Teatro/CRÍTICA
"Merlin e Arthur - Um sonho de liberdade"
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Surpreendente, corajoso e libertário musical
Lionel Fischer
Acredito que todos nós, em maior ou menor grau - e sobretudo na infância - nos encantamos com as aventuras do Rei Arthur, Lancelot e os cavaleiros da Távola Redonda. E embora até hoje se discuta se as histórias narradas realmente correspondem à verdade ou se as lendas se sobrepõem aos fatos, isso é o que menos importa, posto que o fascínio permanece intacto. Mas agora estamos diante de um projeto curioso e ousado, pois o universo de Camelot nos chega não apenas no formato de um musical, mas estruturado em cima de 25 canções do repertório de Raul Seixas.
Contando com concepção e direção de Guilherme Leme Garcia, e texto de Márcia Zanelatto, "Merlin e Arthur - Um sonho de liberdade" está em cartaz no Teatro Riachuelo. O numeroso elenco é encabeçado por Vera Holtz (que só aparece em vídeo na pele de Merlin), Paulinho Moska (Arthur), Larissa Bracher (Guinevere), Gustavo Machado (Lancelot), Patrick Amstalden (Dreadmor), Kacau Gomes (Anamorg), Rodrigo Salvadoretti (Arthur jovem), Natália Glanz (Guinevere jovem) e Saulo Segreto (Lancelot jovem). Também participam da montagem Gabi Porto, Ubiracy Brasil, Santiago Villalba, Fernanda Gabriela, Daniel Haidar, Renato Caetano, Laíze Câmara, Oscar Fabião, Thainá Gallo, Paola Poliny, Dennis Pinheiro, Leonam Moraes, Carol Pita e Félix Boisson.
Ainda que nutra imensa admiração por Raul Seixas e por tantas razões que seria tedioso enumerá-las, o fato é que, ao tomar conhecimento do projeto, pus-me a cismar, como o faria o jovem Hamlet: "Mas será que vai dar certo? As letras das canções selecionadas têm a ver com a narrativa ou haverá, digamos assim, uma espécie de forçação de barra para que tudo se encaixe de forma minimamente crível?". Tais conjecturas eu as fiz impregnado de um certo temor, que acabou resultando infundado. E pelas seguintes razões.
A principal diz respeito ao novo andamento imposto à maioria das canções, que assim adquirem uma nova e surpreendente perspectiva, não raro de grande expressividade. Outro fator reside no fato de que às vezes só ouvimos as letras, como se as mesmas não tivessem sido escritas para serem cantadas. E o resultado evidencia a poesia e o olhar crítico do autor sobre o tempo em que viveu. E se a isto somarmos o surpreendente olhar de Márcia Zanelatto sobre o universo de Camelot, a soma destes ingredientes já seria suficiente para conferir grande interesse à presente empreitada teatral. Mas em que consiste este surpreendente olhar?
Como explicitado no parágrafo inicial, as aventuras do Rei Arthur e de seus cavaleiros da Távola Redonda são por todos conhecidas. No entanto, e embora a autora não deixe de retratar tais aventuras, ela as trabalha em dois tempos diversos, fazendo com que os protagonistas estabeleçam relações entre eles que a vida real obviamente impediria. Tal licença poética, que poderia soar gratuita, aqui funciona muito bem, na medida em que as reflexões feitas no presente e no passado contribuem decisivamente para nossa compreensão a respeito do futuro.
Outra questão de suma importância refere-se ao amor, e obviamente à liberdade indispensável para usufruí-lo em toda a sua plenitude. Guinevere ama e respeita profundamente Arthur, mas nutre avassaladora paixão por Lancelot. Este e Arthur também se amam e se respeitam, sendo que Lancelot nutre por Guinevere uma paixão análoga. Pois bem: diante de um tal quadro, o que fazer? Lancelot e Arthur deveriam duelar até a morte pelo amor de Guinevere? Esta deveria ser condenada por admitir que ama dois homens ao mesmo tempo?
Neste ponto, e desprezando todas as histórias e lendas referentes à narrativa oficial, a autora sugere corajosamente que é possível, sim, que três pessoas se amem ao mesmo tempo. E esta proposição nada tem de vulgar, muito pelo contrário: é essencialmente libertária e a liberdade de nossas escolhas, afetivas ou não, só diz respeito a nós mesmos, ainda que a moral e os bons costumes preguem exatamente o oposto. Ou seja: a imperiosa necessidade de enquadrar-se, sendo tal enquadramento a única possibilidade de se atingir a tão almejada felicidade.
Com relação ao espetáculo, Guilherme Leme Garcia exibe aqui algumas de suas principais virtudes como encenador: precisão, excelente acabamento e refinada elegância. No entanto, creio que a montagem seria ainda mais expressiva se a tais virtudes fossem acrescentadas doses mais virulentas de paixão, pois quase sempre os embates priorizam a reflexão, minimizando os dilacerantes sentimentos que os motivam.
No tocante ao elenco, Vera Holtz (ainda que apenas em vídeo) nos brinda com uma atuação poderosa, impregnada de saber e mistério. Quanto aos demais protagonistas, todos exibem performances convincentes, tanto nas passagens cantadas quanto naquelas em que o texto predomina. Mas torna-se imperioso destacar as atuações de Patrick Amstalden (Dreadmor) e Kacau Gomes (Anamorg), o primeiro por transcender a chave racional da maior parte do elenco, e a segunda pela mesma razão, afora o fato de cantar magnificamente.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Fabio Cardia e Jules Vandystadt (direção musical e arranjos), Toni Rodrigues (direção de movimento e coreografia), Anna Turra, Camila Schmidt e Roger Velloso (cenografia, iluminação e videodesign), João Pimenta (figurino), Fernando Torquatto (visagismo) e Carlos Esteves (desenho de som).
MERLIN E ARTHUR, UM SONHO DE LIBERDADE - Concepção e direção de Guilherme Leme Garcia. Texto de Márcia Zanelatto. Com Vera Holtz, Paulinho Mosca, Larissa Bracher, Gustavo Machado, Patrick Amstalden, Kacau Gomes e grande elenco. Teatro Riachuelo. Sexta (20h), sábado às 16 e 20h, domingo 18h.
quinta-feira, 28 de março de 2019
quarta-feira, 27 de março de 2019
Teatro/CRÍTICA
"O preço"
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Obra-prima em belíssima versão
Lionel Fischer
"Dezesseis anos após a morte do pai, dois irmãos voltam a se encontrar com o objetivo de desocuparem a casa que deixaram intacta ao longo de todos aqueles anos. Um velho antiquário vem dar-lhes um preço pelos móveis e objetos dos quais querem se desfazer. Mas a transação não é tão simples: todas aquelas coisas fazem parte da história da família, estão repletas de memórias e os obrigam a se confrontarem com o passado e as escolhas que fizeram na vida".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "O preço", de autoria do dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005). Em cartaz até domingo na Arena do Espaço Sesc, a mais recente montagem da Cia. Teatro Epigenia leva a assinatura de Gustavo Paso, estando o elenco formado por Romulo Estrela (Vítor, policial), Erom Cordeiro (Válter, médico), Luciana Fávero (Ester, esposa de Vítor) e Gláucio Gomes, (Salomon, antiquário).
Um dos aspectos mais brilhantes da presente obra reside no fato de Miller ter se valido de um acontecimento aparentemente banal - a venda de móveis que já não têm mais a menor utilidade - para empreender uma profunda e exasperante investigação sobre vários temas, dentre eles afetos mal resolvidos, mágoas, frustrações, silêncios que poderiam ter sido evitados e confissões que deveriam ter sido feitas.
E graças à genialidade de Miller, o que poderia resumir-se a um ajuste de contas entre dois irmãos ganha imensa amplitude, pois fica implícita uma crítica à sociedade contemporânea (a peça se passa em 1968, mas de lá para cá nada parece ter mudado), que sustenta que o sucesso pessoal depende muito mais de uma ferrenha ambição do que de bons sentimentos, solidariedade e compaixão - Vítor ficou tomando conta do pai e talvez pretendesse algo mais do que tornar-se policial, enquanto Válter se afastou por completo e se tornou um cirurgião renomado. Quanto a Ester, esta discorda do preço que Vítor pretende aceitar, valendo-se de argumentos muito mais voltados para a suposta ausência de ambições do marido do que pelo valor material da transação.
Contendo personagens magnificamente estruturados, diálogos da mais alta teatralidade e notável imersão em temas de grande pertinência, "O preço" recebeu excelente versão cênica de Gustavo Paso. Sem renunciar a marcações expressivas e exibindo sensível domínio no tocante aos tempos rítmicos, o diretor teve a sabedoria de perceber que um texto desta natureza dispensa quaisquer mirabolâncias formais e seu sucesso está atrelado à performance dos atores, que têm que ser capazes de materializar as conturbadas relações entre os personagens. Neste sentido, Gustavo Paso merece todos os aplausos.
Na pele de Vítor, Romulo Estrela exibe presença e grande capacidade de entrega, conseguindo valorizar as principais características de um personagem atormentado, tanto pelo que é quanto por aquilo que talvez pudesse ter sido - só me permito sugerir ao ator que tente fazer maiores gradações vocais, tarefa um tanto complexa já que seu personagem transita em uma chave que basicamente se estrutura em cima de um estado quase sempre exasperado. Luciana Fávero exibe atuação convincente vivendo Ester, personagem igualmente difícil posto que impregnada de frustrações e ambições mal resolvidas, e em função disto como que aprisionada em um estado de permanente lamentação - e aqui também me permito sugerir à atriz que tente um descontrole ainda maior nas passagens em que suas expectativas parece que jamais se materializarão.
Defendendo um papel com eventuais aspectos cômicos, sem que isso minimize as premissas essenciais de um profissional que sempre busca obter vantagens, sobretudo quando o contexto evidencia claras fragilidades, Glaucio Gomes exibe aqui a melhor performance de sua carreira. Quanto a Erom Cordeiro, o excelente profissional valoriza ao máximo todas nuances de uma personalidade complexa e atormentada, ainda que procure camuflar seus tormentos com um cinismo que chega a ser repulsivo, mas que aos poucos vai desmoronando e assim permitindo ao espectador perceber que existe humanidade neste homem aparentemente insensível, arrogante e debochado. Sem dúvida, uma das melhores atuações da presente temporada.
Na equipe técnica, Luciana Fávero responde por figurinos em total sintonia com o contexto e as personalidades retratadas. Igualmente irrepreensível a cenografia de Gustavo Paso, tanto pela organização dos móveis e objetos quanto pela simbologia a eles inerente, em especial a cadeira de balanço do pai - esta me gerou uma angústia que até agora não consigo explicar, já que meu pai, há muito falecido, jamais se valeu de uma. Bernardo Lorga ilumina a cena com grande sensibilidade, conseguindo valorizar com sutileza todos os climas emocionais em jogo. São também irrepreensíveis a direção musical de André Poyart e a tradução de Thiago Russo e Gustavo Paso.
O PREÇO - Texto de Arthur Miller. Direção de Gustavo Paso. Com Romulo Estrela, Erom Cordeiro, Glaucio Gomes e Luciana Fávero. Arena Sesc Copacabana. Quinta a adomingo, 19h.
"O preço"
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Obra-prima em belíssima versão
Lionel Fischer
"Dezesseis anos após a morte do pai, dois irmãos voltam a se encontrar com o objetivo de desocuparem a casa que deixaram intacta ao longo de todos aqueles anos. Um velho antiquário vem dar-lhes um preço pelos móveis e objetos dos quais querem se desfazer. Mas a transação não é tão simples: todas aquelas coisas fazem parte da história da família, estão repletas de memórias e os obrigam a se confrontarem com o passado e as escolhas que fizeram na vida".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "O preço", de autoria do dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005). Em cartaz até domingo na Arena do Espaço Sesc, a mais recente montagem da Cia. Teatro Epigenia leva a assinatura de Gustavo Paso, estando o elenco formado por Romulo Estrela (Vítor, policial), Erom Cordeiro (Válter, médico), Luciana Fávero (Ester, esposa de Vítor) e Gláucio Gomes, (Salomon, antiquário).
Um dos aspectos mais brilhantes da presente obra reside no fato de Miller ter se valido de um acontecimento aparentemente banal - a venda de móveis que já não têm mais a menor utilidade - para empreender uma profunda e exasperante investigação sobre vários temas, dentre eles afetos mal resolvidos, mágoas, frustrações, silêncios que poderiam ter sido evitados e confissões que deveriam ter sido feitas.
E graças à genialidade de Miller, o que poderia resumir-se a um ajuste de contas entre dois irmãos ganha imensa amplitude, pois fica implícita uma crítica à sociedade contemporânea (a peça se passa em 1968, mas de lá para cá nada parece ter mudado), que sustenta que o sucesso pessoal depende muito mais de uma ferrenha ambição do que de bons sentimentos, solidariedade e compaixão - Vítor ficou tomando conta do pai e talvez pretendesse algo mais do que tornar-se policial, enquanto Válter se afastou por completo e se tornou um cirurgião renomado. Quanto a Ester, esta discorda do preço que Vítor pretende aceitar, valendo-se de argumentos muito mais voltados para a suposta ausência de ambições do marido do que pelo valor material da transação.
Contendo personagens magnificamente estruturados, diálogos da mais alta teatralidade e notável imersão em temas de grande pertinência, "O preço" recebeu excelente versão cênica de Gustavo Paso. Sem renunciar a marcações expressivas e exibindo sensível domínio no tocante aos tempos rítmicos, o diretor teve a sabedoria de perceber que um texto desta natureza dispensa quaisquer mirabolâncias formais e seu sucesso está atrelado à performance dos atores, que têm que ser capazes de materializar as conturbadas relações entre os personagens. Neste sentido, Gustavo Paso merece todos os aplausos.
Na pele de Vítor, Romulo Estrela exibe presença e grande capacidade de entrega, conseguindo valorizar as principais características de um personagem atormentado, tanto pelo que é quanto por aquilo que talvez pudesse ter sido - só me permito sugerir ao ator que tente fazer maiores gradações vocais, tarefa um tanto complexa já que seu personagem transita em uma chave que basicamente se estrutura em cima de um estado quase sempre exasperado. Luciana Fávero exibe atuação convincente vivendo Ester, personagem igualmente difícil posto que impregnada de frustrações e ambições mal resolvidas, e em função disto como que aprisionada em um estado de permanente lamentação - e aqui também me permito sugerir à atriz que tente um descontrole ainda maior nas passagens em que suas expectativas parece que jamais se materializarão.
Defendendo um papel com eventuais aspectos cômicos, sem que isso minimize as premissas essenciais de um profissional que sempre busca obter vantagens, sobretudo quando o contexto evidencia claras fragilidades, Glaucio Gomes exibe aqui a melhor performance de sua carreira. Quanto a Erom Cordeiro, o excelente profissional valoriza ao máximo todas nuances de uma personalidade complexa e atormentada, ainda que procure camuflar seus tormentos com um cinismo que chega a ser repulsivo, mas que aos poucos vai desmoronando e assim permitindo ao espectador perceber que existe humanidade neste homem aparentemente insensível, arrogante e debochado. Sem dúvida, uma das melhores atuações da presente temporada.
Na equipe técnica, Luciana Fávero responde por figurinos em total sintonia com o contexto e as personalidades retratadas. Igualmente irrepreensível a cenografia de Gustavo Paso, tanto pela organização dos móveis e objetos quanto pela simbologia a eles inerente, em especial a cadeira de balanço do pai - esta me gerou uma angústia que até agora não consigo explicar, já que meu pai, há muito falecido, jamais se valeu de uma. Bernardo Lorga ilumina a cena com grande sensibilidade, conseguindo valorizar com sutileza todos os climas emocionais em jogo. São também irrepreensíveis a direção musical de André Poyart e a tradução de Thiago Russo e Gustavo Paso.
O PREÇO - Texto de Arthur Miller. Direção de Gustavo Paso. Com Romulo Estrela, Erom Cordeiro, Glaucio Gomes e Luciana Fávero. Arena Sesc Copacabana. Quinta a adomingo, 19h.
quarta-feira, 20 de março de 2019
Teatro/CRÍTICA
"Maracanã"
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Pertinentes reflexões sobre a natureza humana
Lionel Fischer
Desde que entrei pela primeira vez em um teatro - era criança, fui levado por meus pais e esse teatro era O Tablado -, minha relação com o espetáculo sempre começou antes mesmo dele se iniciar. Interessava-me (como até hoje me interessa) olhar as pessoas, os refletores e se a cortina ainda estava fechada, ficava imaginando o que aconteceria quando a mesma fosse aberta. Ninguém me sugeriu que agisse assim, mas algo me dizia que deveria me desligar do mundo exterior e me concentrar no que viria a seguir - é claro que, com cinco ou seis anos de idade, não formulei isso desta forma.
No presente caso, assim que entrei na Sala Multiuso do Sesc, me dei conta de que havia um homem em cena. Este homem estava sentado em uma cadeira, imóvel, parcamente iluminado e olhava fixamente para a frente. Não olhava os espectadores que entravam, apenas olhava para algo que só ele via - ou talvez olhasse para si mesmo. E quando todos os espectadores já se haviam acomodado, esse homem ainda permaneceu um tempo imóvel. Depois, iniciou comedidos movimentos, que sugeriam uma certa inquietação, como se estivesse em dúvida se deveria permanecer sentado ou levantar-se. Finalmente, ele se levanta. Começa a andar pelo espaço, ainda sugerindo alguma indecisão. De repente, ele começa a falar.
Estou me referindo a "Maracanã", primeiro texto teatral de Moacir Chaves, que mescla palavras suas com outras de Shakespeare (em especial "Macbeth"), Anton Tchecov, Padre Antonio Vieira e Manuel Bandeira. Ricardo Kosovski é o único ator em cena. E o que ele faz?
De acordo com o release que me foi enviado, um homem sozinho no palco dá uma aula, ou conferência, sobre o texto Macbeth, de Shakespeare. Ele trata o assunto com muita paixão. Sua fala é atravessada pela lembrança de experiências vividas no estádio do Maracanã. A questão que virá à tona, para além do que se ouve, diz respeito à identidade desta figura: quem é esse homem? O que quer ele dizer, na verdade? De onde ele vem? O que ele terá feito? Teria ele cometido alguma atrocidade? Ou teria sido vítima de uma? Onde ele está? Onde estamos todos nós?
Bem, do meu ponto de vista - e sempre respeitando quem pensa o contrário -, todas as perguntas acima explicitadas não me parecem fundamentais, pois caso me empenhasse em respondê-las, poderia chegar a uma conclusão sobre quem é esse homem, de onde vem, o que terá feito etc. E isso teoricamente me ajudaria a entender as questões que ele formula.
No entanto, creio que isso constituiria um imenso engano, pois aí minha percepção estaria atrelada ao binômio causa/efeito, ou seja, fulano passou por determinadas situações e em função delas pensa e age dessa maneira. Posso estar enganado, naturalmente, mas para mim esse homem não existe, no sentido literal do termo.
Em meu entendimento, ele apenas materializa reflexões do autor sobre momentos que viveu e sobre autores cujas palavras nos incitam a pensar, a grosso modo, em questões relativas ao bem e ao mal. E mais: sobre a aparentemente contraditória possibilidade de haver beleza na maldade e vice-versa. Vamos a um exemplo.
Em um jogo entre Flamengo e Grêmio, no Maracanã, lá pelas tantas há um incidente que leva dezenas, talvez centenas de pessoas, a despencarem das arquibancadas. Em um primeiro momento, o Narrador (obviamente que Moacir Chaves) se mostra horrorizado. No entanto, quando as quedas se reduzem, praticamente se individualizam, ele as enxerga como gotas e a tragédia adquire contornos poéticos.
Então, caberia a pergunta: seria o Narrador um homem mau e insensível, que ao invés de se compadecer com a desgraça alheia, nela conseguiu vislumbrar uma estética que o encantou? É óbvio que não. Ele apenas foi corajoso o suficiente para admitir que, independentemente do horror que sentiu, também foi tomado pela sensação de que o trágico não exclui a possibilidade da beleza.
Outra questão intrigante diz respeito ao fato de que o presente texto prioriza reflexões sobre a peça "Macbeth", de Shakespeare, que, na opinião do crítico literário norte-americano Harold Blom, é o mais tenebroso dos dramas shakespearianos. Mas vamos nos ater apenas ao seu início. Os generais Macbeth e Banquo retornam vitoriosos de uma batalha. No caminho para casa, eles se deparam com três bruxas que fazem uma profecia: Macbeth se tornará barão e depois, rei. E os filhos de Banquo serão os próximos soberanos.
Ora, eis aqui uma curiosa contradição: se Macbeth se tornará rei, o natural seria que seus filhos se tornassem os próximos soberanos. Mas não é isso que as bruxas vaticinam. E nesta brevíssima passagem, o gênio de Shakespeare instaura o germe da tragédia, cujos ingredientes, que mais tarde vão aflorando, podem ser resumidos a três: ganância, traição e culpa.
Até esse encontro com as bruxas, Macbeth era um homem bom, valente e totalmente fiel ao seu rei, Duncan. No entanto, o vaticínio das bruxas dispara nele um processo até então impensável, incompatível com sua irrepreensível conduta. E me parece que o texto de Moacir Chaves levanta questões semelhantes: somos o que somos ou o que aparentamos ser? Ou, melhor formulando: o que somos corresponde essencialmente à nossa natureza ou esta oculta aspectos obscuros que determinadas circunstâncias podem fazer aflorar? E caso tais aspectos obscuros aflorem, devemos nos sentir culpados? E se culpados formos, existiria alguma possibilidade de redenção?
Enfim...poderia prosseguir com uma infinidade de indagações. Mas o essencial me parece destacar que Moacir Chaves escreveu uma obra que, em parceria com os gênios já mencionados, nos leva a pensar, bem mais do que a concluir. E isto se aplica ao homem que fala, ao lugar aonde está - seria o pátio de uma prisão, o canto remoto de um hospício? - e ao nosso papel, quem sabe o de alunos, quem sabe o de espectadores de uma conferência, ou ainda uma outra coisa que não me parece essencial definir.
Valendo-se de uma dinâmica cênica impregnada de silêncios, movimentos muitas vezes desconexos e trabalhando o intérprete de forma a sugerir que ele tanto pode nos acolher como nos ameaçar, que ora nos despreza e logo adiante exibe simpatia e doçura, Chaves encontrou um parceiro perfeito em Ricardo Kosovski, intérprete cuja maior virtude (refiro-me à maior, dentre muitas outras) consiste em sua admirável coragem para encarar empreitadas sujeitas a todos os riscos, ao invés de se tornar uma espécie de parasita de suas próprias conquistas. Os demais parceiros desta instigante produção também contribuem decisivamente para seu êxito - Lídia Kosovski (figurino), Fernando Mello da Costa (cenografia) e Aurélio de Simoni (iluminação).
MARACANÃ - Textos de Moacir Chaves, Shakespeare, Tchecov, Padre Antônio Vieira e Manuel Bandeira. Direção de Moacir Chaves. Com Ricardo Kosovski. Sala Multiuso do Sesc. Quinta a domingo, 18h.
"Maracanã"
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Pertinentes reflexões sobre a natureza humana
Lionel Fischer
Desde que entrei pela primeira vez em um teatro - era criança, fui levado por meus pais e esse teatro era O Tablado -, minha relação com o espetáculo sempre começou antes mesmo dele se iniciar. Interessava-me (como até hoje me interessa) olhar as pessoas, os refletores e se a cortina ainda estava fechada, ficava imaginando o que aconteceria quando a mesma fosse aberta. Ninguém me sugeriu que agisse assim, mas algo me dizia que deveria me desligar do mundo exterior e me concentrar no que viria a seguir - é claro que, com cinco ou seis anos de idade, não formulei isso desta forma.
No presente caso, assim que entrei na Sala Multiuso do Sesc, me dei conta de que havia um homem em cena. Este homem estava sentado em uma cadeira, imóvel, parcamente iluminado e olhava fixamente para a frente. Não olhava os espectadores que entravam, apenas olhava para algo que só ele via - ou talvez olhasse para si mesmo. E quando todos os espectadores já se haviam acomodado, esse homem ainda permaneceu um tempo imóvel. Depois, iniciou comedidos movimentos, que sugeriam uma certa inquietação, como se estivesse em dúvida se deveria permanecer sentado ou levantar-se. Finalmente, ele se levanta. Começa a andar pelo espaço, ainda sugerindo alguma indecisão. De repente, ele começa a falar.
Estou me referindo a "Maracanã", primeiro texto teatral de Moacir Chaves, que mescla palavras suas com outras de Shakespeare (em especial "Macbeth"), Anton Tchecov, Padre Antonio Vieira e Manuel Bandeira. Ricardo Kosovski é o único ator em cena. E o que ele faz?
De acordo com o release que me foi enviado, um homem sozinho no palco dá uma aula, ou conferência, sobre o texto Macbeth, de Shakespeare. Ele trata o assunto com muita paixão. Sua fala é atravessada pela lembrança de experiências vividas no estádio do Maracanã. A questão que virá à tona, para além do que se ouve, diz respeito à identidade desta figura: quem é esse homem? O que quer ele dizer, na verdade? De onde ele vem? O que ele terá feito? Teria ele cometido alguma atrocidade? Ou teria sido vítima de uma? Onde ele está? Onde estamos todos nós?
Bem, do meu ponto de vista - e sempre respeitando quem pensa o contrário -, todas as perguntas acima explicitadas não me parecem fundamentais, pois caso me empenhasse em respondê-las, poderia chegar a uma conclusão sobre quem é esse homem, de onde vem, o que terá feito etc. E isso teoricamente me ajudaria a entender as questões que ele formula.
No entanto, creio que isso constituiria um imenso engano, pois aí minha percepção estaria atrelada ao binômio causa/efeito, ou seja, fulano passou por determinadas situações e em função delas pensa e age dessa maneira. Posso estar enganado, naturalmente, mas para mim esse homem não existe, no sentido literal do termo.
Em meu entendimento, ele apenas materializa reflexões do autor sobre momentos que viveu e sobre autores cujas palavras nos incitam a pensar, a grosso modo, em questões relativas ao bem e ao mal. E mais: sobre a aparentemente contraditória possibilidade de haver beleza na maldade e vice-versa. Vamos a um exemplo.
Em um jogo entre Flamengo e Grêmio, no Maracanã, lá pelas tantas há um incidente que leva dezenas, talvez centenas de pessoas, a despencarem das arquibancadas. Em um primeiro momento, o Narrador (obviamente que Moacir Chaves) se mostra horrorizado. No entanto, quando as quedas se reduzem, praticamente se individualizam, ele as enxerga como gotas e a tragédia adquire contornos poéticos.
Então, caberia a pergunta: seria o Narrador um homem mau e insensível, que ao invés de se compadecer com a desgraça alheia, nela conseguiu vislumbrar uma estética que o encantou? É óbvio que não. Ele apenas foi corajoso o suficiente para admitir que, independentemente do horror que sentiu, também foi tomado pela sensação de que o trágico não exclui a possibilidade da beleza.
Outra questão intrigante diz respeito ao fato de que o presente texto prioriza reflexões sobre a peça "Macbeth", de Shakespeare, que, na opinião do crítico literário norte-americano Harold Blom, é o mais tenebroso dos dramas shakespearianos. Mas vamos nos ater apenas ao seu início. Os generais Macbeth e Banquo retornam vitoriosos de uma batalha. No caminho para casa, eles se deparam com três bruxas que fazem uma profecia: Macbeth se tornará barão e depois, rei. E os filhos de Banquo serão os próximos soberanos.
Ora, eis aqui uma curiosa contradição: se Macbeth se tornará rei, o natural seria que seus filhos se tornassem os próximos soberanos. Mas não é isso que as bruxas vaticinam. E nesta brevíssima passagem, o gênio de Shakespeare instaura o germe da tragédia, cujos ingredientes, que mais tarde vão aflorando, podem ser resumidos a três: ganância, traição e culpa.
Até esse encontro com as bruxas, Macbeth era um homem bom, valente e totalmente fiel ao seu rei, Duncan. No entanto, o vaticínio das bruxas dispara nele um processo até então impensável, incompatível com sua irrepreensível conduta. E me parece que o texto de Moacir Chaves levanta questões semelhantes: somos o que somos ou o que aparentamos ser? Ou, melhor formulando: o que somos corresponde essencialmente à nossa natureza ou esta oculta aspectos obscuros que determinadas circunstâncias podem fazer aflorar? E caso tais aspectos obscuros aflorem, devemos nos sentir culpados? E se culpados formos, existiria alguma possibilidade de redenção?
Enfim...poderia prosseguir com uma infinidade de indagações. Mas o essencial me parece destacar que Moacir Chaves escreveu uma obra que, em parceria com os gênios já mencionados, nos leva a pensar, bem mais do que a concluir. E isto se aplica ao homem que fala, ao lugar aonde está - seria o pátio de uma prisão, o canto remoto de um hospício? - e ao nosso papel, quem sabe o de alunos, quem sabe o de espectadores de uma conferência, ou ainda uma outra coisa que não me parece essencial definir.
Valendo-se de uma dinâmica cênica impregnada de silêncios, movimentos muitas vezes desconexos e trabalhando o intérprete de forma a sugerir que ele tanto pode nos acolher como nos ameaçar, que ora nos despreza e logo adiante exibe simpatia e doçura, Chaves encontrou um parceiro perfeito em Ricardo Kosovski, intérprete cuja maior virtude (refiro-me à maior, dentre muitas outras) consiste em sua admirável coragem para encarar empreitadas sujeitas a todos os riscos, ao invés de se tornar uma espécie de parasita de suas próprias conquistas. Os demais parceiros desta instigante produção também contribuem decisivamente para seu êxito - Lídia Kosovski (figurino), Fernando Mello da Costa (cenografia) e Aurélio de Simoni (iluminação).
MARACANÃ - Textos de Moacir Chaves, Shakespeare, Tchecov, Padre Antônio Vieira e Manuel Bandeira. Direção de Moacir Chaves. Com Ricardo Kosovski. Sala Multiuso do Sesc. Quinta a domingo, 18h.
segunda-feira, 18 de março de 2019
Caríssimos amigos,Com muito prazer, damos continuidade às atividades do nosso FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA, enviando a todos os títulos escolhidos para esse primeiro semestre de 2019. Esperamos contar com a presença de vocês, assim como a proveitosa divulgação junto aos amigos e aos colegas, interessados no viés cultural e psicanalítico de nosso trabalho. Um grande abraço e até lá, Ana Lúcia e Neilton Silva.UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UNIRIO/PROEXC/ESCOLA DE TEATRO) &SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO (SPRJ)APRESENTAM:FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMAPROGRAMAÇÃO DE 2019-1FILMES ANALISADOS PELO PSICANALISTA:DR. NEILTON SILVAE PELA MUSEÓLOGA E PROFESSORA DA UNIRIO:DRA. ANA LÚCIA DE CASTRO29/03 – A PÉ, ELE NÃO VAI LONGEDIREÇÃO: GUS VAN SAINT, 2018, 118 min.Sinopse: A história é real e conta como o cartunista John Callahan enfrentou o alcoolismo e o acidente que o fez perde o movimento das pernas. É nessa circunstância, que começam a surgir os desenhos de quadrinhos irônicos, que mexem com temas como racismo, sexualidade e a própria deficiência.26/04 – GRANDES ESPERANÇASDIREÇÃO: ALFONSO CUARÓN, 1998, 111 min.Sinopse: Modernização baseada em romance de Charles Dickens sobre o órfão Finn Bell, seu amor pela bela Estella, criada por senhora cruel que busca vingança contra os homens por ter sido abandonada à beira do altar, e o misterioso benfeitor que muda o destino do rapaz.31/05 – MADRE JOANA DOS ANJOSDIREÇÃO: JERZY KAWALEROWICZ, 1961, 110 min.Sinopse: Baseado em fatos reais, Madre Joana dos Anjos recria a história do inexplicado episódio das freiras possuídas de um convento localizado numa região isolada da Polônia. Um jovem padre é enviado ao local, no interior da Polônia, e lá ele encontra suas próprias tentações à espera.28/06 – O COMEÇO DE UM NOVO AMORDIREÇÃO: KURT VOELKER , 2017, 100 min.Sinopse: Após a morte de sua esposa, Bill decide mudar de cidade com seu filho, Wes, para começar do zero, enquanto tentam amenizar a dor. Eles encontram consolo no romance com duas mulheres incríveis, Lacy e Carine, que os ajudam na adaptação.SERVIÇO:SEMPRE ÀS ÚLTIMAS SEXTAS-FEIRAS DO MÊS, DAS 18H ÀS 22H.LOCAL – SALA VERA JANACOPOLUS / REITORIA DA UNIRIOENDEREÇO: AVENIDA PASTEUR, 296 – URCA.ENTRADA FRANCA E ESTACIONAMENTO. FILME: 18H; DEBATE: 20HPEQUENO HISTÓRICO DO FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMAO FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA FOI CRIADO PELOS PSICANALISTAS: DR. WALDEMAR ZUSMAN E DR. NEILTON SILVA. A PARTIR DE 2004, PASSA A CONTAR COM A PARTICIPAÇÃO DA MUSEÓLOGA E PROFESSORA DA UNIRIO, DRA. ANA LÚCIA DE CASTRO, RESPONSÁVEL PELA PESQUISA, DIVULGAÇÃO E ANÁLISE CULTURAL DOS FILMES. COM A PARCERIA: UNIRIO – PROEXC - ESCOLA DE TEATRO E SPRJ, O PROJETO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA MANTÉM UMA REGULARIDADE HÁ MAIS DE ONZE ANOS, TORNANDO-SE UM EVENTO MUITO CONCORRIDO, COM UM PÚBLICO FIEL E PARTICIPATIVO.INFORMAÇÕES: forumpsicinema@gmail.com