Teatro/CRÍTICA
"A cozinha"
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Segredo revelado gera explosivos conflitos
Lionel Fischer
Estamos todos, atores e espectadores (20 por sessão), em uma cozinha real, situada em uma casa real. Sentada à mesa, Letícia observa as idas e vindas de Miguel, que veste um avental. Tudo leva a crer que ele almeja ultimar os preparativos para uma refeição. Finalmente, começa a descascar uma cebola. O silêncio é rompido, e ficamos sabendo que Letícia e Miguel são namorados, que o namoro não vai bem e que Miguel aguarda a chegada de Rodrigo, seu amigo de infância, que finalmente surge com a namorada Carla, que já se considera meio casada.
Miguel desconhecia esse namoro, da mesma forma que Rodrigo ignorava a relação do amigo. A partir daí, conversas banais são inicialmente trocadas entre os quatro. No entanto, o clima vai aos poucos se tornando menos formal, o que leva Rodrigo a empreender inúmeras tentativas de ir embora. Mas jamais o deixam concretizar seu desejo, cuja motivação, até este momento, não fica clara. A tensão aumenta progressivamente e acaba por enveredar para um contexto de extrema violência, após vir à tona uma surpreendente revelação.
Eis, em resumo, o enredo de "A cozinha", de autoria de Felipe Haiut, em cartaz no Cazebre, em Humaitá. Gunnar Borges assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Felipe Haiut (Miguel), Julia Stockler (Letícia), Saulo Arcoverde (Rodrigo) e Catharina Caiado (Carla).
Em termos de contexto e estrutura, "A cozinha" exibe algum parentesco com muitas obras, sendo a mais notável "Quem tem medo de Virgínia Woolf?", de Edward Albee, que virou filme de enorme sucesso com direção de Mike Nichols e elenco formado por Elizabeth Taylor, Richard Burtom, George Segal e Sandy Danis.
Embora na peça de Albee os personagens sejam mais velhos, estejam embriagados e os principais conflitos sejam explicitados a partir do momento em que um dos personagens propõe uma espécie de "jogo da verdade", com o intuito de induzir os demais a revelarem detalhes de natureza íntima, aqui não é o excesso de bebida que deflagra nada, mas a insistência de Miguel em relembrar sua amizade de infância com Rodrigo. Mas nada sugere que as relações entre os quatro personagens irá descambar para um contexto de extrema violência, como já mencionado.
Neste sentido, o texto de Felipe Haiut exibe muitos méritos, pois a tensão vai sendo progressivamente acentuada sem jamais parecer gratuita. Afora isto, cabe registrar que o autor criou personagens muito bem estruturados, diálogos fluentes e abordou, com extrema pertinência e sensibilidade, algumas questões relativas aos afetos e à necessidade que às vezes sentimos de ocultá-los, ainda que visceralmente verdadeiros.
Com relação ao espetáculo, Gunnar Borges impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, para tanto valendo-se de marcações criativas e expressivas, e explorando com sensibilidade a proximidade dos atores com a plateia, não raro gerando uma sensação propositadamente sufocante e algo claustrofóbica. Em certa medida, tudo acontece como se os conflitos ficcionais acabassem sendo também os nossos - e não deixam de ser, ao menos alguns.
No tocante ao elenco, Felipe Haiut, Catharina Caiado, Julia Stockler e Saulo Arcoverde exibem performances irretocáveis, cabendo registrar a notável capacidade de entrega do conjunto e a ótima contracena que evidenciam, fato só passível de acontecer quanto a confiança é mútua e todos acreditam totalmente na validade do projeto em que estão inseridos. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo.
Com relação à equipe técnica, suponho que os figurinos sejam de autoria dos integrantes do projeto, estando em perfeita sintonia com as personalidades retratadas. Gabriel Prieto ilumina a cena com discrição e sensibilidade.
A COZINHA - Texto de Felipe Haiut. Direção de Gunnar Borges. Com Felipe Haiut, Catharina Caiado, Julia Stockler e Saulo Arcoverde. Em cartaz no Cazebre. Domingo e segundas, 20h.
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
sábado, 18 de novembro de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita"
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Belo e inesquecível encontro entre palco e plateia
Lionel Fischer
"Em cena, Carolina cata papel nas ruas de São Paulo para sustentar seus três filhos. Os objetos que vai encontrando pelo caminho a remetem aos acontecimentos marcantes de sua vida: a alfabetização, o primeiro contato com os livros, os sonhos da meninice, as festas populares, a enfermidade que a obrigou a mendigar, a prisão injusta, o trabalho na roça, o deboche dos meninos, a religiosidade, os laços afetivos, a mãe lavadeira, o pai ausente, o avô descendente de escravos, as madrinhas".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita", adaptação das obras "Quarto de despejo" e "Diário de Bitita", da escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1877). Após cumprir temporada no Teatro Dulcina, a montagem agora pode ser assistida na Sala Municipal Baden Powell. Ramon Botelho responde pela adaptação e direção artística, estando a interpretação a cargo de Andréia Ribeiro.
Dentre as muitas desgraças que podem acometer um ser humano, uma das mais atrozes é nascer no Brasil, ser mulher, pobre e negra. Que destino é reservado a alguém que reúna tais predicados? De uma maneira geral, a prostituição e/ou o envolvimento com drogas. Mas é claro que, embora o preconceito e o racismo continuem presentes em nossa sociedade, muitas mulheres negras e que nasceram pobres conseguiram superar as mencionadas barreiras, e materializar aspirações em princípio só destinadas às que nasceram brancas e não conheceram a pobreza.
No entanto, existem casos singulares, como o de Carolina Maria de Jesus. Embora tenha nascido negra e pobre, não se prostituiu e tampouco se envolveu com drogas, mas também jamais conseguiu escapar totalmente do enorme contingente de pessoas que da vida só conhecem o seu lado mais amargo. Catou papel pelas ruas de São Paulo para se sustentar e aos três filhos. E incontáveis vezes passou fome. No entanto, quanto isso acontecia, tomava a seguinte decisão: "Quando não tenho o que comer, em vez de xingar ou pensar na morte, eu escrevo".
A escrita, portanto, foi o antídoto encontrado por Carolina para combater o próprio desespero. E graças a isso, e à providencial ajuda do jornalista Audálio Dantas, que a descobriu em 1958, dois anos depois Carolina viu publicado seu primeiro livro, "Quarto de despejo" (no original, "Quarto de despejo: diário de uma favelada""), publicado em vários idiomas e que a tornou respeitada por escritores e poetas como Clarice Lispector e Carlos Drumond de Andrade. No entanto, e por um desses insondáveis mistérios que parecem só se materializar em nosso país, continuou pobre. Não mais miserável, mas ainda assim, pobre. Mas vamos ao espetáculo, pois tais digressões já me soam um tanto longas...
Ramon Botelho realizou um impecável trabalho de adaptação das obras mencionadas no segundo parágrafo e cujo principal mérito é o de refazer, de forma densa e poética, a trajetória da personagem à medida que ela manipula os objetos que encontrou nas ruas. Ou seja: não estamos diante de alguém que simplesmente nos conta sua história, e sim de alguém cuja memória é ativada por aquilo que constitui seu amargo presente. Sem dúvida, uma opção maravilhosa, plena de teatralidade. E esta também se faz presente na dinâmica cênica, impregnada de uma mescla constante de secura e lirismo, e eventualmente de saborosas passagens em que o humor predomina.
Com relação à performance de Andréia Ribeiro, esta se insere entre as mais expressivas da atual temporada. Exibindo irrepreensível domínio vocal e corporal, grande carisma, forte presença cênica e total capacidade de entrega à personagem que interpreta, a atriz valoriza ao máximo todas as nuances contidas no texto, assim promovendo um belo e inesquecível encontro entre quem faz e quem assiste.
Na equipe técnica, Paulo Cesar Medeiros ilumina a cena com sua habitual sensibilidade, reforçando de forma decisiva todos os climas emocionais em jogo. A mesma sensibilidade se faz presente nas colaborações de Marco Lyrio (trilha original), Wagner Louza (figurinos), Sinhá Recicla (adereços), Sidnei Oliveira (visagismo) e Ramon Botelho (cenografia).
CAROLINA MARIA DE JESUS - DIÁRIO DE BITITA - Texto de Maria Carolina de Jesus. Adaptação e direção de Ramon Botelho. Com Andréia Ribeiro. Sala Municipal Baden Powel. Quinta e sexta, 20h.
"Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita"
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Belo e inesquecível encontro entre palco e plateia
Lionel Fischer
"Em cena, Carolina cata papel nas ruas de São Paulo para sustentar seus três filhos. Os objetos que vai encontrando pelo caminho a remetem aos acontecimentos marcantes de sua vida: a alfabetização, o primeiro contato com os livros, os sonhos da meninice, as festas populares, a enfermidade que a obrigou a mendigar, a prisão injusta, o trabalho na roça, o deboche dos meninos, a religiosidade, os laços afetivos, a mãe lavadeira, o pai ausente, o avô descendente de escravos, as madrinhas".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita", adaptação das obras "Quarto de despejo" e "Diário de Bitita", da escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1877). Após cumprir temporada no Teatro Dulcina, a montagem agora pode ser assistida na Sala Municipal Baden Powell. Ramon Botelho responde pela adaptação e direção artística, estando a interpretação a cargo de Andréia Ribeiro.
Dentre as muitas desgraças que podem acometer um ser humano, uma das mais atrozes é nascer no Brasil, ser mulher, pobre e negra. Que destino é reservado a alguém que reúna tais predicados? De uma maneira geral, a prostituição e/ou o envolvimento com drogas. Mas é claro que, embora o preconceito e o racismo continuem presentes em nossa sociedade, muitas mulheres negras e que nasceram pobres conseguiram superar as mencionadas barreiras, e materializar aspirações em princípio só destinadas às que nasceram brancas e não conheceram a pobreza.
No entanto, existem casos singulares, como o de Carolina Maria de Jesus. Embora tenha nascido negra e pobre, não se prostituiu e tampouco se envolveu com drogas, mas também jamais conseguiu escapar totalmente do enorme contingente de pessoas que da vida só conhecem o seu lado mais amargo. Catou papel pelas ruas de São Paulo para se sustentar e aos três filhos. E incontáveis vezes passou fome. No entanto, quanto isso acontecia, tomava a seguinte decisão: "Quando não tenho o que comer, em vez de xingar ou pensar na morte, eu escrevo".
A escrita, portanto, foi o antídoto encontrado por Carolina para combater o próprio desespero. E graças a isso, e à providencial ajuda do jornalista Audálio Dantas, que a descobriu em 1958, dois anos depois Carolina viu publicado seu primeiro livro, "Quarto de despejo" (no original, "Quarto de despejo: diário de uma favelada""), publicado em vários idiomas e que a tornou respeitada por escritores e poetas como Clarice Lispector e Carlos Drumond de Andrade. No entanto, e por um desses insondáveis mistérios que parecem só se materializar em nosso país, continuou pobre. Não mais miserável, mas ainda assim, pobre. Mas vamos ao espetáculo, pois tais digressões já me soam um tanto longas...
Ramon Botelho realizou um impecável trabalho de adaptação das obras mencionadas no segundo parágrafo e cujo principal mérito é o de refazer, de forma densa e poética, a trajetória da personagem à medida que ela manipula os objetos que encontrou nas ruas. Ou seja: não estamos diante de alguém que simplesmente nos conta sua história, e sim de alguém cuja memória é ativada por aquilo que constitui seu amargo presente. Sem dúvida, uma opção maravilhosa, plena de teatralidade. E esta também se faz presente na dinâmica cênica, impregnada de uma mescla constante de secura e lirismo, e eventualmente de saborosas passagens em que o humor predomina.
Com relação à performance de Andréia Ribeiro, esta se insere entre as mais expressivas da atual temporada. Exibindo irrepreensível domínio vocal e corporal, grande carisma, forte presença cênica e total capacidade de entrega à personagem que interpreta, a atriz valoriza ao máximo todas as nuances contidas no texto, assim promovendo um belo e inesquecível encontro entre quem faz e quem assiste.
Na equipe técnica, Paulo Cesar Medeiros ilumina a cena com sua habitual sensibilidade, reforçando de forma decisiva todos os climas emocionais em jogo. A mesma sensibilidade se faz presente nas colaborações de Marco Lyrio (trilha original), Wagner Louza (figurinos), Sinhá Recicla (adereços), Sidnei Oliveira (visagismo) e Ramon Botelho (cenografia).
CAROLINA MARIA DE JESUS - DIÁRIO DE BITITA - Texto de Maria Carolina de Jesus. Adaptação e direção de Ramon Botelho. Com Andréia Ribeiro. Sala Municipal Baden Powel. Quinta e sexta, 20h.
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
Caríssimos,
O Fórum de Psicanálise e Cinema finaliza suas apresentações de 2017 com o filme dirigido pelo espanhol Cesc Gay: TRUMAN (2015, 108 min.), vencedor de variados prêmio Goya, o Oscar da Espanha, tendo no elenco Javier Cámara, um dos atores favorito de Almodóvar, e o imperdível Ricardo Darín, ambos premiados pelo desempenho em diversos festivais europeus. Com uma temática delicada, aborda o reencontro dois amigos de infância após de muitos anos,lembram os velhos tempos e sabem ser o último adeus, pois o ator argentino radicado em Madrid, lutava contra um câncer. Sem perspectiva de cura, ele decide interromper o tratamento e aguardar a morte. Uma história que ganha força diante das grandes atuações dos dois.
No dia 24 de novembro, última sexta-feira do mês, às 18 h, na Sala Vera Janacópulos da UNIRIO, analisaremos e discutiremos a película em seus múltiplos aspectos e prismas diversos. Como sempre, aguardamos todos vocês para mais um debate e contamos com a divulgação aos amigos e aos interessados no viés cultural e psicanalítico. Retornaremos em março de 2018 com novos títulos que serão previamente divulgados.
Um grande abraço de Ana Lúcia de Castro e Neilton Silva.
SERVIÇO:
DATA: 24 DE NOVEMBRO DE 2017.
HORÁRIO: FILME: 18h; ANÁLISE E DEBATE: 20 h às 22 h.
LOCAL: SALA VERA JANACÓPULOS – UNIRIO
ENDEREÇO: AV. PASTEUR, 296.
ANÁLISE CULTURAL: PROF. DRA. ANA LÚCIA DE CASTRO
ANÁLISE PSICANALÍTICA: DR. NEILTON SILVA
ENTRADA FRANCA - INFORMAÇÕES: forumpsicinema@gmail.com
NOTA: Quem se interessar em adquirir o livro: Fórum de Psicanálise e Cinema: 20 filmes analisados, de autoria de Ana Lúcia de Castro e Neilton Silva, ele se encontra à venda nos dias do FÓRUM.
HISTÓRICO: O FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA FOI CRIADO EM 1997, COMO UM PROJETO CIENTÍFICO DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA RIO 3, PELO ENTÃO PRESIDENTE, DR. WALDEMAR ZUSMAN, E PELO DIRETOR DO INSTITUTO, DR. NEILTON DIAS DA SILVA. DESDE 2004 PASSOU A CONTAR COM A PARTICIPAÇÃO DA MUSEÓLOGA E PROFESSORA DA UNIRIO, DRA ANA LÚCIA DE CASTRO, RESPONSÁVEL PELAS ANÁLISES CULTURAIS DOS FILMES. EM 2016, A SPRJ, CELEBROU OS 10 ANOS DO FÓRUM E A PARCERIA COM A UNIRIO PARA SEDIAR O PROJETO MENSALMENTE, SEMPRE MUITO CONCORRIDO.
Teatro/CRÍTICA
"L, O Musical"
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Que se abram todos os armários
Lionel Fischer
"Ester Rios é uma renomada autora de novelas e está esfuziante com o sucesso do primeiro folhetim a ter um triângulo amoroso formado por mulheres. Ela divide esse cotidiano profissional e afetivo com amigas, sempre se lembrando daquela que foi seu grande amor, Rute. Revelações e a chegada de notícias inesperadas mudam o destino daquelas mulheres".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "L, O Musical", que após cumprir temporada em Brasília está em cartaz no Teatro I do CCBB. Mais recente realização da Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada, a montagem tem direção geral e dramaturgia assinadas por Sérgio Maggio, esta última tendo Daniela Perreira de Carvalho como supervisora. No elenco, Elisa Lucinda (Ester), Ellen Oléria (Rute), Renata Celidonio (Anne), Gabriela Correa (Noiva Erina e Simone), Tainá Baldez (Noiva L e Elle) e Luiza Guimarães (Xena Charme, Noiva Safo, Lea Secret e Filipa). O espetáculo conta também com a ótima participação das instrumentistas Alana Alberg (baixo), Marlene de Souza Lima (guitarra), Nathália Reinehr (bateria) e Janá Sabino (teclado).
Quando criou a Casa-Poema, Elisa Lucinda tinha, dentre outros objetivos, o de fazer com que seus alunos conseguissem dizer poesia sem ser chato. Aqui não é a poesia que está em causa, mas questões relativas a lésbicas, gays, bissexuais, trans e todas as variantes possíveis e imaginárias. Como vivemos uma época de brutal intolerância com relação a pessoas que dirigem seus afetos confrontando o que a moral e os bons costumes apregoam - em se tratando de Brasil, constitui macabro humor se falar em moral e bons costumes -, o texto poderia priorizar o panfletário, o que o faria enveredar para o campo das discussões exacerbadas e cujo resultado só contribuiria para afastar ainda mais os que defendem posições antagônicas.
Aqui, no entanto, dá-se rigorosamente o oposto. O texto não objetiva provar nada, não tenta legitimar nada, não investe de forma tácita contra aqueles que se apegam a valores jurássicos. Muito pelo contrário. Tudo se resume a uma trama que expõe, de forma ao mesmo tempo divertida e densa, variados conflitos decorrentes de múltiplos afetos. E essa exposição traz em seu cerne o que de mais precioso existe (ou deveria existir) no tocante ao humano: a liberdade.
Se não somos livres para fazer nossas opções (sejam elas políticas ou sexuais, dentre muitas outras), se permitimos que a opressão nos domine e assim inviabilize a materialização de nossos anseios mais profundos, então não passamos de marionetes manipuladas pelos que detêm o poder e, queiramos ou não, acabamos contribuindo com nossa passividade para a perpetuação da violência e da intolerância que imperam no tempo em que vivemos.
Em resumo: o que o ótimo texto de Sérgio Maggio nos propõe, em uma leitura mais ampla, é que se abram todos os armários e dele emerjam pessoas dispostas a lutar pelo legítimo direito de serem o que quiserem ser. E se eventualmente a luta parecer inglória, não custa nada lembrar que é impossível levar um barco sem temporais, e que o leme de nossas vidas está em nossas mãos e de ninguém mais.
Tendo como espinha dorsal 22 canções de cantoras assumidamente lésbicas, dentre elas Simone, Adriana Calcanhoto, Mart' nália, Lecy Brandão, Sandra de Sá e Angela RoRo, o espetáculo consegue mesclá-las à narrativa de forma tão orgânica que o resultado quase me levou a crer - sei que não, obviamente - que as músicas haviam sido compostas simultaneamente à escrita. Sob todos os pontos de vista, uma montagem memorável, seja pelos pertinentes temas que aborda, seja pela forma como estão materializados na cena.
Com relação ao elenco, poderia particularizar cada uma das performances. Mas as atrizes fazem tão bem seus personagens e é tamanha a força do conjunto, que opto por parabenizar a todas com o mesmo entusiasmo, a todas agradecendo o divertido e emocionante encontro que tivemos. E creio firmemente que todos os espectadores haverão de sentir o mesmo, pois não é comum, ao menos para mim, voltar pra casa impregnado do mais puro encantamento. Assim, só me resta implorar aos sempre caprichosos Deuses do Teatro que abençoem esta imperdível e mais do que oportuna empreitada teatral.
Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de Luís Filipe de Lima (direção musical), Ana Paula Bouzas (direção de movimento), Aurélio de Simoni (iluminação), Carol Lobato (figurinos), Maria Carmen de Souza (cenografia), Luma Le Roy (visagismo), Sara Mariano (preparação vocal) e Sérgio Maggio e Ellen Oléria (roteiro musical).
L, O MUSICAL - Direção geral e dramaturgia de Sérgio Maggio. Com Elisa Lucinda, Ellen Oléria, Renata Celidonio, Gabriela Correa, Tainá Baldez e Luiza Guimarães. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.
"L, O Musical"
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Que se abram todos os armários
Lionel Fischer
"Ester Rios é uma renomada autora de novelas e está esfuziante com o sucesso do primeiro folhetim a ter um triângulo amoroso formado por mulheres. Ela divide esse cotidiano profissional e afetivo com amigas, sempre se lembrando daquela que foi seu grande amor, Rute. Revelações e a chegada de notícias inesperadas mudam o destino daquelas mulheres".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "L, O Musical", que após cumprir temporada em Brasília está em cartaz no Teatro I do CCBB. Mais recente realização da Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada, a montagem tem direção geral e dramaturgia assinadas por Sérgio Maggio, esta última tendo Daniela Perreira de Carvalho como supervisora. No elenco, Elisa Lucinda (Ester), Ellen Oléria (Rute), Renata Celidonio (Anne), Gabriela Correa (Noiva Erina e Simone), Tainá Baldez (Noiva L e Elle) e Luiza Guimarães (Xena Charme, Noiva Safo, Lea Secret e Filipa). O espetáculo conta também com a ótima participação das instrumentistas Alana Alberg (baixo), Marlene de Souza Lima (guitarra), Nathália Reinehr (bateria) e Janá Sabino (teclado).
Quando criou a Casa-Poema, Elisa Lucinda tinha, dentre outros objetivos, o de fazer com que seus alunos conseguissem dizer poesia sem ser chato. Aqui não é a poesia que está em causa, mas questões relativas a lésbicas, gays, bissexuais, trans e todas as variantes possíveis e imaginárias. Como vivemos uma época de brutal intolerância com relação a pessoas que dirigem seus afetos confrontando o que a moral e os bons costumes apregoam - em se tratando de Brasil, constitui macabro humor se falar em moral e bons costumes -, o texto poderia priorizar o panfletário, o que o faria enveredar para o campo das discussões exacerbadas e cujo resultado só contribuiria para afastar ainda mais os que defendem posições antagônicas.
Aqui, no entanto, dá-se rigorosamente o oposto. O texto não objetiva provar nada, não tenta legitimar nada, não investe de forma tácita contra aqueles que se apegam a valores jurássicos. Muito pelo contrário. Tudo se resume a uma trama que expõe, de forma ao mesmo tempo divertida e densa, variados conflitos decorrentes de múltiplos afetos. E essa exposição traz em seu cerne o que de mais precioso existe (ou deveria existir) no tocante ao humano: a liberdade.
Se não somos livres para fazer nossas opções (sejam elas políticas ou sexuais, dentre muitas outras), se permitimos que a opressão nos domine e assim inviabilize a materialização de nossos anseios mais profundos, então não passamos de marionetes manipuladas pelos que detêm o poder e, queiramos ou não, acabamos contribuindo com nossa passividade para a perpetuação da violência e da intolerância que imperam no tempo em que vivemos.
Em resumo: o que o ótimo texto de Sérgio Maggio nos propõe, em uma leitura mais ampla, é que se abram todos os armários e dele emerjam pessoas dispostas a lutar pelo legítimo direito de serem o que quiserem ser. E se eventualmente a luta parecer inglória, não custa nada lembrar que é impossível levar um barco sem temporais, e que o leme de nossas vidas está em nossas mãos e de ninguém mais.
Tendo como espinha dorsal 22 canções de cantoras assumidamente lésbicas, dentre elas Simone, Adriana Calcanhoto, Mart' nália, Lecy Brandão, Sandra de Sá e Angela RoRo, o espetáculo consegue mesclá-las à narrativa de forma tão orgânica que o resultado quase me levou a crer - sei que não, obviamente - que as músicas haviam sido compostas simultaneamente à escrita. Sob todos os pontos de vista, uma montagem memorável, seja pelos pertinentes temas que aborda, seja pela forma como estão materializados na cena.
Com relação ao elenco, poderia particularizar cada uma das performances. Mas as atrizes fazem tão bem seus personagens e é tamanha a força do conjunto, que opto por parabenizar a todas com o mesmo entusiasmo, a todas agradecendo o divertido e emocionante encontro que tivemos. E creio firmemente que todos os espectadores haverão de sentir o mesmo, pois não é comum, ao menos para mim, voltar pra casa impregnado do mais puro encantamento. Assim, só me resta implorar aos sempre caprichosos Deuses do Teatro que abençoem esta imperdível e mais do que oportuna empreitada teatral.
Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de Luís Filipe de Lima (direção musical), Ana Paula Bouzas (direção de movimento), Aurélio de Simoni (iluminação), Carol Lobato (figurinos), Maria Carmen de Souza (cenografia), Luma Le Roy (visagismo), Sara Mariano (preparação vocal) e Sérgio Maggio e Ellen Oléria (roteiro musical).
L, O MUSICAL - Direção geral e dramaturgia de Sérgio Maggio. Com Elisa Lucinda, Ellen Oléria, Renata Celidonio, Gabriela Correa, Tainá Baldez e Luiza Guimarães. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Dançando no escuro"
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Bela montagem de um texto trágico
Lionel Fischer
"A história se passa em 1964, nos Estados Unidos. Selma Jezková é uma imigrante tcheca que se muda para os EUA com seu filho Gene, um garoto de doze anos. Ela tem uma doença hereditária degenerativa que a faz perder a visão, algo que também vai acontecer com seu filho. Ao saber que nos EUA existem médicos que podem operar Gene, ela imigra para o país. Selma aluga um trailer na propriedade de Bill e sua esposa Linda, seus vizinhos, onde vive humildemente. Trabalha exaustivamente em uma fábrica com sua melhor amiga Carmen e guarda tudo o que ganha para a cirurgia do filho. Mas quando Bill se vê em dificuldades financeiras, rouba o dinheiro que Selma tinha economizado duramente. O roubo é o ponto de partida para trágicos acontecimentos".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Dançando no escuro", adaptação teatral de Patrick Ellsworth do filme homônimo de Lars von Trier. Convertido em musical, ainda que um tanto atípico (como explicitarei mais adiante), o texto chega à cena com direção de Dani Barros, estando o elenco formado por Juliana Bodini, Cyria Coentro, Luis Antonio Fortes, Andreas Gatto, Greg Blanzat, Julia Gorman, Lucas Gouvea, Marino Rocha e Suzana Nascimento.
Bastante fiel ao filme que lhe deu origem, a peça gira em torno da comovente determinação da protagonista no sentido de juntar dinheiro suficiente para a operação do filho, inclusive dispondo-se a correr riscos físicos na fábrica em que trabalha - Selma decide trabalhar em dois turnos, sendo o da noite o mais perigoso, já que a iluminação precária potencializa o perigo para alguém que possui acentuada deficiência visual.
Em contrapartida, sua paixão pelos musicais norte-americanos, em especial "A noviça rebelde", até certo ponto suaviza um cotidiano marcado pela monotonia e aridez, e é através do lúdico que Selma consegue viver breves momentos de intensa alegria. No entanto, tudo sofre brutal reviravolta a partir do momento em que Bill confessa ter se apossado do dinheiro e, como explicitado no parágrafo inicial, daí em diante o trágico predomina - não entrarei em maiores detalhes sobre os fatos subsequentes pois isto privaria o leitor que desconhece a trama de ser atravessado pelo impacto da mesma.
Como já dito, o adaptador optou por conferir ao enredo conotações de um musical. Tal opção, em meu entendimento, não se materializa, pois além de serem poucas as canções, estas não são determinantes para a evolução da trama. Posso estar enganado, naturalmente, mas acredito que o presente espetáculo exiba passagens em que se dança e canta, mas não exatamente a estrutura típica de um musical. Ainda assim, é inegável a qualidade das músicas compostas por Björk, muito bem traduzidas por Marcelo Frankel e Juliana Bodini, e cuja complexidade e densidade estabelecem um expressivo contraponto com a leveza e luminosidade de "A noviça rebelde".
Texto denso, amargo e de uma tragicidade que chega a ser exasperante, "Dançando no escuro" marca a estreia como diretora da excelente atriz Dani Barros. E tal estreia evidencia muitos méritos, tais como o rigor formal, a expressividade da maior parte das marcações, a criativa utilização sonora dos aparatos da fábrica (manipulados pelos atores) e sobretudo a capacidade da encenadora de gerar fortes emoções sem jamais enveredar pela pieguice.
No entanto, me permito duas ressalvas. A primeira diz respeito à interrupção da montagem, por 30 segundos, seguida de uma voz em off que protesta contra o não pagamento do fomento pela Prefeitura. Este não pagamento configura, sem a menor dúvida, uma execrável abjeção. Mas tal protesto poderia ter sido feito quando o espetáculo terminasse e não durante o mesmo. A outra ressalva diz respeito à utilização de um boneco como personagem; o dito boneco é expressivo, bem manipulado, mas me pareceu um elemento estranho à linguagem do espetáculo.
Com relação ao elenco, Juliane Bodine exibe performance impecável na pele de Selma. Possuidora de belíssima voz, forte presença cênica, grande expressividade corporal e notável capacidade de entrega, a atriz materializa uma das melhores performances da atual temporada. Exceção feita a uns poucos momentos em que objetiva extrair desnecessário humor no primeiro ato na pele de Brenda Young, já no segundo Suzana Nascimento está irrepreensível ao encarnar a sentinela cúmplice, amorosa e ardorosa defensora dos direitos de Selma. Quanto aos demais intérpretes, todos exibem seguras e sensíveis atuações.
Na equipe técnica, há um casamento perfeito entre a cenografia de Mina Quental e os figurinos de Carol Lobato. A primeira nos remete, em alguma medida, a dos filmes "Metrópolis" e "Tempos Modernos", pois sugere que o indivíduo é anulado pelos mecanismos de produção - mas não se trata, em absoluto, de uma cópia, e sim de uma referência. E os figurinos monocromáticos reforçam a ideia de que os trabalhadores das fábricas se resumem a peças que podem ser substituídas a qualquer momento, já que a singularidade de cada um não tem a menor importância. Também de excelente nível são a tradução de Elidia Novaes, a direção e arranjos musicais de Marcelo Alonso Neves, a iluminação de Felicio Mafra, a preparação vocal de Mirna Rubin, a direção de movimento e coreografias de Denise Stutz e o visagismo de Marcio Mello. Cumpre também destacar a excelência dos músicos Vanderson Pereira (multi tecladista), Johnny Capler (baterista), Allan Bass (baixista) e Dilson Nascimento (multi tecladista).
DANÇANDO NO ESCURO - Musical baseado no filme de Lars von Trier. Adaptação teatral de Patrick Ellsworth. Direção de Dani Barros. Com Juliane Bodine, Cyria Coentro, Luis Antonio Fortes, Andreas Gatto, Greg Blanzat, Julia Gorman, Lucas Govea, Marino Rocha e Suzana nascimento. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.
"Dançando no escuro"
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Bela montagem de um texto trágico
Lionel Fischer
"A história se passa em 1964, nos Estados Unidos. Selma Jezková é uma imigrante tcheca que se muda para os EUA com seu filho Gene, um garoto de doze anos. Ela tem uma doença hereditária degenerativa que a faz perder a visão, algo que também vai acontecer com seu filho. Ao saber que nos EUA existem médicos que podem operar Gene, ela imigra para o país. Selma aluga um trailer na propriedade de Bill e sua esposa Linda, seus vizinhos, onde vive humildemente. Trabalha exaustivamente em uma fábrica com sua melhor amiga Carmen e guarda tudo o que ganha para a cirurgia do filho. Mas quando Bill se vê em dificuldades financeiras, rouba o dinheiro que Selma tinha economizado duramente. O roubo é o ponto de partida para trágicos acontecimentos".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Dançando no escuro", adaptação teatral de Patrick Ellsworth do filme homônimo de Lars von Trier. Convertido em musical, ainda que um tanto atípico (como explicitarei mais adiante), o texto chega à cena com direção de Dani Barros, estando o elenco formado por Juliana Bodini, Cyria Coentro, Luis Antonio Fortes, Andreas Gatto, Greg Blanzat, Julia Gorman, Lucas Gouvea, Marino Rocha e Suzana Nascimento.
Bastante fiel ao filme que lhe deu origem, a peça gira em torno da comovente determinação da protagonista no sentido de juntar dinheiro suficiente para a operação do filho, inclusive dispondo-se a correr riscos físicos na fábrica em que trabalha - Selma decide trabalhar em dois turnos, sendo o da noite o mais perigoso, já que a iluminação precária potencializa o perigo para alguém que possui acentuada deficiência visual.
Em contrapartida, sua paixão pelos musicais norte-americanos, em especial "A noviça rebelde", até certo ponto suaviza um cotidiano marcado pela monotonia e aridez, e é através do lúdico que Selma consegue viver breves momentos de intensa alegria. No entanto, tudo sofre brutal reviravolta a partir do momento em que Bill confessa ter se apossado do dinheiro e, como explicitado no parágrafo inicial, daí em diante o trágico predomina - não entrarei em maiores detalhes sobre os fatos subsequentes pois isto privaria o leitor que desconhece a trama de ser atravessado pelo impacto da mesma.
Como já dito, o adaptador optou por conferir ao enredo conotações de um musical. Tal opção, em meu entendimento, não se materializa, pois além de serem poucas as canções, estas não são determinantes para a evolução da trama. Posso estar enganado, naturalmente, mas acredito que o presente espetáculo exiba passagens em que se dança e canta, mas não exatamente a estrutura típica de um musical. Ainda assim, é inegável a qualidade das músicas compostas por Björk, muito bem traduzidas por Marcelo Frankel e Juliana Bodini, e cuja complexidade e densidade estabelecem um expressivo contraponto com a leveza e luminosidade de "A noviça rebelde".
Texto denso, amargo e de uma tragicidade que chega a ser exasperante, "Dançando no escuro" marca a estreia como diretora da excelente atriz Dani Barros. E tal estreia evidencia muitos méritos, tais como o rigor formal, a expressividade da maior parte das marcações, a criativa utilização sonora dos aparatos da fábrica (manipulados pelos atores) e sobretudo a capacidade da encenadora de gerar fortes emoções sem jamais enveredar pela pieguice.
No entanto, me permito duas ressalvas. A primeira diz respeito à interrupção da montagem, por 30 segundos, seguida de uma voz em off que protesta contra o não pagamento do fomento pela Prefeitura. Este não pagamento configura, sem a menor dúvida, uma execrável abjeção. Mas tal protesto poderia ter sido feito quando o espetáculo terminasse e não durante o mesmo. A outra ressalva diz respeito à utilização de um boneco como personagem; o dito boneco é expressivo, bem manipulado, mas me pareceu um elemento estranho à linguagem do espetáculo.
Com relação ao elenco, Juliane Bodine exibe performance impecável na pele de Selma. Possuidora de belíssima voz, forte presença cênica, grande expressividade corporal e notável capacidade de entrega, a atriz materializa uma das melhores performances da atual temporada. Exceção feita a uns poucos momentos em que objetiva extrair desnecessário humor no primeiro ato na pele de Brenda Young, já no segundo Suzana Nascimento está irrepreensível ao encarnar a sentinela cúmplice, amorosa e ardorosa defensora dos direitos de Selma. Quanto aos demais intérpretes, todos exibem seguras e sensíveis atuações.
Na equipe técnica, há um casamento perfeito entre a cenografia de Mina Quental e os figurinos de Carol Lobato. A primeira nos remete, em alguma medida, a dos filmes "Metrópolis" e "Tempos Modernos", pois sugere que o indivíduo é anulado pelos mecanismos de produção - mas não se trata, em absoluto, de uma cópia, e sim de uma referência. E os figurinos monocromáticos reforçam a ideia de que os trabalhadores das fábricas se resumem a peças que podem ser substituídas a qualquer momento, já que a singularidade de cada um não tem a menor importância. Também de excelente nível são a tradução de Elidia Novaes, a direção e arranjos musicais de Marcelo Alonso Neves, a iluminação de Felicio Mafra, a preparação vocal de Mirna Rubin, a direção de movimento e coreografias de Denise Stutz e o visagismo de Marcio Mello. Cumpre também destacar a excelência dos músicos Vanderson Pereira (multi tecladista), Johnny Capler (baterista), Allan Bass (baixista) e Dilson Nascimento (multi tecladista).
DANÇANDO NO ESCURO - Musical baseado no filme de Lars von Trier. Adaptação teatral de Patrick Ellsworth. Direção de Dani Barros. Com Juliane Bodine, Cyria Coentro, Luis Antonio Fortes, Andreas Gatto, Greg Blanzat, Julia Gorman, Lucas Govea, Marino Rocha e Suzana nascimento. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.
quarta-feira, 8 de novembro de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Um bonde chamado desejo"
...........................................................
Excelente versão de obra-prima
Lionel Fischer
"Arruinada financeiramente e já evidenciando sintomas que mais tarde a levariam à completa loucura, a sonhadora Blanche Dubois busca refúgio na casa da irmã mais velha Stella, casada com Stanley Kowalski. E logo uma fortíssima tensão se estabelece entre ambos, já que a bestial carnalidade de Stanley é diametralmente oposta ao etéreo espírito de Blanche, daí resultando a mais pungente e bela metáfora do duelo entre o sonho e a realidade, entre a alma e o corpo, que o teatro já produziu".
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Um bonde chamado desejo", de autoria de Tennessee Williams. Após cumprir longa e bem sucedida temporada em São Paulo, a montagem está em cartaz no antigo Teatro do Jockey, ora inteiramente reformado e rebatizado de Teatro XP. Rafael Gomes assina a tradução e direção, estando o elenco formado por Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virgínia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana Yasbek e Davi Novaes.
Por tratar-se de uma das mais brilhantes peças escritas no século XX, e já analisada por especialistas certamente bem mais capazes do que eu, pouparei o leitor de minhas singelas impressões, limitando-me a declarar minha irrestrita paixão pelo texto. Vamos, então, ao espetáculo.
Na montagem original na Broadway, em 1947, assim como no filme de 1951, que recebeu o título de "Uma rua chamada pecado", o realismo imperava. Ou seja: a cenografia reproduzia um cortiço miserável, de apenas dois cômodos (o que inviabilizava qualquer possibilidade de uma maior privacidade) e o insuportável calor do verão contribuía para acirrar os ânimos - dentre outros aspectos, evidentemente.
Na presente versão, o realismo foi completamente banido. O cenógrafo André Cortez criou uma estrutura de madeira que é permanentemente modificada, possibilitando que as ações transcorram nos poucos ambientes da casa - tal solução, além de extremamente inventiva, permite a suposição de que o cenógrafo possa ter objetivado sugerir algum parentesco entre o cortiço em questão e um chiqueiro. Circundando essa estrutura, existe um trilho sobre o qual, em alguns momentos, um carrinho desliza, conduzindo um personagem - e aqui também me parece que a ideia seria a de aprisionamento, como se fosse impossível escapar daquele contexto.
Isto posto, cabe a pergunta: a renúncia ao realismo compromete ou minimiza os conteúdos propostos pelo autor? Em minha opinião, não, pois caso esse tipo de respeito devesse ser perpetuado, então os intérpretes das tragédias gregas teriam necessariamente que vestir túnicas, os de Shakespeare portar capas e espadas, e a cenografia, em ambos os casos, teria que reproduzir fielmente um anfiteatro ou o palco elizabetano.
Ou seja: releituras dos grandes clássicos estariam fadadas a serem condenadas e o fenômeno teatral se veria reduzido à mera reprodução de modelos que, em muitos casos, ninguém sabe exatamente como se materializaram - ou será que existe entre nós alguns privilegiados que assistiram a montagens de textos de Sófocles ou de Shakespeare, feitas em suas respectivas épocas, para reivindicar que os mesmos só comportam uma maneira de levá-los à cena?
Não acredito que o diretor Rafael Gomes tenha pretendido afrontar Tennessee Williams ao propor uma versão não realista desta obra-prima. Acredito, sim, que tenha objetivado materializar uma dinâmica cênica que privilegia a virulenta exposição dos conflitos em jogo, o que implica na inevitável renúncia aos meios-tons e algumas nuances. Mas será que tal renúncia minimiza efetivamente a obra?
Em minha opinião, não. Trata-se apenas e tão somente de um novo olhar, que agradará a uns e desagradará a outros. A mim, particularmente, gerou profundo impacto e não menos profundo encantamento. E portanto parabenizo o jovem encenador com total entusiasmo, fazendo questão de ressaltar a expressividade de muitas de suas marcações, em especial a que encerra o espetáculo - não a detalho pois isso privaria o leitor de usufruir o impacto de um momento sublime que ele jamais esquecerá.
Com relação ao elenco, Maria Luisa Mendonça exibe aqui a melhor performance de sua carreira. Possuidora de excelente voz, impecável trabalho corporal, grande carisma e fortíssima presença cênica, a atriz se entrega de forma tão visceral à personagem que não hesito em afirmar que, se vivo fosse, o autor a aplaudiria de pé, a respiração ofegante e o rosto banhado de lágrimas. Sob todos os pontos de vista, uma das atuações mais impactantes da atual temporada.
Quanto a Du Moscovis, imagino que possa estar sendo vítima de inócuas comparações, no presente caso com a performance de Marlon Brando, que fez Stanley no já citado filme. Então, vamos por partes. Além de ter sido um dos melhores e mais sedutores atores de todos os tempos, possuidor de uma beleza e de um magnetismo difíceis de serem descritos em palavras, quando fez o filme Marlon Brando tinha 27 anos. Estava, portanto, em seu apogeu físico.
Ao que me consta, Du Moscovis está perto de completar 50 anos e, ainda que belo e excelente ator, e muitíssimo bem conservado para sua idade, nem ele e tampouco qualquer outro intérprete reuniria condições de rivalizar com os já mencionados predicados de Brando. Isto posto, considero de excelente nível a performance de Moscovis, que em meu entendimento consegue materializar as principais características do dificílimo personagem que encarna.
Quanto aos demais intérpretes, todos exibem atuações seguras e dignas, em especial Virgínia Buckowski, atriz que interpreta Stella, e cuja contracena com Blanche gera na plateia, em várias passagens, profunda emoção.
No complemento da ficha técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Wagner Antonio (iluminação), Fause Haten (figurinos) e Rafael Gomes (seleção musical e tradução).
UM BONDE CHAMADO DESEJO - Texto de Tennessee Williams. Direção de Rafael Gomes. Com Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virgínia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana Yasbek e Davi Novaes. Teatro XP. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 18h.
"Um bonde chamado desejo"
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Excelente versão de obra-prima
Lionel Fischer
"Arruinada financeiramente e já evidenciando sintomas que mais tarde a levariam à completa loucura, a sonhadora Blanche Dubois busca refúgio na casa da irmã mais velha Stella, casada com Stanley Kowalski. E logo uma fortíssima tensão se estabelece entre ambos, já que a bestial carnalidade de Stanley é diametralmente oposta ao etéreo espírito de Blanche, daí resultando a mais pungente e bela metáfora do duelo entre o sonho e a realidade, entre a alma e o corpo, que o teatro já produziu".
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Um bonde chamado desejo", de autoria de Tennessee Williams. Após cumprir longa e bem sucedida temporada em São Paulo, a montagem está em cartaz no antigo Teatro do Jockey, ora inteiramente reformado e rebatizado de Teatro XP. Rafael Gomes assina a tradução e direção, estando o elenco formado por Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virgínia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana Yasbek e Davi Novaes.
Por tratar-se de uma das mais brilhantes peças escritas no século XX, e já analisada por especialistas certamente bem mais capazes do que eu, pouparei o leitor de minhas singelas impressões, limitando-me a declarar minha irrestrita paixão pelo texto. Vamos, então, ao espetáculo.
Na montagem original na Broadway, em 1947, assim como no filme de 1951, que recebeu o título de "Uma rua chamada pecado", o realismo imperava. Ou seja: a cenografia reproduzia um cortiço miserável, de apenas dois cômodos (o que inviabilizava qualquer possibilidade de uma maior privacidade) e o insuportável calor do verão contribuía para acirrar os ânimos - dentre outros aspectos, evidentemente.
Na presente versão, o realismo foi completamente banido. O cenógrafo André Cortez criou uma estrutura de madeira que é permanentemente modificada, possibilitando que as ações transcorram nos poucos ambientes da casa - tal solução, além de extremamente inventiva, permite a suposição de que o cenógrafo possa ter objetivado sugerir algum parentesco entre o cortiço em questão e um chiqueiro. Circundando essa estrutura, existe um trilho sobre o qual, em alguns momentos, um carrinho desliza, conduzindo um personagem - e aqui também me parece que a ideia seria a de aprisionamento, como se fosse impossível escapar daquele contexto.
Isto posto, cabe a pergunta: a renúncia ao realismo compromete ou minimiza os conteúdos propostos pelo autor? Em minha opinião, não, pois caso esse tipo de respeito devesse ser perpetuado, então os intérpretes das tragédias gregas teriam necessariamente que vestir túnicas, os de Shakespeare portar capas e espadas, e a cenografia, em ambos os casos, teria que reproduzir fielmente um anfiteatro ou o palco elizabetano.
Ou seja: releituras dos grandes clássicos estariam fadadas a serem condenadas e o fenômeno teatral se veria reduzido à mera reprodução de modelos que, em muitos casos, ninguém sabe exatamente como se materializaram - ou será que existe entre nós alguns privilegiados que assistiram a montagens de textos de Sófocles ou de Shakespeare, feitas em suas respectivas épocas, para reivindicar que os mesmos só comportam uma maneira de levá-los à cena?
Não acredito que o diretor Rafael Gomes tenha pretendido afrontar Tennessee Williams ao propor uma versão não realista desta obra-prima. Acredito, sim, que tenha objetivado materializar uma dinâmica cênica que privilegia a virulenta exposição dos conflitos em jogo, o que implica na inevitável renúncia aos meios-tons e algumas nuances. Mas será que tal renúncia minimiza efetivamente a obra?
Em minha opinião, não. Trata-se apenas e tão somente de um novo olhar, que agradará a uns e desagradará a outros. A mim, particularmente, gerou profundo impacto e não menos profundo encantamento. E portanto parabenizo o jovem encenador com total entusiasmo, fazendo questão de ressaltar a expressividade de muitas de suas marcações, em especial a que encerra o espetáculo - não a detalho pois isso privaria o leitor de usufruir o impacto de um momento sublime que ele jamais esquecerá.
Com relação ao elenco, Maria Luisa Mendonça exibe aqui a melhor performance de sua carreira. Possuidora de excelente voz, impecável trabalho corporal, grande carisma e fortíssima presença cênica, a atriz se entrega de forma tão visceral à personagem que não hesito em afirmar que, se vivo fosse, o autor a aplaudiria de pé, a respiração ofegante e o rosto banhado de lágrimas. Sob todos os pontos de vista, uma das atuações mais impactantes da atual temporada.
Quanto a Du Moscovis, imagino que possa estar sendo vítima de inócuas comparações, no presente caso com a performance de Marlon Brando, que fez Stanley no já citado filme. Então, vamos por partes. Além de ter sido um dos melhores e mais sedutores atores de todos os tempos, possuidor de uma beleza e de um magnetismo difíceis de serem descritos em palavras, quando fez o filme Marlon Brando tinha 27 anos. Estava, portanto, em seu apogeu físico.
Ao que me consta, Du Moscovis está perto de completar 50 anos e, ainda que belo e excelente ator, e muitíssimo bem conservado para sua idade, nem ele e tampouco qualquer outro intérprete reuniria condições de rivalizar com os já mencionados predicados de Brando. Isto posto, considero de excelente nível a performance de Moscovis, que em meu entendimento consegue materializar as principais características do dificílimo personagem que encarna.
Quanto aos demais intérpretes, todos exibem atuações seguras e dignas, em especial Virgínia Buckowski, atriz que interpreta Stella, e cuja contracena com Blanche gera na plateia, em várias passagens, profunda emoção.
No complemento da ficha técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Wagner Antonio (iluminação), Fause Haten (figurinos) e Rafael Gomes (seleção musical e tradução).
UM BONDE CHAMADO DESEJO - Texto de Tennessee Williams. Direção de Rafael Gomes. Com Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virgínia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana Yasbek e Davi Novaes. Teatro XP. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 18h.
terça-feira, 7 de novembro de 2017
Teatro/CRÍTICA
"O jornal - The Rolling Stone"
.................................................
Dilacerado brado contra a intolerância
Lionel Fischer
"Após a morte do pai, três irmãos - Joe, Dembe e Wummie - precisam reconstruir suas vidas. Joe se prepara para ser reverendo, enquanto Dembe e Wummie estudam para progredir diante da desigualdade. Mas o destino seria fatal: Dembe conhece Sam e eles acabam se apaixonando. Condenados pela lei, pela sociedade e pela religião, eles terão de optar entre se separar ou arriscar a própria vida para viver esse amor. Inspirada em fatos reais, a peça faz alusão ao periódico ugandense The Rolling Stone que, em 2010, publicou uma lista com 100 nomes de homossexuais e incitou seus leitores a enforcar os mencionados".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "O jornal - The Rolling Stone", de autoria do jovem dramaturgo britânico Chris Urch. Em cartaz no Teatro Poeira, a montagem tem direção assinada por Kiko Mascarenhas (codireção de Lázaro Ramos), estando o elenco formado por André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam).
Como todos sabemos, o famigerado Adolf Hitler cultivava uma crença - a da superioridade da raça ariana - e tinha como principal objetivo dominar o mundo. Mas para tanto, além de criar uma aparentemente invencível máquina de guerra, também julgou essencial exterminar judeus, ciganos e homossexuais. E aqui, visando não me estender em demasia, me detenho apenas na questão da homossexualidade. Por que será que, exceção feita à Grécia Antiga - quando as mulheres pouco ou nada significavam e os homens mais brilhantes tinham rapazes como amantes - os homossexuais são alvo de tão brutal e permanente perseguição?
Muitos poderão argumentar que, hoje em dia, as coisas já não ocorrem como antigamente, e que homossexuais de ambos os sexos estão sendo cada vez mais aceitos e respeitados. E isso não deixa de ser verdade. No entanto, tal aceitação e respeito não me parecem fruto de uma nova e libertária consciência no que diz respeito ao legítimo direito que cada um possui de dirigir seus afetos como bem entender. Pelo contrário: a batalha contra o preconceito continua sendo travada, e deve ter como alvo principal aqueles que procuram disfarçar sua intolerância sob a abominável máscara da hipocrisia.
No presente caso, o autor nos coloca diante de um fato real, ocorrido há poucos anos. E esse fato se dá em um país regido por leis (?) que em tudo se assemelham às das mais tirânicas sociedades medievais. Mas será que só em Uganda os homossexuais são perseguidos e mortos? No Brasil não existe, ao menos que eu saiba, um jornal que estimule seus leitores a enforcar homossexuais. E no entanto, e dados estatísticos comprovam, nosso país é um dos líderes nesse tipo de crime. Portanto, e por mais deplorável que seja, Brasil e Uganda evidenciam macabro parentesco. E caso o neguemos, só estaremos contribuindo para a perpetuação de crimes para os quais não existe qualquer possibilidade de redenção.
Digressões feitas, e admitindo que tenham sido um tanto longas, voltemos ao imperdível evento teatral em cartaz no Poeira. Bem escrito, contendo ótimos personagens, diálogos fluentes e abordando questões da mais alta pertinência, o texto de Chris Urch recebeu maravilhosa versão cênica de Kiko Mascarenhas, certamente muito auxiliado por Lázaro Ramos. Exibindo marcas imprevistas e criativas, plenas de densidade e impregnadas de dilacerada poesia, a montagem tem o mérito suplementar de colocar no palco intérpretes que merecem estar nele.
Ou seja: profissionais que, além de evidenciarem notáveis predicados artísticos, entregam-se visceralmente aos personagens que interpretam e exibem aquele tipo de contracena só passível de acontecer quando a confiança é mútua e todos acreditam totalmente na validade das questões abordadas. Assim, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo e a todos agradeço o inesquecível encontro que me proporcionaram.
Na equipe técnica, Paulo Cesar Medeiros assina uma das mais expressivas iluminações de sua brilhante carreira, contribuindo decisivamente para o fortalecimento dos múltiplos conteúdos em jogo, com a mesma eficiência presente nas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Diego Teza (tradução), José Carlos Arandiba (direção de movimento), Edi Montecchi (preparação vocal), Wladimir Pinheiro (trilha sonora original), Mauro Vicente Ferreira (cenografia e adereços), Tereza Nabuco (figurinos) e os cantores (vozes em off) Flavia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone e Wladimir Pinheiro.
O JORNAL - THE ROLLING STONE - Texto de Chris Urch. Direção de Kiko Mascarenhas. Codireção de Lázaro Ramos. Com André Luiz Miranda, Danilo Ferreira, Heloísa Jorge, Indira Nascimento, Marcella Gobatti e Marcos Guian. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
"O jornal - The Rolling Stone"
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Dilacerado brado contra a intolerância
Lionel Fischer
"Após a morte do pai, três irmãos - Joe, Dembe e Wummie - precisam reconstruir suas vidas. Joe se prepara para ser reverendo, enquanto Dembe e Wummie estudam para progredir diante da desigualdade. Mas o destino seria fatal: Dembe conhece Sam e eles acabam se apaixonando. Condenados pela lei, pela sociedade e pela religião, eles terão de optar entre se separar ou arriscar a própria vida para viver esse amor. Inspirada em fatos reais, a peça faz alusão ao periódico ugandense The Rolling Stone que, em 2010, publicou uma lista com 100 nomes de homossexuais e incitou seus leitores a enforcar os mencionados".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "O jornal - The Rolling Stone", de autoria do jovem dramaturgo britânico Chris Urch. Em cartaz no Teatro Poeira, a montagem tem direção assinada por Kiko Mascarenhas (codireção de Lázaro Ramos), estando o elenco formado por André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam).
Como todos sabemos, o famigerado Adolf Hitler cultivava uma crença - a da superioridade da raça ariana - e tinha como principal objetivo dominar o mundo. Mas para tanto, além de criar uma aparentemente invencível máquina de guerra, também julgou essencial exterminar judeus, ciganos e homossexuais. E aqui, visando não me estender em demasia, me detenho apenas na questão da homossexualidade. Por que será que, exceção feita à Grécia Antiga - quando as mulheres pouco ou nada significavam e os homens mais brilhantes tinham rapazes como amantes - os homossexuais são alvo de tão brutal e permanente perseguição?
Muitos poderão argumentar que, hoje em dia, as coisas já não ocorrem como antigamente, e que homossexuais de ambos os sexos estão sendo cada vez mais aceitos e respeitados. E isso não deixa de ser verdade. No entanto, tal aceitação e respeito não me parecem fruto de uma nova e libertária consciência no que diz respeito ao legítimo direito que cada um possui de dirigir seus afetos como bem entender. Pelo contrário: a batalha contra o preconceito continua sendo travada, e deve ter como alvo principal aqueles que procuram disfarçar sua intolerância sob a abominável máscara da hipocrisia.
No presente caso, o autor nos coloca diante de um fato real, ocorrido há poucos anos. E esse fato se dá em um país regido por leis (?) que em tudo se assemelham às das mais tirânicas sociedades medievais. Mas será que só em Uganda os homossexuais são perseguidos e mortos? No Brasil não existe, ao menos que eu saiba, um jornal que estimule seus leitores a enforcar homossexuais. E no entanto, e dados estatísticos comprovam, nosso país é um dos líderes nesse tipo de crime. Portanto, e por mais deplorável que seja, Brasil e Uganda evidenciam macabro parentesco. E caso o neguemos, só estaremos contribuindo para a perpetuação de crimes para os quais não existe qualquer possibilidade de redenção.
Digressões feitas, e admitindo que tenham sido um tanto longas, voltemos ao imperdível evento teatral em cartaz no Poeira. Bem escrito, contendo ótimos personagens, diálogos fluentes e abordando questões da mais alta pertinência, o texto de Chris Urch recebeu maravilhosa versão cênica de Kiko Mascarenhas, certamente muito auxiliado por Lázaro Ramos. Exibindo marcas imprevistas e criativas, plenas de densidade e impregnadas de dilacerada poesia, a montagem tem o mérito suplementar de colocar no palco intérpretes que merecem estar nele.
Ou seja: profissionais que, além de evidenciarem notáveis predicados artísticos, entregam-se visceralmente aos personagens que interpretam e exibem aquele tipo de contracena só passível de acontecer quando a confiança é mútua e todos acreditam totalmente na validade das questões abordadas. Assim, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo e a todos agradeço o inesquecível encontro que me proporcionaram.
Na equipe técnica, Paulo Cesar Medeiros assina uma das mais expressivas iluminações de sua brilhante carreira, contribuindo decisivamente para o fortalecimento dos múltiplos conteúdos em jogo, com a mesma eficiência presente nas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Diego Teza (tradução), José Carlos Arandiba (direção de movimento), Edi Montecchi (preparação vocal), Wladimir Pinheiro (trilha sonora original), Mauro Vicente Ferreira (cenografia e adereços), Tereza Nabuco (figurinos) e os cantores (vozes em off) Flavia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone e Wladimir Pinheiro.
O JORNAL - THE ROLLING STONE - Texto de Chris Urch. Direção de Kiko Mascarenhas. Codireção de Lázaro Ramos. Com André Luiz Miranda, Danilo Ferreira, Heloísa Jorge, Indira Nascimento, Marcella Gobatti e Marcos Guian. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
Teatro/CRÍTICA
"Justa"
.......................................................................................................
Estrutura narrativa compromete oportunas reflexões
Lionel Fischer
Ambientada em Brasília, toda a ação decorre de um fato singular: políticos corruptos estão sendo assassinados. Em vias de se aposentar, um oficial é encarregado do caso. E à medida em que nele se aprofunda, descobre que os mortos, além de terem em comum a volúpia da corrupção, frequentam um bordel chamado O Colégio. Afora isto, o dito investigador se apaixona perdidamente por uma prostituta cega, que atende pelo curioso nome de Justa, e sobre quem acabam recaindo as maiores suspeitas.
Eis, em resumo, o enredo de "Justa", definida pela produção como uma Peça-Manifesto. Em cartaz no Teatro III do CCBB, o texto de Newton Moreno chega à cena com direção de Carlos Gradim, estando o elenco formado por Rodolfo Vaz (Investigador) e Yara de Novaes, que interpreta não apenas a já mencionada Justa, mas também outras prostitutas.
Autor de textos belíssimos, dentre eles "Agreste", "As centenárias" e "Maria do Caritó", aqui Newton Moreno não materializa seu enorme e incontestável talento. E por algumas razões, que explicito em seguida, sendo a primeira delas a estrutura narrativa adotada.
Já desde o início torna-se evidente que tudo já aconteceu, ou seja, o Investigador relembra o que viveu, pensou e sentiu. Mas a todo momento o passado é materializado na cena, e essa permanente alternância entre reflexões e fatos vividos, que logo torna-se previsível, não me permitiu um maior envolvimento com os conteúdos propostos. E quanto a estes, também algumas dúvidas me ocorreram.
Tudo me leva a crer que Newton Mendonça, ainda que priorizando uma narrativa que remete à de romances policiais, objetivou explicitar sua abjeção com relação à corrupção que assola nosso país. E a ninguém ocorreria questionar a legitimidade de seu objetivo. No entanto, este acaba sendo muito minimizado pela paixão desvairada que o narrador sente por Justa, sem que para a mesma eu tenha encontrado uma justificativa ao menos razoável. Além disso, excessivas passagens têm como foco a dita paixão, o que só contribui para desviar a atenção do espectador daquilo que seria ou parecia ser o essencial.
Com relação ao espetáculo, o diretor Carlos Gradim valoriza ao máximo a ótima cenografia de André Cortez, composta basicamente por uma grande mesa e por telas que exibem genitálias e atos sexuais, afora frases de protesto - estas últimas justificariam a proposta "manifesto" do texto, posto que confrontam a hipócrita moralidade das classes dominantes e o conservadorismo que nos ameaça cada vez mais, inclusive com a possibilidade de voltarmos ao negro período da censura. Em contrapartida, não consegui entender os movimentos coreográficos executados por Yara de Novaes ao longo do espetáculo, que me pareceram totalmente aleatórios.
No tocante ao elenco, e mesmo que tendo que dar vida a um personagem extremamente ingrato em função da estrutura narrativa já mencionada, ainda assim Rodolfo Vaz demonstra uma vez mais o excelente ator que é. Quanto a Yara de Novaes, esta tem oportunidades infinitamente mais ricas, pois a ela cabe materializar muitos personagens, a todos eles impondo características diversas através da utilização de precisas variações vocais e corporais.
No complemento da ficha técnica, Telma Fernandes realiza um ótimo trabalho de iluminação, valendo-se de focos de pouca intensidade que reforçam a escuridão que se abateu sobre nosso país. Quanto aos figurinos de Fábio Namatame, o do Investigador é simples e adequado, mas o traje usado por Yara de Novaes, ao longo de todo o espetáculo, remete ao de um mergulhador, por razões que não consegui compreender - pode ser que a intenção tenha sido a de sugerir, ainda que metaforicamente, que os personagens vividos pela atriz são os que mergulham mais profundamente nas questões abordadas, mas ainda assim me pareceu estranho. Morris Picciotto responde por sensível direção musical.
JUSTA - Texto de Newton Moreno. Direção de Carlos Gradim. Com Yara de Novaes e Rodolfo Vaz. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h.
"Justa"
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Estrutura narrativa compromete oportunas reflexões
Lionel Fischer
Ambientada em Brasília, toda a ação decorre de um fato singular: políticos corruptos estão sendo assassinados. Em vias de se aposentar, um oficial é encarregado do caso. E à medida em que nele se aprofunda, descobre que os mortos, além de terem em comum a volúpia da corrupção, frequentam um bordel chamado O Colégio. Afora isto, o dito investigador se apaixona perdidamente por uma prostituta cega, que atende pelo curioso nome de Justa, e sobre quem acabam recaindo as maiores suspeitas.
Eis, em resumo, o enredo de "Justa", definida pela produção como uma Peça-Manifesto. Em cartaz no Teatro III do CCBB, o texto de Newton Moreno chega à cena com direção de Carlos Gradim, estando o elenco formado por Rodolfo Vaz (Investigador) e Yara de Novaes, que interpreta não apenas a já mencionada Justa, mas também outras prostitutas.
Autor de textos belíssimos, dentre eles "Agreste", "As centenárias" e "Maria do Caritó", aqui Newton Moreno não materializa seu enorme e incontestável talento. E por algumas razões, que explicito em seguida, sendo a primeira delas a estrutura narrativa adotada.
Já desde o início torna-se evidente que tudo já aconteceu, ou seja, o Investigador relembra o que viveu, pensou e sentiu. Mas a todo momento o passado é materializado na cena, e essa permanente alternância entre reflexões e fatos vividos, que logo torna-se previsível, não me permitiu um maior envolvimento com os conteúdos propostos. E quanto a estes, também algumas dúvidas me ocorreram.
Tudo me leva a crer que Newton Mendonça, ainda que priorizando uma narrativa que remete à de romances policiais, objetivou explicitar sua abjeção com relação à corrupção que assola nosso país. E a ninguém ocorreria questionar a legitimidade de seu objetivo. No entanto, este acaba sendo muito minimizado pela paixão desvairada que o narrador sente por Justa, sem que para a mesma eu tenha encontrado uma justificativa ao menos razoável. Além disso, excessivas passagens têm como foco a dita paixão, o que só contribui para desviar a atenção do espectador daquilo que seria ou parecia ser o essencial.
Com relação ao espetáculo, o diretor Carlos Gradim valoriza ao máximo a ótima cenografia de André Cortez, composta basicamente por uma grande mesa e por telas que exibem genitálias e atos sexuais, afora frases de protesto - estas últimas justificariam a proposta "manifesto" do texto, posto que confrontam a hipócrita moralidade das classes dominantes e o conservadorismo que nos ameaça cada vez mais, inclusive com a possibilidade de voltarmos ao negro período da censura. Em contrapartida, não consegui entender os movimentos coreográficos executados por Yara de Novaes ao longo do espetáculo, que me pareceram totalmente aleatórios.
No tocante ao elenco, e mesmo que tendo que dar vida a um personagem extremamente ingrato em função da estrutura narrativa já mencionada, ainda assim Rodolfo Vaz demonstra uma vez mais o excelente ator que é. Quanto a Yara de Novaes, esta tem oportunidades infinitamente mais ricas, pois a ela cabe materializar muitos personagens, a todos eles impondo características diversas através da utilização de precisas variações vocais e corporais.
No complemento da ficha técnica, Telma Fernandes realiza um ótimo trabalho de iluminação, valendo-se de focos de pouca intensidade que reforçam a escuridão que se abateu sobre nosso país. Quanto aos figurinos de Fábio Namatame, o do Investigador é simples e adequado, mas o traje usado por Yara de Novaes, ao longo de todo o espetáculo, remete ao de um mergulhador, por razões que não consegui compreender - pode ser que a intenção tenha sido a de sugerir, ainda que metaforicamente, que os personagens vividos pela atriz são os que mergulham mais profundamente nas questões abordadas, mas ainda assim me pareceu estranho. Morris Picciotto responde por sensível direção musical.
JUSTA - Texto de Newton Moreno. Direção de Carlos Gradim. Com Yara de Novaes e Rodolfo Vaz. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h.