quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"O céu está vazio"

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Promessa de novas melodias


Lionel Fischer


"Ivan é um homem que leva a vida de maneira tediosa, sem perspectivas e grandes ambições. Casado com Laura, mantém uma relação extraconjugal com Sandra e passa todo o tempo repetindo certos clichês sociais. Tem dificuldade de se comunicar com o filho adolescente, Lui, adepto do movimento 'Emo', uma espécie de tribo que cultua a emoção extremada. A vida de Ivan sofre uma verdadeira turbulência quando é expulso de casa por Laura, depois que ela encontra um bilhte deixado por Sandra propositadamente em seu bolso".

Extraído do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima  sintetiza parte do enredo (mais adiante utilizarei o mesmo release para expor o restante da trama) de "O céu está vazio", terceiro espetáculo da Cia. Casa de Jorge - os anteriores foram "Não vamos falar sobre isso agora" e "Os estonianos". Em cartaz na Caixa Cultural, o texto chega à cena com direção de Jorge Caetano e elenco formado por Paulo Giardini (Ivan), Priscilla Steinman (Emilia), Rael Barja (Lui), Thaís Tedesco (Sandra) e Ticiana Passos (Laura).

"Ivan sofre de uma leve perda de audição que lhe causa um distúrbio conhecido como 'síndrome do zumbido'. São sons que acompanham os indivíduos que tem deficiência auditiva. Com o passar do tempo, seu problema aumenta, deixando-o atordoado, fora do eixo, fazendo com que procure um grupo de ajuda terapêutica. Lá encontra Emilia, uma 'Cosplayer', que se dedica a fazer performances fantasiada de personagens dos desenhos animados japoneses. Após conhecer Emilia, Ivan transforma sua convivência com Lui".

Conforme o prometido, aí está na íntegra o enredo de "O céu está vazio". Mas se o céu está vazio, isso equivaleria à negação da existência de Deus e então teríamos que nos reportar a Dostoievski, quando afirma: "Se Deus não existe, então tudo é permitido". Mas sendo tudo permitido, isso equivaleria à negação do outro, pois pautaríamos nossas vidas em função apenas de nossas prerrogativas, pouco nos importando com as conseqüências de nossos atos.

No entando, todos sabemos, tal postura conduziria ao caos completo. Queiramos ou não, viver é compartilhar, ainda que apenas dúvidas. E o texto de Julia Spadaccini me parece ter, como tema central, uma séria de questionamentos sobre a condição humana. E seus personagens, como se fossem náufragos de si mesmos, de certa forma se assemelham a espectros que pouco fazem além de empreender orgias sobre a campa das próprias sepulturas.

Mas estariam efetivamente mortos para vida, no sentido de comunhão e encontro com o outro? Realmente desprezam qualquer possibilidade de transcendência e por isso transitam em um universo em que as palavras revelam-se inúteis, posto que raramente promovem entendimento?

Enfim...são muitas as questões levantadas e me parece que a autora não se interessou em nos conduzir a um lugar confortável, muito pelo contrário: é como se nos convidasse a escutar nossos próprios zumbidos e, quem sabe, a partir dessa escuta, criar nossos próprios silêncios - e aqui a palavra "silêncio" deve ser entendida não como a expressão de um irremediável vazio, mas como uma possibilidade de preenchê-lo com novos sons, isentos de poluições, e então capazes de facultar o surgimento de novas melodias.

Sem dúvida, um texto extremamente original e instigante, que recebeu ótima versão cênica de Jorge Caetano, tanto no que diz respeito às marcações como no tocante aos tempos rítmicos, essenciais para uma aproximação eficaz da plateia com o inusitado universo exibido. 

Outro mérito do encenador diz respeito à forma como conduziu o elenco. Sem exceção, todos os profissionais que estão em cena valorizam ao máximo os personagens que interpretam, além de darem sempre a sensação de que sabem exatamente qual o contexto em que estão inseridos. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo - e aqui aproveito para desejar a autora, presente à estreia, que Deus (caso exista) abençoe a criança que carrega e que em breve estará entre nós.

Na equipe técnica, são de excelente nível as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta pertinente empreitada teatral - Ana Kutner (iluminação), Flávio Graff (figurinos), Fernando Melo da Costa (cenografia), Jorge Caetano (trilha sonora), Márcia Rubim (direção de movimento), Marina Magalhães (preparação corporal) e Rico Vilarouca (vídeos).

O CÉU ESTÁ VAZIO - Texto de Julia Spadaccini. Direção de Jorge Caetano. Com Paulo Giardini, Thais Tedesco, Ticiana Passos, Priscilla Steinman e Rael Barja. Caixa Cultural. Quinta a domingo, 19h30.

   

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