam que alguém se torna crítico da mesma maneira como qualquer um pode se tornar ator, se assim firmemente decidir... e tiver condições.
O que, então, distingue um espectador comum de um espectador crítico? Na falta da ingenuidade que o seu trabalho supõe, neste segundo olhar (The mind’s eye de que fala Hamlet) que nos faz ver além das aparências da cena, e ao conceituar o teatro como uma situação da cultura e não um entretenimento ou negócio, ainda que possua ambas as coisas. O resto, bem, o resto é conhecimento do teatro, habilidade literária, sensibilidade, inteligência e leitores[1] (LEAL, 1967, p. 11).
O que, então, distingue um espectador comum de um espectador crítico? Na falta da ingenuidade que o seu trabalho supõe, neste segundo olhar (The mind’s eye de que fala Hamlet) que nos faz ver além das aparências da cena, e ao conceituar o teatro como uma situação da cultura e não um entretenimento ou negócio, ainda que possua ambas as coisas. O resto, bem, o resto é conhecimento do teatro, habilidade literária, sensibilidade, inteligência e leitores[1] (LEAL, 1967, p. 11).
Fazer crítica é um ato solitário de ler e assistir teatro e uma forma de participar do discurso construído em uma cena, em um retábulo, no meio de uma praça ou em qualquer outro lugar onde atores e espectadores façam visível o encanto das fabulações que ambos constroem, como representações de outros universos criativos ocultos e pulsantes. Nesse sentido, não penso que a crítica se expresse apenas através das palavras reunidas após o espetáculo, ou em raras ocasiões, antes da estreia, o confronto inevitável com o público. Pensar o teatro na totalidade de suas múltiplas e contrastantes relações é também criticar. Pois a verificação, a avaliação, o confronto de valores, a atestação de perícias técnicas ou desvarios inoportunos que afloram em um ou outro espetáculo e que logo, no dia seguinte, aparecem nas páginas dos jornais, é um feito tão evanescente e efêmero como a própria representação teatral. Estes são sinais de que depois falarão não só do trabalho dos artistas, em última análise sempre mais duradouro do que os testemunhos de seus avaliadores, mas também da visão subjetiva com que essas propostas teatrais foram acolhidas. Não se pode esquecer, portanto, que toda a nossa capacidade para devolver aos criadores e espectadores os registros de suas imagens, são cozinhados sob as mesmas condições históricas e contextuais que definem, sugerem ou indicam uma sensibilidade da época, a partir do qual participamos individual e socialmente, no exercício coletivo do teatro. Talvez por isso, o professor Eric Bentley dizia algo como cada teatro tem a crítica que merece.
Embora a questão não seja de simples merecimentos, muito de correto se encontra sob essas sábias palavras. Não podemos separar a crítica da criação, acima de suas expressões genéricas ou estilísticas, que são e devem ser muito diversas para justamente garantir a possibilidade do diálogo humano que o teatro demanda. Um diálogo que caminha, ou pelo menos deve possuir a capacidade de caminhar, do "aqui e agora" para o "passado" ou para o "futuro", inerente a toda concretização cênica, resultantes da acumulação, da sedimentação, e das aproximações que as imagens teatrais fornecem ao caminho vasto das dessemelhanças poéticas do teatro. Poéticas que não são abstrações ou elucubrações momentâneas dos artistas. Pelo contrário, cresceram a partir dos aportes de cada obra pensada, construída ou projetada para a cena ou a partir dela, sobre a qual o crítico realiza como espectador uma ação especializada, portadora de uma fruição carregada de maiores exigências e rigores. Ao mesmo tempo, mais que um ofício, é o exercício de uma fé, um ato de uma condição profissional. Nestas circunstâncias, o crítico alça o seu espaço natural, sobretudo porque também ele se arrisca neste processo de construção poética, enquanto elabora com suas opiniões, comentários, sugestões, sinalizações, interpretações, leituras em voz alta ou em branco e preto. Ele cria o espaço de suas próprias fabulações teatrais, assumindo assim não o papel passivo de um depositário de imagens que outros lhe sobrepõem, mas sim a atitude criativa, dinâmica e vital característica de todo e qualquer ato de invenção poética. Porque a crítica de teatro, assim como o teatro, também é, ou deveria ser, um ato de invenção poética. Assim acrescenta J. Middleton Murry, citado pelo professor Rine Leal:
O crítico, a menos que se trate dessa coisa estranha chamada crítico técnico, deve ser, até certo ponto, um artista criativo em sua crítica. A primeira parte de seu trabalho é transmitir o efeito, a impressão geral, intelectual e emotiva que lhe deixou o espetáculo que está criticando; sem este fundamento, sua opinião será estéril e inconsistente. Neste aspecto, sua tarefa é rigorosamente análoga à tarefa criativa do escritor (MURRY in LEAL, 1963, p.10).
Da mesma forma, eu comungo com as ideias de Strehler, um homem indispensável ao teatro:
De um modo geral, todos os métodos são válidos. E mesmo os mais distintos personagens da crítica. Todos são viáveis e a sua maneira corretos com a condição que sejam honestos, ainda que cada um prefira um tipo de crítica mais que o outro. Eu, por exemplo, estimo pouco a crítica distraída, em parte humorística, que deprecia o evento teatral, a que brinca com ele. Prefiro a crítica poética, um tipo de crítica de emoção controlada que devolve um tremor ao evento teatral. Mas eu penso que um tipo de crítica não deveria poder existir: a crítica do desamor, a crítica da falta de responsabilidade (STREHLER, 1987)
Crítica poética ou poética crítica? Não são dualidades categóricas ou dicotomias. Não são alternativas. São fronteiras nas quais se encontram as encruzilhadas de nossos caminhos no teatro. Assim como deve acontecer com artistas e espectadores que não conseguem romper com o misterioso enfeitiçamento da teatralidade, para sorte de todos os que diligentemente insistimos em seguir fazendo presente esta arte milenar e distante. Por isso, precisamente, que não haja uma CRÍTICA TEATRAL, mas sim críticas teatrais e que existam críticos e críticos, unidos por uma condição equivalente; mas não aprisionados sob um manto igualitário que uniformiza os olhares e as opiniões, como tampouco ocorre com a linguagem teatral.
Nestes tempos que correm, assim como em tempos antigos, acredito que, para os críticos, quero dizer, para os profissionais especializados e permanentes do exercício do critério, transcendente à valoração ocasional ou a indiferença prepotente frente a toda e qualquer proposta, não nos resta muita margem para exercer plenamente a nossa profissão, a não ser cultivando nosso ofício o mais perto possível do ato de criação. Uno-me assim às inúmeras experiências legitimadoras da crítica participante, aquela que é gerada no interior do processo criativo, aquela que se escreve no palco e no corpo dos atores, incorporando as mesmas tensões geradas pelas expectativas ante a intervenção iminente do olhar dos espectadores. Isso não significa o estabelecimento de um falso compromisso ou a inibição do juízo crítico para operar sobre o discurso teatral desde a área criativa a qual o crítico deve corresponder em circunstâncias afins a esta perspectiva de trabalho. Nada mais longe dessa ideia de banalização de um ofício tão antigo, respeitado, injuriado, ignorado ou aclamado. Porque a verdade é que todas estas doenças permeiam a abordagem da gestão dos critérios, quando se a realiza sob imperativos circunstanciais, imersos nas correntes movediças da moda e das tendências. Quando não radicalmente inserida no tecido cultural do teatro e a partir do qual se valida como discurso estético e como discurso paralelo, simultâneo, interatuante com o eixo central e protagonista do teatro: a criação artística.
Na arte, como na literatura, uma das funções da crítica é precisamente decifrar, a partir de uma determinada perspectiva, as chaves dos significados que conduzam a uma proposta de leitura. Este processo implica no estabelecimento de nexos profundos entre a obra e a época que a viu surgir, a análise de seus valores e uma sensibilidade apurada para o seu fruir. Porque a relação que a obra de arte estabelece com o seu público não é unívoca. Quem vai até ela, carrega consigo sua própria experiência, com a história das lutas e das necessidades de seu tempo, de sua era (POGOLOTTI, 1983, p. 17)
A crítica, portanto, é um exercício cultural libertador. Isto quer dizer que supõe, implica e exige, além do ofício necessário para estabelecer a comunicação e a expressão das ideias através de diferentes meios, não apenas aqueles óbvios das publicações, um universo de amplas referências para estabelecer de maneira adequada as opiniões, as sugestões, e inclusive afirmar suas próprias visões criativas derivadas de seu imaginário subjetivo. Através do seu trabalho, o crítico pode conseguir iluminar as áreas obscuras de uma obra. Colocar luz onde outros veem apenas manchas ou sombras indecifráveis. Assim ele se aventura desde sua ação individual e solitária, repito, com todo seu conhecimento, paixão e urgência em reverenciar o teatro, em busca de caminhos alternativos para encurtar a distância entre criadores e espectadores. Para tais tarefas, o crítico, como o artista, deve ser livre para escolher para onde dirigir seus passos e estabelecer uma interação com as diferentes áreas operativas do teatro.
Enquanto público especializado, o crítico toma parte do processo de criação artística. (...) O espectador fecha o processo de criação que começa na solidão do dramaturgo, e o crítico, público público, é o seu representante ideal. Pela mesma razão que uma obra teatral não existe sem o seu público, tampouco poderá existir sem seu crítico[2] (LEAL, 1967).
Desde os mais diversos púlpitos acadêmicos e educacionais, desde as imprescindíveis atividades editoriais, desde os complexos meandros da gestão e da produção teatral, em meio às respostas imediatas que a imprensa escrita ou audiovisual demanda, ou no ofício do dramaturgo que anda a caça das imagens latentes nos textos e nos palcos, reunindo autores, personagens, histórias, temas, processos e métodos de criação, atores, diretores e espectadores; entre tão rica encruzilhada de opções e oportunidades, o crítico abre caminho para o seu trabalho, companheiro inseparável do teatro.
É verdade que as palavras ou ideias que descansam nas páginas de um livro ou uma revista são menos perecíveis, graças a elas podemos encontrar os ecos da história e colocar em primeiro plano os grandes problemas que alimentam as reflexões teóricas instauradas desde a criação, a circulação e a recepção do teatro em suas várias eras. Mas essa não é a única opção possível. Como estações, o crítico pode e deve percorrê-las, sem nunca renunciar ao caráter transitório e comunicativo de sua ação. Assim como os espetáculos e as representações, também a crítica deve se contaminar com a dimensão efêmera, ou seja, temporária, de qualquer obra de abordagem poética presente no mundo teatral do qual fazemos parte.
Talvez por estas razões, com o tempo, também me veio ao corpo uma maior tranquilidade para aceitar o fato indiscutível, pelo menos para mim, que o teatro existe para além das nossas geografias e tempos imediatos. Isso se mostra apenas nas oportunidades que o acaso nos propõe, mesmo em nossa própria cidade ou em nosso ambiente. Embora seja necessário manter vivo o interesse em acessar a todos os gestos que o teatro nos oferece, não podemos pretender abarcar a totalidade do teatro. Cada um de nós é definido em relação às obras que nos pertencem. Quando conhecemos o teatro dos colegas de profissão de outras regiões, imediatamente dirigimos o olhar em direção a nosso centro criativo, não porque acreditamos que a nossa aldeia seja o mundo, como muito oportunamente advertiu José Martí em seu ensaio Nuestra América, mas porque submetemos nossas próprias regras de valor e percepção a verdadeiros enfrentamentos e confrontos. Assim crescemos, mas não permutamos nossos pontos de vista.
Daí que o teatro latino-americano ou de qualquer outra região, também pode chegar a nos pertencer, promovendo o intercâmbio com outros homens e mulheres, e isso pode ser possível acima de qualquer história ou formulação. Isso é possível por um gesto de convocação peregrina, duradoura, revolucionária e pacífica do teatro em todas as latitudes espaciais e históricas. Nesta força se inspirou meus maiores projetos críticos ao longo de minha vida no teatro: a investigação para a cena e a partir dela, a prática apaixonada da docência, o trabalho de dramaturgista realizado sistematicamente com vários grupos de teatro e dança e em obras para a televisão, cinema e rádio, bem como a fundação e desenvolvimento do Taller Itinerante de La Crítica, um espaço plural de opiniões, que durante quase cinco anos permitiu a mim e a muitos críticos e artistas cubanos, partilhar nossas esperanças e nossos critérios in loco, ou seja, junto aos artistas, durante os ensaios ou imediatamente após uma estreia, durante a escrita das peças ou em pleno ato de indagação ou de gestação de um espetáculo ou uma temporada. Um intercâmbio arriscado e intangível, convertido em patrimônio vivencial protagonizado pelos artistas, destinatários principais de meu trabalho como crítico, enquanto eles, com as suas imagens me aproximam também destes homens e mulheres que nas salas com poltronas ou nas praças ou nas ruas me acompanham no difícil papel de espectador, tanto nos cenários habituais de minha ilha a qual o teatro rodeia, como água, por todos os lados, ou em cenários ocasionais aos quais tenho ido nos países de nossa América, na distante Ásia e na Europa vetusta e recorrente.
Espaços dessemelhantes que a memória guiada pelo acaso se ocupa de compor como se fosse um estranho labirinto povoado por Ícaros e Dédalos, Ágaves, Teseus, Dionisos, Luz Marinas, Hamlets, Tavitos, Ninas, Santa Camilas, Pasolinis, Galápagos, Zuccos, Carlos Perez Peña e suas vozes, Vicente Revuelta e Galileus, Brecht e Raquel Revuelta com a Mãe Coragem gritando com paixão, Flora Lauten e os Buendía, Rine Leal, onde quer que esteja, Peter Brook no porão da casa de Stanislavski, Bulgakov, Goncharov e Maria Elena Ortega e José Milián colocando-me de frente com o Realismo em um frio inverno moscovita antes da queda do muro de Berlim, o silêncio de Maeterlinck e os modelos atuacionais de Pavis e Gloria María Martínez com Strindberg e o Fausto, o Teatro Escambray, meu teatro, e Graziella Pogolotti com suas lições de humanismo e cultura permeadas pelo teatro, e Roberta Carrieri, Julia Varley, Eugenio Barba e os Odins, e Patricia Alves que me obriga a contar mesmo os minuto menos importantes e Santiago Garcia e Patricia Ariza com todo o Teatro La Candelaria fazendo En la Raya, El Paso, El Quijote..., e por lá o Ictus, do Chile, o antigo Rajatablas, Denise Stocklos, Darío Fo, El Galpón de Atahualpa, Don Atahualpa, com ele, e Yuyachkani, Miguel Rubio e Teresa Rali, o Teatro Galpão de Belo Horizonte e Sara Baras fazendo Mariana Pineda e Boris Villar e Maribel Barrios com seu pequeno Antoine, me dizendo Adeus, a Deus, Deus... e meus colegas de aulas e de teatro, e meus alunos, os daqui e os que encontrei nos caminhos teatrais de Deus. No interior desse labirinto nascem todos os dias meus deslumbramentos pelo teatro e minha fé como crítico.
Eberto Garcia Abreu é professor titular de História e Teoria do Teatro no Instituto Superior de Arte de Cuba.
Notas
- O grifo é meu, para chamar a atenção para a importante e necessária presença de interlocutores que ampliem, gerem e fundamentem o exercício do diálogo crítico a partir da diversidade de opiniões a respeitar.^
- Reproduzo literalmente esta citação do prefácio de Rine Leal a seu livro En Primera Persona, citado anteriormente, pela precisão de sua conceituação em relação a um teatro que assume como prática habitual a encenação a partir da existência prévia do texto dramático, eixo "principal" que articula todo o processo de montagem e realização do espetáculo. A citação, de 1967, não contém pontos de vista, obviamente mais amplos e contemporâneos que o próprio Rine veio a compreender e ensinar a todos os que tiveram a sorte de aprender ao seu lado.^
Referências Bibliográficas
- LEAL, Rine. En Primera Persona. Havana: Instituto cubano del libro, 1967.
- MURRY, J. Middleton. El estilo literário. Cidade do México, 1951, in LEAL, Rine. ¿Qué es una antología? Prólogo a Teatro Cubano en un Acto. Ediciones R. La Habana, 1963, p10
- STREHLER, Giorgio. Epístola moral a los críticos in Revista Espacio de Crítica e Investigación Teatral. Año 2. No. 3 Dezembro, 1987
- POGOLOTTI Graziella, Palabras preliminares in Oficio de leer. Havana: ed. Letras Cubanas, 1983.
A encenação contemporânea
Origens, Tendências, Perspectivas
Patrice Pavis |
O QUE É A ENCENAÇÃO? Qual o seu papel na constituição da obra teatral que chamamos de espetáculo? Ele é apenas o da explicitação e/ou harmonização dos elementos contidos na peça ou no que quer que seja que sirva de base a uma representação cênica? Um simples trabalho externo de correção ou de crítica do gesto, da voz, o entendimento, da incorporação ou interpretação do ator? Ou será tudo isso em conjunto, com uma função criativa e metodológica na composição síntese do encargo de cada um dos actantes que são postos em cena e que se integram segundo as concepções, o gosto, as tendências de quem exerce esta incumbência, isto é, o encenador? Em outros termos, será ele o autor de uma obra que recebe o nome de representação e/ou espetáculo de teatro? Em A Encenação Contemporânea, um dos principais expoentes atuais da escola francesa de estudos da arte dramática, Patrice Pavis, reúne e focaliza, em todas as especificidades, as questões que englobam esse temário. Expondo cada um dos itens de forma objetiva e ao mesmo tempo crítica, desenvolve a sua análise a partir de um acompanhamento completo de evolução da mise en scène, seguida de uma sondagem até sua extensão extrema na leitura e na improvisação cênicas, o que lhe permite uma abordagem das apresentações encenadas e performáticas. Pontuando o espectro de sua inspeção nesse campo em geral e no espetáculo assistido em particular, mapeia as tendências da cenografia e as versões dadas à produção textual, sobretudo na França, o problema do ritual e da encenação no palco, bem como os cruzamentos entre ritual e encenação, antropologia e cultura, mídia e teatro no processo da construção, desconstrução e re-construção cênicas na modernidade e na chamada pós-modernidade, com sua repercussão no teatro do gesto e do ator e seus efeitos sobre a interpretação dos clássicos. Mas esta verdadeira suma das artes da direção teatral não se encerra na rica objetivação e definição conceitual, técnica e estética, pois Patrice Pavis conclui este amplo desenho com um balanço da encenação e uma indagação sobre o rumo que ela vai tomar no seu processo de existência e renovação como arte. J. GUINSBURG |
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
(UNIRIO/PROEXC - PROJETO CULTURAL) E
SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RIO DE
JANEIRO (SPRJ)
Caríssimos,
O FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA, no dia 25 de
setembro, às 18h, exibirá o premiado filme holandês: A EXCÊNTRICA
FAMÍLIA DE ANTÔNIA (Antônia line’s, 1996, 115 min.),
dirigido e roteirizado por Marieen Gorris. Em uma pequena vila holandesa,
Antônia revê as lembranças de sua vida e os curiosos personagens com quem
conviveu. Em um tom de parábola, após o fim da Segunda Guerra Mundial, a
independente mulher volta à cidade natal acompanhada da filha. Assim tem início
uma saga familiar que atravessa gerações. Um filme inquietante que, por certo,
ensejará um debate e uma troca de ideias estimulantes.
Contando sempre com a divulgação e com os nossos agradecimentos pela
presença, recebam um grande abraço.
Ana Lúcia, Neilton e Zusman.
SERVIÇO:
FILME: A EXCÊNTRICA FAMÍLIA DE ANTÔNIA, 1996, 115 min.
ANÁLISE CULTURAL: PROF. DRA. ANA LÚCIA DE CASTRO
ANÁLISES PSICANALÍTCAS: DR. NEILTON SILVA E DR. WALDEMAR ZUSMAN
DATA: 25 DE SETEMBRO DE 2015
HORÁRIO: FILME: 18h; ANÁLISE E DEBATE: 20h às 22h.
LOCAL: SALA VERA JANACÓPULOS – UNIRIO
ENDEREÇO: AV. PASTEUR, 296.
ENTRADA FRANCA
NOTA: Quem se interessar em adquirir o livro: Fórum de Psicanálise e
Cinema: 20 análises culturais e psicanalíticas, de Ana Lúcia de
Castro e Neilton Silva, ele se encontra à venda pelo site - www.travessa.com.br –
ou pela editora: www.letracapital.com.br,
assim como nos dias do FÓRUM.
Igualmente, o livro do Dr. Waldemar Zusman: Poemas & Textos
de um Psicanalista: rimas, risos & reflexões, poderá ser adquirido
no Fórum.
terça-feira, 15 de setembro de 2015
Teatro/CRÍTICA
"Por amor ao mundo - um encontro com Hanna Arendt"
........................................................
Ótimo texto em bela versão
Lionel Fischer
Pelo menos três homens marcaram profundamente a vida da pensadora alemã de origem judaica Hanna Arendt (1906-1975): o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), que foi seu professor e seu amante; Heinrich Blucher (1899-1970), com quem esteve casada por 30 anos; e Adolf Eichmann (1906-1962), carrasco nazista executado em Israel. E os três ocupam significativo espaço em "Por amor ao mundo - um encontro com Hanna Arendt", em cartaz no Teatro I do CCBB. Marcia Zanelatto responde pela dramaturgia e Isaac Bernat pela direção, estando o elenco formado por Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robin.
Martin Heidegger foi certamente um dos principais mentores de Hanna, além de, como dito no texto, possuir mãos capazes de realizar prodígios - lamentavelmente tais prodígios não são explicitados. Heinrich Blucher foi o grande companheiro e a correspondência entre ambos é deliciosa. Finalmente, Adolf Eichmann. Hanna Arendt acompanhou seu julgamento para o jornal New Yorker e provavelmente imaginou que se depararia com uma besta assassina. No entanto, concluiu que o homem em questão era muito menos significativo do que o sistema que o gerara, e o que estaria em causa era a banalidade do mal - foi o bastante para ser execrada pela comunidade judaica, que reagiu como se ela estivesse absolvendo o réu por sua monstruosidade.
Trata-se, sem dúvida, de uma questão crucial: o indivíduo é sempre responsável por seus atos? Ou seria lícito admitir que, em determinadas circunstâncias - históricas, sociais, econômicas etc. - ele poderia fazer escolhas que jamais faria desde que inexistissem essas tais circunstâncias? Recentemente, como todos sabemos, um trem no Rio de Janeiro passou lentamente por cima do cadáver de um homem. E isso nos horrorizou. Mas a quem deveríamos dirigir nossa indignação? Em princípio, ao dito maquinista, que obviamente poderia ter freado.
No entanto, ele alegou apenas ter cumprido uma determinação superior, exatamente como fez Eichmann!?. Ou seja: no primeiro caso, a tal determinação superior preconiza (ao que tudo indica) que o fluxo de uma composição ferroviária não deve ser interrompido, exista ou não um cadáver sobre a linha férrea; no segundo, considera inadiável e imprescindível a eliminação de todos aqueles que supostamente possam constituir algum entrave à implantação de um regime totalitário.
Então, cabe a pergunta: existiria alguma diferença essencial entre a atitude tomada pelo maquinista e a adotada pelo carrasco nazista, se conseguimos esquecer por um momento que o primeiro apenas passou por cima de um cadáver e o segundo gerou milhares? Em minha opinião, nenhuma, embora entenda perfeitamente o que Hanna Arendt sustenta - ainda que ela, nunca é demais recordar, e como é dito na peça, jamais tenha defendido a absolvição de Eichmann e proposto a condenação do sistema que o gerou, o que, convenhamos, haveria de ser um tanto problemático...
Mas voltemos à peça e ao espetáculo, com um pedido explícito de desculpas pela um tanto longa (e não sei se pertinente) digressão. Marcia Zanelatto escreveu um ótimo texto, sem nenhuma preocupação cronológica, e que faculta ao espectador uma visão abrangente da vida e do pensamento da importantíssima pensadora, materializando tanto o seu humor quanto a sua veemente indignação diante de alguns fatos. E tal material recebeu excelente versão cênica de Isaac Bernat. Impondo à montagem uma dinâmica precisa, limpa e vigorosa, e muitas vezes impregnada de grande lirismo, o encenador consegue valorizar ao máximo o ótimo texto de Zanelatto.
Quanto ao elenco, Kelzy Ecard (Hanna Arendt) exibe uma vez mais seu enorme talento. Trata-se de uma atriz que, dentre seus muitos atributos, possui o de jamais desperdiçar uma frase, o alcance de um gesto ou a expressividade de uma pausa. Tudo no trabalho desta atriz é bem acabado e consequente, o que a torna no palco uma presença sempre fascinante e poderosa. Carolina Ferman faz muito bem suas duas personagens, Mary McCarthy - escritora americana muito amiga de Hanna - e uma jovem meio hiponga que se encontra com a filósofa em um trem. Nesta última cena, por sinal, Ferman demonstra porque é uma das melhores atrizes de sua geração, conseguindo passar de uma composição propositadamente desleixada para uma outra, tensa e indignada, quando o diálogo assim o exige.
Vivendo vários personagens, inclusive Heidegger e Blucher, Michel Robim convence em todos eles, cabendo destacar as passagens em que, na pele de um homem indecifrável, executa belíssimas coreografias. Na última, por sinal, e que encerra o espetáculo, esse homem parece querer retirar de si o melhor que possui e em seguida faz essa oferta ao público; no lado oposto do palco, Kelzy e Carolina estão de mãos dadas, após suas personagens se entenderem, e contemplam a plateia com vigorosa serenidade. Uma cena belíssima.
Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos neta mais do que oportuna empreitada teatral - Doris Rolemberg (cenografia), Aurélio de Simoni (iluminação), Desirée Bastos (figurinos), Alfredo Del-Penho (direção musical) e Marcelle Sampaio (direção de movimento).
POR AMOR AO MUNDO - UM ENCONTRO COM HANNA ARENDT - Dramaturgia de Marcia Zanelatto. Direção de Isaac Bernat. Com Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robim. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.
"Por amor ao mundo - um encontro com Hanna Arendt"
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Ótimo texto em bela versão
Lionel Fischer
Pelo menos três homens marcaram profundamente a vida da pensadora alemã de origem judaica Hanna Arendt (1906-1975): o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), que foi seu professor e seu amante; Heinrich Blucher (1899-1970), com quem esteve casada por 30 anos; e Adolf Eichmann (1906-1962), carrasco nazista executado em Israel. E os três ocupam significativo espaço em "Por amor ao mundo - um encontro com Hanna Arendt", em cartaz no Teatro I do CCBB. Marcia Zanelatto responde pela dramaturgia e Isaac Bernat pela direção, estando o elenco formado por Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robin.
Martin Heidegger foi certamente um dos principais mentores de Hanna, além de, como dito no texto, possuir mãos capazes de realizar prodígios - lamentavelmente tais prodígios não são explicitados. Heinrich Blucher foi o grande companheiro e a correspondência entre ambos é deliciosa. Finalmente, Adolf Eichmann. Hanna Arendt acompanhou seu julgamento para o jornal New Yorker e provavelmente imaginou que se depararia com uma besta assassina. No entanto, concluiu que o homem em questão era muito menos significativo do que o sistema que o gerara, e o que estaria em causa era a banalidade do mal - foi o bastante para ser execrada pela comunidade judaica, que reagiu como se ela estivesse absolvendo o réu por sua monstruosidade.
Trata-se, sem dúvida, de uma questão crucial: o indivíduo é sempre responsável por seus atos? Ou seria lícito admitir que, em determinadas circunstâncias - históricas, sociais, econômicas etc. - ele poderia fazer escolhas que jamais faria desde que inexistissem essas tais circunstâncias? Recentemente, como todos sabemos, um trem no Rio de Janeiro passou lentamente por cima do cadáver de um homem. E isso nos horrorizou. Mas a quem deveríamos dirigir nossa indignação? Em princípio, ao dito maquinista, que obviamente poderia ter freado.
No entanto, ele alegou apenas ter cumprido uma determinação superior, exatamente como fez Eichmann!?. Ou seja: no primeiro caso, a tal determinação superior preconiza (ao que tudo indica) que o fluxo de uma composição ferroviária não deve ser interrompido, exista ou não um cadáver sobre a linha férrea; no segundo, considera inadiável e imprescindível a eliminação de todos aqueles que supostamente possam constituir algum entrave à implantação de um regime totalitário.
Então, cabe a pergunta: existiria alguma diferença essencial entre a atitude tomada pelo maquinista e a adotada pelo carrasco nazista, se conseguimos esquecer por um momento que o primeiro apenas passou por cima de um cadáver e o segundo gerou milhares? Em minha opinião, nenhuma, embora entenda perfeitamente o que Hanna Arendt sustenta - ainda que ela, nunca é demais recordar, e como é dito na peça, jamais tenha defendido a absolvição de Eichmann e proposto a condenação do sistema que o gerou, o que, convenhamos, haveria de ser um tanto problemático...
Mas voltemos à peça e ao espetáculo, com um pedido explícito de desculpas pela um tanto longa (e não sei se pertinente) digressão. Marcia Zanelatto escreveu um ótimo texto, sem nenhuma preocupação cronológica, e que faculta ao espectador uma visão abrangente da vida e do pensamento da importantíssima pensadora, materializando tanto o seu humor quanto a sua veemente indignação diante de alguns fatos. E tal material recebeu excelente versão cênica de Isaac Bernat. Impondo à montagem uma dinâmica precisa, limpa e vigorosa, e muitas vezes impregnada de grande lirismo, o encenador consegue valorizar ao máximo o ótimo texto de Zanelatto.
Quanto ao elenco, Kelzy Ecard (Hanna Arendt) exibe uma vez mais seu enorme talento. Trata-se de uma atriz que, dentre seus muitos atributos, possui o de jamais desperdiçar uma frase, o alcance de um gesto ou a expressividade de uma pausa. Tudo no trabalho desta atriz é bem acabado e consequente, o que a torna no palco uma presença sempre fascinante e poderosa. Carolina Ferman faz muito bem suas duas personagens, Mary McCarthy - escritora americana muito amiga de Hanna - e uma jovem meio hiponga que se encontra com a filósofa em um trem. Nesta última cena, por sinal, Ferman demonstra porque é uma das melhores atrizes de sua geração, conseguindo passar de uma composição propositadamente desleixada para uma outra, tensa e indignada, quando o diálogo assim o exige.
Vivendo vários personagens, inclusive Heidegger e Blucher, Michel Robim convence em todos eles, cabendo destacar as passagens em que, na pele de um homem indecifrável, executa belíssimas coreografias. Na última, por sinal, e que encerra o espetáculo, esse homem parece querer retirar de si o melhor que possui e em seguida faz essa oferta ao público; no lado oposto do palco, Kelzy e Carolina estão de mãos dadas, após suas personagens se entenderem, e contemplam a plateia com vigorosa serenidade. Uma cena belíssima.
Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos neta mais do que oportuna empreitada teatral - Doris Rolemberg (cenografia), Aurélio de Simoni (iluminação), Desirée Bastos (figurinos), Alfredo Del-Penho (direção musical) e Marcelle Sampaio (direção de movimento).
POR AMOR AO MUNDO - UM ENCONTRO COM HANNA ARENDT - Dramaturgia de Marcia Zanelatto. Direção de Isaac Bernat. Com Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robim. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
Teatro/CRÍTICA
"As meninas"
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Emocionada e emocionante reflexão
Lionel Fischer
"No auge da ditadura militar, três jovens universitárias convivem em um pensionato paulistano de freiras. É nele que elas encaram o início da vida adulta, cada uma numa busca profunda pela sua própria identidade, vivendo uma história única de encontros e desencontros numa das épocas mais conturbadas do país. No palco, as três vozes se misturam para dar vida ao inquietante romance As meninas".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "As meninas", adaptação teatral de Maria Adelaide Amaral (também responsável pela dramaturgia) do romance homônimo de Lygia Fagundes Telles. Em cartaz no Teatro Poeira, a montagem leva a assinatura de Yara de Novaes, estando o elenco formado por Clarissa Rockenbach, Silvia Lourenço, Luciana Brites, Clarisse Abujamra, Sandra Pêra e Daniel Alvim.
Romance deslumbrante (Prêmio Jabuti de 1974), "As meninas" tem como foco central as relações entre Lorena, Ana Clara e Lia. A primeira, filha de família burguesa, é sonhadora, virgem e culta; perdeu tragicamente um irmão, o que levou o pai (já falecido) a um sanatório e sua mãe a uma vida fútil; é apaixonada por um homem mais velho e casado, de quem vive aguardando um telefonema. Ana Clara é modelo, oscila entre o noivo rico e o amante traficante, é viciada em drogas e foi abusada sexualmente na infância - afora carregar o fardo de saber que sua mãe era prostituta. Lia vai para São Paulo estudar Ciências Sociais fugindo da superproteção da mãe e do passado sombrio do pai, ex-militar nazista; durante seu curso, envolve-se na militância política contra a ditadura.
Estamos, portanto, diante de três mulheres com personalidades, histórias de vida e aspirações totalmente diferentes. E a engenhosa narrativa do romance, com foco na primeira pessoa, desloca-se constantemente para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, se apresentam umas às outras e ao leitor, afora refletirem sobre si mesmas e sobre as demais. Ou seja: trata-se de uma estrutura bastante complexa e, ao menos teoricamente, difícil de ser transposta para o palco.
No entanto, Maria Adelaide Amaral realizou um trabalho brilhante, pois conservou o essencial do romance e conseguiu convertê-lo em material dramatúrgico de primeira grandeza. Assim, o espectador tem acesso a uma emocionada e emocionante reflexão sobre alguns dos mais relevantes aspectos da natureza humana, assim como sobre um dos períodos mais violentos e sombrios da história recente do país.
De posse de material tão rico e instigante, em nada me surpreende que a excelente atriz Yara de Novaes tenha conseguido impor à cena uma dinâmica à altura da adaptação de Maria Adelaide Amaral. Valendo-se de soluções criativas e imprevistas, e evidenciando notável domínio dos tempos rítmicos, a encenadora exibe o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações do elenco.
Na pele de Lia, a idealista guerrilheira, Silvia Lourenço consegue valorizar ao máximo uma personagem não tão interessante quanto as demais, posto que isenta de maiores nuances. Clarissa Rockenbach (Lorena) convence plenamente na pele da jovem sempre generosa, romântica e possuidora de delicioso senso de humor. Luciana Brites materializa, com visceral capacidade de entrega, a trágica personalidade da modelo que acaba consumida pelas drogas. Daniel Alvim está excelente vivendo o exasperado e sonhador traficante Max, conseguindo diferenciá-lo por completo de Guga, jovem que adere ao movimento Paz e Amor. E também convence em OFF vivendo M.N., o mesmo aplicando-se a Eloísa Elena (Secretária).
Com relação a Sandra Pêra (Irmã Priscila), a atriz realiza aqui um dos melhores trabalhos de sua carreira, conseguindo extrair o máximo de uma personalidade perplexa com a evolução dos costumes e cuja hilária histeria a leva a ambicionar converter-se em mártir na África. No tocante a Clarisse Abujamra (mãe de Lorena, na peça Mãezinha), estamos diante de um excepcional trabalho de atriz, tanto do ponto de vista vocal quanto corporal - é impressionante a capacidade da intérprete de valorizar todas as suas falas, assim como de cercá-las de um universo gestual de incrível expressividade. Sem dúvida, uma das performances mais marcantes da atual temporada carioca.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a maravilhosa contribuição de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - André Cortez (cenário e figurinos), Juliana Santos (iluminação), Dr Morris (trilha sonora), Miriam Rinaldi (preparação corporal), Daniel Maia (preparação e arranjo vocal) e Bruna Pires (visagismo).
AS MENINAS - Texto de Lygia Fagundes Telles. Adaptação e dramaturgia de Maria Adelaide Amaral. Direção e concepção de Yara de Novaes. Com Clarissa Rockenbach, Luciana Brites, Silvia Lourenço, Daniel Alvim, Clarisse Abujamra e Sandra Pêra. Teatro Poeira. Terças e quartas, 21h.
"As meninas"
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Emocionada e emocionante reflexão
Lionel Fischer
"No auge da ditadura militar, três jovens universitárias convivem em um pensionato paulistano de freiras. É nele que elas encaram o início da vida adulta, cada uma numa busca profunda pela sua própria identidade, vivendo uma história única de encontros e desencontros numa das épocas mais conturbadas do país. No palco, as três vozes se misturam para dar vida ao inquietante romance As meninas".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "As meninas", adaptação teatral de Maria Adelaide Amaral (também responsável pela dramaturgia) do romance homônimo de Lygia Fagundes Telles. Em cartaz no Teatro Poeira, a montagem leva a assinatura de Yara de Novaes, estando o elenco formado por Clarissa Rockenbach, Silvia Lourenço, Luciana Brites, Clarisse Abujamra, Sandra Pêra e Daniel Alvim.
Romance deslumbrante (Prêmio Jabuti de 1974), "As meninas" tem como foco central as relações entre Lorena, Ana Clara e Lia. A primeira, filha de família burguesa, é sonhadora, virgem e culta; perdeu tragicamente um irmão, o que levou o pai (já falecido) a um sanatório e sua mãe a uma vida fútil; é apaixonada por um homem mais velho e casado, de quem vive aguardando um telefonema. Ana Clara é modelo, oscila entre o noivo rico e o amante traficante, é viciada em drogas e foi abusada sexualmente na infância - afora carregar o fardo de saber que sua mãe era prostituta. Lia vai para São Paulo estudar Ciências Sociais fugindo da superproteção da mãe e do passado sombrio do pai, ex-militar nazista; durante seu curso, envolve-se na militância política contra a ditadura.
Estamos, portanto, diante de três mulheres com personalidades, histórias de vida e aspirações totalmente diferentes. E a engenhosa narrativa do romance, com foco na primeira pessoa, desloca-se constantemente para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, se apresentam umas às outras e ao leitor, afora refletirem sobre si mesmas e sobre as demais. Ou seja: trata-se de uma estrutura bastante complexa e, ao menos teoricamente, difícil de ser transposta para o palco.
No entanto, Maria Adelaide Amaral realizou um trabalho brilhante, pois conservou o essencial do romance e conseguiu convertê-lo em material dramatúrgico de primeira grandeza. Assim, o espectador tem acesso a uma emocionada e emocionante reflexão sobre alguns dos mais relevantes aspectos da natureza humana, assim como sobre um dos períodos mais violentos e sombrios da história recente do país.
De posse de material tão rico e instigante, em nada me surpreende que a excelente atriz Yara de Novaes tenha conseguido impor à cena uma dinâmica à altura da adaptação de Maria Adelaide Amaral. Valendo-se de soluções criativas e imprevistas, e evidenciando notável domínio dos tempos rítmicos, a encenadora exibe o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações do elenco.
Na pele de Lia, a idealista guerrilheira, Silvia Lourenço consegue valorizar ao máximo uma personagem não tão interessante quanto as demais, posto que isenta de maiores nuances. Clarissa Rockenbach (Lorena) convence plenamente na pele da jovem sempre generosa, romântica e possuidora de delicioso senso de humor. Luciana Brites materializa, com visceral capacidade de entrega, a trágica personalidade da modelo que acaba consumida pelas drogas. Daniel Alvim está excelente vivendo o exasperado e sonhador traficante Max, conseguindo diferenciá-lo por completo de Guga, jovem que adere ao movimento Paz e Amor. E também convence em OFF vivendo M.N., o mesmo aplicando-se a Eloísa Elena (Secretária).
Com relação a Sandra Pêra (Irmã Priscila), a atriz realiza aqui um dos melhores trabalhos de sua carreira, conseguindo extrair o máximo de uma personalidade perplexa com a evolução dos costumes e cuja hilária histeria a leva a ambicionar converter-se em mártir na África. No tocante a Clarisse Abujamra (mãe de Lorena, na peça Mãezinha), estamos diante de um excepcional trabalho de atriz, tanto do ponto de vista vocal quanto corporal - é impressionante a capacidade da intérprete de valorizar todas as suas falas, assim como de cercá-las de um universo gestual de incrível expressividade. Sem dúvida, uma das performances mais marcantes da atual temporada carioca.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a maravilhosa contribuição de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - André Cortez (cenário e figurinos), Juliana Santos (iluminação), Dr Morris (trilha sonora), Miriam Rinaldi (preparação corporal), Daniel Maia (preparação e arranjo vocal) e Bruna Pires (visagismo).
AS MENINAS - Texto de Lygia Fagundes Telles. Adaptação e dramaturgia de Maria Adelaide Amaral. Direção e concepção de Yara de Novaes. Com Clarissa Rockenbach, Luciana Brites, Silvia Lourenço, Daniel Alvim, Clarisse Abujamra e Sandra Pêra. Teatro Poeira. Terças e quartas, 21h.