Teatro/CRÍTICA
"Tatodomundonomesmobarco"
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Inútil e caricata viagem
Lionel Fischer
Como se sabe, é sempre bom começar um projeto com uma boa idéia. Mas nem sempre uma boa idéia garante um produto final de qualidade. No presente caso, a idéia motivadora do espetáculo não deixa de ser potencialmente interessante: os espectadores são convertidos em passageiros de uma nau cujo comandante, ao longo da "viagem", encarna diversas personalidades, com o objetivo, ao que supomos, de lançar um olhar crítico sobre a nossa História.
Eis, em resumo, o enredo de "Tatodomundonomesmobarco", de autoria de Ricardo Napoleão, que também interpreta os vários personagens. A direção é assinada por Victor Garcia Peralta e o espetáculo está em cartaz no Porão da Laura Alvim.
Como dissemos no parágrafo inicial, o autor partiu de uma idéia potencialmente interessante. No entanto, é tamanha a fragilidade dramatúrgica que o suposto olhar crítico sobre nossa História acaba reduzido a esquetes protagonizados, em sua maioria, por personagens caricatos e que pouco ou nada têm a dizer. E o espectador só não mergulha em profundo tédio graças à presença de Ricardo Napoleão, um ator extremamente preparado, com forte presença cênica e inegável carisma.
Quanto à direção de Victor Garcia Peralta, esta se limita a movimentar o ator de um lado para outro, sem nada criar que mereça ser mencionado. Fábio Namatame responde por uma cenografia simples e funcional, sendo muito divertidos os figurinos que também assina. Adriana Ortiz ilumina a cena de forma correta.
TATODOMUNDONOMESMOBARCO - Texto e interpretação de Ricardo Napoleão. Direção de Victor Garcia Peralta. Porão da Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
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sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Teatro/CRÍTICA
"Um homem e três janelas"
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Senvível abordagem da memória
Lionel Fischer
"Há ainda espaço para se produzir e viver a memória"?. Esta frase, extraída do release que nos foi enviado, provavelmente constitui o principal questionamento do espetáculo. Mas a memória, como todos sabemos, é algo extremamente complexo. E talvez, com o passar do tempo, o fato relembrado seja menos importante do que a forma como o relembramos.
Seja como for, "Um homem e três janelas" investe na construção, desconstrução e reconstrução da memória de três mulheres, que procuram conferir algum sentido a fragmentos do passado, em especial do período em que eram crianças, e que teriam deixado marcas profundas que se perpetuaram.
Com texto e direção assinados por Emanuel Aragão, "Um homem e três janelas" marca a estréia da Companhia de Teatro das Inutilezas, formada pelo autor/diretor e as atrizes Armanda Holcomb, Emileine Zarp e Tuini Bitencourt. A montagem fica em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal até 18 de fevereiro (terças e quartas, 19h) e nos dias 05, 12 e 19 de fevereiro no Espaço Cultural Sérgio Porto (19h).
Estamos diante de uma experiência interessante, não apenas por sua temática, mas sobretudo pela forma com que é materializada na cena. O diretor Emanuel Aragão cria uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, explorando-o com humor e sensibilidade. Os mesmos predicados estão presentes na performance das jovens atrizes, que investem sem hesitação em uma forma de atuar que foge por completo aos padrões convencionais, cabendo também ressaltar o fato de que coloboraram ativamente na criação dramatúrgica. Sem dúvida, ums estréia promissora a desta recém criada companhia.
Na equipe técnica, Desirée Bastos assina criativos figurinos, sendo bastante expressiva a iluminação de Alexandre Manhães.
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"Um homem e três janelas"
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Senvível abordagem da memória
Lionel Fischer
"Há ainda espaço para se produzir e viver a memória"?. Esta frase, extraída do release que nos foi enviado, provavelmente constitui o principal questionamento do espetáculo. Mas a memória, como todos sabemos, é algo extremamente complexo. E talvez, com o passar do tempo, o fato relembrado seja menos importante do que a forma como o relembramos.
Seja como for, "Um homem e três janelas" investe na construção, desconstrução e reconstrução da memória de três mulheres, que procuram conferir algum sentido a fragmentos do passado, em especial do período em que eram crianças, e que teriam deixado marcas profundas que se perpetuaram.
Com texto e direção assinados por Emanuel Aragão, "Um homem e três janelas" marca a estréia da Companhia de Teatro das Inutilezas, formada pelo autor/diretor e as atrizes Armanda Holcomb, Emileine Zarp e Tuini Bitencourt. A montagem fica em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal até 18 de fevereiro (terças e quartas, 19h) e nos dias 05, 12 e 19 de fevereiro no Espaço Cultural Sérgio Porto (19h).
Estamos diante de uma experiência interessante, não apenas por sua temática, mas sobretudo pela forma com que é materializada na cena. O diretor Emanuel Aragão cria uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, explorando-o com humor e sensibilidade. Os mesmos predicados estão presentes na performance das jovens atrizes, que investem sem hesitação em uma forma de atuar que foge por completo aos padrões convencionais, cabendo também ressaltar o fato de que coloboraram ativamente na criação dramatúrgica. Sem dúvida, ums estréia promissora a desta recém criada companhia.
Na equipe técnica, Desirée Bastos assina criativos figurinos, sendo bastante expressiva a iluminação de Alexandre Manhães.
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quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
Nem me fale
Teatro/CRÍTICA
"Nem me fale"
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Boas idéias, textos irregulares
Lionel Fischer
Criada em 1991, a Companhia Estável de Humor já levou à cena inúmeros espetáculos, dentre eles "O malfeitor", "Tartufo", "Popeye, o marinheiro" e "Coração mamulengo", tendo recebido muitas premiações. Agora o grupo está em cartaz, no Teatro do Leblon, com "Nem me fale - a comédia". Mário Mendes e Carmen Leonora assinam texto, direção e também interpretam todos os personagens.
Estruturada na forma de esquetes, a presente montagem tem como tema central a dificuldade de comunicação entre as pessoas, ainda que por variadas razões. E o primeiro esquete apresentado, sem dúvida o melhor e ainda que revelando clara influência de Ionesco, nos mostra um casal de idosos que em momento algum consegue concordar, estabelecer um elo comum que lhe permita dar prosseguimento à conversa iniciada - eles confundem seus nomes, a relação que supostamente possuem, as recordações são sempre contraditórias etc. Muuito engraçado e ao mesmo tempo comovente, em nossa opinião este esquete poderia ter sido convertido em uma peça curta, dado seu sedutor potencial.
A partir daí, no entanto, os textos são muito inferiores, exceção feita àquele que exibe o encontro de duas senhoras que, por falarem tanto e ao mesmo tempo, jamais estabelecem um verdadeiro diálogo, ainda que acreditem que estão realmente conversando. Os demais carecem de maior interesse e não raro pecam por uma certa prolixidade.
Quanto ao espetáculo, este está em sintonia com o material dramatúrgico, com a dupla de diretores conseguindo criar marcas divertidas e imprevistas. Mas julgamos excessiva a duração de certas trocas de roupa, até por que os atores teriam plenas condições de executar bem os personagens sem a necessidade de caracterizá-los de forma tão detalhada.
Com relação ao elenco, consideramos Carmen Leonora uma das melhores atrizes de sua geração, possuidora de vastos e diversificados recursos expressivos. E Mário Mendes também é um profissional extremamente gabaritado. E justamente por isso gostaríamos de ver a dupla realizando algo mais consistente e não investindo seu talento em algo muito aquém do que podem realizar. No entanto, torna-se imperioso registrar que executam muito bem os personagens que criaram - na verdade, mais tipos do que propriamente personagens.
Na equipe técnica, destacamos os hilariantes figurinos de Olinda Mendes e os adereços e ambientação cênica de Helena Rangel, sendo corretas a trilha sonora de Charles Kahn e a iluminação de Wagner Dias.
NEM ME FALE, A COMÉDIA - Texto, direção e atuação de Carmen Leonora e Mário Mendes.
Teatro do Leblon. Terça e quarta, 21h. Quinta, 17h.
"Nem me fale"
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Boas idéias, textos irregulares
Lionel Fischer
Criada em 1991, a Companhia Estável de Humor já levou à cena inúmeros espetáculos, dentre eles "O malfeitor", "Tartufo", "Popeye, o marinheiro" e "Coração mamulengo", tendo recebido muitas premiações. Agora o grupo está em cartaz, no Teatro do Leblon, com "Nem me fale - a comédia". Mário Mendes e Carmen Leonora assinam texto, direção e também interpretam todos os personagens.
Estruturada na forma de esquetes, a presente montagem tem como tema central a dificuldade de comunicação entre as pessoas, ainda que por variadas razões. E o primeiro esquete apresentado, sem dúvida o melhor e ainda que revelando clara influência de Ionesco, nos mostra um casal de idosos que em momento algum consegue concordar, estabelecer um elo comum que lhe permita dar prosseguimento à conversa iniciada - eles confundem seus nomes, a relação que supostamente possuem, as recordações são sempre contraditórias etc. Muuito engraçado e ao mesmo tempo comovente, em nossa opinião este esquete poderia ter sido convertido em uma peça curta, dado seu sedutor potencial.
A partir daí, no entanto, os textos são muito inferiores, exceção feita àquele que exibe o encontro de duas senhoras que, por falarem tanto e ao mesmo tempo, jamais estabelecem um verdadeiro diálogo, ainda que acreditem que estão realmente conversando. Os demais carecem de maior interesse e não raro pecam por uma certa prolixidade.
Quanto ao espetáculo, este está em sintonia com o material dramatúrgico, com a dupla de diretores conseguindo criar marcas divertidas e imprevistas. Mas julgamos excessiva a duração de certas trocas de roupa, até por que os atores teriam plenas condições de executar bem os personagens sem a necessidade de caracterizá-los de forma tão detalhada.
Com relação ao elenco, consideramos Carmen Leonora uma das melhores atrizes de sua geração, possuidora de vastos e diversificados recursos expressivos. E Mário Mendes também é um profissional extremamente gabaritado. E justamente por isso gostaríamos de ver a dupla realizando algo mais consistente e não investindo seu talento em algo muito aquém do que podem realizar. No entanto, torna-se imperioso registrar que executam muito bem os personagens que criaram - na verdade, mais tipos do que propriamente personagens.
Na equipe técnica, destacamos os hilariantes figurinos de Olinda Mendes e os adereços e ambientação cênica de Helena Rangel, sendo corretas a trilha sonora de Charles Kahn e a iluminação de Wagner Dias.
NEM ME FALE, A COMÉDIA - Texto, direção e atuação de Carmen Leonora e Mário Mendes.
Teatro do Leblon. Terça e quarta, 21h. Quinta, 17h.
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
O t e s t e
de Lionel Fischer
Personagens
Diretor
Psicopata
Carmem Loyola
Clotilde
Sensível
Dreiffus
Zaira
Jessica
Carloaugusto
Carmem
Micaela
Sara
Mohamed
Cassandra
Cenário
13 cadeiras
(Os atores chegam com o público. Tempo. Surge o Diretor, trazendo umas fichas)
Diretor - Boa noite. Os que vieram para o teste, por favor, no palco. (Os atores sobem e se sentam em cadeiras, cujo número corresponde ao de candidatos. O Diretor repara que uma cadeira fica vaga) Bem, parece que um dos candidatos desistiu do teste...enfim, problema dele. (Nesse momento, surge o Psicopata, que pára perto do palco) Pois não?
Psicopata - Eu também vim pro teste.
Diretor - Ah, é?
Psicopata - É.
Diretor - Mas o senhor está atrasado.
Psicopata - Quanto?
Diretor - Por favor...(Faz um gesto convidando o Psicopata a ir para o seu lugar. Ele obedece) Bem, como vocês sabem, o Centro Experimental de Pesquisas Cênicas faz os seus testes de admissão com a presença de uma platéia. Dessa platéia, evidentemente, não consta ninguém da relação de vocês, porque isso poderia funcionar como um elemento inibidor. Ou então de sutil coação: um parente ou amigo de vocês mais assanhado poderia inventar de aplaudir uma bobagem qualquer que vocês fizessem, tentando assim influenciar minha decisão. Ou seja, em ambos os casos a presença de pessoas conhecidas não é recomendável. Bem, a primeira fase da nossa avaliação se dará assim: eu chamo um por um, vocês dizem quantos anos têm, de onde são, onde moram, se tem algum tipo de profissão etc. E em seguida mostram o que prepararam. Podemos começar? Ótimo. (Olha as fichas) Carmem Loyola...
Carmem Loyola- Aqui!
Diretor - Por favor.
Carmem Loyola - Bem, eu me chamo Carmem Loyola Veiga de Almeida de Assumpção y Albuquerque. Passei um pouquinho dos 30 – mas só um pouquinho – sou casada com um empresário do ramo amoroso e...
Diretor - Ramo amoroso...como assim?
Carmem Loyola - É que meu marido tem uma rede de motéis.
Diretor - Ah, claro.
Carmem Loyola - Bem...tenho quatro filhos: Mário Antonio, Antonio Mário, Maria e Antonia, as meninas são gêmeas. Bem, eu nasci no Rio, mas já há algum tempo estou morando na Barra. Quanto à profissão...sei lá, sou casada. Não deixa de ser uma profissão, não é mesmo?
Diretor - É verdade. E o que foi que a senhora preparou?
Carmem Loyola - Ah, o senhor vai adorar! Só um minutinho! (Ela tira enormes tamancos de uma bolsa e um par de chocalhos. Coloca os tamancos, empunha os chocalhos e quando entra a música, sai dançando feito uma alucinada. Terminado o número, volta para o seu lugar, guarda os tamancos e os chocalhos. O Diretor faz anotações numa ficha)
Diretor - A senhora, por favor.
Clotilde - Meu nome é Clotilde Assunta, minha idade não interessa a ninguém, sou solteira, vim de Aquidauana, Mato Grosso do Sul e me considero uma pessoa intensa.
Diretor - Intensa...como assim?
Clotilde - Eu vivo profundamente as minhas emoções.
Sensível (Cantando) - Eu sei que estou aqui/ Vivendo esse momento lindo/ (Outros alunos se juntam no canto) Olhando pra você/ E as mesmas emoções fluindo!!!
Diretor - Mas o que é isso? Quem foi que autorizou esse coral medonho?
Sensível - Desculpe, mestre. Mas quando ela falou em emoções, não deu pra segurar.
Diretor - Mas eu espero que dê, daqui pra frente. A sua hora de se exibir ainda não chegou.
Sensível - Peço desculpas mais uma vez. E me desculpo também com a colega.
Clotilde - Eu aceito a sua desculpa. Do fundo do meu coração.
Diretor - Bem...retomando: a senhora dizia que vive intensamente as suas emoções.
Clotilde - Não só as minhas. As emoções dos outros também. Eu sou um feixe de nervos, sempre pronta a reagir ao menor estímulo. Tudo me toca. Tudo me sensibiliza. E como tudo me toca e tudo me sensibiliza, eu acho que também posso tocar e sensibilizar as pessoas. Por isso resolvi ser atriz.
Diretor - Muito bem. E o que vamos ter, senhora Assunta?
Clotilde - Uma versão falada de uma obra-prima do nosso cancioneiro popular amargo.
Diretor - Do nosso...o quê? (A música começa. É “Meu mundo caiu”)
Clotilde - E aí? Comoveu-se?
Diretor - Bastante.
Clotilde - Mas eu não estou vendo lágrimas em seu rosto!
Diretor - É que eu...sou um tanto reprimido. Custo muito a chorar.
Clotilde - Mas comigo na turma, o senhor vai chorar. E muito!
Diretor - De tristeza ou de alegria?
Clotilde - Isso pouco importa. O fundamental é deixar escorrer!
Diretor - Certo...deixar escorrer...bem... Você.
Dreiffus - Meu nome é Dreiffus da Silva, tenho 23 anos, sou de Vitória, moro aqui desde os doze anos e desde então me dedico ao estudo e imitação de dinossauros.
Diretor - Como é?
Dreiffus - Eu tenho paixão por essas criaturas. E essa paixão só fez aumentar à medida que eu passei a imitá-las. Aliás, o número que eu preparei é exatamente a imitação de um dinossauro. Mais especificamente de um Tiranossauro Rex no processo de procura, espreita e finalmente captura de uma vítima.
Diretor - Tudo bem, mas o que essa paixão tem a ver com teatro? Ou o senhor imagina que exista um vasto repertório de peças em que o senhor possa imitar dinossauros?
Dreiffus - A imitação do dinossauro em questão, mestre, serve apenas como uma amostra de uma habilidade específica. Aliás, se o senhor me permitir, no final desta avaliação eu posso perfeitamente imitar o senhor.
Diretor - O senhor está insinuando que eu pareço um dinossauro?
Dreiffus - Em absoluto. Ao menos numa avaliação superficial. (Ri da suposta piada)
Diretor - Eu fico muito grato. Bem...vamos ao “número”?
Dreiffus - Nesse minuto. (E então, tendo como pano de fundo uma música dinossáurica, ele imita o dito monstro no contexto mencionado) E então: foi convincente?
Diretor - De um realismo inacreditável. Aliás, eu só não saí correndo porque minhas pernas simplesmente ficaram paralisadas.
Dreiffus - Foi o que eu imaginei.
Diretor - A senhora.
Zaira - O meu nome é Zaira Zambolho. Tudo o que fui deixou de ser quando Shiva se apossou de todos os meus chacras. E o que eu sou hoje é o que importa.
Diretor - E o que a senhora é?
Zaira - Aquela que segue a Palavra. Que se esvazia e se enche a todo momento. Que tem a constância da inconstância das marés. Que quando se separa de alguma coisa, deixa em aberto a promessa de um encontro futuro. Fui clara?
Diretor - Claríssima. Vamos então à apresentação?
Zaira - Com certeza. (Ela acende um incenso, contempla a fumaça, a acompanha com um oscilar de corpo. Depois, põe o incenso no dedão do pé)
Diretor - Acabou?
Zaira - Nada acaba, mestre. Se estreitarmos nossa convivência, o senhor se dará conta disso.
Diretor - Certamente. Mas...em que eu devo me basear para saber se a senhora fez ou não uma boa apresentação?
Zaira - Olhe primeiro para dentro de si mesmo. Tente recompor as sua emoções primevas enquanto me observava comunhando com o universo. Se o fizer, a resposta surgirá despida de toda a névoa.
Diretor - Tudo bem. Eu...prometo fazer isso, nem que seja mais tarde.
Zaira - Cada um governa o seu tempo. E Shiva, o tempo de todos nós.
Diretor - Muito obrigado. A senhora.
Jessica - Que que tem eu?
Diretor - Se apresente, por favor.
Jessica - Bem...meu nome é Jessica Brown, eu tenho...
Diretor - O nome de batismo, por favor. Eu quero saber quem a senhora é e não quem gostaria de ser.
Jessica - Mas é assim que eu me chamo!?
Diretor - A senhorita é americana, inglesa ou irlandesa?
Jessica - Não, sou de Magé.
Diretor - E se chama Jessica Brown...
Jessica - Sabe que que é, professor? Quando eu fiquei maiorzinha, eu pedi pros meus pais mudarem meu nome. Ele é muito feio. E não tem ressonância artística!
Diretor - Mas eu gostaria de conhecê-lo, se não se importa.
Jessica - Bem...eu me chamo...Gessy Cabral.
Diretor - Gessy Cabral...Realmente, trata-se de um nome, enfim...
Carloaugusto - Feio pra caralho!
Jessica - Tá vendo? É por isso que eu....
Diretor - Escuta aqui, meu filho: em primeiro lugar, ninguém pediu a sua opinião. E depois, quando você se manifestar, não use palavras de baixo calão! Entendeu?
Carloaugusto - Mais ou menos...
Diretor - Como assim, mais ou menos?
Carloaugusto - Eu sei lá o que que é calão, professor!
Diretor - O seu nome, por favor.
Carloaugusto - Carloaugusto.
Diretor - Escreve junto, isso aí? Ou é Carlos Augusto?
Carloaugusto - Escreve junto. É tudo colado: Carloaugusto. Tá aí na ficha.
Diretor - E o sobrenome?
Carloaugusto - Pinto Mancuzo. Pinto do pai. Mancuzo da mãe. Também deve estar na ficha.
Diretor - Muito bem, senhor Pinto. Já já nós conversamos. (À Jessica). Bem, senhorita, o que vamos ter?
Jessica - Só um instantinho: deu pro senhor notar a mudança no meu nome?
Diretor - Não atinei, não.
Jessica - Então atina: Gessy Cabral é um horror, mas Jessica Brown é o máximo, concorda?
Diretor - Concordo.
Jessica - E mostra como eu sou criativa. Eu peguei o meu nome e inglesei!
Diretor - É verdade. A senhorita “inglesou”. Mas...vamos ao que interessa?
Jessica - Vamos. Eu vou mostrar o que é que uma menina da minha idade deve fazer pra seduzir um garoto que tá a fim dela, mas é travado pra cacete. Os dois tão sentados na mesa de um bar, por exemplo. O cara tá mandando aquele papo de encruzilhada, sacou? Que não vai nem prum lado nem pro outro. E a menina tá afinzona dele. Então, ela pode escutar tipo assim, que é pro cara se tocar que ela tá se latejando toda e tudo o que ela quer é transar! (Faz caras, bocas e posturas sensuais) Depois disso, eu garanto, o garoto só não come ela se for viado! (E volta para o seu lugar)
Diretor - É...talvez a senhorita tenha razão. Só mais uma coisa: você faz o quê, quando não está realizando esse tipo de performance num bar?
Jessica - Ah, professor...eu tô sempre atuando!?
Diretor - Tudo bem. E agora, vamos ao senhor. O que foi que preparou?
Carloaugusto - Uma demonstração. Tipo a da Jessica. Só que usando uma pessoa de verdade, sacou?
Diretor - Não. Mas pode fazer.
Carloaugusto - Posso usar uma pessoa da platéia?
Diretor - Depende. Eu não quero que ninguém aqui se sinta constrangido.
Carloaugusto - Constrangido? Como assim?
Diretor - Incomodado, meu filho. De alguma forma invadido na sua privacidade. Vai, faz essa tal demonstração, por favor!
Carloaugusto - Ok, mestre. Fui! (E desce na platéia. Cola numa menina bonita) E aí, gata? (Tempo) E aí, gata? (Tempo) Pô, tô te achando super inteligente!? (Volta para o palco)
Diretor - Mas o que vem a ser isso, seu Pinto?
Carloaugusto - Pô, mestre, na boa. Não tô acreditando que o senhor não sacou o lance!
Diretor - Que lance, garoto?
Carloaugusto - Pô, todo mundo viu. Eu fui lá, mandei uns fluidos e...
Diretor - E o quê?
Carloaugusto - Pô, mestre, agora sou eu que tô ficando aquele negócio que o senhor falou...
Diretor - Constrangido...
Carloaugusto - E isso aí! Tô incomodadão!
Diretor - Incomodadão estou eu, com essa demonstração ridícula!
Carloaugusto - Ridícula? Pergunta lá pra menina se ela achou ridícula! Aposto que ela tá toda arrepiada com os fluidos que eu mandei! Tá ou não tá, gata?
Diretor - Agora chega. Se o senhor permite, eu gostaria de prosseguir com a avaliação.
Carloaugusto - Vai fundo, mestre.
Diretor - Bem, continuando. Você! (Carmem e Micaela se levantam)
Carmem - Nós viemos juntas.
Micaela - Somos irmãs.
Carmem - Meu nome é Carmem.
Micaela - E o meu, Micaela.
Carmem - Somos do Rio.
Micaela - Do Alto Leblon.
Carmem - Papai já morreu.
Micaela - Mas mamãe ainda não.
Carmem - Estudamos na Puc.
Micaela - Direito Penal.
Carmem - Mas amamos cantar.
Micaela - E é o que vamos fazer.
As duas - Podemos?
Diretor - Quando quiserem. (Micaela fica em cena. Carmem, de fora)
Carmem - Onde é que cê tá! Onde é que cê tá! Onde é que cê tá!
Micaela - Estou aqui! Onde disse que estaria! Plantada na sala!
Carmem (Surgindo) - Criatura hedionda, é o que cê é!
Micaela - Eu não vejo por que eu seria hedionda!
Carmem - Não se faça de cínica ou eu perco a cabeça!
Micaela - Cínica eu? E porque eu sô cínica?
Carmem - Porque vais me deixar! E simulas que não!
Micaela - Eu simulo que não? Mas se estou de partida!
Carmem - Vais deixar tua rainha! E partir com um escravo!
Micaela - Um escravo gostoso! Babilônio tesudo!
Carmem - De gostoso tem nada! E além disso ele é mudo!
Micaela - Mas tem algo precioso! Que nunca terás!
Carmem - Imagino o que seja! Um cacete pontudo!
Micaela - Um ariete potente! Parece um escudo!
Carmem - Minha ninfa adorada! Não me troques por ele!
Micaela - Já troquei e não enche! Não me torres o saco!
Carmem - Tu és uma ingrata! Alma e corpo eu te dei!
Micaela - Deste o corpo e alma, isso eu bem sei!
Carmem - E então, criatura? Não foi o bastante?
Micaela - Por um tempo bastou, mas agora eu tô noutra!
Carmem - Eu arranco essa roupa! E te dou umas porradas!
Micaela - Cuidado, rainha! Que eu sou mais sarada!
Carmem - Se bateres em mim, eu convoco a guarda!
Micaela - Com todos transei, não farão nada!
Carmem - Então és galinha, como já suspeitava!
Micaela - Cisquei como louca, bem na tua cara!
Carmem - Então adeus, aqui finda o enredo!
Micaela - Não chores rainha, utiliza teu dedo!
Carmem - E o que faço com ele, poderias dizer?
Micaela - Depende do dedo, e em que buraco o meter!
Diretor - Ok, ok, vamos parar por aqui.
Carmem - Mas ainda não acabou!?
Micaela - Falta só um pedacinho!?
Diretor - Eu já vi o bastante, obrigado. Ficou perfeitamente claro que a moça vai embora...
Carmem - A concubina ingrata...
Diretor - Com o escravo gostoso.
Micaela - O babilônio tesudo.
Diretor - Ótimo. Deu pra perceber. Por favor, voltem pros seus lugares. Vamos ao senhor, agora. O senhor é o quê?
Psicopata - Sou psicopata.
Diretor - O quê?
Psicopata - Foi o que o médico disse.
Diretor - Não entendi. Isso é alguma piada?
Psicopata - Não. É diagnóstico mesmo. Feito lá na prisão.
Diretor - Na prisão? Como assim?
Psicopata - Eu tive preso um tempo. Agora tô em liberdade condicional.
Diretor - E...que crime o senhor cometeu?
Psicopata - Eu matei a dona do apartamento que eu alugava.
Diretor - Matou?
Psicopata - Foi assim: ele veio cobrar o aluguel, eu disse que não tinha. No dia seguinte, ela voltou. Eu disse que não tinha. No terceiro dia, ela voltou. Aí eu perdi a paciência e cortei a garganta dela.
Diretor - E ainda assim conseguiu liberdade condicional?
Psicopata - Teve um advogado lá que pediu revisão do processo. Ele alegou que eu tive privação dos sentidos.
Diretor - E o senhor acha que teve?
Psicopata - Claro. Qualquer um perde a cabeça com uma velha pegando no nosso pé todo dia.
Diretor - Eu...bem...enfim, o senhor preparou alguma coisa?
Psicopata - Preparei. Eu vou mostrar como foi o meu desentendimento com essa senhora. (Vai para o centro, simula a conversa) Não tenho: passa amanhã. Não tenho: passa amanhã. Não tenho: passa...não, não passa mais porra nenhuma. (Simula o crime) Vai passar na casa do caralho...(Para o diretor) Legal?
Diretor - Depois a gente conversa. A senhora. (Sara e Mohamed se levantam) O senhor espera um pouco, faz favor. Eu só chamei a moça.
Sara - É que nós estamos juntos, master.
Diretor - Como assim?
Sara - Posso explicar em poucas palavras?
Diretor - Se forem poucas.
Sara - Pois bem: como o senhor já deve ter notado, eu sou judia. E até os 12 anos eu morei em Israel, no kibutz Harmelim, com meu pai – minha mãe morreu de parto, segundo papai porque eu entalei na hora de sair e parece que acabou rompendo lá umas coisas de mamãe etc. Pois bem: estava eu num ônibus, voltando da escola, em Jerusalém, indo para casa, quando ele – Sander Mohamed – que como o senhor já deve ter notado é árabe, começou a jogar uns verdes pra cima de mim. No início, eu me fingi de surda, pois papai sempre me proibiu de falar com eles, os árabes. Além disso, Sander Mohamed era muito mais velho do que eu e eu fiquei com medo de ele ser pedófilo. Mas ele foi tão gentil, educado e engraçado, que quando me convidou para descer e comermos juntos um ramaliutaiá – o senhor sabe o que é um ramaliutaiá? É um docinho típico da terrinha, uma espécie de cremekraker com uma caldinha de framboesa. Eu estava com muita fome e como além disso Sander Mohamed me garantiu que pagaria o docinho, eu resolvi descer do ônibus com ele. Pois bem: nós estávamos bem na porta da confeitaria e antes mesmo de entrarmos, ouvimos uma explosão medonha. O ônibus tinha ido pelos ares porque um dos passageiros era um homem-bomba. Quer dizer: graças a Sander Mohamed eu escapei do atentado. É claro que fiquei muito nervosa, mas mesmo assim comi o ramaliutaiá, pago por Sander Mohamed. Pois bem: depois disso, nos encontramos várias vezes e acabei me apaixonando. Quando contei pro papá o que estava acontecendo no meu coração, ele me arrastou para o Brasil, na esperança de que, numa terra tão distante de Israel, eu acabasse esquecendo Sander Mohamed e me enamorasse de um judeu brasileiro. Mas Sander Mohamed partiu atrás de mim, só que ele começou a me procurar no nordeste, mais especificamente em Fortaleza. E não me encontrando na aprazível cidade, veio descendo pelo litoral, até que finalmente, oito anos depois, nos reencontramos e retomamos nossa relação. Pois bem: ao saber disso, papá quis me arrastar de volta para Israel, mas teve um ataque apoplético e hoje meio que vegeta numa cadeirinha de rodas enferrujada, que eu comprei a prazo numa liquidação. Pois bem:
Diretor - Será que a senhora poderia abreviar um pouco essa saga?
Sara - Já estou terminando. Pois bem: na minha ausência, Sander Mohamed começou a trabalhar como ator. E é o que ele deseja fazer aqui no Brasil.
Diretor - Muito bem: e o que é que Sander Mohamed vai apresentar?
Sara - Sander Mohamed vai apresentar o mais extraordinário monólogo de toda a história do teatro. O célebre “É ou não é”, do fabuloso bardo.
Diretor - A senhora provavelmente está se referindo ao “Ser ou não ser”, de Shakespeare...
Sara - É que nós fizemos uma releitura árabe-judaica de toda aquela indecisão.
Diretor - Vamos lá, então. (Mohamed começa, mas antes que Sara faça a primeira tradução...) Espera aí: mas o que é isso?
Sara - Sander Mohamed tem um pequeno problema vocal.
Diretor - Pequeno?
Sara - Eu explico. Sander Mohamed teve uma fase terrorista e num sangrento confronto na faixa de Gaza, um patrício meu jogou uma granada no rosto de Sander Mohamed, que mesmo tendo conseguido se desviar do projétil, um fragmento dele se engavetou na goela de Sander Mohamed, que por causa desse entrevero ficou um pouco fanho.
Diretor - Um pouco? Mas ele é completamente fanho!
Sara - Acho que o mestre está sendo muito radical.
Diretor - E ele imagina que possa ser ator assim?
Sara - Pode. E é aí que entro eu. Quando Sander Mohamed interpreta um texto, eu sirvo de intérprete, ainda que neutra, pois Sander Mohamed é inimitável.
Diretor - Tudo bem. Vamos a esse momento sublime. (Eles fazem)
Sara - E então, master?
Mohamed - Ahnnhan?
Sara - Gostou?
Diretor - Me faltam palavras...
Sara - Viu, Sander Mohamed?
Mohamed - Ahannhn.
Sara - Ele viu. (Vão se sentar)
Diretor - A senhora, por favor.
Cassandra - Meu nome é Cassandra. Tenho 28 anos. Sou formada em Educação Física, especialidade em basquete. Curto muito musculação e quando dá, remo na Lagoa.
Diretor - E o que vamos ter?
Cassandra - Eu sou fissurada em MPB. Nas cantoras de MPB. Elas falam tudo o que eu gostaria de falar. Então eu escolhi uma música que tem tudo a ver com o meu momento atual. “Devolva-me”. E que a Adrianinha interpretou feito uma deusa.
Diretor - Perdão...mas quem é Adrianinha?
Cassandra - A Calcanhoto, porra. Tem outra na praça?
Diretor - Que eu saiba, não.
Cassandra - Então. A Adrianinha gravou, mas como eu não sou cantora, vou só dizer a letra, que é um puta dum poema, e como eu já disse, tem tudo a ver com o meu momento atual. Vamo lá: Rasque as minhas cartas/ E não me procure mais/ Assim vai ser melhor, meu bem/ O retrato que eu te dei/ Se ainda tens...(Ela pára, olha fixamente um ponto na platéia) Ana? É você? (Desce do palco, vai até Ana, que é alguém da platéia) Que que tu tá fazendo aqui, cachorrona? Num bastou arrebentar com o meu coração? Agora tu quer arrebentar com o meu teste? E o meu retrato, porra? Que tu ficou de devolver? Tô esperando até hoje! (Tempo) Tudo bem...mas se ele não tiver na minha portaria até amanhã, eu vou na tua caça e onde eu te encontrar te encho de porrada! (Volta para o palco) Se ainda tens não sei/ Mas se tiver, devolva-me/ Deixe-me sozinha/ Porque assim eu viverei em paz/ Quero que sejas bem feliz junto do teu novo rapaz! (A Ana) Agora num te esquece: com rapaz ou sem rapaz, se tu não me devolver o meu retrato, já sabe: a porrada vai comer. E se teu namoradinho se meter a besta, cubro ele também, sacou? (Ao Diretor) Desculpe, professor. Mas é que essa vadia não tinha nada que ter vindo. Nem sei como foi que ela descobriu que eu vinha fazer esse teste.
Diretor - Vai ver que ela ainda te ama.
Cassandra - Isso num ama ninguém. Isso ama dinheiro!
Diretor - Tudo bem, senhora Cassandra. Quem sabe numa outra ocasião a senhora consegue equacionar melhor essa relação tão delicada.
Cassandra - Eu equaciono é a mão na fuça dela!
Diretor - Bem, vamos prosseguir. O senhor, que me parece o último.
Sensível - Só pareço, mestre. Porque eu não nasci pra nenhum final de fila.
Diretor - Uma estrela, é o que o senhor pretende ser?
Sensível - Fulgurante. Porque eu mereço.
Diretor - E em que se baseia essa crença?
Sensível - Na minha inaudita capacidade de conferir profundidade a tudo que parece banal. Antes de mim, só Paulo Coelho exibiu esse dom.
Diretor - Pelo que vejo, além de famoso o senhor pretende ficar rico.
Sensível - Será inevitável. É inerente ao sistema capitalista.
Diretor - Muito bem: vamos ao número?
Sensível - Número não, mestre. Isso aqui não é um cabaré e muito menos um circo. Faça-me o favor. Eu vou fazer uma performance, o que é completamente diferente!
Diretor - Me deculpe, senhor...
Sensível - Lourival Atento. Mas pode me chamar de Lori.
Diretor - Muito bem, senhor Lori. Vamos à performance?
Sensível - Só um minutinho. Antes eu preciso dar uma aquecida no meu material de trabalho. (Faz rapidamente estranhíssimos exercícios sonoros) Agora sim: estou à sua disposição.
Diretor - O senhor não prefere largar um momento esses livros?
Sensível - Não prefiro não. Eles são parte integrante da minha pessoa.
Diretor - Não resta dúvida.
Sensível - E agora eu pediria que o senhor não me interrompesse mais. O que vou apresentar exige de mim mais do que um ser humano pode suportar.
Diretor - Mas o senhor vai suportar, não é mesmo?
Sensível - Mestre! Por favor!?
Diretor - Desculpe. (Sensível faz a performance, que termina com a breve leitura de um fragmento de poema) Bem...agora que todos vocês mostraram o que tinham preparado, chegou o momento de vocês lidarem com o desconhecido. Nessa segunda parte de nossa avaliação, vamos partir para improvisações em dupla. Mas só vão fazer quatro duplas, em função da dinâmica do exercício. Prestem atenção: eu vou dar um tema e vocês improvisam no máximo durante um minuto. O tema é o mesmo para todas as duplas: uma separação. Podem ser dois amantes, dois amigos, marido e mulher, o que vocês quiserem. Vamos lá? (Olha as fichas) Jessica e...Carloaugusto. (Carloaugusto e Jessica vão para o centro) Agora, tem um detalhe: vocês só podem usar quatro palavras por frase, certo? Não podem ser nem três nem cinco. Tem que ser quatro palavras!
Carloaugusto - Professor...
Diretor - Não, senhor Carloagusto. Não é possível que o senhor não tenha entendido! Eu fui claríssimo! Ok, começando! (Eles começam)
Jessica - Então é verdade, Carloaugusto?
Carloaugusto - É verdade, Jessica Brown.
Jessica - Não me ama mais?
Carloaugusto - Amo não, Jessica Brown.
Jessica - Mas ontem você amava!?
Carloaugusto - Ontem amava, Jessica Brown.
Jessica - Tá gostando de outra?
Carloaugusto - Tô gostando, Jessica Brown.
Jessica - Eu conheço essa vagabunda?
Carloaugusto - Conhece sim, Jessica Brown.
Jéssica - Pode dizer quem é?
Carloaugusto - Posso sim, Jessica Brown.
Jéssica - Então me diz, Carloaugusto!
Carloaugusto - Tua mãe, Jessica Brown.
Jéssica - Mamãe não, mamãe não!
Carloaugusto - Mamãe sim, mamãe sim, Jessica...ih, professor, estourei o limite. Mandei cinco.
Diretor - Faz mal não, porque eu já ia parar mesmo.
Carloaugusto - E aí? Gostou?
Diretor - Adorei! Sobretudo o fato de o senhor ter repetido sempre o nome dela no final...virou uma espécie de refrão...interessantíssimo, por sinal.
Carloaugusto - É que eu sou muito criativo.
Diretor - Isso eu percebi assim que o senhor entrou aqui...podem sentar. (No caminho...)
Jessica - Carloaugusto!
Carloaugusto - Jesssica!
Jessica - Cada vez que você dizia o meu nome eu...
Carloaugusto - Ficava toda arrepiada!
Jessica - Me latejava toda!
Carloaugusto - Fala assim não, Jessica!
Diretor - Será que eu posso prosseguir? (Os dois se calam) Bem...(Sorteia) Clotilde e...Zaira (Elas vão para o centro) Detalhe: agora só podem ser usadas três palavras por frase, ok? Valendo! (Clotilde chora)
Zaira - Chora não, Assunta!
Clotilde (Tentando disfarçar) - Chorar? Eu, Zambolho?
Zaira - Você vive chorando.
Clotilde - Isso é verdade.
Zaira - Nada mais natural...
Clotilde - Que chorasse agora?
Zaira - Na nossa despedida.
Clotilde - Isso te alegra?
Zaira - Não seja escrota.
Clotilde - Que palavra terrível.
Zaira - Saiu sem querer.
Clotilde - Eu nunca pensei...
Zaira - Te peço perdão.
Clotilde - Fora. Fora daqui.
Zaira - Não seja implacável.
Clotilde - Implacável eu sou.
Zaira - Me beija, querida.
Clotilde - Um beijo, imploras?
Zaira - Um beijo, suplico.
Clotilde - Não o terás.
Zaira - Se é assim...
Clotilde - Assim o é.
Zaira - Vá se fuder!
Clotilde - Melhor que contigo. (As duas se olham ferozmente)
Diretor - Ótimo, ótimo. Podemos parar por aqui. Nos seus lugares, por favor. (Enquanto elas caminham...)
Clotilde - Eu nunca pensei que você fosse me chamar de escrota.
Zaira - Nem eu. Saiu assim, num impulso. Me perdoa, amiga.
Clotilde - E depois...me mandar transar comigo mesma!?
Zaira - Esquece tudo, Assunta! Limpa teu chacra!
Clotilde - Vou fazer uma faxina nele...
Diretor - Prosseguindo...(Sorteia) Mohamed e...Sara. (Eles vão para o centro) Agora, só duas palavras por frase!
Sara - Tô indo.
Mohamed - Annnnnnn...ahnnnnn.
Sara - Tudo bem?
Mohamed - Ahnnn...ahnnnn?
Sara - Sander Mohamed!
Mohamed - Ahnnnn...ahnnnn.
Sara - Grito sim!
Mohamed - Ahnnn...ahnnnn?
Sara - Pode bater!
Mohamed - Ahnnnn...ahnnn!
Sara (Mohamed a esbofeteia) – Palestino canalha! (Os dois se atracam. O Diretor e alguns alunos finalmente conseguem apartar) Fariseu desalmado! No rostinho de Sara nem meu papá encostou!
Mohamed - Ahnnn...ahnnn…ahnnn…ahnnnn!
Sara - Foi sem querer é o cacete, terrorista fanho!
Mohamed - Ahnnn...ahnnn…ahnnn!
Sara - Deixa Alá de for a disso, devoto fajuto!
Mohamed - Ahhhhhhhhhhhhhhhhhnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!
Sara - O quê? Você está me propondo que eu devolva o bofete?
Mohamed - Ahnnnn...ahannnn!
Sara - E você não reage?
Mohamed - Ahnnnnn...ahnnnnn!
Sara - Entendo…e assim a ofensa se anula?
Mohamed - Ahnnnn...ahannnnn!
Sara - Sander Mohamed! Você é um homem maravilhoso! (Esbofeteia ele) Eu te amo muito, sabia?
Mohamed - Ahnnnnn.
Sara - E agora me diz: doeu muito o bofete de Sara? Fala, magrinho! (Sentam)
Diretor - Bem...uma vez concluída essa cena de pugilato, vamos à última dupla. Que só poderá usar uma palavra de cada vez. (Sorteia) Lourival e...Carmem. (Os dois no centro)
Carmem - Eu abandono ou sou abandonada?
Sensível - Eu te abandono. A contragosto, sofrendo muito, mas eu te abandono.
Diretor - Por favor, sem nenhuma explicação, ok? O que o senhor é ou como está se sentindo tem que ficar claro é na cena.
Sensível - Tudo bem. Senta ali, Carmem, e assume um ar de desdém altivo, que logo você vai abandonar quando eu...
Diretor - Senhor Lori! Por favor!?
Sensível - Eu sou estou tentando contextualizar o momento.
Diretor - Não contextualiza nada. Começa!
Sensível (Após intensa preparação) - Fui!
Carmem - Não.
Sensível - Sim.
Carmem - Lori!
Sensível - Diga.
Carmem - Eu...
Sensível - Coragem.
Carmem - Te...
Sensível - Conclui.
Carmem - Amo.
Sensível - Ama?
Carmem - Muito.
Sensível - Verdade?
Carmem - Sim.
Sensível - Ahahahahahahahaha!
Carmem - Pára!
Sensível - Incomodo?
Carmem - Bastante.
Sensível - Lamento.
Carmem - Esquece.
Sensível - Nunca.
Carmem - Então...
Sensível - Adeus! (E vai saindo)
Carmem - Corno!
Sensível (Voltando) - Ahnnn?
Carmem - Boiola!
Sensível - Ahnnnnn?
Carmem - Peidão!
Sensível - Ahnnn?
Diretor - Ok, podemos parar por aqui.
Sensível - Mas a cena ainda não terminou, professor! Quando ela me xingasse novamente e todo mundo pensasse que eu iria soltar mais um “ahnnnn”, eu engoliria em seco e sairia exibindo o mesmo desdém altivo da Carmem no início da cena. Mas o senhor, é claro, não teve um mínimo de paciência e estragou tudo!
Diretor - Escuta aqui, meu filho...
Sensível - Por favor! Se o senhor possui alguma sensibilidade, me deixa quieto um instante, que eu preciso me recuperar!
Sara - Ele precisa se recuperar, professor! Deixa ele quieto um instantinho!
Diretor - A senhora não se meta. Eu sei perfeitamente como lidar com alunos desse tipo!
Sensível - Desse tipo? Quer dizer que para o senhor...eu sou um tipo!?
Sara - Muito interessante, por sinal. Um rapaz esplêndido!
Sensível - Você jura, ramaliutaiá?
Sara - Juro! Só fica feio quando incorpora o caboclo do Borel.
Sensível - Olha...é tão bom escutar isso de uma pessoa como você.
Sara - E eu adorei você me chamar de ramaliutaiá! É tão poético!
Mohamed - Ahnnnn.ahnnnnnn
Sara - Não estou paquerando ele não. Ah, vocês árabes...como são ciumentos!
Diretor - Muito bem: vamos agora à parte final. Vocês todos são náufragos e estão à deriva num barquinho. Muita fome, muita sede, muito cansaço. De repente, alguém descobre que o barquinho está adernando por excesso de peso. Então, a única solução é jogar alguém no mar. O grupo escolhe essa pessoa e faz o que tem que fazer. E tudo isso sem pronunciar uma única palavra. Se for o caso, vocês podem gemer, arfar ou qualquer coisa no gênero.
Carloaugusto - Professor...
Diretor - Vamos começar? (Os alunos se agrupam canhestramente) Estamos em pleno mar. Valendo! (Os alunos tentam simular a situação. Finalmente, Sander Mohamed é jogado na água. Mas então, ao invés de apenas debater-se, ele grita)
Mohamed - Socorro! Socorro! (Todos interrompem o exercício e se entreolham)
Diretor - Mas o que é isso? O senhor não é árabe?
Mohamed - Não. Eu nasci em Varginha.
Diretor - E também não é fanho...
Sara (Sem sotaque) - Eu posso explicar, professor.
Diretor - E a senhora, pelo visto, também não é judia.
Sara - Não, sou carioca mesmo. De Belfort Roxo.
Diretor - E vocês? Também não são o que pareciam ser?
Sensível - Não.
Diretor - Quer dizer então que eu estou a quase uma hora lidando com pessoas que não existem! É mais ou menos por aí?
Sensível - Sabe o que é, mestre?
Diretor - Não, não sei. E não estou nem um pouco interessado em saber. Por gentileza, tenham a bondade de se retirar.
Sensível - É que nos disseram que era preciso agir assim pra conseguir entrar nessa escola.
Diretor - Como é que é?
Sensível - Falaram pra gente que o senhor só fica sensibilizado com candidatos que tenham, sei lá, uma história curiosa, que sejam pessoas diferentes. Então, como a gente chegou bem antes do horário, combinamos que cada um tentaria fazer um tipo capaz de despertar a sua simpatia. Só isso.
Jessica - Não foi por mal, professor.
Sara (Com sotaque ) - Dá mais uma chance pra nós, dá, master Fischer?
Diretor (Com sotaque) - Eu detesta dar chance...compreendeu, sua picareta?
Sara (Sem sotaque) - Gente! Ele imita judeu melhor que eu!
Sensível - Ele é maravilhoso! Todo mundo sabe disso! (E aí todos começam a falar ao mesmo tempo, pedindo uma nova oportunidade. Depois de um tempo...)
Diretor - Tudo bem. Eu vou pensar. De qualquer forma, estejam todos aqui amanhã. Às nove. (Alegria geral, comentários felizes etc. O Diretor vai deixando o palco por um lado, os atores por outro. O Psicopata fica parado no centro)
Psicopata - Professor...(O diretor e os atores param e se viram para o Psicopata)
Diretor - Sim?
Psicopata - Eu só queria lembrar ao senhor que eu cheguei atrasado...
(Todos se imobilizam. As luzes vão caindo em resistência)
_____________________________
de Lionel Fischer
Personagens
Diretor
Psicopata
Carmem Loyola
Clotilde
Sensível
Dreiffus
Zaira
Jessica
Carloaugusto
Carmem
Micaela
Sara
Mohamed
Cassandra
Cenário
13 cadeiras
(Os atores chegam com o público. Tempo. Surge o Diretor, trazendo umas fichas)
Diretor - Boa noite. Os que vieram para o teste, por favor, no palco. (Os atores sobem e se sentam em cadeiras, cujo número corresponde ao de candidatos. O Diretor repara que uma cadeira fica vaga) Bem, parece que um dos candidatos desistiu do teste...enfim, problema dele. (Nesse momento, surge o Psicopata, que pára perto do palco) Pois não?
Psicopata - Eu também vim pro teste.
Diretor - Ah, é?
Psicopata - É.
Diretor - Mas o senhor está atrasado.
Psicopata - Quanto?
Diretor - Por favor...(Faz um gesto convidando o Psicopata a ir para o seu lugar. Ele obedece) Bem, como vocês sabem, o Centro Experimental de Pesquisas Cênicas faz os seus testes de admissão com a presença de uma platéia. Dessa platéia, evidentemente, não consta ninguém da relação de vocês, porque isso poderia funcionar como um elemento inibidor. Ou então de sutil coação: um parente ou amigo de vocês mais assanhado poderia inventar de aplaudir uma bobagem qualquer que vocês fizessem, tentando assim influenciar minha decisão. Ou seja, em ambos os casos a presença de pessoas conhecidas não é recomendável. Bem, a primeira fase da nossa avaliação se dará assim: eu chamo um por um, vocês dizem quantos anos têm, de onde são, onde moram, se tem algum tipo de profissão etc. E em seguida mostram o que prepararam. Podemos começar? Ótimo. (Olha as fichas) Carmem Loyola...
Carmem Loyola- Aqui!
Diretor - Por favor.
Carmem Loyola - Bem, eu me chamo Carmem Loyola Veiga de Almeida de Assumpção y Albuquerque. Passei um pouquinho dos 30 – mas só um pouquinho – sou casada com um empresário do ramo amoroso e...
Diretor - Ramo amoroso...como assim?
Carmem Loyola - É que meu marido tem uma rede de motéis.
Diretor - Ah, claro.
Carmem Loyola - Bem...tenho quatro filhos: Mário Antonio, Antonio Mário, Maria e Antonia, as meninas são gêmeas. Bem, eu nasci no Rio, mas já há algum tempo estou morando na Barra. Quanto à profissão...sei lá, sou casada. Não deixa de ser uma profissão, não é mesmo?
Diretor - É verdade. E o que foi que a senhora preparou?
Carmem Loyola - Ah, o senhor vai adorar! Só um minutinho! (Ela tira enormes tamancos de uma bolsa e um par de chocalhos. Coloca os tamancos, empunha os chocalhos e quando entra a música, sai dançando feito uma alucinada. Terminado o número, volta para o seu lugar, guarda os tamancos e os chocalhos. O Diretor faz anotações numa ficha)
Diretor - A senhora, por favor.
Clotilde - Meu nome é Clotilde Assunta, minha idade não interessa a ninguém, sou solteira, vim de Aquidauana, Mato Grosso do Sul e me considero uma pessoa intensa.
Diretor - Intensa...como assim?
Clotilde - Eu vivo profundamente as minhas emoções.
Sensível (Cantando) - Eu sei que estou aqui/ Vivendo esse momento lindo/ (Outros alunos se juntam no canto) Olhando pra você/ E as mesmas emoções fluindo!!!
Diretor - Mas o que é isso? Quem foi que autorizou esse coral medonho?
Sensível - Desculpe, mestre. Mas quando ela falou em emoções, não deu pra segurar.
Diretor - Mas eu espero que dê, daqui pra frente. A sua hora de se exibir ainda não chegou.
Sensível - Peço desculpas mais uma vez. E me desculpo também com a colega.
Clotilde - Eu aceito a sua desculpa. Do fundo do meu coração.
Diretor - Bem...retomando: a senhora dizia que vive intensamente as suas emoções.
Clotilde - Não só as minhas. As emoções dos outros também. Eu sou um feixe de nervos, sempre pronta a reagir ao menor estímulo. Tudo me toca. Tudo me sensibiliza. E como tudo me toca e tudo me sensibiliza, eu acho que também posso tocar e sensibilizar as pessoas. Por isso resolvi ser atriz.
Diretor - Muito bem. E o que vamos ter, senhora Assunta?
Clotilde - Uma versão falada de uma obra-prima do nosso cancioneiro popular amargo.
Diretor - Do nosso...o quê? (A música começa. É “Meu mundo caiu”)
Clotilde - E aí? Comoveu-se?
Diretor - Bastante.
Clotilde - Mas eu não estou vendo lágrimas em seu rosto!
Diretor - É que eu...sou um tanto reprimido. Custo muito a chorar.
Clotilde - Mas comigo na turma, o senhor vai chorar. E muito!
Diretor - De tristeza ou de alegria?
Clotilde - Isso pouco importa. O fundamental é deixar escorrer!
Diretor - Certo...deixar escorrer...bem... Você.
Dreiffus - Meu nome é Dreiffus da Silva, tenho 23 anos, sou de Vitória, moro aqui desde os doze anos e desde então me dedico ao estudo e imitação de dinossauros.
Diretor - Como é?
Dreiffus - Eu tenho paixão por essas criaturas. E essa paixão só fez aumentar à medida que eu passei a imitá-las. Aliás, o número que eu preparei é exatamente a imitação de um dinossauro. Mais especificamente de um Tiranossauro Rex no processo de procura, espreita e finalmente captura de uma vítima.
Diretor - Tudo bem, mas o que essa paixão tem a ver com teatro? Ou o senhor imagina que exista um vasto repertório de peças em que o senhor possa imitar dinossauros?
Dreiffus - A imitação do dinossauro em questão, mestre, serve apenas como uma amostra de uma habilidade específica. Aliás, se o senhor me permitir, no final desta avaliação eu posso perfeitamente imitar o senhor.
Diretor - O senhor está insinuando que eu pareço um dinossauro?
Dreiffus - Em absoluto. Ao menos numa avaliação superficial. (Ri da suposta piada)
Diretor - Eu fico muito grato. Bem...vamos ao “número”?
Dreiffus - Nesse minuto. (E então, tendo como pano de fundo uma música dinossáurica, ele imita o dito monstro no contexto mencionado) E então: foi convincente?
Diretor - De um realismo inacreditável. Aliás, eu só não saí correndo porque minhas pernas simplesmente ficaram paralisadas.
Dreiffus - Foi o que eu imaginei.
Diretor - A senhora.
Zaira - O meu nome é Zaira Zambolho. Tudo o que fui deixou de ser quando Shiva se apossou de todos os meus chacras. E o que eu sou hoje é o que importa.
Diretor - E o que a senhora é?
Zaira - Aquela que segue a Palavra. Que se esvazia e se enche a todo momento. Que tem a constância da inconstância das marés. Que quando se separa de alguma coisa, deixa em aberto a promessa de um encontro futuro. Fui clara?
Diretor - Claríssima. Vamos então à apresentação?
Zaira - Com certeza. (Ela acende um incenso, contempla a fumaça, a acompanha com um oscilar de corpo. Depois, põe o incenso no dedão do pé)
Diretor - Acabou?
Zaira - Nada acaba, mestre. Se estreitarmos nossa convivência, o senhor se dará conta disso.
Diretor - Certamente. Mas...em que eu devo me basear para saber se a senhora fez ou não uma boa apresentação?
Zaira - Olhe primeiro para dentro de si mesmo. Tente recompor as sua emoções primevas enquanto me observava comunhando com o universo. Se o fizer, a resposta surgirá despida de toda a névoa.
Diretor - Tudo bem. Eu...prometo fazer isso, nem que seja mais tarde.
Zaira - Cada um governa o seu tempo. E Shiva, o tempo de todos nós.
Diretor - Muito obrigado. A senhora.
Jessica - Que que tem eu?
Diretor - Se apresente, por favor.
Jessica - Bem...meu nome é Jessica Brown, eu tenho...
Diretor - O nome de batismo, por favor. Eu quero saber quem a senhora é e não quem gostaria de ser.
Jessica - Mas é assim que eu me chamo!?
Diretor - A senhorita é americana, inglesa ou irlandesa?
Jessica - Não, sou de Magé.
Diretor - E se chama Jessica Brown...
Jessica - Sabe que que é, professor? Quando eu fiquei maiorzinha, eu pedi pros meus pais mudarem meu nome. Ele é muito feio. E não tem ressonância artística!
Diretor - Mas eu gostaria de conhecê-lo, se não se importa.
Jessica - Bem...eu me chamo...Gessy Cabral.
Diretor - Gessy Cabral...Realmente, trata-se de um nome, enfim...
Carloaugusto - Feio pra caralho!
Jessica - Tá vendo? É por isso que eu....
Diretor - Escuta aqui, meu filho: em primeiro lugar, ninguém pediu a sua opinião. E depois, quando você se manifestar, não use palavras de baixo calão! Entendeu?
Carloaugusto - Mais ou menos...
Diretor - Como assim, mais ou menos?
Carloaugusto - Eu sei lá o que que é calão, professor!
Diretor - O seu nome, por favor.
Carloaugusto - Carloaugusto.
Diretor - Escreve junto, isso aí? Ou é Carlos Augusto?
Carloaugusto - Escreve junto. É tudo colado: Carloaugusto. Tá aí na ficha.
Diretor - E o sobrenome?
Carloaugusto - Pinto Mancuzo. Pinto do pai. Mancuzo da mãe. Também deve estar na ficha.
Diretor - Muito bem, senhor Pinto. Já já nós conversamos. (À Jessica). Bem, senhorita, o que vamos ter?
Jessica - Só um instantinho: deu pro senhor notar a mudança no meu nome?
Diretor - Não atinei, não.
Jessica - Então atina: Gessy Cabral é um horror, mas Jessica Brown é o máximo, concorda?
Diretor - Concordo.
Jessica - E mostra como eu sou criativa. Eu peguei o meu nome e inglesei!
Diretor - É verdade. A senhorita “inglesou”. Mas...vamos ao que interessa?
Jessica - Vamos. Eu vou mostrar o que é que uma menina da minha idade deve fazer pra seduzir um garoto que tá a fim dela, mas é travado pra cacete. Os dois tão sentados na mesa de um bar, por exemplo. O cara tá mandando aquele papo de encruzilhada, sacou? Que não vai nem prum lado nem pro outro. E a menina tá afinzona dele. Então, ela pode escutar tipo assim, que é pro cara se tocar que ela tá se latejando toda e tudo o que ela quer é transar! (Faz caras, bocas e posturas sensuais) Depois disso, eu garanto, o garoto só não come ela se for viado! (E volta para o seu lugar)
Diretor - É...talvez a senhorita tenha razão. Só mais uma coisa: você faz o quê, quando não está realizando esse tipo de performance num bar?
Jessica - Ah, professor...eu tô sempre atuando!?
Diretor - Tudo bem. E agora, vamos ao senhor. O que foi que preparou?
Carloaugusto - Uma demonstração. Tipo a da Jessica. Só que usando uma pessoa de verdade, sacou?
Diretor - Não. Mas pode fazer.
Carloaugusto - Posso usar uma pessoa da platéia?
Diretor - Depende. Eu não quero que ninguém aqui se sinta constrangido.
Carloaugusto - Constrangido? Como assim?
Diretor - Incomodado, meu filho. De alguma forma invadido na sua privacidade. Vai, faz essa tal demonstração, por favor!
Carloaugusto - Ok, mestre. Fui! (E desce na platéia. Cola numa menina bonita) E aí, gata? (Tempo) E aí, gata? (Tempo) Pô, tô te achando super inteligente!? (Volta para o palco)
Diretor - Mas o que vem a ser isso, seu Pinto?
Carloaugusto - Pô, mestre, na boa. Não tô acreditando que o senhor não sacou o lance!
Diretor - Que lance, garoto?
Carloaugusto - Pô, todo mundo viu. Eu fui lá, mandei uns fluidos e...
Diretor - E o quê?
Carloaugusto - Pô, mestre, agora sou eu que tô ficando aquele negócio que o senhor falou...
Diretor - Constrangido...
Carloaugusto - E isso aí! Tô incomodadão!
Diretor - Incomodadão estou eu, com essa demonstração ridícula!
Carloaugusto - Ridícula? Pergunta lá pra menina se ela achou ridícula! Aposto que ela tá toda arrepiada com os fluidos que eu mandei! Tá ou não tá, gata?
Diretor - Agora chega. Se o senhor permite, eu gostaria de prosseguir com a avaliação.
Carloaugusto - Vai fundo, mestre.
Diretor - Bem, continuando. Você! (Carmem e Micaela se levantam)
Carmem - Nós viemos juntas.
Micaela - Somos irmãs.
Carmem - Meu nome é Carmem.
Micaela - E o meu, Micaela.
Carmem - Somos do Rio.
Micaela - Do Alto Leblon.
Carmem - Papai já morreu.
Micaela - Mas mamãe ainda não.
Carmem - Estudamos na Puc.
Micaela - Direito Penal.
Carmem - Mas amamos cantar.
Micaela - E é o que vamos fazer.
As duas - Podemos?
Diretor - Quando quiserem. (Micaela fica em cena. Carmem, de fora)
Carmem - Onde é que cê tá! Onde é que cê tá! Onde é que cê tá!
Micaela - Estou aqui! Onde disse que estaria! Plantada na sala!
Carmem (Surgindo) - Criatura hedionda, é o que cê é!
Micaela - Eu não vejo por que eu seria hedionda!
Carmem - Não se faça de cínica ou eu perco a cabeça!
Micaela - Cínica eu? E porque eu sô cínica?
Carmem - Porque vais me deixar! E simulas que não!
Micaela - Eu simulo que não? Mas se estou de partida!
Carmem - Vais deixar tua rainha! E partir com um escravo!
Micaela - Um escravo gostoso! Babilônio tesudo!
Carmem - De gostoso tem nada! E além disso ele é mudo!
Micaela - Mas tem algo precioso! Que nunca terás!
Carmem - Imagino o que seja! Um cacete pontudo!
Micaela - Um ariete potente! Parece um escudo!
Carmem - Minha ninfa adorada! Não me troques por ele!
Micaela - Já troquei e não enche! Não me torres o saco!
Carmem - Tu és uma ingrata! Alma e corpo eu te dei!
Micaela - Deste o corpo e alma, isso eu bem sei!
Carmem - E então, criatura? Não foi o bastante?
Micaela - Por um tempo bastou, mas agora eu tô noutra!
Carmem - Eu arranco essa roupa! E te dou umas porradas!
Micaela - Cuidado, rainha! Que eu sou mais sarada!
Carmem - Se bateres em mim, eu convoco a guarda!
Micaela - Com todos transei, não farão nada!
Carmem - Então és galinha, como já suspeitava!
Micaela - Cisquei como louca, bem na tua cara!
Carmem - Então adeus, aqui finda o enredo!
Micaela - Não chores rainha, utiliza teu dedo!
Carmem - E o que faço com ele, poderias dizer?
Micaela - Depende do dedo, e em que buraco o meter!
Diretor - Ok, ok, vamos parar por aqui.
Carmem - Mas ainda não acabou!?
Micaela - Falta só um pedacinho!?
Diretor - Eu já vi o bastante, obrigado. Ficou perfeitamente claro que a moça vai embora...
Carmem - A concubina ingrata...
Diretor - Com o escravo gostoso.
Micaela - O babilônio tesudo.
Diretor - Ótimo. Deu pra perceber. Por favor, voltem pros seus lugares. Vamos ao senhor, agora. O senhor é o quê?
Psicopata - Sou psicopata.
Diretor - O quê?
Psicopata - Foi o que o médico disse.
Diretor - Não entendi. Isso é alguma piada?
Psicopata - Não. É diagnóstico mesmo. Feito lá na prisão.
Diretor - Na prisão? Como assim?
Psicopata - Eu tive preso um tempo. Agora tô em liberdade condicional.
Diretor - E...que crime o senhor cometeu?
Psicopata - Eu matei a dona do apartamento que eu alugava.
Diretor - Matou?
Psicopata - Foi assim: ele veio cobrar o aluguel, eu disse que não tinha. No dia seguinte, ela voltou. Eu disse que não tinha. No terceiro dia, ela voltou. Aí eu perdi a paciência e cortei a garganta dela.
Diretor - E ainda assim conseguiu liberdade condicional?
Psicopata - Teve um advogado lá que pediu revisão do processo. Ele alegou que eu tive privação dos sentidos.
Diretor - E o senhor acha que teve?
Psicopata - Claro. Qualquer um perde a cabeça com uma velha pegando no nosso pé todo dia.
Diretor - Eu...bem...enfim, o senhor preparou alguma coisa?
Psicopata - Preparei. Eu vou mostrar como foi o meu desentendimento com essa senhora. (Vai para o centro, simula a conversa) Não tenho: passa amanhã. Não tenho: passa amanhã. Não tenho: passa...não, não passa mais porra nenhuma. (Simula o crime) Vai passar na casa do caralho...(Para o diretor) Legal?
Diretor - Depois a gente conversa. A senhora. (Sara e Mohamed se levantam) O senhor espera um pouco, faz favor. Eu só chamei a moça.
Sara - É que nós estamos juntos, master.
Diretor - Como assim?
Sara - Posso explicar em poucas palavras?
Diretor - Se forem poucas.
Sara - Pois bem: como o senhor já deve ter notado, eu sou judia. E até os 12 anos eu morei em Israel, no kibutz Harmelim, com meu pai – minha mãe morreu de parto, segundo papai porque eu entalei na hora de sair e parece que acabou rompendo lá umas coisas de mamãe etc. Pois bem: estava eu num ônibus, voltando da escola, em Jerusalém, indo para casa, quando ele – Sander Mohamed – que como o senhor já deve ter notado é árabe, começou a jogar uns verdes pra cima de mim. No início, eu me fingi de surda, pois papai sempre me proibiu de falar com eles, os árabes. Além disso, Sander Mohamed era muito mais velho do que eu e eu fiquei com medo de ele ser pedófilo. Mas ele foi tão gentil, educado e engraçado, que quando me convidou para descer e comermos juntos um ramaliutaiá – o senhor sabe o que é um ramaliutaiá? É um docinho típico da terrinha, uma espécie de cremekraker com uma caldinha de framboesa. Eu estava com muita fome e como além disso Sander Mohamed me garantiu que pagaria o docinho, eu resolvi descer do ônibus com ele. Pois bem: nós estávamos bem na porta da confeitaria e antes mesmo de entrarmos, ouvimos uma explosão medonha. O ônibus tinha ido pelos ares porque um dos passageiros era um homem-bomba. Quer dizer: graças a Sander Mohamed eu escapei do atentado. É claro que fiquei muito nervosa, mas mesmo assim comi o ramaliutaiá, pago por Sander Mohamed. Pois bem: depois disso, nos encontramos várias vezes e acabei me apaixonando. Quando contei pro papá o que estava acontecendo no meu coração, ele me arrastou para o Brasil, na esperança de que, numa terra tão distante de Israel, eu acabasse esquecendo Sander Mohamed e me enamorasse de um judeu brasileiro. Mas Sander Mohamed partiu atrás de mim, só que ele começou a me procurar no nordeste, mais especificamente em Fortaleza. E não me encontrando na aprazível cidade, veio descendo pelo litoral, até que finalmente, oito anos depois, nos reencontramos e retomamos nossa relação. Pois bem: ao saber disso, papá quis me arrastar de volta para Israel, mas teve um ataque apoplético e hoje meio que vegeta numa cadeirinha de rodas enferrujada, que eu comprei a prazo numa liquidação. Pois bem:
Diretor - Será que a senhora poderia abreviar um pouco essa saga?
Sara - Já estou terminando. Pois bem: na minha ausência, Sander Mohamed começou a trabalhar como ator. E é o que ele deseja fazer aqui no Brasil.
Diretor - Muito bem: e o que é que Sander Mohamed vai apresentar?
Sara - Sander Mohamed vai apresentar o mais extraordinário monólogo de toda a história do teatro. O célebre “É ou não é”, do fabuloso bardo.
Diretor - A senhora provavelmente está se referindo ao “Ser ou não ser”, de Shakespeare...
Sara - É que nós fizemos uma releitura árabe-judaica de toda aquela indecisão.
Diretor - Vamos lá, então. (Mohamed começa, mas antes que Sara faça a primeira tradução...) Espera aí: mas o que é isso?
Sara - Sander Mohamed tem um pequeno problema vocal.
Diretor - Pequeno?
Sara - Eu explico. Sander Mohamed teve uma fase terrorista e num sangrento confronto na faixa de Gaza, um patrício meu jogou uma granada no rosto de Sander Mohamed, que mesmo tendo conseguido se desviar do projétil, um fragmento dele se engavetou na goela de Sander Mohamed, que por causa desse entrevero ficou um pouco fanho.
Diretor - Um pouco? Mas ele é completamente fanho!
Sara - Acho que o mestre está sendo muito radical.
Diretor - E ele imagina que possa ser ator assim?
Sara - Pode. E é aí que entro eu. Quando Sander Mohamed interpreta um texto, eu sirvo de intérprete, ainda que neutra, pois Sander Mohamed é inimitável.
Diretor - Tudo bem. Vamos a esse momento sublime. (Eles fazem)
Sara - E então, master?
Mohamed - Ahnnhan?
Sara - Gostou?
Diretor - Me faltam palavras...
Sara - Viu, Sander Mohamed?
Mohamed - Ahannhn.
Sara - Ele viu. (Vão se sentar)
Diretor - A senhora, por favor.
Cassandra - Meu nome é Cassandra. Tenho 28 anos. Sou formada em Educação Física, especialidade em basquete. Curto muito musculação e quando dá, remo na Lagoa.
Diretor - E o que vamos ter?
Cassandra - Eu sou fissurada em MPB. Nas cantoras de MPB. Elas falam tudo o que eu gostaria de falar. Então eu escolhi uma música que tem tudo a ver com o meu momento atual. “Devolva-me”. E que a Adrianinha interpretou feito uma deusa.
Diretor - Perdão...mas quem é Adrianinha?
Cassandra - A Calcanhoto, porra. Tem outra na praça?
Diretor - Que eu saiba, não.
Cassandra - Então. A Adrianinha gravou, mas como eu não sou cantora, vou só dizer a letra, que é um puta dum poema, e como eu já disse, tem tudo a ver com o meu momento atual. Vamo lá: Rasque as minhas cartas/ E não me procure mais/ Assim vai ser melhor, meu bem/ O retrato que eu te dei/ Se ainda tens...(Ela pára, olha fixamente um ponto na platéia) Ana? É você? (Desce do palco, vai até Ana, que é alguém da platéia) Que que tu tá fazendo aqui, cachorrona? Num bastou arrebentar com o meu coração? Agora tu quer arrebentar com o meu teste? E o meu retrato, porra? Que tu ficou de devolver? Tô esperando até hoje! (Tempo) Tudo bem...mas se ele não tiver na minha portaria até amanhã, eu vou na tua caça e onde eu te encontrar te encho de porrada! (Volta para o palco) Se ainda tens não sei/ Mas se tiver, devolva-me/ Deixe-me sozinha/ Porque assim eu viverei em paz/ Quero que sejas bem feliz junto do teu novo rapaz! (A Ana) Agora num te esquece: com rapaz ou sem rapaz, se tu não me devolver o meu retrato, já sabe: a porrada vai comer. E se teu namoradinho se meter a besta, cubro ele também, sacou? (Ao Diretor) Desculpe, professor. Mas é que essa vadia não tinha nada que ter vindo. Nem sei como foi que ela descobriu que eu vinha fazer esse teste.
Diretor - Vai ver que ela ainda te ama.
Cassandra - Isso num ama ninguém. Isso ama dinheiro!
Diretor - Tudo bem, senhora Cassandra. Quem sabe numa outra ocasião a senhora consegue equacionar melhor essa relação tão delicada.
Cassandra - Eu equaciono é a mão na fuça dela!
Diretor - Bem, vamos prosseguir. O senhor, que me parece o último.
Sensível - Só pareço, mestre. Porque eu não nasci pra nenhum final de fila.
Diretor - Uma estrela, é o que o senhor pretende ser?
Sensível - Fulgurante. Porque eu mereço.
Diretor - E em que se baseia essa crença?
Sensível - Na minha inaudita capacidade de conferir profundidade a tudo que parece banal. Antes de mim, só Paulo Coelho exibiu esse dom.
Diretor - Pelo que vejo, além de famoso o senhor pretende ficar rico.
Sensível - Será inevitável. É inerente ao sistema capitalista.
Diretor - Muito bem: vamos ao número?
Sensível - Número não, mestre. Isso aqui não é um cabaré e muito menos um circo. Faça-me o favor. Eu vou fazer uma performance, o que é completamente diferente!
Diretor - Me deculpe, senhor...
Sensível - Lourival Atento. Mas pode me chamar de Lori.
Diretor - Muito bem, senhor Lori. Vamos à performance?
Sensível - Só um minutinho. Antes eu preciso dar uma aquecida no meu material de trabalho. (Faz rapidamente estranhíssimos exercícios sonoros) Agora sim: estou à sua disposição.
Diretor - O senhor não prefere largar um momento esses livros?
Sensível - Não prefiro não. Eles são parte integrante da minha pessoa.
Diretor - Não resta dúvida.
Sensível - E agora eu pediria que o senhor não me interrompesse mais. O que vou apresentar exige de mim mais do que um ser humano pode suportar.
Diretor - Mas o senhor vai suportar, não é mesmo?
Sensível - Mestre! Por favor!?
Diretor - Desculpe. (Sensível faz a performance, que termina com a breve leitura de um fragmento de poema) Bem...agora que todos vocês mostraram o que tinham preparado, chegou o momento de vocês lidarem com o desconhecido. Nessa segunda parte de nossa avaliação, vamos partir para improvisações em dupla. Mas só vão fazer quatro duplas, em função da dinâmica do exercício. Prestem atenção: eu vou dar um tema e vocês improvisam no máximo durante um minuto. O tema é o mesmo para todas as duplas: uma separação. Podem ser dois amantes, dois amigos, marido e mulher, o que vocês quiserem. Vamos lá? (Olha as fichas) Jessica e...Carloaugusto. (Carloaugusto e Jessica vão para o centro) Agora, tem um detalhe: vocês só podem usar quatro palavras por frase, certo? Não podem ser nem três nem cinco. Tem que ser quatro palavras!
Carloaugusto - Professor...
Diretor - Não, senhor Carloagusto. Não é possível que o senhor não tenha entendido! Eu fui claríssimo! Ok, começando! (Eles começam)
Jessica - Então é verdade, Carloaugusto?
Carloaugusto - É verdade, Jessica Brown.
Jessica - Não me ama mais?
Carloaugusto - Amo não, Jessica Brown.
Jessica - Mas ontem você amava!?
Carloaugusto - Ontem amava, Jessica Brown.
Jessica - Tá gostando de outra?
Carloaugusto - Tô gostando, Jessica Brown.
Jessica - Eu conheço essa vagabunda?
Carloaugusto - Conhece sim, Jessica Brown.
Jéssica - Pode dizer quem é?
Carloaugusto - Posso sim, Jessica Brown.
Jéssica - Então me diz, Carloaugusto!
Carloaugusto - Tua mãe, Jessica Brown.
Jéssica - Mamãe não, mamãe não!
Carloaugusto - Mamãe sim, mamãe sim, Jessica...ih, professor, estourei o limite. Mandei cinco.
Diretor - Faz mal não, porque eu já ia parar mesmo.
Carloaugusto - E aí? Gostou?
Diretor - Adorei! Sobretudo o fato de o senhor ter repetido sempre o nome dela no final...virou uma espécie de refrão...interessantíssimo, por sinal.
Carloaugusto - É que eu sou muito criativo.
Diretor - Isso eu percebi assim que o senhor entrou aqui...podem sentar. (No caminho...)
Jessica - Carloaugusto!
Carloaugusto - Jesssica!
Jessica - Cada vez que você dizia o meu nome eu...
Carloaugusto - Ficava toda arrepiada!
Jessica - Me latejava toda!
Carloaugusto - Fala assim não, Jessica!
Diretor - Será que eu posso prosseguir? (Os dois se calam) Bem...(Sorteia) Clotilde e...Zaira (Elas vão para o centro) Detalhe: agora só podem ser usadas três palavras por frase, ok? Valendo! (Clotilde chora)
Zaira - Chora não, Assunta!
Clotilde (Tentando disfarçar) - Chorar? Eu, Zambolho?
Zaira - Você vive chorando.
Clotilde - Isso é verdade.
Zaira - Nada mais natural...
Clotilde - Que chorasse agora?
Zaira - Na nossa despedida.
Clotilde - Isso te alegra?
Zaira - Não seja escrota.
Clotilde - Que palavra terrível.
Zaira - Saiu sem querer.
Clotilde - Eu nunca pensei...
Zaira - Te peço perdão.
Clotilde - Fora. Fora daqui.
Zaira - Não seja implacável.
Clotilde - Implacável eu sou.
Zaira - Me beija, querida.
Clotilde - Um beijo, imploras?
Zaira - Um beijo, suplico.
Clotilde - Não o terás.
Zaira - Se é assim...
Clotilde - Assim o é.
Zaira - Vá se fuder!
Clotilde - Melhor que contigo. (As duas se olham ferozmente)
Diretor - Ótimo, ótimo. Podemos parar por aqui. Nos seus lugares, por favor. (Enquanto elas caminham...)
Clotilde - Eu nunca pensei que você fosse me chamar de escrota.
Zaira - Nem eu. Saiu assim, num impulso. Me perdoa, amiga.
Clotilde - E depois...me mandar transar comigo mesma!?
Zaira - Esquece tudo, Assunta! Limpa teu chacra!
Clotilde - Vou fazer uma faxina nele...
Diretor - Prosseguindo...(Sorteia) Mohamed e...Sara. (Eles vão para o centro) Agora, só duas palavras por frase!
Sara - Tô indo.
Mohamed - Annnnnnn...ahnnnnn.
Sara - Tudo bem?
Mohamed - Ahnnn...ahnnnn?
Sara - Sander Mohamed!
Mohamed - Ahnnnn...ahnnnn.
Sara - Grito sim!
Mohamed - Ahnnn...ahnnnn?
Sara - Pode bater!
Mohamed - Ahnnnn...ahnnn!
Sara (Mohamed a esbofeteia) – Palestino canalha! (Os dois se atracam. O Diretor e alguns alunos finalmente conseguem apartar) Fariseu desalmado! No rostinho de Sara nem meu papá encostou!
Mohamed - Ahnnn...ahnnn…ahnnn…ahnnnn!
Sara - Foi sem querer é o cacete, terrorista fanho!
Mohamed - Ahnnn...ahnnn…ahnnn!
Sara - Deixa Alá de for a disso, devoto fajuto!
Mohamed - Ahhhhhhhhhhhhhhhhhnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!
Sara - O quê? Você está me propondo que eu devolva o bofete?
Mohamed - Ahnnnn...ahannnn!
Sara - E você não reage?
Mohamed - Ahnnnnn...ahnnnnn!
Sara - Entendo…e assim a ofensa se anula?
Mohamed - Ahnnnn...ahannnnn!
Sara - Sander Mohamed! Você é um homem maravilhoso! (Esbofeteia ele) Eu te amo muito, sabia?
Mohamed - Ahnnnnn.
Sara - E agora me diz: doeu muito o bofete de Sara? Fala, magrinho! (Sentam)
Diretor - Bem...uma vez concluída essa cena de pugilato, vamos à última dupla. Que só poderá usar uma palavra de cada vez. (Sorteia) Lourival e...Carmem. (Os dois no centro)
Carmem - Eu abandono ou sou abandonada?
Sensível - Eu te abandono. A contragosto, sofrendo muito, mas eu te abandono.
Diretor - Por favor, sem nenhuma explicação, ok? O que o senhor é ou como está se sentindo tem que ficar claro é na cena.
Sensível - Tudo bem. Senta ali, Carmem, e assume um ar de desdém altivo, que logo você vai abandonar quando eu...
Diretor - Senhor Lori! Por favor!?
Sensível - Eu sou estou tentando contextualizar o momento.
Diretor - Não contextualiza nada. Começa!
Sensível (Após intensa preparação) - Fui!
Carmem - Não.
Sensível - Sim.
Carmem - Lori!
Sensível - Diga.
Carmem - Eu...
Sensível - Coragem.
Carmem - Te...
Sensível - Conclui.
Carmem - Amo.
Sensível - Ama?
Carmem - Muito.
Sensível - Verdade?
Carmem - Sim.
Sensível - Ahahahahahahahaha!
Carmem - Pára!
Sensível - Incomodo?
Carmem - Bastante.
Sensível - Lamento.
Carmem - Esquece.
Sensível - Nunca.
Carmem - Então...
Sensível - Adeus! (E vai saindo)
Carmem - Corno!
Sensível (Voltando) - Ahnnn?
Carmem - Boiola!
Sensível - Ahnnnnn?
Carmem - Peidão!
Sensível - Ahnnn?
Diretor - Ok, podemos parar por aqui.
Sensível - Mas a cena ainda não terminou, professor! Quando ela me xingasse novamente e todo mundo pensasse que eu iria soltar mais um “ahnnnn”, eu engoliria em seco e sairia exibindo o mesmo desdém altivo da Carmem no início da cena. Mas o senhor, é claro, não teve um mínimo de paciência e estragou tudo!
Diretor - Escuta aqui, meu filho...
Sensível - Por favor! Se o senhor possui alguma sensibilidade, me deixa quieto um instante, que eu preciso me recuperar!
Sara - Ele precisa se recuperar, professor! Deixa ele quieto um instantinho!
Diretor - A senhora não se meta. Eu sei perfeitamente como lidar com alunos desse tipo!
Sensível - Desse tipo? Quer dizer que para o senhor...eu sou um tipo!?
Sara - Muito interessante, por sinal. Um rapaz esplêndido!
Sensível - Você jura, ramaliutaiá?
Sara - Juro! Só fica feio quando incorpora o caboclo do Borel.
Sensível - Olha...é tão bom escutar isso de uma pessoa como você.
Sara - E eu adorei você me chamar de ramaliutaiá! É tão poético!
Mohamed - Ahnnnn.ahnnnnnn
Sara - Não estou paquerando ele não. Ah, vocês árabes...como são ciumentos!
Diretor - Muito bem: vamos agora à parte final. Vocês todos são náufragos e estão à deriva num barquinho. Muita fome, muita sede, muito cansaço. De repente, alguém descobre que o barquinho está adernando por excesso de peso. Então, a única solução é jogar alguém no mar. O grupo escolhe essa pessoa e faz o que tem que fazer. E tudo isso sem pronunciar uma única palavra. Se for o caso, vocês podem gemer, arfar ou qualquer coisa no gênero.
Carloaugusto - Professor...
Diretor - Vamos começar? (Os alunos se agrupam canhestramente) Estamos em pleno mar. Valendo! (Os alunos tentam simular a situação. Finalmente, Sander Mohamed é jogado na água. Mas então, ao invés de apenas debater-se, ele grita)
Mohamed - Socorro! Socorro! (Todos interrompem o exercício e se entreolham)
Diretor - Mas o que é isso? O senhor não é árabe?
Mohamed - Não. Eu nasci em Varginha.
Diretor - E também não é fanho...
Sara (Sem sotaque) - Eu posso explicar, professor.
Diretor - E a senhora, pelo visto, também não é judia.
Sara - Não, sou carioca mesmo. De Belfort Roxo.
Diretor - E vocês? Também não são o que pareciam ser?
Sensível - Não.
Diretor - Quer dizer então que eu estou a quase uma hora lidando com pessoas que não existem! É mais ou menos por aí?
Sensível - Sabe o que é, mestre?
Diretor - Não, não sei. E não estou nem um pouco interessado em saber. Por gentileza, tenham a bondade de se retirar.
Sensível - É que nos disseram que era preciso agir assim pra conseguir entrar nessa escola.
Diretor - Como é que é?
Sensível - Falaram pra gente que o senhor só fica sensibilizado com candidatos que tenham, sei lá, uma história curiosa, que sejam pessoas diferentes. Então, como a gente chegou bem antes do horário, combinamos que cada um tentaria fazer um tipo capaz de despertar a sua simpatia. Só isso.
Jessica - Não foi por mal, professor.
Sara (Com sotaque ) - Dá mais uma chance pra nós, dá, master Fischer?
Diretor (Com sotaque) - Eu detesta dar chance...compreendeu, sua picareta?
Sara (Sem sotaque) - Gente! Ele imita judeu melhor que eu!
Sensível - Ele é maravilhoso! Todo mundo sabe disso! (E aí todos começam a falar ao mesmo tempo, pedindo uma nova oportunidade. Depois de um tempo...)
Diretor - Tudo bem. Eu vou pensar. De qualquer forma, estejam todos aqui amanhã. Às nove. (Alegria geral, comentários felizes etc. O Diretor vai deixando o palco por um lado, os atores por outro. O Psicopata fica parado no centro)
Psicopata - Professor...(O diretor e os atores param e se viram para o Psicopata)
Diretor - Sim?
Psicopata - Eu só queria lembrar ao senhor que eu cheguei atrasado...
(Todos se imobilizam. As luzes vão caindo em resistência)
_____________________________
Aranha
de Lionel Fischer
Personagens
Wal
Helena
Cenário palco nu
Wal - Olha, amiga: eu te juro. Agora é pra sempre!
Helena - Nada é pra sempre: só os diamantes e o Tablado.
Wal - Eu nunca mais entro nesse tipo de roubada.
Helena - Que roubada?
Wal - Ser apresentada a alguém que, supostamente, tem tudo a ver comigo.
Helena - E você conheceu quem? Quando? Onde?
Wal - Antonio Henrique, ontem, na casa da Francisca.
Helena - Quem é Francisca?
Wal - Uma colega do escritório. Ela resolveu dar uma festinha supostamente para comemorar uma promoção que ela acabou de receber.
Helena - Você adora essa palavra: supostamente.
Wal - Mas o que ela queria mesmo era me arranjar um namorado.
Helena - Namorar é legal.
Wal - A Francisca cisma que eu tô infeliz porque tô sem namorado e vive tentando me arranjar um.
Helena - Mas você tá mesmo infeliz desde que o Astolfo assumiu que era gay e sumiu.
Wal - Tudo bem. Mas isso não quer dizer que a cada semana eu tenha que conhecer um cara e muito menos achar que esse cara...
Helena - Quem era o cara?
Wal - Um tal de Eurípedes.
Helena - Dramaturgo?
Wal - Não, zoólogo.
Helena - Poxa, que legal. Um zoólogo...
Wal - Legal por quê?
Helena - Ah, sei lá...é outra cabeça, outro tipo de papo.
Wal - Pois é. E foi justamente o papo que me aterrorizou.
Helena - Te aterrorizou? Como assim?
Wal - O cara é especializado em aranha.
Helena - Em aranha? Pô, amiga, chocante! Aranha é um puta símbolo!
Wal - Do quê?
Helena - Sei lá...mas aquele monte de patas...aqueles olhões...
Wal - Aranha não tem pata, tem perna.
Helena - Mas tem olhão.
Wal - Tudo bem: tem olhão. Mas deixa eu continuar.
Helena - Continua.
Wal - Assim que a gente foi apresentado, ele começou a falar nos aracnídeos.
Helena - Como assim?
Wal - Aracnídeo e aranha são a mesma porra.
Helena - Que legal...eu não sabia.
Wal - E é aranha pra cá, aranha pra lá. Porque as aranhas fazem isso, deixam de fazer aquilo...
Helena - E você?
Wal - Eu nada, só ouvindo. Eu não entendo merda nenhuma de aranha!?
Helena - E aí? Quando foi que brotou o impasse?
Wal - Quando o Eurípedes falou da aranha saltadora.
Helena - Ué...tem aranha que salta?
Wal - Tem uma que salta pra cacete.
Helena - Que legal...
Wal - O Eurípedes falou que essa espécie é capaz de saltar tipo uns quatro metros e antes que eu pudesse fazer qualquer tipo de comentário...
Helena - E você ia dizer o quê?
Wal - Eu não sei, mas poderia mandar um “nossa”, um “não acredito”, um “não é possível!?”, nem que fosse por educação, para mostrar um certo interesse, já que olhos dele brilhavam de paixão.
Helena - Por você!
Wal - Não, por essa merda dessa aranha saltadora!
Helena - Entendo.
Wal - Aí o Eurípedes olhou no fundo dos meus olhos, como só fazem as pessoas profundas e os oculistas...
Helena - Exame de vista é sempre uma situação muito constrangedora.
Wal - Ele segurou minhas mãos com uma certa sofreguidão e disse: “Wal...se você tivesse a mesma capacidade de saltar dessa aranha, você conseguiria pular por cima de dois jumbos enfileirados! Já pensou?”
Helena (Após longa e profunda pausa) – E você...pensou?
Wal (Após longa e profunda pausa) – Pensei...
Helena - E respondeu o quê?
Wal - Eu disse: “Eurípedes, você já leu Quintana?”
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de Lionel Fischer
Personagens
Wal
Helena
Cenário palco nu
Wal - Olha, amiga: eu te juro. Agora é pra sempre!
Helena - Nada é pra sempre: só os diamantes e o Tablado.
Wal - Eu nunca mais entro nesse tipo de roubada.
Helena - Que roubada?
Wal - Ser apresentada a alguém que, supostamente, tem tudo a ver comigo.
Helena - E você conheceu quem? Quando? Onde?
Wal - Antonio Henrique, ontem, na casa da Francisca.
Helena - Quem é Francisca?
Wal - Uma colega do escritório. Ela resolveu dar uma festinha supostamente para comemorar uma promoção que ela acabou de receber.
Helena - Você adora essa palavra: supostamente.
Wal - Mas o que ela queria mesmo era me arranjar um namorado.
Helena - Namorar é legal.
Wal - A Francisca cisma que eu tô infeliz porque tô sem namorado e vive tentando me arranjar um.
Helena - Mas você tá mesmo infeliz desde que o Astolfo assumiu que era gay e sumiu.
Wal - Tudo bem. Mas isso não quer dizer que a cada semana eu tenha que conhecer um cara e muito menos achar que esse cara...
Helena - Quem era o cara?
Wal - Um tal de Eurípedes.
Helena - Dramaturgo?
Wal - Não, zoólogo.
Helena - Poxa, que legal. Um zoólogo...
Wal - Legal por quê?
Helena - Ah, sei lá...é outra cabeça, outro tipo de papo.
Wal - Pois é. E foi justamente o papo que me aterrorizou.
Helena - Te aterrorizou? Como assim?
Wal - O cara é especializado em aranha.
Helena - Em aranha? Pô, amiga, chocante! Aranha é um puta símbolo!
Wal - Do quê?
Helena - Sei lá...mas aquele monte de patas...aqueles olhões...
Wal - Aranha não tem pata, tem perna.
Helena - Mas tem olhão.
Wal - Tudo bem: tem olhão. Mas deixa eu continuar.
Helena - Continua.
Wal - Assim que a gente foi apresentado, ele começou a falar nos aracnídeos.
Helena - Como assim?
Wal - Aracnídeo e aranha são a mesma porra.
Helena - Que legal...eu não sabia.
Wal - E é aranha pra cá, aranha pra lá. Porque as aranhas fazem isso, deixam de fazer aquilo...
Helena - E você?
Wal - Eu nada, só ouvindo. Eu não entendo merda nenhuma de aranha!?
Helena - E aí? Quando foi que brotou o impasse?
Wal - Quando o Eurípedes falou da aranha saltadora.
Helena - Ué...tem aranha que salta?
Wal - Tem uma que salta pra cacete.
Helena - Que legal...
Wal - O Eurípedes falou que essa espécie é capaz de saltar tipo uns quatro metros e antes que eu pudesse fazer qualquer tipo de comentário...
Helena - E você ia dizer o quê?
Wal - Eu não sei, mas poderia mandar um “nossa”, um “não acredito”, um “não é possível!?”, nem que fosse por educação, para mostrar um certo interesse, já que olhos dele brilhavam de paixão.
Helena - Por você!
Wal - Não, por essa merda dessa aranha saltadora!
Helena - Entendo.
Wal - Aí o Eurípedes olhou no fundo dos meus olhos, como só fazem as pessoas profundas e os oculistas...
Helena - Exame de vista é sempre uma situação muito constrangedora.
Wal - Ele segurou minhas mãos com uma certa sofreguidão e disse: “Wal...se você tivesse a mesma capacidade de saltar dessa aranha, você conseguiria pular por cima de dois jumbos enfileirados! Já pensou?”
Helena (Após longa e profunda pausa) – E você...pensou?
Wal (Após longa e profunda pausa) – Pensei...
Helena - E respondeu o quê?
Wal - Eu disse: “Eurípedes, você já leu Quintana?”
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segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
SOBERBA
de Lionel Fischer
Personagens
Tesudetta
Rei
Conselheiro do Rei
Príncipe Arlindoorlandus
Conselheiro do Príncipe
Cenário
Duas escadas
(Cortina fechada. Surge a princesinha Tesudetta. Ela se dirige à platéia)
de Lionel Fischer
Personagens
Tesudetta
Rei
Conselheiro do Rei
Príncipe Arlindoorlandus
Conselheiro do Príncipe
Cenário
Duas escadas
(Cortina fechada. Surge a princesinha Tesudetta. Ela se dirige à platéia)
Tesudetta - Como podeis constatar sem grande esforço, estou possuída de grave melancolia, salpicada de aflição e fustigada pela desesperança. E se aqui me encontro, diante de vós, e diante de vós me prostro de joelhos (Ela se põe de joelhos), é porque em vós deposito minha última esperança. Caso m’a negueis, o que não posso crer que o façais, todo meu ser se verá tomado pela mais cava depressão, morada fatídica de onde ninguém consegue escapar, desde que nela adentre - ainda mais no século em que vivo, o XIII, quando Freud ainda não havia sido concebido e muito menos os medicamentos específicos aos quais tendes acesso quando tal moléstia, a melancolia, vos assalta. Acompanhai, portanto, e com a atenção devida, a breve narrativa que ora vos exponho, finda a qual talvez consigais lançar alguma luz sobre as trevas abissais em que me encontro, fruto do impasse que me dilacera por dentro e em toda a minha periferia. (Entra uma música, a cortina se abre lentamente. Vemos duas escadas. No topo de uma delas se encontra o Rei; no topo da outra, o príncipe Arlindorlandus. Junto a cada uma das escadas, um Conselheiro. Sai a música)
Tesudetta - Toda a tragédia começou no dia que seria o dia mais feliz de minha vida: quando completei 15 anos de radiosa existência, fato ocorrido há um mês. Para comemorar a marcante data, meu pai resolveu promover um grandioso baile, para o qual convidou todos os governantes dos reinos fronteiriços, dentre eles o príncipe Arlindorlandus. E lá pelas tantas, quando os trovadores começaram a entoar uma seqüência de baladas dançantes que muito sucesso faziam, eis que Arlindorlandus me saca pra bailar. (Entra uma música medieval. Arlindorlandus desce da escada e dança com Tesudetta. O Rei descongela, assim como os dois Conselheiros)
Conselheiro do Rei - E todos acompanhávamos, embevecidos, a evolução dos pares, e em especial o formado por Tesudetta e Arlindorlandus, que até então não se conheciam e, surpreendentemente, exibiam total entrosamento.
Conselheiro do Príncipe - Num dado momento, porém, o assombro tomou conta de todos. (Sai a música medieval. Todos congelam, menos o Conselheiro do Príncipe) Como que embalados pelo som de uma música que ninguém ouvia, Tesudetta e meu senhor, Arlindorlandus, passaram a evoluir estranhamente acoplados, e rebolando de tal forma que tivemos a impressão de que um processo de cópula estava em marcha. (Entra um forró. O Rei se ergue, estupefato, a mesma estupefação estampada no rosto dos Conselheiros. Após um tempo,o Rei pula da escada. Cessa o forró)
Rei - Mas o que é isso? Estais possuídos pelo demo? É ele que impregna vossos ouvidos de uma canção que não ouvimos e vos instiga a projetarem para a frente e para trás os mútuos ventres, assim promovendo indecorosa intimidade entre vossas partes pudendas?
Tesudetta - Meu pai, estais interpretando erroneamente...
Rei - Calai-vos, antes que a cólera me domine por completo e te esbofeteie até ver tua rosada face deformada!
Príncipe - Senhor, por que partiríeis para uma agressão tão descabida se...
Rei - Calai-vos vós, igualmente, pois do contrário tuas bochechudas faces receberão idêntico flagelo!
Tesudetta - Oh meu Deus, fazei com que papai...
Rei - Como ousaste sarrar minha única e dileta filha, diante de minhas barbas, em meu castelo, e tendo por testemunha toda a minha nobreza e a fronteiriça?
Arlindorlandus - Perdão, senhor, mas não a sarrava!
Rei - Ah, não? E o que fazíeis, grudando o que imagino que possuís entre as pernas na região análoga de Tesudetta?
Tesudetta - Oh, meu pai, acreditai em vossa filha: nada senti de ofensivo, da parte de Arlindorlandus, na região que mencionais!
Rei - Talvez nada tenhais sentido porque o objeto da ofensa, no presente caso, seja um tanto diminuto! (Tesudetta desvia o olhar do pai, com expressão dúbia)
Arlindorlandus - Sugeris acaso que o pedúnculo que ostento em meu baixo ventre...
Rei - Cagando estou para a dimensão de vosso pedúnculo! Quero apenas que saibas que, de ora em diante, e para todo o sempre, sois persona non grata neste reino!
Todos - Oh!
Rei - E que estão cortadas para todo o sempre as amistosas relações que até então mantínhamos, tanto pessoais como comerciais!
Todos - Oh!
Rei - Assim sendo, ordeno que vos retireis imediatamente de meus domínios, ficando desde já implícito que, se neles fordes algum dia surpreendido, sereis torturado implacavelmente até a morte!
Todos - Oh!
Arlindorlandus - Pois que seja. E o mesmo vaticínio aplico a vós, se porventura e sob qualquer pretexto, fordes surpreendido nos domínios sob minha tutela!
Tesudetta - Meu nobre pai! Gracioso Arlindorlandus! Estais ambos agindo como crianças insensatas! Ponderai com um mínimo de calma acerca da grotesca decisão que acabais de tomar e logo percebereis suas graves conseqüências!
Rei/Arlindorlandus - E quais são elas?
Tesudetta - Afora a perda da mútua amizade que até então vos unia, vos vereis privados daquilo que mais amais!
Rei/Arlindorlandus - E o que seria?
Tesudetta - Não sejais cínicos! Vós, meu pai, sabeis perfeitamente que não conseguireis sobreviver sem degustar diariamente os brocolitos...
Conselheiro do Rei (À platéia) - Palitinhos de brócolis.
Tesudetta - ...que para cá são exportados por Arlindorlandus!
Rei - Serei forte o bastante para suportar a brutal abstinência!
Tesudetta - E quanto a vós, Arlindorlandus: imaginais poder viver sem as trulhetas...
Conselheiro do Príncipe - Trufas em forma de caneta.
Tesudetta - ...que só aqui existem e que meu pai vos envia mensalmente?
Arlindorlandus - Serei forte o bastante para suportar a brutal abstinência!
Tesudetta - Por Deus, sabeis que não! Da mesma forma que não ignorais que todo esse mal-entendido pode ser agora dissipado!
Rei/Arlindorlandus - Jamais!
Tesudetta - Meu pai, por tudo que pode haver de mais sagrado: eu vos juro que não tive minhas partes pudendas fustigadas pelo colossal ariete de Arlindorlandus!
Rei - Como sabeis ser colossal o dito ariete?
Tesudetta - Bem, eu...
Arlindorlandus - Inóspito vizinho: embora esta não seja a ocasião propícia para a revelação de detalhes anatômicos, posso vos garantir que o pedúnculo que ostento se enquadra nos padrões da mais absoluta normalidade!
Conselheiro do Príncipe - Isso é verdade.
Príncipe - E se Tesudetta o adjetivou de “colossal”, isto se deve apenas a um mimo de sua parte, posto que toda mulher sabe que todo homem gostaria de possuir um tarugo capaz de aterrorizar a mais devastada das prostitutas!
Conselheiro do Rei - Tesudetta já nasceu sabendo das coisas...
Arlindorlandus - Assim sendo, reitero o que já vos disse: ao bailar com vossa filha, em nenhum momento me ocorreu a obscena idéia de sarrá-la. E o mesmo, vos afirmo, jamais passou pela cabeça de Tesudetta, flor ainda em botão, a inocência personificada. Portanto...
Rei - Nem uma palavra mais! Ou a espada desembanharei e vossa rotunda cabeça cortarei!
Arlindorlandus - Se vossa mão buscar o rumo de vossa espada, o mesmo se dará com a minha! E serei eu a decepar vossa cabeça, por sinal muito mal feita! (Ambos sacam as respectivas espadas. Os Conselheiros se agarram aos seus monarcas, enquanto Tesudetta, após correr para o procêncio, solta um grito lancinante. Toda a cena congela. Tesudetta, à platéia, sob a luz de um único foco)
Tesudetta - Como já vos disse no início desta dolorosa narrativa, já 30 dias se passaram. E nada se modificou. Ou por outra: tudo se modificou. Privado de seus brocolitos, meu pai se encontra neste lamentável estado...(Um foco no Rei, trepado na escada. Ele está com o peito à mostra, onde se vêem manchas arroxeadas) Pústulas nauseabundas adornam seu outrora majestoso peito...(O Rei geme e chora) Quanto a Arlindorlandus, uma vez privado das trulhetas, assim ficou...(Foco no Príncipe, também trepado na escada, a peruca que usava em uma das mãos) Estão lhe caindo todos os pelos, a começar pelos de cima...(Arlindorlandus chora e geme) Quanto a mim, já não sei mais o que fazer. A não ser contemplar impotente os trágicos efeitos da soberba. Sim, pois é ela que os impede de fazer as pazes. Por desmedido orgulho, nenhum dos dois se dispõe a dar o primeiro passo, a estender a mão que selaria a paz. E aqui não se trata, em absoluto, da ferrenha defesa de princípios, pois meu pai tem plena consciência de minha natureza galinácea e se porventura Arlindorlandus a desconhecia, não resta a menor dúvida de que fustigou minha caçapinha com seu inflado bastonete. Seja como for, estamos todos diante deste doloroso impasse. E a menos que algum dos senhores ou senhoras me diga o que fazer para levá-los a renunciar ao capital pecado que os consome, nada me restará a não ser aguardar, resignada, a morte de meu pai e a de meu ardente forrozeiro! (Tempo) E então, senhores? Nenhuma idéia salvadora?
Rei (Agonizando) - Meu reino por um brocolito...
Tesudetta - Por Deus, meu pai agoniza!
Arlindorlandus (Agonizando) - Tudo daria por uma trulheta...
Tesudetta - Vede o lamentável estado em que se encontra Arlindorlandus!
Conselheiro do Rei - É inútil prosseguir com vossas súplicas, Tesudetta (Toda a cena se ilumina)
Conselheiro do Príncipe - Deles não obtereis a salvadora dica.
Tesudetta - E por que não?
Conselheiro do Rei - Porque vossa história não os comoveu.
Conselheiro do Príncipe - E nem convosco se identificaram.
Conselheiro do Rei - E quando a platéia não estabelece com a protagonista a indispensável empatia...
Conselheiro do Príncipe - Narrativa e cena vão ambas pro caralho!
Conselheiro do Rei - Assim, que o pano se feche e as luzes se apaguem!
Conselheiro do Príncipe - E para as coxias marchemos conscientes do próprio fracasso!
Tesudetta - Pois daqui não saio até que um conselho receba!
Conselheiro do Rei - Aceitai a derrota, ninfa pervertida!
Conselheiro do Príncipe - E permiti que a humildade de vosso ser se aposse!
Tesudetta - Poupai meus ouvidos de tão estéril cantilena! Já disse e repito: deste palco só saio quando algum deles se pronunciar!
Conselheiro do Rei - Se assim é, preparai-vos para uma longa agonia...
Conselheiro do Príncipe - Em tudo semelhante à que o destino reservou a vosso pai e a meu senhor...
Conselheiro do Rei - Pois no fundo, assim como no raso, não passais de almas gêmeas...
Conselheiro do Príncipe - Todas padecendo do mesmo e pavoroso pecado.
Tesudetta - E qual seria ele, se não vos importais de m’o dizê-lo?
Conselheiros - A soberba!!! (Acorde dramático. Tesudetta tomba no chão, vítima de soberbo enfarte, ao mesmo tempo em que o Rei e Arlindorlandus exalam o último suspiro. Após constatarem a tripla morte, os Conselheiros vão saindo de cena, cada qual por um lado, lentamente, enquanto as luzes caem em resistência)
____________________________
Tesudetta - Toda a tragédia começou no dia que seria o dia mais feliz de minha vida: quando completei 15 anos de radiosa existência, fato ocorrido há um mês. Para comemorar a marcante data, meu pai resolveu promover um grandioso baile, para o qual convidou todos os governantes dos reinos fronteiriços, dentre eles o príncipe Arlindorlandus. E lá pelas tantas, quando os trovadores começaram a entoar uma seqüência de baladas dançantes que muito sucesso faziam, eis que Arlindorlandus me saca pra bailar. (Entra uma música medieval. Arlindorlandus desce da escada e dança com Tesudetta. O Rei descongela, assim como os dois Conselheiros)
Conselheiro do Rei - E todos acompanhávamos, embevecidos, a evolução dos pares, e em especial o formado por Tesudetta e Arlindorlandus, que até então não se conheciam e, surpreendentemente, exibiam total entrosamento.
Conselheiro do Príncipe - Num dado momento, porém, o assombro tomou conta de todos. (Sai a música medieval. Todos congelam, menos o Conselheiro do Príncipe) Como que embalados pelo som de uma música que ninguém ouvia, Tesudetta e meu senhor, Arlindorlandus, passaram a evoluir estranhamente acoplados, e rebolando de tal forma que tivemos a impressão de que um processo de cópula estava em marcha. (Entra um forró. O Rei se ergue, estupefato, a mesma estupefação estampada no rosto dos Conselheiros. Após um tempo,o Rei pula da escada. Cessa o forró)
Rei - Mas o que é isso? Estais possuídos pelo demo? É ele que impregna vossos ouvidos de uma canção que não ouvimos e vos instiga a projetarem para a frente e para trás os mútuos ventres, assim promovendo indecorosa intimidade entre vossas partes pudendas?
Tesudetta - Meu pai, estais interpretando erroneamente...
Rei - Calai-vos, antes que a cólera me domine por completo e te esbofeteie até ver tua rosada face deformada!
Príncipe - Senhor, por que partiríeis para uma agressão tão descabida se...
Rei - Calai-vos vós, igualmente, pois do contrário tuas bochechudas faces receberão idêntico flagelo!
Tesudetta - Oh meu Deus, fazei com que papai...
Rei - Como ousaste sarrar minha única e dileta filha, diante de minhas barbas, em meu castelo, e tendo por testemunha toda a minha nobreza e a fronteiriça?
Arlindorlandus - Perdão, senhor, mas não a sarrava!
Rei - Ah, não? E o que fazíeis, grudando o que imagino que possuís entre as pernas na região análoga de Tesudetta?
Tesudetta - Oh, meu pai, acreditai em vossa filha: nada senti de ofensivo, da parte de Arlindorlandus, na região que mencionais!
Rei - Talvez nada tenhais sentido porque o objeto da ofensa, no presente caso, seja um tanto diminuto! (Tesudetta desvia o olhar do pai, com expressão dúbia)
Arlindorlandus - Sugeris acaso que o pedúnculo que ostento em meu baixo ventre...
Rei - Cagando estou para a dimensão de vosso pedúnculo! Quero apenas que saibas que, de ora em diante, e para todo o sempre, sois persona non grata neste reino!
Todos - Oh!
Rei - E que estão cortadas para todo o sempre as amistosas relações que até então mantínhamos, tanto pessoais como comerciais!
Todos - Oh!
Rei - Assim sendo, ordeno que vos retireis imediatamente de meus domínios, ficando desde já implícito que, se neles fordes algum dia surpreendido, sereis torturado implacavelmente até a morte!
Todos - Oh!
Arlindorlandus - Pois que seja. E o mesmo vaticínio aplico a vós, se porventura e sob qualquer pretexto, fordes surpreendido nos domínios sob minha tutela!
Tesudetta - Meu nobre pai! Gracioso Arlindorlandus! Estais ambos agindo como crianças insensatas! Ponderai com um mínimo de calma acerca da grotesca decisão que acabais de tomar e logo percebereis suas graves conseqüências!
Rei/Arlindorlandus - E quais são elas?
Tesudetta - Afora a perda da mútua amizade que até então vos unia, vos vereis privados daquilo que mais amais!
Rei/Arlindorlandus - E o que seria?
Tesudetta - Não sejais cínicos! Vós, meu pai, sabeis perfeitamente que não conseguireis sobreviver sem degustar diariamente os brocolitos...
Conselheiro do Rei (À platéia) - Palitinhos de brócolis.
Tesudetta - ...que para cá são exportados por Arlindorlandus!
Rei - Serei forte o bastante para suportar a brutal abstinência!
Tesudetta - E quanto a vós, Arlindorlandus: imaginais poder viver sem as trulhetas...
Conselheiro do Príncipe - Trufas em forma de caneta.
Tesudetta - ...que só aqui existem e que meu pai vos envia mensalmente?
Arlindorlandus - Serei forte o bastante para suportar a brutal abstinência!
Tesudetta - Por Deus, sabeis que não! Da mesma forma que não ignorais que todo esse mal-entendido pode ser agora dissipado!
Rei/Arlindorlandus - Jamais!
Tesudetta - Meu pai, por tudo que pode haver de mais sagrado: eu vos juro que não tive minhas partes pudendas fustigadas pelo colossal ariete de Arlindorlandus!
Rei - Como sabeis ser colossal o dito ariete?
Tesudetta - Bem, eu...
Arlindorlandus - Inóspito vizinho: embora esta não seja a ocasião propícia para a revelação de detalhes anatômicos, posso vos garantir que o pedúnculo que ostento se enquadra nos padrões da mais absoluta normalidade!
Conselheiro do Príncipe - Isso é verdade.
Príncipe - E se Tesudetta o adjetivou de “colossal”, isto se deve apenas a um mimo de sua parte, posto que toda mulher sabe que todo homem gostaria de possuir um tarugo capaz de aterrorizar a mais devastada das prostitutas!
Conselheiro do Rei - Tesudetta já nasceu sabendo das coisas...
Arlindorlandus - Assim sendo, reitero o que já vos disse: ao bailar com vossa filha, em nenhum momento me ocorreu a obscena idéia de sarrá-la. E o mesmo, vos afirmo, jamais passou pela cabeça de Tesudetta, flor ainda em botão, a inocência personificada. Portanto...
Rei - Nem uma palavra mais! Ou a espada desembanharei e vossa rotunda cabeça cortarei!
Arlindorlandus - Se vossa mão buscar o rumo de vossa espada, o mesmo se dará com a minha! E serei eu a decepar vossa cabeça, por sinal muito mal feita! (Ambos sacam as respectivas espadas. Os Conselheiros se agarram aos seus monarcas, enquanto Tesudetta, após correr para o procêncio, solta um grito lancinante. Toda a cena congela. Tesudetta, à platéia, sob a luz de um único foco)
Tesudetta - Como já vos disse no início desta dolorosa narrativa, já 30 dias se passaram. E nada se modificou. Ou por outra: tudo se modificou. Privado de seus brocolitos, meu pai se encontra neste lamentável estado...(Um foco no Rei, trepado na escada. Ele está com o peito à mostra, onde se vêem manchas arroxeadas) Pústulas nauseabundas adornam seu outrora majestoso peito...(O Rei geme e chora) Quanto a Arlindorlandus, uma vez privado das trulhetas, assim ficou...(Foco no Príncipe, também trepado na escada, a peruca que usava em uma das mãos) Estão lhe caindo todos os pelos, a começar pelos de cima...(Arlindorlandus chora e geme) Quanto a mim, já não sei mais o que fazer. A não ser contemplar impotente os trágicos efeitos da soberba. Sim, pois é ela que os impede de fazer as pazes. Por desmedido orgulho, nenhum dos dois se dispõe a dar o primeiro passo, a estender a mão que selaria a paz. E aqui não se trata, em absoluto, da ferrenha defesa de princípios, pois meu pai tem plena consciência de minha natureza galinácea e se porventura Arlindorlandus a desconhecia, não resta a menor dúvida de que fustigou minha caçapinha com seu inflado bastonete. Seja como for, estamos todos diante deste doloroso impasse. E a menos que algum dos senhores ou senhoras me diga o que fazer para levá-los a renunciar ao capital pecado que os consome, nada me restará a não ser aguardar, resignada, a morte de meu pai e a de meu ardente forrozeiro! (Tempo) E então, senhores? Nenhuma idéia salvadora?
Rei (Agonizando) - Meu reino por um brocolito...
Tesudetta - Por Deus, meu pai agoniza!
Arlindorlandus (Agonizando) - Tudo daria por uma trulheta...
Tesudetta - Vede o lamentável estado em que se encontra Arlindorlandus!
Conselheiro do Rei - É inútil prosseguir com vossas súplicas, Tesudetta (Toda a cena se ilumina)
Conselheiro do Príncipe - Deles não obtereis a salvadora dica.
Tesudetta - E por que não?
Conselheiro do Rei - Porque vossa história não os comoveu.
Conselheiro do Príncipe - E nem convosco se identificaram.
Conselheiro do Rei - E quando a platéia não estabelece com a protagonista a indispensável empatia...
Conselheiro do Príncipe - Narrativa e cena vão ambas pro caralho!
Conselheiro do Rei - Assim, que o pano se feche e as luzes se apaguem!
Conselheiro do Príncipe - E para as coxias marchemos conscientes do próprio fracasso!
Tesudetta - Pois daqui não saio até que um conselho receba!
Conselheiro do Rei - Aceitai a derrota, ninfa pervertida!
Conselheiro do Príncipe - E permiti que a humildade de vosso ser se aposse!
Tesudetta - Poupai meus ouvidos de tão estéril cantilena! Já disse e repito: deste palco só saio quando algum deles se pronunciar!
Conselheiro do Rei - Se assim é, preparai-vos para uma longa agonia...
Conselheiro do Príncipe - Em tudo semelhante à que o destino reservou a vosso pai e a meu senhor...
Conselheiro do Rei - Pois no fundo, assim como no raso, não passais de almas gêmeas...
Conselheiro do Príncipe - Todas padecendo do mesmo e pavoroso pecado.
Tesudetta - E qual seria ele, se não vos importais de m’o dizê-lo?
Conselheiros - A soberba!!! (Acorde dramático. Tesudetta tomba no chão, vítima de soberbo enfarte, ao mesmo tempo em que o Rei e Arlindorlandus exalam o último suspiro. Após constatarem a tripla morte, os Conselheiros vão saindo de cena, cada qual por um lado, lentamente, enquanto as luzes caem em resistência)
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terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Suor
Vídeo que ficou entre os 10 primeiros no Festival de Curta Metragens de Montreal.
Direção:
Roteiro:
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
“Tom & Vinicius – o musical”
........................................................
Delicioso tributo a dois gênios
Lionel Fischer
Como todos sabemos, Tom Jobim e Vinicius de Moraes estão entre os maiores artistas que este país já produziu. O primeiro, célebre por suas composições e arranjos; o segundo, por sua obra poética. Mas quis o destino que ambos se tornassem íntimos e dessa intimidade surgiram composições memoráveis, cabendo a Tom escrever as músicas e a Vinicius as letras. Mas o presente espetáculo, “Tom & Vinicius – o musical”, em cartaz no Teatro João Caetano, não objetiva apenas mostrar a relação entre esses dois gênios, mas também oferecer ao público um retrato divertido e comovente de um dos períodos mais ricos de nossa música: o surgimento e consolidação da Bossa Nova.
De autoria de Daniela Pereira de Carvalho e Eucanaã Ferraz, “Tom & Vinicius – o musical” chega à cena com direção de Daniel Herz, direção musical e arranjos de Josimar Carneiro e elenco formado por Marcelo Serrado (Tom Jobim), Thelmo Fernandes (Vinicius de Moraes), Guilhermina Guinle (Lila Bôscoli e Lúcia Proença), Ana Ferraz, Carol Bezerra, Julia Gorman, Lílian Valeska, Luciana Bollina, Fábio Ventura, Luiz Nicolau, Marcelo Rezende, Marilice Cosenza, Pedro Lima e Ricardo Conti, que dividem o palco com os músicos Marcio Tinoco (piano), Pedro Aune (contrabaixo), Joça Moraes (bateria) e Levi Chaves (flauta, clarineta e sax tenor).
Como dissemos no parágrafo inicial, o espetáculo mostra a relação de amizade entre Tom e Vinicius, e também a maravilhosa parceria artística entre ambos, que resultou na criação de inúmeras obras-primas, como “Valsa de Eurídice”, “Pos causa de você”, “Desafinado”, “Ela é carioca” e “Samba de uma nota só”, dentre muitas outras – a montagem exibe 19 canções, em sua maioria já conhecidas pelo público.
Tendo por base a abrangente pesquisa de Maria Lúcia Rangel, Daniela Pereira de Carvalho e Eucananã Ferraz escreveram um ótimo texto, repleto de humor e humanidade, que faculta à platéia um amplo conhecimento da notável parceria entre Tom e Vinicius, assim como de suas vidas e seus amores, e do movimento que ajudaram a criar. E cabe ressaltar que a peça jamais assume conotações didáticas, mas flui com a leveza e graça típicas da Bossa Nova – incluindo, naturalmente, algumas passagens dramáticas, tanto musicais como narrativas.
Quanto ao espetáculo, Daniel Herz impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto, valorizando seus principais conteúdos de forma extremamente sensível e diversificada. Sem dúvida, uma montagem que merece ser prestigiada de forma incondicional pelo publico carioca.
No que diz respeito ao elenco, Thelmo Fernandes e Marcelo Serrado formam uma dupla irretocável, exibindo uma química deliciosa, plena de cumplicidades e evidente prazer no tocante à contracena. A mesma eficiência se faz presente nas interpretações de Guilhermina Guinle, absolutamente convincente tanto no papel de Lila Bôscoli como no de Lucia Proença.
Com relação aos demais atores/cantores, todos cumprem suas tarefas com a mesma energia e vivacidade dos protagonistas, cabendo ressaltar a excelência de suas performances tanto nas partes cantadas quanto naquelas em que o canto predomina, ambas fundamentais para o estabelecimento e fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo.
Na equipe técnica, destacamos com entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos – Ronald Teixeira (cenário), Marcelo Pies (figurinos), Maneco Quinderé (iluminação), Josimar Carneiro (direção musical e arranjos), Márcia Rubin (direção de movimento), Deco Fiori (preparação vocal) e Rico Vilarouca, Renato Vilarouca e Camila Vidal (animação e vídeo), sendo também imperioso ressaltar a ótima participação dos músicos.
TOM & VINICIUS – O MUSICAL – Texto de Daniela Pereira de Carvalho e Eucanaã Ferraz. Direção de Daniel Herz. Com Marcelo Serrado, Thelmo Fernandes, Guilhermina Guinle e grande elenco. Teatro João Caetano. Sexta a domingo, 20h.
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Delicioso tributo a dois gênios
Lionel Fischer
Como todos sabemos, Tom Jobim e Vinicius de Moraes estão entre os maiores artistas que este país já produziu. O primeiro, célebre por suas composições e arranjos; o segundo, por sua obra poética. Mas quis o destino que ambos se tornassem íntimos e dessa intimidade surgiram composições memoráveis, cabendo a Tom escrever as músicas e a Vinicius as letras. Mas o presente espetáculo, “Tom & Vinicius – o musical”, em cartaz no Teatro João Caetano, não objetiva apenas mostrar a relação entre esses dois gênios, mas também oferecer ao público um retrato divertido e comovente de um dos períodos mais ricos de nossa música: o surgimento e consolidação da Bossa Nova.
De autoria de Daniela Pereira de Carvalho e Eucanaã Ferraz, “Tom & Vinicius – o musical” chega à cena com direção de Daniel Herz, direção musical e arranjos de Josimar Carneiro e elenco formado por Marcelo Serrado (Tom Jobim), Thelmo Fernandes (Vinicius de Moraes), Guilhermina Guinle (Lila Bôscoli e Lúcia Proença), Ana Ferraz, Carol Bezerra, Julia Gorman, Lílian Valeska, Luciana Bollina, Fábio Ventura, Luiz Nicolau, Marcelo Rezende, Marilice Cosenza, Pedro Lima e Ricardo Conti, que dividem o palco com os músicos Marcio Tinoco (piano), Pedro Aune (contrabaixo), Joça Moraes (bateria) e Levi Chaves (flauta, clarineta e sax tenor).
Como dissemos no parágrafo inicial, o espetáculo mostra a relação de amizade entre Tom e Vinicius, e também a maravilhosa parceria artística entre ambos, que resultou na criação de inúmeras obras-primas, como “Valsa de Eurídice”, “Pos causa de você”, “Desafinado”, “Ela é carioca” e “Samba de uma nota só”, dentre muitas outras – a montagem exibe 19 canções, em sua maioria já conhecidas pelo público.
Tendo por base a abrangente pesquisa de Maria Lúcia Rangel, Daniela Pereira de Carvalho e Eucananã Ferraz escreveram um ótimo texto, repleto de humor e humanidade, que faculta à platéia um amplo conhecimento da notável parceria entre Tom e Vinicius, assim como de suas vidas e seus amores, e do movimento que ajudaram a criar. E cabe ressaltar que a peça jamais assume conotações didáticas, mas flui com a leveza e graça típicas da Bossa Nova – incluindo, naturalmente, algumas passagens dramáticas, tanto musicais como narrativas.
Quanto ao espetáculo, Daniel Herz impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto, valorizando seus principais conteúdos de forma extremamente sensível e diversificada. Sem dúvida, uma montagem que merece ser prestigiada de forma incondicional pelo publico carioca.
No que diz respeito ao elenco, Thelmo Fernandes e Marcelo Serrado formam uma dupla irretocável, exibindo uma química deliciosa, plena de cumplicidades e evidente prazer no tocante à contracena. A mesma eficiência se faz presente nas interpretações de Guilhermina Guinle, absolutamente convincente tanto no papel de Lila Bôscoli como no de Lucia Proença.
Com relação aos demais atores/cantores, todos cumprem suas tarefas com a mesma energia e vivacidade dos protagonistas, cabendo ressaltar a excelência de suas performances tanto nas partes cantadas quanto naquelas em que o canto predomina, ambas fundamentais para o estabelecimento e fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo.
Na equipe técnica, destacamos com entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos – Ronald Teixeira (cenário), Marcelo Pies (figurinos), Maneco Quinderé (iluminação), Josimar Carneiro (direção musical e arranjos), Márcia Rubin (direção de movimento), Deco Fiori (preparação vocal) e Rico Vilarouca, Renato Vilarouca e Camila Vidal (animação e vídeo), sendo também imperioso ressaltar a ótima participação dos músicos.
TOM & VINICIUS – O MUSICAL – Texto de Daniela Pereira de Carvalho e Eucanaã Ferraz. Direção de Daniel Herz. Com Marcelo Serrado, Thelmo Fernandes, Guilhermina Guinle e grande elenco. Teatro João Caetano. Sexta a domingo, 20h.
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terça-feira, 13 de janeiro de 2009
“Gloriosa”
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Montagem imperdível inaugura Teatro Fashion Mall
Lionel Fischer
Dentre os muitos temas abordados por Peter Quilter em “Gloriosa”, talvez o mais significativo diga respeito ao desejo. A protagonista, a norte-americana Florence Foster Jenkins (1868-1944), filha de um banqueiro bem-sucedido, começou a fazer aulas de canto ainda criança. No entanto, ao perceber que ela não tinha a menor vocação para o ofício, seu pai recusou-se a continuar pagando as aulas. O normal seria, pelo menos naquela época, que Florence abdicasse de seu desejo e seguisse o previsível futuro que lhe estaria destinado. Mas aos 17 anos ela fugiu de casa e insistiu em continuar estudando canto lírico, acabando por tornar-se uma celebridade. Tal celebridade, no entanto, não se deu em face de seu talento, mas de suas excentricidades e sobretudo de sua total incapacidade como cantora. Ela se acreditava talentosa e afinada, mas na verdade era uma catástrofe.
Eis, em resumo, o enredo de “Gloriosa”, peça que inaugura o belíssimo Teatro Fashion Mall. Marisa Murray assina a tradução, cabendo a Cláudio Botelho a adaptação e direção musical, estando a direção a cargo de Charles Möeller. Na pele da protagonista, Marília Pêra divide a cena com Guida Vianna – Maria, a empregada; Dorothy, a amiga; e Verinda, a mulher que humilha – e Eduardo Galvão, que interpreta o pianista Cosme McMoon. O pianista Silas Barbosa toca na coxia o que o ator dubla em cena.
Como dissemos no parágrafo inicial, talvez o tema mais importante de “Gloriosa” seja o desejo. Mesmo que muitas vezes ridicularizada, Florence sempre seguia em frente, o que muitos chegaram a considerar como a materialização não de mera teimosia, mas de evidente sintoma de loucura – ela alegava que seu “ouvido interno” lhe garantia que cantava de forma irretocável, não percebendo a dicotomia quando cantava de fato. Pois bem: e que importância teria se ela padecesse de algum distúrbio psíquico mais grave? O que importa destacar é a tenacidade de uma mulher que jamais abdicou do seu desejo, que priorizou seu impulso essencial independentemente dos “ouvidos apurados” daqueles que lotavam seus recitais. E se o faziam, podemos supor que a vontade de se divertir “com uma louca” fosse a causa principal. Mas nada nos impede de também supor que uma monumental inveja, ainda que latente, habitava o coração de todos que a assistiam, pois certamente a maioria não tinha um décimo da coragem de Florence para ao menos tentar viabilizar seus projetos, optando por conformar-se em assumir papéis convencionais em uma sociedade puritana e repressora.
Quanto ao espetáculo, Charles Möeller impõe à cena uma dinâmica que, sabiamente, dispensa inúteis mirabolâncias formais e investe naquilo que realmente importa: a relação que se estabelece entre os ótimos personagens. Mas cumpre registrar a criatividade de suas marcações, a precisão rítmica e sobretudo a capacidade do encenador de ajudar os atores a criarem performances inesquecíveis. A começar pela de Marília Pêra.
Ao longo desses 20 anos de exercício da crítica teatral, assistimos inúmeros espetáculos protagonizados por Marília. E à medida que o tempo ia passando, nossa dificuldade aumentava, pois quando imaginávamos já ter esgotado todo nosso repertório de elogios, eis que a atriz nos obrigava a criar outros, dada sua infinita capacidade de surpreender e de se reinventar como intérprete. No presente caso, Marília está diante de um enorme desafio, pois é obrigada a cantar mal, quando todos sabemos que canta esplendidamente – aliás, ela só canta efetivamente bem uma única música, no final do espetáculo, a “Ave Maria”, de Gounod, criada em cima do “Prelúdio nº 1”, em dó maior, de Bach. Podemos, portanto, imaginar o esforço e atenção da atriz para desvirtuar seu dotes naturais, mas evitando cair em inadequado exagero.
Mas além de conseguir o que nos parece um prodígio, Marília Pêra exibe um trabalho corporal absolutamente extraordinário, que valoriza não apenas os aspectos cômicos da personagem, mas também suas carências e fragilidades, assim como componentes trágicos, eventualmente sugeridos, mas sempre de forma sutil. Enfim, estamos diante de mais um trabalho desta que consideramos, sem nenhuma hesitação, como uma das melhores atrizes do planeta (já dissemos isso algumas vezes...) e que converte o ato de assisti-la em um privilégio ao qual nenhum espectador minimamente sensível pode se furtar. Assim, desejamos, de todo coração, que os sempre caprichosos deuses do teatro continuem abençoando esta mulher que, através de seu dificílimo ofício, nos possibilita sempre um inesquecível encontro com o teatro e, portanto, com cada um de nós.
Quanto a Eduardo Galvão, o ator parece ter vindo ao mundo com a expressa finalidade de dar vida ao charmoso e cínico pianista, mas ao mesmo tempo possuidor de comovente dose de humanidade, sendo que esta última virtude vai se acentuando ao longo do espetáculo. E o que dizer de Guida Vianna em seus três papéis, completamente díspares e que ela consegue materializar de forma irretocável? Nada além do óbvio: estamos diante de uma atriz capaz de fazer qualquer personagem, em especial aqueles em que o humor predomina – na pele da desbocada e furiosa Verinda, a atriz está tão engraçada que às vezes a montagem tem que ser brevemente interrompida, até que o público pare de rir.
No tocante à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a tradução de Marisa Murray, a adaptação e direção musical de Cláudio Botelho, a inspirada cenografia de Rogério Falcão, os hilariantes figurinos de Kalma Murtinho, a trilha sonora de Marcelo Claret e a expressiva iluminação de Paulo César Medeiros, cabendo ainda mencionar o virtuosismo do pianista Silas Barbosa, que contribuem de forma decisiva para o êxito deste espetáculo simplesmente imperdível.
GLORIOSA – Texto de Peter Quilter. Direção de Charles Möeller. Com Marília Pêra, Eduardo Galvão e Guida Vianna. Teatro Fashion Mall. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
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Montagem imperdível inaugura Teatro Fashion Mall
Lionel Fischer
Dentre os muitos temas abordados por Peter Quilter em “Gloriosa”, talvez o mais significativo diga respeito ao desejo. A protagonista, a norte-americana Florence Foster Jenkins (1868-1944), filha de um banqueiro bem-sucedido, começou a fazer aulas de canto ainda criança. No entanto, ao perceber que ela não tinha a menor vocação para o ofício, seu pai recusou-se a continuar pagando as aulas. O normal seria, pelo menos naquela época, que Florence abdicasse de seu desejo e seguisse o previsível futuro que lhe estaria destinado. Mas aos 17 anos ela fugiu de casa e insistiu em continuar estudando canto lírico, acabando por tornar-se uma celebridade. Tal celebridade, no entanto, não se deu em face de seu talento, mas de suas excentricidades e sobretudo de sua total incapacidade como cantora. Ela se acreditava talentosa e afinada, mas na verdade era uma catástrofe.
Eis, em resumo, o enredo de “Gloriosa”, peça que inaugura o belíssimo Teatro Fashion Mall. Marisa Murray assina a tradução, cabendo a Cláudio Botelho a adaptação e direção musical, estando a direção a cargo de Charles Möeller. Na pele da protagonista, Marília Pêra divide a cena com Guida Vianna – Maria, a empregada; Dorothy, a amiga; e Verinda, a mulher que humilha – e Eduardo Galvão, que interpreta o pianista Cosme McMoon. O pianista Silas Barbosa toca na coxia o que o ator dubla em cena.
Como dissemos no parágrafo inicial, talvez o tema mais importante de “Gloriosa” seja o desejo. Mesmo que muitas vezes ridicularizada, Florence sempre seguia em frente, o que muitos chegaram a considerar como a materialização não de mera teimosia, mas de evidente sintoma de loucura – ela alegava que seu “ouvido interno” lhe garantia que cantava de forma irretocável, não percebendo a dicotomia quando cantava de fato. Pois bem: e que importância teria se ela padecesse de algum distúrbio psíquico mais grave? O que importa destacar é a tenacidade de uma mulher que jamais abdicou do seu desejo, que priorizou seu impulso essencial independentemente dos “ouvidos apurados” daqueles que lotavam seus recitais. E se o faziam, podemos supor que a vontade de se divertir “com uma louca” fosse a causa principal. Mas nada nos impede de também supor que uma monumental inveja, ainda que latente, habitava o coração de todos que a assistiam, pois certamente a maioria não tinha um décimo da coragem de Florence para ao menos tentar viabilizar seus projetos, optando por conformar-se em assumir papéis convencionais em uma sociedade puritana e repressora.
Quanto ao espetáculo, Charles Möeller impõe à cena uma dinâmica que, sabiamente, dispensa inúteis mirabolâncias formais e investe naquilo que realmente importa: a relação que se estabelece entre os ótimos personagens. Mas cumpre registrar a criatividade de suas marcações, a precisão rítmica e sobretudo a capacidade do encenador de ajudar os atores a criarem performances inesquecíveis. A começar pela de Marília Pêra.
Ao longo desses 20 anos de exercício da crítica teatral, assistimos inúmeros espetáculos protagonizados por Marília. E à medida que o tempo ia passando, nossa dificuldade aumentava, pois quando imaginávamos já ter esgotado todo nosso repertório de elogios, eis que a atriz nos obrigava a criar outros, dada sua infinita capacidade de surpreender e de se reinventar como intérprete. No presente caso, Marília está diante de um enorme desafio, pois é obrigada a cantar mal, quando todos sabemos que canta esplendidamente – aliás, ela só canta efetivamente bem uma única música, no final do espetáculo, a “Ave Maria”, de Gounod, criada em cima do “Prelúdio nº 1”, em dó maior, de Bach. Podemos, portanto, imaginar o esforço e atenção da atriz para desvirtuar seu dotes naturais, mas evitando cair em inadequado exagero.
Mas além de conseguir o que nos parece um prodígio, Marília Pêra exibe um trabalho corporal absolutamente extraordinário, que valoriza não apenas os aspectos cômicos da personagem, mas também suas carências e fragilidades, assim como componentes trágicos, eventualmente sugeridos, mas sempre de forma sutil. Enfim, estamos diante de mais um trabalho desta que consideramos, sem nenhuma hesitação, como uma das melhores atrizes do planeta (já dissemos isso algumas vezes...) e que converte o ato de assisti-la em um privilégio ao qual nenhum espectador minimamente sensível pode se furtar. Assim, desejamos, de todo coração, que os sempre caprichosos deuses do teatro continuem abençoando esta mulher que, através de seu dificílimo ofício, nos possibilita sempre um inesquecível encontro com o teatro e, portanto, com cada um de nós.
Quanto a Eduardo Galvão, o ator parece ter vindo ao mundo com a expressa finalidade de dar vida ao charmoso e cínico pianista, mas ao mesmo tempo possuidor de comovente dose de humanidade, sendo que esta última virtude vai se acentuando ao longo do espetáculo. E o que dizer de Guida Vianna em seus três papéis, completamente díspares e que ela consegue materializar de forma irretocável? Nada além do óbvio: estamos diante de uma atriz capaz de fazer qualquer personagem, em especial aqueles em que o humor predomina – na pele da desbocada e furiosa Verinda, a atriz está tão engraçada que às vezes a montagem tem que ser brevemente interrompida, até que o público pare de rir.
No tocante à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a tradução de Marisa Murray, a adaptação e direção musical de Cláudio Botelho, a inspirada cenografia de Rogério Falcão, os hilariantes figurinos de Kalma Murtinho, a trilha sonora de Marcelo Claret e a expressiva iluminação de Paulo César Medeiros, cabendo ainda mencionar o virtuosismo do pianista Silas Barbosa, que contribuem de forma decisiva para o êxito deste espetáculo simplesmente imperdível.
GLORIOSA – Texto de Peter Quilter. Direção de Charles Möeller. Com Marília Pêra, Eduardo Galvão e Guida Vianna. Teatro Fashion Mall. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
ANAIUG
de Lionel Fischer
Cenário
Um espaço,a princípio vazio,que será delimitado por estacas de madeira no decorrer da ação. No teto, uma grande lona escura.
Personagens
Voz
Fiéis
Guardas
Deputado
Repórter
Obs: alguns fiéis serão particularizados no decorrer da ação. Quando isso acontecer, serão denominados Homem e Mulher.
* * *
A peça foi escrita em 1979 a partir do testemunho do repórter Charles A. Krause, que sobreviveu aos acontecimentos que se verificaram na Guiana, no ano anterior, que culminaram no suicídio coletivo de cerca de 900 pessoas. De seu livro Massacre na Guiana foram tiradas a maioria das informações, assim como de matérias escritas por Laurence M.Stern, Richard Harwood e de outros membros do Washington Post. O espetáculo gira em torno do movimento (seita) Templo do Povo, dirigido pelo reverendo Jim Jones.
* * *
ABERTURA
(Quando se abrem as portas do teatro, um grupo de atores se encontra misturado ao público. No palco, sob a luz de um único refletor, se vê um guarda, imóvel. O que o diferencia dos demais habitantes do campus é o fato de usar óculos escuros. O público entra, se senta, mas os atores não. Quando todos tomam conhecimento da presença desse elemento que está em cena, ele se retira. Os atores se dirigem para aquele foco de luz. Todos trazem consigo seus pertences: bolsas, mochilas, cobertores etc... Depois de um tempo, surge um outro guarda)
Guarda - Bem vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo, em nome de toda a comunidade, vos saúda e convida para conhecerem as dependências do campus. Solicita que os objetos de uso pessoal sejam deixados onde se encontram, a fim de que nada embarace vossa caminhada. E ainda hoje o reverendo vos falará pessoalmente. Bem vindos a ANAIUG, irmãos.
(O grupo coloca no chão os seus pertences e sai atrás do guarda. Tão logo isso acontece, surgem três novos guardas que recolhem os pertences dos fiéis. Em seu lugar deixam os uniformes do campus. Depois, saem. Entra novamente o grupo. Constata que seus objetos foram carregados. Vêm as novas roupas. Do gravador, começam a se escutar as palavras do reverendo. O grupo vai trocando as velhas vestimentas pelas novas)
Voz - Meus irmãos...penosa terá sido a vossa jornada e incontáveis os obstáculos que tivésteis que transpor para chegar a Anaiug. Vejo no rosto de cada um de vós a marca da fadiga. Mas também percebo, dentro de cada um de vós, a existência de uma alma transbordante de júbilo, cuja pulsação irresistível vos mantém de pé, a todos, apesar do corpo que implora, com justiça, que lhe seja facultado o sono. Ambos tem razão, corpo e alma, e a ambos abençôo pela sinceridade de seus anseios. De minha parte, gostaria que o soubésseis, também me foi difícil a espera desse encontro. Não que duvidasse de que viríeis, não. Mas meu coração estava tão impregnado de vossa lembrança que os minutos se convertiam em horas e os dias que me separavam de vós se assemelhavam a séculos. À noite, como o sono me fugisse, costumava vagar pelo campus e a todo momento me voltava na direção de nossas sete portas, como se meus ouvidos tivessem captado o rumor de vossos passos que se aproximavam de uma delas. E essa emoção agia de tal forma sobre todo o meu ser que, se porventura estivesse sendo observado por um cético, ele certamente julgaria estar diante de um louco. E eu não poderia contestá-lo. Pois a minha ansiedade de vós, o meu desejo de vós era tão imensos que é provável que o meu aspecto causasse realmente espanto a um homem que não crê. Mas quem, em meu lugar, teria agido de outra forma? Até que hoje, finalmente, me encontro de novo diante de vós e vos saúdo de todo o meu coração. Vós fizésteis este lugar e a ninguém mais ele pertence. Aqui aportarão todos os homens cuja ânsia de liberdade não tenha sido totalmente destruída. Aqui aportarão todos os homens cuja fé não tenha sido totalmente conspurcada. Aqui, no meio desses bosques e dessas fontes, todos aqueles que encararem a vida como algo infinitamente além do mero possuir e dominar celebração suas bodas, e serão abençoados pelo murmúrio das águas e das folhas. E a brisa da manhã varrerá de vossa memória esse mundo que acabásteis de deixar. Esse mundo sórdido que nos condiciona ao mal e à violência. Que nos induz ao crime. Que nos rejeita e massacra. Que estabelece hierarquias e classes. Que é surdo aos nossos apelos mais elementares. Que caminha independente da nossa vontade e diante do qual nada mais somos que fantoches. Aqui, no entanto, hão de ser outros os valores. Nós cantaremos e o fogo e a chuva compreenderão as nossas vozes. E dançarão conosco ao som dessa nova música. Aqui, mãos estranhas hão de se tocar com prazer e não se perguntarão se isso é justo. Não. Tudo há de ser justo, se vem do coração. E todos nós, irmanados e conscientes de que um mundo novo está a caminho, nos fecharemos para sempre dentro de nossas próprias consciências e ignoraremos para sempre tudo que existir para além de nossos próprios limites. E a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas, e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste! (As luzes se apagam em resistência)
CENA 1
(O grupo se encontra espalhado pelo palco. Todos estão felizes. Uns conversam, outros passeiam, alguns executam tarefas. Um fiel surge com um violão e todos começam a cantar. Surge um guarda, que assiste a cena à distância. Um dos fiéis tem sua atenção voltada para esse guarda. O grupo se retira cantando. Ficam em cena o guarda e esse fiel. O primeiro, que usava dois óculos superpostos, tira um deles e o oferece ao homem)
Guarda - Quer experimentar?
Homem - Para que?
Guarda - O sol daqui é muito intenso. Em pouco tempo os olhos se gastam.
Homem - Eu não fui informado disso.
Guarda - Certas coisas é preciso descobrir por iniciativa própria.
Homem - Mas o risco a que estamos nos submetendo é muito grande. Nós deveríamos ter sido alertados.
Guarda - Você está sendo alertado.
Homem - E por que eu, especialmente?
Guarda - Porque nós achamos que você seria dos primeiros a tomar consciência da intensidade do sol.
Homem - Por quê?
Guarda - Intuição.
Homem - Eu agradeço.
Guarda (Recolocando os óculos) - Você é quem sabe. (O homem sai à procura do grupo, cujo canto não deixamos de ouvir durante toda a cena)
CENA 2
(Todo o grupo no palco, guardas e fiéis. A ação se passa durante uma das sessões de culto)
Voz – E se pretendemos que nossas atitudes sirvam de exemplo ao mundo e apontem o caminho, é indispensável que nenhuma delas dê margem a críticas. Muitos daqueles que objetivamos salvar e dar sentido às suas vidas estão ainda indecisos e conflitados, não tomaram a decisão final e portanto ainda estão sujeitos a serem influenciados negativamente. No estágio crítico em que se encontra a nossa civilização, qualquer passo em falso pode ser o último. Todos querem e temem, ao mesmo tempo. E esse temor lhes centuplica o grau de exigência. E no fundo eles estão certos. É preciso que tudo, em nós, demonstre segurança, paz e harmonia. Que nada escape ao nosso controle. Só assim conseguiremos quebrar essa barreira que ainda nos separa de tantos irmãos potenciais, cuja vinda para Anaiug nos encheria de felicidade. E seria mais uma resposta a todos aqueles que não se cansam de nos perseguir. Não é verdade, meus irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - E por que ainda não conseguimos eliminar de vez todos os obstáculos? Alguém saberia responder? A resposta é fácil: porque muitos de nós ainda cometem certas falhas que os inimigos da seita, de algum modo, tomam conhecimento e imediatamente saem divulgando por todos os meios de comunicação. E não me refiro às falhas mais graves, apenas, mas a todas. A senhora, por exemplo: por que prendeu os cabelos para a sessão de culto?
Mulher - Pensei que não houvesse mal, pai!
Voz - A senhora não acha que esse penteado lhe dá uma aparência sofisticada?
Mulher - Não imaginei que o resultado pudesse ser esse, pai!
Voz - Talvez, no fundo, a senhora deseje se sobressair perante os demais.
Mulher - Não, pai, não é esse o meu desejo!
Voz - Qual é, então, o desejo da senhora?
Mulher - Servir a Deus através dos ensinamentos do pai!
Voz - Isso é tudo quanto a senhora deseja?
Mulher - Tudo, pai!
Voz - E podemos confiar em suas palavras?
Mulher - Eu nunca lhe menti, pai, nunca! Sei que muitas vezes cometi falhas, que ainda as cometo, mas sempre involuntariamente!
Voz - Eu suponho que a senhora já tivesse se conscientizado de que não existem ações involuntárias. Na maioria das nossas últimas sessões esse assunto foi abordado exaustivamente. A senhora, por acaso, estava distraída?
Mulher - De modo algum, pai! Eu não perdi uma única palavra!
Voz - A senhora não terá adormecido, por alguns instantes, involuntariamente?
Mulher - Se ainda é possível merecer alguma consideração do pai, eu imploraria que me acreditasse! Jamais adormeci em nenhuma das sessões!
Voz - Mais viu alguém fazê-lo, certamente.
Mulher - Não...não vi...eu jamais pude desviar meus olhos do pai! Nunca reparei sequer em quem estava do meu lado, tal o interesse com que sempre acompanhei as nossas sessões de culto!
Voz - As palavras dessa senhora merecem a nossa confiança, irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Palavras com as quais ela afirma jamais haver adormecido durante uma sessão de culto, assim como nunca ter percebido alguém fazê-lo?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Por favor, eu pediria que a senhora se aproximasse um pouco mais. (A mulher se aproxima). A senhora sabe o que eu tenho nas mãos?
Mulher - Não, meu pai, não consigo distinguir direito!
Voz - É um pequeno envelope, dentro do qual existem algumas fotos. Elas foram tiradas durante as últimas dez sessões de culto. Acabam de me ser entregues. Eu ainda não as vi. Como a senhora pode constatar, o envelope ainda se encontra fechado.
Mulher - É verdade, pai!
Voz - Eu vou abri-lo agora. Examinar o material. E chegar então a uma conclusão mais definitiva sobre o grau de lealdade dos irmãos.
Homem - Meu pai!
Voz - Sim..?
Homem - Eu realmente vi...algumas vezes...que nem todos guardavam a atenção devida durante o culto.
Voz - O irmão se importaria de aclarar um pouco mais a expressão “guardavam a atenção devida?
Homem - Bem, pai, o que eu quero dizer é que...normalmente...durante as últimas horas...não sempre, mas muitas vezes, eu surpreendi diversos irmãos adormecidos. Isso me tirava a concentração e impedia de me aprofundar nas palavras do pai.
Voz - Diversos irmãos, o senhor disse...portanto, não lhe seria difícil reconhecer alguns...um, que seja.
Homem- Não, não seria difícil...sei que existem vários, aqui presentes...mas realmente só consegui guardar com segurança um único rosto.
Voz - E a quem pertence?
Homem - A mim. (Todos se olham espantados. Um dos guardas se retira)
Voz - Levantem-se, meus irmãos. Afastem-se um pouco para que eu possa vê-lo melhor. O que dizer dessa atitude? Qual a explicação para uma falha dessa natureza? O senhor perdeu a fé?
Homem - Não, pai.
Voz - O Senhor deixou de acreditar em algo daquilo que o trouxe até nós?
Homem - Não, pai.
Voz - Que justificativas o senhor poderia então nos apresentar?
Homem - Nenhuma além do sono, pai.
Voz - Teriam as minhas palavras perdido a importância?
Homem - As palavras do pai sempre alimentaram meu espírito e não foi ele que se desligou, mas meu corpo.
Voz - Pois o senhor aprenderá a controlá-lo melhor daqui para frente. (Entra o guarda que havia saído) Enquanto disciplina os músculos, o senhor deverá fazer também um pequeno esforço de memória. (O guarda que entrou trouxe um enorme chapéu amarelo. Coloca-o na cabeça do homem) Esse envelope que o senhor está vendo, já não me interessa mais. Ao menos por ora. Eu quero os nomes de todos aqueles cujo sono se sobrepõe à minha mensagem. (Depois de um tempo, as luzes começam a cair em resistência)
CENA 3
(O grupo se encontra trabalhando. Alguns guardas fiscalizam. Os fiéis empunham bastões, simbolizando os objetos de trabalho - pás, enxadas, etc... De repente, um homem tomba. O trabalho é interrompido, mas ninguém o socorre, com exceção de um único elemento, que se aproxima e tenta ajudar. Os guardas o afastam. Em seguida eles pegam o homem que caíra e o recolocam em sua posição inicial. O trabalho recomeça. Pouco depois, o homem cai definitivamente. Dois guardas o retiram de cena. Um terceiro dá por encerrado o trabalho. Os fiéis se dirigem para as extremidades do palco e encaixam seus bastões nos orifícios existentes em ripas de madeira pregadas no chão. Começam a se escutar os primeiros acordes de um cântico)
CENA 4
(O grupo todo se encontra em cena, com exceção dos guardas. Os fiéis entoam um cântico, que progressivamente se torna cada vez mais entusiasmado)
Havendo uma fé, em mim
Havendo um lugar, assim
Havendo o desejo, de transformar
Os sonhos se tornam, reais
Os medos e angústias, se esvaem
E a força do novo, se impõe
Se impõe nas montanhas, nos mares
Se infiltra nos campos, nos lares
Mostrando que a hora, é de mudar
Portanto não tema, irmão
Venha conosco, nos dê a mão
Viver é preciso, viver
Viver sem temor, viver
Sem ódio e rancor, viver
E a todos os homens, mostrar
Que tudo é possível, para aquele que crê
Que tudo é infinito, para aquele que crê
Que só faz sentido, quando se crê
Não viva sozinho, não há por quê
Não lute sozinho, não há por quê
Existe um lugar, para você
Em meio aos bosques, para você
Junto das fontes, para você
Com flores e frutos, só para você
Existe uma estrada, é só partir
Existe uma estrela, é só seguir
Existe o amor, a descobrir
(O mesmo homem que havia tentado ajudar o indivíduo que caíra na cena anterior, interrompe o cântico)
Homem - Existe algo mais, além do amor, a descobrir! Um homem sumiu depois do culto e nunca mais foi visto. Teria ele se perdido nessa estrada? Um outro tombou durante os trabalhos forçados. Teria ele duvidado do brilho dessa estrela? Ou quem sabe ambos desapareceram por haverem descoberto o amor?
Fiel 4 - Eles não estão aqui. Mas isso não lhe autoriza a afirmar que tenham desaparecido. Talvez tenham se afastado.
Homem - Talvez... e em vista disso nós cantamos. Há um mês que não nos permitem trocar de roupa. Nós estamos imundos, famintos! Mas que importância podem ter a imundície e a fome? O essencial é cantar! Mas o quê? A quem, afinal?
Fiel 1 - O cansaço e a fome atestam nossa lealdade!
Homem - No início, assim que nós chegamos aqui, a nossa música refletia a essência do que éramos, do que sentíamos, do que esperávamos encontrar nesse lugar! Hoje, ela apenas reflete aquilo que nos tornamos: um agrupamento de sonâmbulos a quem o terror impõe diariamente a representação de uma farsa!
Fiel 3 - Nada é inconciliável para o homem que acredita!
Fiel 4 - Tudo é possível para aquele que não perdeu a fé!
Fiel 3 - E todos os que crêem sabem perfeitamente que só atingirão a luz depois de haverem conhecido as trevas!
Homem - Todos aqueles cuja fé suplanta a razão no fundo não sabem nada! Se julgam os mais sábios, mas são na verdade os mais ignorantes!
Fiel 5 - E quem é você para falar de fé? Você, que todos nós sabemos que há muito perdeu a razão?
Homem - Se eu perdi, é sinal de que um dia eu a tive. E graças a isso, eu pude ter fé. A minha crença, assim como a de vocês, se a memória não fugiu de todo, nasceu da esperança de podermos um dia, juntos, em algum lugar, estabelecer uma comunidade que levasse em consideração a individualidade de cada um, que fosse fruto da consciência de cada elemento do grupo. E que portanto seria o resultado de nossas aspirações e anseios.
Fiel 2 - Todos nós nos sentimos realizados e felizes aqui!
Fiel 1 - Todos os nossos projetos e sonhos se concretizaram!
Fiel 4 - Tudo o que nos foi prometido se tornou real!
Homem - Não é verdade! O que aconteceu, de fato, é que nós não fizemos esse lugar! Ele é que nos fez, nos moldou, já estava pronto desde o primeiro dia!
Fiel 5 - Você não sabe o que diz!
Homem - Sei sim! Por uma questão de esperteza, apenas, para ganhar a nossa confiança definitiva, durante um certo tempo ele camuflou seus verdadeiros propósitos, nos iludiu com encenações habilmente preparadas, para que nos entregássemos por inteiro, sem o menor grau de desconfiança! E quando percebeu que já nos tinha enfeitiçado definitivamente, então aí começaram a aflorar os verdadeiros objetivos deste lugar, que são os de explorar, escravizar, reduzir toda a comunidade à mais objeta forma de dependência possível! (Um fiel se afasta do grupo)
Fiel 3 - Chega! Nada nos abriga a escutá-lo! Como se já não bastasse a interrupção do cântico, você ainda se julga no direito de nos ferir, de nos magoar naquilo que para nós é mais sagrado!
Fiel 4 - Você perdeu a razão e procura nos impor os seus desatinos!
Fiel 5 - Mas fique certo de que nada abalará nossa confiança e que qualquer tentativa nesse sentido redundará em fracasso!
Fiel 2 - Não acreditamos em nada do que você disse!
Fiel 4 - São palavras de um louco!
Fiel 3 - De um cego, sobre cuja cabeça já vislumbramos a espada do Senhor!
Homem - Se algo tiver que se abater sobre minha cabeça, como já aconteceu a tantos outros, vocês podem estar certos de que não será uma espada, muito menos empunhada pelo Senhor, que permite dúvidas e não pune os que duvidam, mas ouve e aconselha!
Fiel 5 - Deus é infinito em sua bondade, mas não em sua tolerância!
Homem - Quem lhe ensinou isso? O “Deus” de vocês? Que se vale de uma guarda pessoal para manter sua liderança? (Volta o fiel que havia saído) Que trucida covardemente não apenas fatos mas até simples suspeitas?
Fiel 2 - Não seja infame!
Homem - Infames são aqueles que se venderam, aceitaram a incumbência de vigiar os demais! Que se sujeitaram a preparar relatórios fictícios só para darem mostras de eficiência e lealdade ao “pai”!
Fiel 1 - Ninguém jamais fez isso, nenhum de nós!
Homem - Fizeram sim!
Fiel 3 - Traidor!
Homem - Forjaram documentos que foram responsáveis por uma infinidade de violências injustificáveis!
Fiel 4 - Você pagará caro essa insolência!
Homem - Vocês se transformaram em nulidades que se espreitam, se vigiam, decoram frases incompreensíveis que repetem feito marionetes!
Fiel 5 (Aos demais) - Silêncio! (Se escuta um rumor de passos)
Homem - Tudo isso em nome da fé! Mas afinal, que crença é essa? A do terror? (Surgem os guardas) Não se inquietem... Muito em breve nós saberemos quem tinha razão...(Os fiéis saem)
CENA 5
(O homem está no centro. Os guardas o rodeiam, sob quatro focos de luz. Os inquisidores serão denominados A - B - C - D)
A - Que noite linda, hoje...
B - Linda...
C - Encantadora...
D - Perfeita.
B - Você não acha? (Tempo)
A - Aposto que ele vai dizer que sim.
C - Aposto que ele vai dizer que não.
A - E seria ele tão insensível?
B - Logo ele?
D - Não creio.
C - É possível que eu tenha me enganado.
A - É mais do que provável. (Tempo)
D - Que silêncio...
B - Não se escuta nada...
A - Como se estivéssemos em tempo de guerra...
C - À espera de bombardeios.
Homem - Por que é que vocês usam sempre esses óculos?
A - Óculos?
C - Nós?
B - Mas que absurdo!
D - Que coisa estranha!
Homem - Por que ninguém jamais tem acesso ao verdadeiro rosto de vocês?
C - Acesso?
D - Ao nosso verdadeiro rosto?
A - Mas que absurdo!
B - Que coisa estranha!
Homem - Qual é o significado dessas máscaras?
B - Num dia de culto você não se ajoelhou junto com os outros.
D - Se ajoelhou, mas pouco depois.
A - Você se distraiu?
C - Ou você não quis?
Homem - Eu me distraí.
A - E por ocasião de um dos trabalhos coletivos, quando um irmão fraquejou miseravelmente...foi também por distração que você tentou intervir?
Homem - Não! Quando o irmão exausto não suportou mais a massacrante carga de trabalho que lhe tinha sido imposta e tombou desacordado sobre as pedras eu...
B - Massacrante carga de trabalho!
D - Imposta!
A - É assim que você agora se refere às nossas ocupações diárias?
Homem - “Nossas”? Eu jamais pude perceber nenhum de vocês carregando uma enxada, ou reparando uma cerca, ou construindo fosse o que fosse! Vocês só perambulam pelo campus, como fantasmas, espreitando cada movimento que fazemos!
C - É indispensável seguir as regras!
A - A que todos estamos sujeitos!
D - Que todos acatamos sem fazer perguntas!
B - E sem exigir respostas!
Homem - Não foi para isso que eu vim aqui, para ouvir regras!
C - Faz parte da organização do campus!
Homem - Eu fui informado de que essa organização partiria da consciência de cada um.
A - Consciência...
Homem - E que ela seria fruto de nossa liberdade individual!
B - Você não fala de organização, fala de anarquia!
Homem - Eu não imaginava que esses conceitos fossem ser empregados aqui.
C - O que você imaginava ou deixava de imaginar não nos interessa!
A - O que existe são os fatos!
D - E eles demonstram que sua conduta se afasta perigosamente da de todos os demais!
B - O que significa uma exceção!
A - E o importante aqui, como acabamos de lhe dizer, são as regras!
Homem - Donde se conclui que o direito à dúvida foi banido desse lugar!
C - Dúvida?
A - Com que então...você duvida!
Homem - Pensei que fosse permitido.
D - O seu problema é pensar demais.
Homem - E o de vocês é não pensar nunca! É essa a condição imposta para poder usar esse disfarce? Que confere tantos poderes?
A - Cuidado com o que você diz...
Homem - Mais uma regra que eu tenho que levar em conta? Faltam muitas?
C - A sua audácia lhe faz esquecer as normas mais elementares do bom senso.
D - E lhe afasta do único caminho que ainda poderia lhe ser útil.
Homem - E que caminho é esse?
A - O da prudência...
Homem - Prudência e covardia, ao que eu saiba, não foram ainda oficializadas como sinônimos.
C - Então você se nega?
Homem - A quê?
A - A colaborar.
Homem - Com o quê?
B - Com a ordem.
Homem - Não a conheço.
D - Mas conhecerá em breve.
Homem - É possível.
B - É mais do que provável.
Homem - E pelo que imagino será meu último conhecimento...
A - Depois dele haveria algum outro que valesse a pena?
Homem - O da verdade.
D - A ordem é a única verdade possível.
Homem - Mas nem todas as ordens foram feitas para todos os tempos! E as que vocês tentam nos impingir pela força são as mesmas do mundo que julguei haver abandonado para sempre!
C - Você lamenta...?
Homem - É tarde demais.
B - Tem razão.
A - Para você, ao menos, é tarde demais.
Homem - E quanto aos outros?
D - Esses refletirão bastante antes de extravasarem suas dúvidas.
Homem - Faz parte do método?
C - A experiência é tudo. (Tempo)
A - Você teria algo mais a acrescentar?
Homem - E adiantaria? (Os guardas começam a se aproximar. Do gravador voltamos a escutar algumas palavras proferidas pelo reverendo quando da chegada do grupo)
Voz - ...e a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste! (Nesse momento os guardas se fecham sobre o homem, que emite um grito desesperado que agoniza pelo espaço. O corpo do homem tomba. Os guardas se afastam sem pressa)
CENA 6
(Pouco depois que os guardas saem, a mulher do homem assassinado surge. Ela se abraça ao corpo do marido. No gravador, começa a se escutar a voz do Pai)
Voz (Palavras textuais do reverendo Jim Jones) - A noite está clara e estrelada. Há tanta paz aqui. Não pode haver nada tão satisfatório quanto levar esta vida comunitária. Amo o trabalho. É profundamente triste que a vasta maioria do povo se submeta à arregimentação e extrema tensão de uma sociedade altamente tecnológica. No entanto, aqueles que se atrevem a viver ideais elevados, ao invés de se contentarem com a mediocridade, apatia e indiferença que são a ordem do dia, tornam-se alvos da perseguição vingativa, pois a vida em cooperação proporciona extrema segurança...(Um grupo de fiéis se aproxima) Quando não se tem ideais, vive-se sozinho e morre-se rejeitado...(Ao perceber a aproximação do grupo, a mulher, enfurecida, começa a rasgar as roupas do morto e a entregar os farrapos a cada um) De certa forma, viemos para cá afim de não contribuirmos para a destruição que nosso país de nascimento continua a infringir às nações menos prósperas. Como se pode viver livre de culpa quando os nossos próprios recursos servem para patrocinar atrocidades nos outros países? A vida sem princípios é desprovida de sentido. Não se pode saber o que é a felicidade até se viver plenamente. Encontramos a segurança e a realização na coletividade e podemos ajudar a desenvolver uma nação agrícola pacífica. Nós passamos além da alienação e encontramos um meio de viver que alimenta a confiança, o que não pode existir numa sociedade que se tornou cínica e indiferente...
CENA 7
(Todo o elenco está em cena. O ambiente está preparado para uma festa. Deve-se perceber, pelo clima exagerado de felicidade, que há tensão no campus. Presentes o Deputado e o Repórter)
Guarda 1 – Bem-vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo pede que os senhores o desculpem por não poder estar aqui para recebê-los. Alguns assuntos de ordem administrativa inadiáveis reclamam sua presença. Tão logo os resolva ele os receberá com prazer. Enquanto isso os senhores estão autorizados a entrevistar os irmãos que desejarem, assim como a visitar as dependências do campus.
Deputado - Transmita ao reverendo os nossos mais sinceros agradecimentos. Nossa missão é de paz. Não nos encontramos aqui para julgar, apenas para informar a opinião pública.
Guarda 2 - O reverendo confia na sinceridade dos senhores. E ele, mais do que ninguém, está ansioso para que a opinião pública seja informada com rigor à cerca das nossas atividades em Anaiug.
Deputado - Nós agradecemos a confiança e reafirmamos que nossos propósitos são os de informar, sem emitir qualquer espécie de julgamento pessoal.
Guarda 1 - Em nome de toda a comunidade, o reverendo lhes deseja boas vindas e que os senhores possam exercer suas atividades dentro da mais absoluta paz e cordialidade.
(Saem os guardas. O grupo se dispersa, menos uma fiel, que se aproxima)
Mulher (Ao Repórter) - O Senhor também é deputado?
Repórter - Não, sou repórter.
Mulher - Ah, sim.
Deputado - Nós estamos trabalhando juntos nesse caso.
Mulher - Caso? Como assim?
Deputado - Bem...a senhora deve estar informada de que está havendo uma grande confusão em torno da seita. Ao menos lá...
Mulher - O que nós sabemos é que os inimigos de sempre mantêm as acusações de sempre. É possível que elas tenham se intensificado um pouco ultimamente. Mas nós já estamos habituados.
Deputado - Elas nunca foram tão contundentes. Nem tão numerosas.
Mulher - O mundo não suporta que lhe desafiem os dogmas. E aqueles que ousam fazê-lo devem estar preparados para tudo.
Deputado - A senhora parece muito tranqüila quanto à opinião pública. Como se não lhe atribuísse a menor importância.
Mulher - O senhor sabe que o que caracteriza a opinião pública é justamente não ter opinião.
Deputado - Isso não a impede de aderir a alguma causa.
Mulher - Claro que não, pois isso é tudo que ela pode fazer. Aderir...
Deputado - Quando isso acontece, ela pode se tornar perigosa.
Mulher - Nós sabemos. A sua inépcia para criar se revela proporcional à sua obstinação em seguir. É por isso que todos temem tanto a opinião pública e procuram sempre estar do seu lado. A sua força destruidora é incomparável.
Deputado - A senhora acredita que esteja havendo uma perseguição ao movimento de vocês?
Mulher - É mais do que óbvio.
Deputado - Com que finalidade?
Mulher - O sistema não perdoa que lhe seja contestada a autoridade.
Repórter - A senhora se importaria se nós falássemos um pouco sobre algumas das acusações que estão sendo feitas a Anaiug?
Mulher - Absolutamente. Nós estamos preparados para responder a qualquer pergunta.
Deputado - Muito bem. Uma das coisas de que mais se fala diz respeito aos trabalhos coletivos. Como são distribuídos esses trabalhos?
Mulher - Para começar, o termo “trabalho” não é empregado aqui. O que existe são atividades coletivas, que cada indivíduo opta por fazer. E que não são fiscalizadas por ninguém.
Deputado - E em que consistem essas atividades coletivas?
Mulher - Nós formamos uma comunidade agrícola. Portanto, tudo se relaciona com o campo. Nós cultivamos a terra e vivemos do que ela nos dá. (Num outro ponto do palco vemos alguns homens que trabalham. Um guarda se encontra próximo, numa atitude discreta)
Deputado - O que é que aqueles homens estão fazendo?
Mulher - Eles preparam o terreno para uma nova horta.
Repórter - E aquele, um pouco afastado? O que usa óculos...por que ele apenas assiste?
Mulher - Ele não assiste, apenas. É um membro mais antigo que orienta os mais novos.
Repórter - Claro...alguém tem que orientar. (Eles desviam a atenção do grupo. Um homem cai)
Deputado - E essas atividades coletivas obedecem a uma carga horária pré-estabelecida? (O guarda se aproxima e ergue o homem)
Mulher - Não, cada um decide seu horário.
Repórter - Dizem que o número de horas é desumano...(O guarda torna a se afastar)
Mulher - O senhor admite que aqueles homens que acabou de ver possam estar sendo submetidos à uma carga horária desumana? (Eles se voltam para o grupo) Examinem um por um: não é evidente o seu prazer e a sua alegria com o que fazem?
Deputado - Aparentemente, sim. (As luzes no grupo se apagam)
Mulher - Aparentemente, o senhor diz...Ah, os políticos! São os seres mais desconfiados que existem, os mais céticos. Nem a evidência objetiva parece possuir qualquer valor para eles.
Deputado - Nunca lhe aconteceu assistir a uma representação brilhante de um texto medíocre?
Mulher - É possível que no teatro uma boa encenação consiga disfarçar um texto ruim. Mas será que na vida esse mecanismo é possível?
Deputado - Depende dos atores.
Mulher - Para o senhor, então, Anaiug seria pouco mais que um grande palco onde estaria se desenrolando uma gigantesca farsa?
Deputado - Eu ainda não tenho opinião formada. É a primeira vez que venho aqui.
Mulher - Isso não significa que o senhor já não tenha uma opinião formada. Seguindo seu raciocínio, o senhor poderia perfeitamente estar desempenhando o papel de um homem interessado, curioso, mas que no fundo já chegou aqui com seu veredicto pronto.
Deputado - Não é o caso.
Mulher - Esperemos que não.
Repórter - É verdade que as sessões de culto são obrigatórias?
Mulher - Nada é obrigatório aqui. Todas as nossas atividades são uma fonte inesgotável de prazer.
Repórter - A imprensa tem divulgado com insistência que o número diário de horas de culto aumentou consideravelmente nos últimos tempos. É verdade?
Mulher - Por insistência nossa. E mesmo estando adoentado ultimamente o reverendo jamais se negou a atender-nos. Ainda que em detrimento de sua própria saúde.
Repórter - Há rumores de que o reverendo estaria sofrendo de câncer.
Mulher - O seu mal não foi ainda diagnosticado. Talvez não passe de um esgotamento nervoso por excesso de trabalho e preocupação.
Deputado - E como transcorrem essas sessões?
Mulher - Nós rezamos, cantamos, escutamos as palavras insubstituíveis do reverendo...comentamos nosso dia-a-dia, procuramos resolver em conjunto todos os problemas eventuais...enfim, como uma verdadeira família.
Deputado - E não se verificam incidentes durante essas sessões?
Mulher - O que é que o senhor quer dizer com “incidentes”?
Deputado - Nós fomos informados de que muitas vezes acontecem punições e castigos. Que as falhas cometidas pelos irmãos são punidas publicamente e que essas punições vão desde a humilhação até castigos físicos, que muitas vezes acarretam a morte.
Mulher - Chega a ser fantástica a imaginação desses senhores da imprensa.
Repórter - Eles se basearam em depoimentos de antigos membros da seita que se revoltaram e resolveram contar o que sabiam.
Mulher - Os antigos membros da seita normalmente se colocam a serviço de uma nova causa, o que os faz perder a memória e inventar absurdos desse tipo.
Repórter - Com o que então todos eles não passariam de consumados mentirosos? Que estariam agindo dessa forma em função de uma nova causa?
Mulher - É o que imaginamos.
Repórter - E que causa seria essa?
Mulher - Isso não podemos saber. Eles não informaram?
Deputado - Nós soubemos da existência de poços em que membros da seita ficariam mergulhados por vinte e quatro horas para se penitenciarem de erros cometidos.
Mulher - Nos poços de Anaiug só são mergulhados baldes. E a água que neles se encontra serve apenas para beber, nunca para torturar.
Repórter - Como é que o reverendo reage a todas essas acusações?
Mulher - Com tranqüilidade. Ele tem consciência da grandeza de sua obra e já imaginava que as críticas viessem em proporção à sua importância.
Repórter - E se elas se tornarem insuportáveis?
Mulher - O processo agora é irreversível. Os membros da seita aprenderam a lição de uma vida comunitária e aos nossos olhos a atuação desse gigantesco coral é desprezível. O barulho ensurdecedor das vozes reacionárias se dispersará como as nuvens de tempestade, que amedrontam por um breve instante, mas cujo efeito é passageiro.
Deputado - É verdade que inúmeras vezes foram encenados suicídios coletivos?
Repórter - Disseram-nos que os membros da seita seriam forçados periodicamente a ingerir líquidos que conteriam venenos, a fim de serem testados em sua lealdade ao reverendo.
Mulher - A resposta a esse turbilhão de insultos e acusações é a nossa serenidade. Aos senhores, aqui presentes, nós abrimos nossos corações e nossas portas. São livres para visitar todo o campus, conversar com quem quiserem. Tudo lhes está sendo facilitado para que os senhores possam chegar a uma conclusão real e justa quanto à nossa organização. Ninguém lhes obstruirá o caminho. A verdade está aqui, diante dos senhores, nas nossas instalações impecáveis, nas nossas colheitas abundantes, no sorriso dos velhos e das crianças. Enfim, em tudo o que o nosso amor e a nossa fé foram capazes de construir. Nós esperamos que os senhores sejam imparciais e informem o mundo do que realmente viram e sentiram em Anaiug e não do que ouviram falar. (Tempo) Bem...eu agora preciso me retirar. Mesmo num dia como o de hoje, não devo me esquecer da minhas ocupações. Se precisarem de algo, qualquer irmão poderá lhes ajudar. Bem-vindos a Anaiug, irmãos. (E sai)
CENA 8
Repórter - Mulher estranha...quem será?
Deputado - Não sei...mas decorou perfeitamente o papel.
Repórter - Você acha que ela mentiu?
Deputado - Você tem alguma dúvida?
Repórter - Bom, eu suponho que grande parte das informações que ela nos prestou sejam falsas. Mas quais, exatamente? Por ora, é a palavra dela contra a dos outros.
Deputado - É evidente que ela recebeu instruções, não veio até nós por acaso. Foi selecionada.
Repórter - Eu sei, não é possível que esse lugar seja tão perfeito. Mas o problema é que cabe a nós demonstrar o contrário. E para isso nós precisamos de fatos. Sem eles a nossa viagem terá sido uma perda de tempo.
Deputado - Pois é, nós precisamos de fatos. Mas onde buscá-los?
Repórter - O ideal seria se nós pudéssemos documentar algo, fotografar, filmar, para sairmos daqui com algumas provas concretas.
Deputado - Mas se é verdade mesmo que todo o campus nos será aberto é sinal de que todo ele se encontra preparado para nos transmitir uma determinada imagem. Portanto, nessas condições, filmar ou fotografar só traria benefícios para eles.
Repórter - Eu não acredito que todo o campus nos seja aberto. Afinal de contas, nós possuímos dezenas de depoimentos de antigos membros da seita em que eles afirmam existir, em Anaiug, locais especialmente destinados a punições e castigos. Construídos com essa única finalidade. Alguns chegaram até a denunciar a existência de depósitos de armas!? É só uma questão de descobrir...
Deputado - Você fala como se isso fosse a coisa mais simples. Você se esquece de que há muito tempo já que eles sabiam que nós viríamos? O elemento surpresa não existe mais...
Repórter - Muito bem, suponhamos que eles não queiram nos mostrar determinado pavilhão. Nós insistimos um pouco, mas ainda assim eles se negam, alegando qualquer coisa. Isso já seria um trunfo a nosso favor. A partir daí tudo se limitaria a descobrir alguém que se dispusesse a nos levar até lá!
Deputado - O seu otimismo é impressionante...
Repórter - É tudo uma questão de fé...(Ambos sorriem) Nós já sabíamos que seria muito difícil. Trata-se, apenas, de não desanimar.
Deputado - O que é que você sugere?
Repórter - Eu proponho que a gente converse com aquela mulher.
Deputado - Que mulher?
Repórter - Aquela, sentada logo ali adiante. Ela acompanhou toda a nossa conversa, desde o início.
Deputado - E daí?
Repórter - Daí que foi a única. Todos os demais passam por aqui como se nem nos vissem!? Ela, ao menos, agiu diferente. Quem sabe?
Deputado - Bem, nós podemos tentar.
Repórter - Afinal, foi para isso que viemos. (Eles se dirigem à mulher)
CENA 9
Repórter - Bom dia.
Mulher - Boa tarde.
Repórter - Tem razão, já são quase quatro horas.
Mulher - Quatro horas...mais um pouco e eu lhes daria boa noite.
Repórter - Tão cedo?
Mulher - Os dias em Anaiug são curtos, mas as noites...
Repórter - A senhora se importaria se conversássemos um pouco?
Mulher - Seria um prazer.
Repórter - A senhora já deve saber quem somos nós.
Mulher - Claro, todos aqui sabem quem são os senhores. Há muito tempo que todos se preparam para recebê-los.
Deputado - Se preparam, a senhora disse?
Mulher - Há pelo menos três meses que só se vive em função desse encontro.
Deputado - E seríamos nós tão importantes assim?
Mulher - Pelas palavras do reverendo....
Repórter - E de que forma foi feita essa preparação?
Mulher - Durante as sessões de culto. O pai nos dizia que mais cedo ou mais tarde nós receberíamos a visita de pessoas importantes e era preciso estar preparado.
Repórter - E a que horas se realizavam essas sessões?
Mulher - Durante a noite, como sempre.
Deputado - Por quanto tempo?
Mulher - Muito tempo...às vezes, a noite inteira.
Deputado - E todos compareciam?
Mulher - Claro! Quem é que gostaria de usar o chapéu amarelo?
Repórter - Chapéu amarelo...o que significa isso?
Mulher - Significa que quem o usa perde o respeito de todos, passa a ser evitado até...resolver ser bom de novo.
Deputado - E quando surgiu esse hábito?
Mulher - Faz tempo...
Repórter - A senhora já usou esse chapéu?
Mulher - Eu não, mas um amigo meu... usou.
Repórter - E o que foi que aconteceu com esse seu amigo?
Mulher - Ele nunca mais foi visto.
Deputado - Como assim?
Mulher - Deve estar ainda no pavilhão número três.
Repórter - Por que no pavilhão número três?
Mulher - Porque é para lá que eles vão.
Repórter - Eles quem?
Mulher - Os que cometem alguma falha...deixam de ser bons...ou que duvidam...o pai sempre nos diz que fé e disciplina devem caminhar de mãos dadas.
Deputado - Aonde é que fica o pavilhão número três?
Mulher - Depois do lago. É o mais afastado. E também o menor. Uma vez eu fui até lá, sem que me vissem e espiei por uma das janelas.
Repórter - E o que foi que a senhora viu?
Mulher - Nada...estava muito escuro. Dizem que há um porão lá dentro.
Repórter - Quem lhe disse isso?
Mulher - Meu marido.
Deputado - Será que nós poderíamos falar com ele?
Mulher - Com ele? É difícil...
Deputado - Por quê?
Mulher - Ele foi embora...
Repórter - Ele não teria sido forçado a usar o chapéu amarelo?
Mulher - Não... nele não colocaram o chapéu amarelo.
Repórter - E o que foi que fizeram com ele?
Mulher - Foi bem aqui...numa noite...nós estávamos reunidos e eles o levaram...
Deputado - Para o pavilhão número três?
Mulher - Não sei.
Repórter - E quem o levou?
Mulher - Os homens de óculos.
Repórter - Porque é que eles usam isso?
Mulher - O sol daqui é muito intenso...em pouco tempo os olhos se gastam.
Deputado - E os poços de Anaiug? Para que servem, exatamente?
Mulher - Os poços de Anaiug são tão profundos...(Entra um homem)
Homem - Senhor deputado! Eu gostaria de lhe pedir uma coisa!
Deputado - Pois não.
Homem - Eu queria ir embora. Por favor, enquanto ainda há tempo. Amanhã, me leve com o senhor.
Deputado - Eu não estou entendendo. De que se trata?
Homem - É a minha última chance!
Deputado - Calma, meu amigo!
Homem - Guarde esse papel. Nele eu escrevi meu nome. Amanhã, aconteça o acontecer, o senhor tem que prometer que me levará junto!
Deputado - Então o senhor não é livre para ir quando quiser?
Homem - Livre? (Olha aflito para os lados) Além dos senhores não me resta mais nada! O fim está próximo, eu sei!
Deputado - Fim? Mas o que é que o senhor quer dizer com...(O homem se afasta. Entra um guarda)
Guarda - O reverendo manda lhes dizer que hoje, infelizmente, não poderá recebê-los. Pede-lhes que voltem amanhã de manhã.
Deputado - Será que o reverendo não nos ofereceria abrigo por essa noite?
Guarda - Não há leitos disponíveis.
Repórter - Mas os caminhos se acham impraticáveis. E são oito quilômetros até o povoado mais próximo.
Guarda - O reverendo lamenta, mas não poderá atendê-los. Os senhores terão que pernoitar fora do campus. Um jeep se encontra à disposição no pátio número cinco.
Deputado - Nós lhe agradecemos. Boa noite. (Saem Deputado e Repórter)
Guarda - Boa noite.
CENA 10
(Esta cena se passa no dia seguinte. Num canto do palco vemos, por trás de uma tela, as silhuetas de três homens que discutem. São eles o Deputado, o Repórter e o Reverendo, como de hábito denominado Voz. À medida que se desenrola essa conversa, o palco vai sendo lentamente iluminado e os fiéis, orientados pelos guardas, começam a chegar para a cena de despedida do Deputado e do Repórter)
Deputado - Eu lhe fiz uma pergunta objetiva, reverendo. Basta que o senhor confirme ou desminta. É tão simples!
Voz - Eu já tive a ocasião de observar que tudo, para os senhores, é sempre muito simples.
Deputado - Certas perguntas só admitem como resposta um sim ou um não!
Voz - Isso do ponto de vista dos senhores.
Repórter - É ou não é verdade que a comunidade se encontra fortemente armada?
Voz - De onde é que o senhor tirou isso?
Deputado - Alguns irmãos nos confirmaram a existência de trabalhos forçados!
Voz - Gostaria que esses irmãos confirmassem isso na minha frente.
Deputado - Para que o senhor os mandasse para o pavilhão número três?
Voz - O que é que o senhor está pretendendo insinuar?
Repórter - Nós descobrimos, senhor reverendo, que é para lá que o senhor envia a todos aqueles que não se comportam exatamente como determinam as suas leis, que são as do campus, é claro! E descobrimos, também, que o processo de reeducação dos infratores é realizado no fundo dos porões que o senhor mandou construir nesse local! E que nem todos conseguem sobreviver à violência com que são tratados!
Voz - Chega! Os senhores enlouqueceram! E não admito continuar com essa conversa nem mais um minuto! Os senhores estão convidados a deixar o campus imediatamente!
Deputado - E aqueles que quiserem nos acompanhar?
Voz - Que partam junto!
Deputado - Eu exijo uma declaração sua autorizando essas pessoas a partirem conosco. E exijo igualmente um salvo-conduto até o aeroporto. Sem essas duas garantias nós não deixaremos essa sala!
Voz - Não se inquietem. Eu as redigirei agora mesmo.
CENA 11
(Todo o grupo já está em cena, guardas e fiéis, mais ou menos dispostos como no início da cena 7. As silhuetas do Deputado, Repórter e Reverendo continuam visíveis)
Guarda 1 - Dentro de alguns minutos a entrevista que o pai está concedendo ao deputado e ao repórter estará terminada. Então os dois virão até aqui e apresentarão suas despedidas.
Guarda 2 - Que ninguém se esqueça das recomendações do pai. Que ninguém faça indagações desnecessárias. Quanto mais cedo eles se forem, melhor.
Guarda 3 - É indispensável que ambos partam de Anaiug com a melhor das impressões. A consolidação do nosso movimento dependerá, em grande parte, do que eles divulgarem.
Guarda 4 - Se opinarem desfavoravelmente, as pressões poderão se tornar insuportáveis.
Guarda 1 - Que todos se mantenham cordiais e solícitos até o fim, para que o mundo possa compreender, de uma vez por todas, a grandeza da nossa cousa.
Homem (Do bilhete) - O mundo jamais compreenderá a grandeza da nossa causa porque ela simplesmente não existe.
Guarda 1 - O que é que você está dizendo? (As silhuetas do Deputado e do Repórter somem. Permanece visível a do Reverendo)
Homem - Anaiug foi um sonho que fabricamos a partir do próprio desespero. Mas se transformou num pesadelo! Chegou o momento de acordar desse sono de morte!
Guarda 3 - Você enlouqueceu!
Homem - Eu nunca estive tão lúcido em toda minha vida! Isso aqui não passa de um campo de concentração! E vocês, que no início eram exatamente iguais a todos os outros, se transformaram em carcereiros implacáveis!
Guarda 2 - Ou você se cala nesse instante ou nós vamos...
Homem - Vocês não vão fazer nada! Vocês não podem me fazer nada! O deputado e o repórter já estão informados de que eu quero partir junto com eles! Eu lhes pedi isso ontem e eles prometeram que me levariam! Eles têm meu nome anotado, seria uma péssima política sumir comigo agora! Portanto, senhores verdugos, pelo menos no que diz respeito à minha pessoa, esse massacre termina aqui, hoje!
Guarda 4 - Não tenha tanta certeza assim. O reverendo não costuma perdoar aqueles que o abandonam.
Homem - Já estarei longe.
Guarda 1 - É o que vamos ver. (Entram o Deputado e Repórter. Ao fundo, a silhueta do Reverendo)
Guarda 2 - Estávamos esperando os senhores.
Deputado - Nós sabemos.
Guarda 3 - A comunidade se reuniu para lhes desejar uma boa viagem e agradecer o carinho e interesse que os senhores demonstraram por todos aqui.
Deputado - Nós é que agradecemos. A visita que fizemos a esse lugar se converterá num enorme benefício para muita gente. (Ao homem do bilhete) O senhor confirma o desejo de partir conosco?
Homem (Juntando-se a eles) - Sim.
Deputado - Há alguém mais que deseje fazer o mesmo?
Guarda 1 - Estamos certos de que ele é o único.
Repórter - Já perguntou a todos?
Guarda 1 - Certas perguntas são desnecessárias.
Repórter - E é o senhor quem decide quais são as perguntas necessárias?
Deputado - Em todo caso, gostaríamos de formulá-la uma vez mais. Existe alguém, dentre os senhores, que deseje, por livre e espontânea vontade, deixar este lugar e seguir conosco? (O Deputado mostra o salvo-conduto) Tenho aqui uma declaração assinada pelo reverendo autorizando todos que desejem ir embora a fazê-lo agora. (Ao guarda 1) O senhor reconhece a assinatura do reverendo?
Guarda 1 - Sim, é a sua assinatura.
Deputado - Portanto, é um documento autêntico. Ninguém tem nada a temer. O reverendo nos garantiu salvo-conduto até o aeroporto. Se comprometeu a respeitar a vontade dos irmãos que queiram regressar ao continente.
Guarda 2 - É inútil. Todos são felizes aqui. Não há por que ir embora.
Deputado - Muito bem. Os senhores é que sabem. Adeus. (E saem os três. Os guardas se reúnem. Confabulam em voz baixa. De repente um deles retira os óculos escuros)
Guarda - Senhor deputado! (Esse guarda sai atrás dos três. Fica implícito que é para matá-los)
Guarda 2 - Sentem-se, meus irmãos. A qualquer momento o pai nos falará.
(Todos se sentam. De repente se escuta um som violento, assustador, que indica que o Deputado e o Repórter, assim como o homem que os seguira, acabam de ser mortos. Todos se levantam apavorados, há grande confusão. Os guardas não conseguem dominar os fiéis. Ouve-se, então, a voz do Reverendo, cuja silhueta esteve sempre presente)
CENA 12
Voz - Meus irmãos! Tenham calma! O desespero só nos será prejudicial! Nunca, como agora, necessitamos tanto de lucidez e força! É imprescindível que todos tenham fé e convicção! (O grupo começa a se acalmar) A visita do deputado e do repórter se transformou num fracasso. Eles não vieram em busca de informações imparciais. Pelo contrário: já chegaram aqui com uma opinião formada e se recusaram a mudá-la. Nada do que lhes foi mostrado teve o poder de demovê-los. Eles abusaram de nossa boa fé e como se isso não bastasse ainda se julgaram no direito de nos fazer acusações. E mais: tiveram a ousadia de tentar fomentar a discórdia entre nós. Não nos foi possível, portanto, evitar as conseqüências de tal comportamento. Ambos acabam de ser mortos, assim como o irmão que nos traiu. Mas isso não é tudo. Dentro de muito pouco tempo o mundo estará informado do que se passou hoje, aqui. E Anaiug, não tenham dúvidas, será invadida e arrasada. Era o pretexto de que o sistema necessitava para nos colocar numa situação insustentável perante o mundo. O nosso sonho de construir uma comunidade agrícola pacífica chegou ao fim.
Homem - Eles não farão isso! Não ousarão invadir nossas terras!
Voz - Nós sabemos que sim. Não nos enganemos. Dentro de uns poucos dias já não existirá mais nada aqui...nós seremos presos, enviados a campos de concentração!
Homem - Eu não irei! Não vou permitir que me façam mal, nem à minha família!
Voz - O irmão se expressou com sabedoria. Nós não pertencemos mais ao mundo exterior. Portanto, não seria lógico que nos submetêssemos aos seus tribunais e acatássemos as suas sentenças.
Homem - E o que faremos, pai?
Voz - Só nos resta dar o passo definitivo. O mundo não está interessado em nós. O seu único objetivo é o de nos punir, nos castigar pela ousadia que tivemos de contestá-lo, renegá-lo para sempre. O que nos cabe, nesse momento, é demonstrar claramente que nos consideramos superiores a todos os seus dogmas. Que suas leias não nos dizem respeito e que somos por demais conscientes de nossa importância para nos curvarmos ante sua tirania. Nossa comunidade desaparecerá, meus irmãos... Nossas construções serão demolidas e essa terra será salgada. Destruirão tudo que conseguimos edificar em Anaiug. Mas aquilo que conseguimos estabelecer entre nós não poderá ser destruído nunca. Continuará a existir sempre, independentemente dos governos, dos organismos oficiais! Todos os corações sensíveis hão de se colocar do nosso lado e talvez um dia, quem sabe, parta de um deles uma nova tentativa de uma vida melhor, mais justa, em que todos possam ter oportunidades iguais. Nós deixaremos de existir, mas não a memória do que fizemos. Não nos rebaixaremos a ser perseguidos, encurralados e mortos como gado num curral. Nossa comunidade desaparecerá, mas não pela mão de seus carrascos. Desaparecerá porque seus membros assim o decidiram. O ideal que nos uniu em vida há de nos manter unidos na morte. Através dela nós transcenderemos nosso próprio destino e daremos ao mundo uma demonstração inequívoca da grandeza de nossos propósitos. (Tempo. Os fiéis se entreolham) Muitas vezes nós admitimos a possibilidade de uma situação como a que se apresenta. E em nenhuma dessas ocasiões nenhum irmão vacilou um minuto sequer. Quero crer que não o farão agora...(O grupo vacila, ninguém toma a iniciativa. Até que um dos irmãos se dirige a uma das estacas. Com os lábios cerrados entoa baixinho a melodia do cântico, só que num ritmo bem lento. Pega a estaca e a crava num dos orifícios restantes. Se imobiliza. Continua a murmurar essa melodia. E o processo se repetirá com cada um até que todos estejam mortos. Do teto começa a descer a lona escura. Estará formado um grande coral. A silhueta do reverendo tomba)
de Lionel Fischer
Cenário
Um espaço,a princípio vazio,que será delimitado por estacas de madeira no decorrer da ação. No teto, uma grande lona escura.
Personagens
Voz
Fiéis
Guardas
Deputado
Repórter
Obs: alguns fiéis serão particularizados no decorrer da ação. Quando isso acontecer, serão denominados Homem e Mulher.
* * *
A peça foi escrita em 1979 a partir do testemunho do repórter Charles A. Krause, que sobreviveu aos acontecimentos que se verificaram na Guiana, no ano anterior, que culminaram no suicídio coletivo de cerca de 900 pessoas. De seu livro Massacre na Guiana foram tiradas a maioria das informações, assim como de matérias escritas por Laurence M.Stern, Richard Harwood e de outros membros do Washington Post. O espetáculo gira em torno do movimento (seita) Templo do Povo, dirigido pelo reverendo Jim Jones.
* * *
ABERTURA
(Quando se abrem as portas do teatro, um grupo de atores se encontra misturado ao público. No palco, sob a luz de um único refletor, se vê um guarda, imóvel. O que o diferencia dos demais habitantes do campus é o fato de usar óculos escuros. O público entra, se senta, mas os atores não. Quando todos tomam conhecimento da presença desse elemento que está em cena, ele se retira. Os atores se dirigem para aquele foco de luz. Todos trazem consigo seus pertences: bolsas, mochilas, cobertores etc... Depois de um tempo, surge um outro guarda)
Guarda - Bem vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo, em nome de toda a comunidade, vos saúda e convida para conhecerem as dependências do campus. Solicita que os objetos de uso pessoal sejam deixados onde se encontram, a fim de que nada embarace vossa caminhada. E ainda hoje o reverendo vos falará pessoalmente. Bem vindos a ANAIUG, irmãos.
(O grupo coloca no chão os seus pertences e sai atrás do guarda. Tão logo isso acontece, surgem três novos guardas que recolhem os pertences dos fiéis. Em seu lugar deixam os uniformes do campus. Depois, saem. Entra novamente o grupo. Constata que seus objetos foram carregados. Vêm as novas roupas. Do gravador, começam a se escutar as palavras do reverendo. O grupo vai trocando as velhas vestimentas pelas novas)
Voz - Meus irmãos...penosa terá sido a vossa jornada e incontáveis os obstáculos que tivésteis que transpor para chegar a Anaiug. Vejo no rosto de cada um de vós a marca da fadiga. Mas também percebo, dentro de cada um de vós, a existência de uma alma transbordante de júbilo, cuja pulsação irresistível vos mantém de pé, a todos, apesar do corpo que implora, com justiça, que lhe seja facultado o sono. Ambos tem razão, corpo e alma, e a ambos abençôo pela sinceridade de seus anseios. De minha parte, gostaria que o soubésseis, também me foi difícil a espera desse encontro. Não que duvidasse de que viríeis, não. Mas meu coração estava tão impregnado de vossa lembrança que os minutos se convertiam em horas e os dias que me separavam de vós se assemelhavam a séculos. À noite, como o sono me fugisse, costumava vagar pelo campus e a todo momento me voltava na direção de nossas sete portas, como se meus ouvidos tivessem captado o rumor de vossos passos que se aproximavam de uma delas. E essa emoção agia de tal forma sobre todo o meu ser que, se porventura estivesse sendo observado por um cético, ele certamente julgaria estar diante de um louco. E eu não poderia contestá-lo. Pois a minha ansiedade de vós, o meu desejo de vós era tão imensos que é provável que o meu aspecto causasse realmente espanto a um homem que não crê. Mas quem, em meu lugar, teria agido de outra forma? Até que hoje, finalmente, me encontro de novo diante de vós e vos saúdo de todo o meu coração. Vós fizésteis este lugar e a ninguém mais ele pertence. Aqui aportarão todos os homens cuja ânsia de liberdade não tenha sido totalmente destruída. Aqui aportarão todos os homens cuja fé não tenha sido totalmente conspurcada. Aqui, no meio desses bosques e dessas fontes, todos aqueles que encararem a vida como algo infinitamente além do mero possuir e dominar celebração suas bodas, e serão abençoados pelo murmúrio das águas e das folhas. E a brisa da manhã varrerá de vossa memória esse mundo que acabásteis de deixar. Esse mundo sórdido que nos condiciona ao mal e à violência. Que nos induz ao crime. Que nos rejeita e massacra. Que estabelece hierarquias e classes. Que é surdo aos nossos apelos mais elementares. Que caminha independente da nossa vontade e diante do qual nada mais somos que fantoches. Aqui, no entanto, hão de ser outros os valores. Nós cantaremos e o fogo e a chuva compreenderão as nossas vozes. E dançarão conosco ao som dessa nova música. Aqui, mãos estranhas hão de se tocar com prazer e não se perguntarão se isso é justo. Não. Tudo há de ser justo, se vem do coração. E todos nós, irmanados e conscientes de que um mundo novo está a caminho, nos fecharemos para sempre dentro de nossas próprias consciências e ignoraremos para sempre tudo que existir para além de nossos próprios limites. E a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas, e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste! (As luzes se apagam em resistência)
CENA 1
(O grupo se encontra espalhado pelo palco. Todos estão felizes. Uns conversam, outros passeiam, alguns executam tarefas. Um fiel surge com um violão e todos começam a cantar. Surge um guarda, que assiste a cena à distância. Um dos fiéis tem sua atenção voltada para esse guarda. O grupo se retira cantando. Ficam em cena o guarda e esse fiel. O primeiro, que usava dois óculos superpostos, tira um deles e o oferece ao homem)
Guarda - Quer experimentar?
Homem - Para que?
Guarda - O sol daqui é muito intenso. Em pouco tempo os olhos se gastam.
Homem - Eu não fui informado disso.
Guarda - Certas coisas é preciso descobrir por iniciativa própria.
Homem - Mas o risco a que estamos nos submetendo é muito grande. Nós deveríamos ter sido alertados.
Guarda - Você está sendo alertado.
Homem - E por que eu, especialmente?
Guarda - Porque nós achamos que você seria dos primeiros a tomar consciência da intensidade do sol.
Homem - Por quê?
Guarda - Intuição.
Homem - Eu agradeço.
Guarda (Recolocando os óculos) - Você é quem sabe. (O homem sai à procura do grupo, cujo canto não deixamos de ouvir durante toda a cena)
CENA 2
(Todo o grupo no palco, guardas e fiéis. A ação se passa durante uma das sessões de culto)
Voz – E se pretendemos que nossas atitudes sirvam de exemplo ao mundo e apontem o caminho, é indispensável que nenhuma delas dê margem a críticas. Muitos daqueles que objetivamos salvar e dar sentido às suas vidas estão ainda indecisos e conflitados, não tomaram a decisão final e portanto ainda estão sujeitos a serem influenciados negativamente. No estágio crítico em que se encontra a nossa civilização, qualquer passo em falso pode ser o último. Todos querem e temem, ao mesmo tempo. E esse temor lhes centuplica o grau de exigência. E no fundo eles estão certos. É preciso que tudo, em nós, demonstre segurança, paz e harmonia. Que nada escape ao nosso controle. Só assim conseguiremos quebrar essa barreira que ainda nos separa de tantos irmãos potenciais, cuja vinda para Anaiug nos encheria de felicidade. E seria mais uma resposta a todos aqueles que não se cansam de nos perseguir. Não é verdade, meus irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - E por que ainda não conseguimos eliminar de vez todos os obstáculos? Alguém saberia responder? A resposta é fácil: porque muitos de nós ainda cometem certas falhas que os inimigos da seita, de algum modo, tomam conhecimento e imediatamente saem divulgando por todos os meios de comunicação. E não me refiro às falhas mais graves, apenas, mas a todas. A senhora, por exemplo: por que prendeu os cabelos para a sessão de culto?
Mulher - Pensei que não houvesse mal, pai!
Voz - A senhora não acha que esse penteado lhe dá uma aparência sofisticada?
Mulher - Não imaginei que o resultado pudesse ser esse, pai!
Voz - Talvez, no fundo, a senhora deseje se sobressair perante os demais.
Mulher - Não, pai, não é esse o meu desejo!
Voz - Qual é, então, o desejo da senhora?
Mulher - Servir a Deus através dos ensinamentos do pai!
Voz - Isso é tudo quanto a senhora deseja?
Mulher - Tudo, pai!
Voz - E podemos confiar em suas palavras?
Mulher - Eu nunca lhe menti, pai, nunca! Sei que muitas vezes cometi falhas, que ainda as cometo, mas sempre involuntariamente!
Voz - Eu suponho que a senhora já tivesse se conscientizado de que não existem ações involuntárias. Na maioria das nossas últimas sessões esse assunto foi abordado exaustivamente. A senhora, por acaso, estava distraída?
Mulher - De modo algum, pai! Eu não perdi uma única palavra!
Voz - A senhora não terá adormecido, por alguns instantes, involuntariamente?
Mulher - Se ainda é possível merecer alguma consideração do pai, eu imploraria que me acreditasse! Jamais adormeci em nenhuma das sessões!
Voz - Mais viu alguém fazê-lo, certamente.
Mulher - Não...não vi...eu jamais pude desviar meus olhos do pai! Nunca reparei sequer em quem estava do meu lado, tal o interesse com que sempre acompanhei as nossas sessões de culto!
Voz - As palavras dessa senhora merecem a nossa confiança, irmãos?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Palavras com as quais ela afirma jamais haver adormecido durante uma sessão de culto, assim como nunca ter percebido alguém fazê-lo?
Grupo - Sim, pai!
Voz - Por favor, eu pediria que a senhora se aproximasse um pouco mais. (A mulher se aproxima). A senhora sabe o que eu tenho nas mãos?
Mulher - Não, meu pai, não consigo distinguir direito!
Voz - É um pequeno envelope, dentro do qual existem algumas fotos. Elas foram tiradas durante as últimas dez sessões de culto. Acabam de me ser entregues. Eu ainda não as vi. Como a senhora pode constatar, o envelope ainda se encontra fechado.
Mulher - É verdade, pai!
Voz - Eu vou abri-lo agora. Examinar o material. E chegar então a uma conclusão mais definitiva sobre o grau de lealdade dos irmãos.
Homem - Meu pai!
Voz - Sim..?
Homem - Eu realmente vi...algumas vezes...que nem todos guardavam a atenção devida durante o culto.
Voz - O irmão se importaria de aclarar um pouco mais a expressão “guardavam a atenção devida?
Homem - Bem, pai, o que eu quero dizer é que...normalmente...durante as últimas horas...não sempre, mas muitas vezes, eu surpreendi diversos irmãos adormecidos. Isso me tirava a concentração e impedia de me aprofundar nas palavras do pai.
Voz - Diversos irmãos, o senhor disse...portanto, não lhe seria difícil reconhecer alguns...um, que seja.
Homem- Não, não seria difícil...sei que existem vários, aqui presentes...mas realmente só consegui guardar com segurança um único rosto.
Voz - E a quem pertence?
Homem - A mim. (Todos se olham espantados. Um dos guardas se retira)
Voz - Levantem-se, meus irmãos. Afastem-se um pouco para que eu possa vê-lo melhor. O que dizer dessa atitude? Qual a explicação para uma falha dessa natureza? O senhor perdeu a fé?
Homem - Não, pai.
Voz - O Senhor deixou de acreditar em algo daquilo que o trouxe até nós?
Homem - Não, pai.
Voz - Que justificativas o senhor poderia então nos apresentar?
Homem - Nenhuma além do sono, pai.
Voz - Teriam as minhas palavras perdido a importância?
Homem - As palavras do pai sempre alimentaram meu espírito e não foi ele que se desligou, mas meu corpo.
Voz - Pois o senhor aprenderá a controlá-lo melhor daqui para frente. (Entra o guarda que havia saído) Enquanto disciplina os músculos, o senhor deverá fazer também um pequeno esforço de memória. (O guarda que entrou trouxe um enorme chapéu amarelo. Coloca-o na cabeça do homem) Esse envelope que o senhor está vendo, já não me interessa mais. Ao menos por ora. Eu quero os nomes de todos aqueles cujo sono se sobrepõe à minha mensagem. (Depois de um tempo, as luzes começam a cair em resistência)
CENA 3
(O grupo se encontra trabalhando. Alguns guardas fiscalizam. Os fiéis empunham bastões, simbolizando os objetos de trabalho - pás, enxadas, etc... De repente, um homem tomba. O trabalho é interrompido, mas ninguém o socorre, com exceção de um único elemento, que se aproxima e tenta ajudar. Os guardas o afastam. Em seguida eles pegam o homem que caíra e o recolocam em sua posição inicial. O trabalho recomeça. Pouco depois, o homem cai definitivamente. Dois guardas o retiram de cena. Um terceiro dá por encerrado o trabalho. Os fiéis se dirigem para as extremidades do palco e encaixam seus bastões nos orifícios existentes em ripas de madeira pregadas no chão. Começam a se escutar os primeiros acordes de um cântico)
CENA 4
(O grupo todo se encontra em cena, com exceção dos guardas. Os fiéis entoam um cântico, que progressivamente se torna cada vez mais entusiasmado)
Havendo uma fé, em mim
Havendo um lugar, assim
Havendo o desejo, de transformar
Os sonhos se tornam, reais
Os medos e angústias, se esvaem
E a força do novo, se impõe
Se impõe nas montanhas, nos mares
Se infiltra nos campos, nos lares
Mostrando que a hora, é de mudar
Portanto não tema, irmão
Venha conosco, nos dê a mão
Viver é preciso, viver
Viver sem temor, viver
Sem ódio e rancor, viver
E a todos os homens, mostrar
Que tudo é possível, para aquele que crê
Que tudo é infinito, para aquele que crê
Que só faz sentido, quando se crê
Não viva sozinho, não há por quê
Não lute sozinho, não há por quê
Existe um lugar, para você
Em meio aos bosques, para você
Junto das fontes, para você
Com flores e frutos, só para você
Existe uma estrada, é só partir
Existe uma estrela, é só seguir
Existe o amor, a descobrir
(O mesmo homem que havia tentado ajudar o indivíduo que caíra na cena anterior, interrompe o cântico)
Homem - Existe algo mais, além do amor, a descobrir! Um homem sumiu depois do culto e nunca mais foi visto. Teria ele se perdido nessa estrada? Um outro tombou durante os trabalhos forçados. Teria ele duvidado do brilho dessa estrela? Ou quem sabe ambos desapareceram por haverem descoberto o amor?
Fiel 4 - Eles não estão aqui. Mas isso não lhe autoriza a afirmar que tenham desaparecido. Talvez tenham se afastado.
Homem - Talvez... e em vista disso nós cantamos. Há um mês que não nos permitem trocar de roupa. Nós estamos imundos, famintos! Mas que importância podem ter a imundície e a fome? O essencial é cantar! Mas o quê? A quem, afinal?
Fiel 1 - O cansaço e a fome atestam nossa lealdade!
Homem - No início, assim que nós chegamos aqui, a nossa música refletia a essência do que éramos, do que sentíamos, do que esperávamos encontrar nesse lugar! Hoje, ela apenas reflete aquilo que nos tornamos: um agrupamento de sonâmbulos a quem o terror impõe diariamente a representação de uma farsa!
Fiel 3 - Nada é inconciliável para o homem que acredita!
Fiel 4 - Tudo é possível para aquele que não perdeu a fé!
Fiel 3 - E todos os que crêem sabem perfeitamente que só atingirão a luz depois de haverem conhecido as trevas!
Homem - Todos aqueles cuja fé suplanta a razão no fundo não sabem nada! Se julgam os mais sábios, mas são na verdade os mais ignorantes!
Fiel 5 - E quem é você para falar de fé? Você, que todos nós sabemos que há muito perdeu a razão?
Homem - Se eu perdi, é sinal de que um dia eu a tive. E graças a isso, eu pude ter fé. A minha crença, assim como a de vocês, se a memória não fugiu de todo, nasceu da esperança de podermos um dia, juntos, em algum lugar, estabelecer uma comunidade que levasse em consideração a individualidade de cada um, que fosse fruto da consciência de cada elemento do grupo. E que portanto seria o resultado de nossas aspirações e anseios.
Fiel 2 - Todos nós nos sentimos realizados e felizes aqui!
Fiel 1 - Todos os nossos projetos e sonhos se concretizaram!
Fiel 4 - Tudo o que nos foi prometido se tornou real!
Homem - Não é verdade! O que aconteceu, de fato, é que nós não fizemos esse lugar! Ele é que nos fez, nos moldou, já estava pronto desde o primeiro dia!
Fiel 5 - Você não sabe o que diz!
Homem - Sei sim! Por uma questão de esperteza, apenas, para ganhar a nossa confiança definitiva, durante um certo tempo ele camuflou seus verdadeiros propósitos, nos iludiu com encenações habilmente preparadas, para que nos entregássemos por inteiro, sem o menor grau de desconfiança! E quando percebeu que já nos tinha enfeitiçado definitivamente, então aí começaram a aflorar os verdadeiros objetivos deste lugar, que são os de explorar, escravizar, reduzir toda a comunidade à mais objeta forma de dependência possível! (Um fiel se afasta do grupo)
Fiel 3 - Chega! Nada nos abriga a escutá-lo! Como se já não bastasse a interrupção do cântico, você ainda se julga no direito de nos ferir, de nos magoar naquilo que para nós é mais sagrado!
Fiel 4 - Você perdeu a razão e procura nos impor os seus desatinos!
Fiel 5 - Mas fique certo de que nada abalará nossa confiança e que qualquer tentativa nesse sentido redundará em fracasso!
Fiel 2 - Não acreditamos em nada do que você disse!
Fiel 4 - São palavras de um louco!
Fiel 3 - De um cego, sobre cuja cabeça já vislumbramos a espada do Senhor!
Homem - Se algo tiver que se abater sobre minha cabeça, como já aconteceu a tantos outros, vocês podem estar certos de que não será uma espada, muito menos empunhada pelo Senhor, que permite dúvidas e não pune os que duvidam, mas ouve e aconselha!
Fiel 5 - Deus é infinito em sua bondade, mas não em sua tolerância!
Homem - Quem lhe ensinou isso? O “Deus” de vocês? Que se vale de uma guarda pessoal para manter sua liderança? (Volta o fiel que havia saído) Que trucida covardemente não apenas fatos mas até simples suspeitas?
Fiel 2 - Não seja infame!
Homem - Infames são aqueles que se venderam, aceitaram a incumbência de vigiar os demais! Que se sujeitaram a preparar relatórios fictícios só para darem mostras de eficiência e lealdade ao “pai”!
Fiel 1 - Ninguém jamais fez isso, nenhum de nós!
Homem - Fizeram sim!
Fiel 3 - Traidor!
Homem - Forjaram documentos que foram responsáveis por uma infinidade de violências injustificáveis!
Fiel 4 - Você pagará caro essa insolência!
Homem - Vocês se transformaram em nulidades que se espreitam, se vigiam, decoram frases incompreensíveis que repetem feito marionetes!
Fiel 5 (Aos demais) - Silêncio! (Se escuta um rumor de passos)
Homem - Tudo isso em nome da fé! Mas afinal, que crença é essa? A do terror? (Surgem os guardas) Não se inquietem... Muito em breve nós saberemos quem tinha razão...(Os fiéis saem)
CENA 5
(O homem está no centro. Os guardas o rodeiam, sob quatro focos de luz. Os inquisidores serão denominados A - B - C - D)
A - Que noite linda, hoje...
B - Linda...
C - Encantadora...
D - Perfeita.
B - Você não acha? (Tempo)
A - Aposto que ele vai dizer que sim.
C - Aposto que ele vai dizer que não.
A - E seria ele tão insensível?
B - Logo ele?
D - Não creio.
C - É possível que eu tenha me enganado.
A - É mais do que provável. (Tempo)
D - Que silêncio...
B - Não se escuta nada...
A - Como se estivéssemos em tempo de guerra...
C - À espera de bombardeios.
Homem - Por que é que vocês usam sempre esses óculos?
A - Óculos?
C - Nós?
B - Mas que absurdo!
D - Que coisa estranha!
Homem - Por que ninguém jamais tem acesso ao verdadeiro rosto de vocês?
C - Acesso?
D - Ao nosso verdadeiro rosto?
A - Mas que absurdo!
B - Que coisa estranha!
Homem - Qual é o significado dessas máscaras?
B - Num dia de culto você não se ajoelhou junto com os outros.
D - Se ajoelhou, mas pouco depois.
A - Você se distraiu?
C - Ou você não quis?
Homem - Eu me distraí.
A - E por ocasião de um dos trabalhos coletivos, quando um irmão fraquejou miseravelmente...foi também por distração que você tentou intervir?
Homem - Não! Quando o irmão exausto não suportou mais a massacrante carga de trabalho que lhe tinha sido imposta e tombou desacordado sobre as pedras eu...
B - Massacrante carga de trabalho!
D - Imposta!
A - É assim que você agora se refere às nossas ocupações diárias?
Homem - “Nossas”? Eu jamais pude perceber nenhum de vocês carregando uma enxada, ou reparando uma cerca, ou construindo fosse o que fosse! Vocês só perambulam pelo campus, como fantasmas, espreitando cada movimento que fazemos!
C - É indispensável seguir as regras!
A - A que todos estamos sujeitos!
D - Que todos acatamos sem fazer perguntas!
B - E sem exigir respostas!
Homem - Não foi para isso que eu vim aqui, para ouvir regras!
C - Faz parte da organização do campus!
Homem - Eu fui informado de que essa organização partiria da consciência de cada um.
A - Consciência...
Homem - E que ela seria fruto de nossa liberdade individual!
B - Você não fala de organização, fala de anarquia!
Homem - Eu não imaginava que esses conceitos fossem ser empregados aqui.
C - O que você imaginava ou deixava de imaginar não nos interessa!
A - O que existe são os fatos!
D - E eles demonstram que sua conduta se afasta perigosamente da de todos os demais!
B - O que significa uma exceção!
A - E o importante aqui, como acabamos de lhe dizer, são as regras!
Homem - Donde se conclui que o direito à dúvida foi banido desse lugar!
C - Dúvida?
A - Com que então...você duvida!
Homem - Pensei que fosse permitido.
D - O seu problema é pensar demais.
Homem - E o de vocês é não pensar nunca! É essa a condição imposta para poder usar esse disfarce? Que confere tantos poderes?
A - Cuidado com o que você diz...
Homem - Mais uma regra que eu tenho que levar em conta? Faltam muitas?
C - A sua audácia lhe faz esquecer as normas mais elementares do bom senso.
D - E lhe afasta do único caminho que ainda poderia lhe ser útil.
Homem - E que caminho é esse?
A - O da prudência...
Homem - Prudência e covardia, ao que eu saiba, não foram ainda oficializadas como sinônimos.
C - Então você se nega?
Homem - A quê?
A - A colaborar.
Homem - Com o quê?
B - Com a ordem.
Homem - Não a conheço.
D - Mas conhecerá em breve.
Homem - É possível.
B - É mais do que provável.
Homem - E pelo que imagino será meu último conhecimento...
A - Depois dele haveria algum outro que valesse a pena?
Homem - O da verdade.
D - A ordem é a única verdade possível.
Homem - Mas nem todas as ordens foram feitas para todos os tempos! E as que vocês tentam nos impingir pela força são as mesmas do mundo que julguei haver abandonado para sempre!
C - Você lamenta...?
Homem - É tarde demais.
B - Tem razão.
A - Para você, ao menos, é tarde demais.
Homem - E quanto aos outros?
D - Esses refletirão bastante antes de extravasarem suas dúvidas.
Homem - Faz parte do método?
C - A experiência é tudo. (Tempo)
A - Você teria algo mais a acrescentar?
Homem - E adiantaria? (Os guardas começam a se aproximar. Do gravador voltamos a escutar algumas palavras proferidas pelo reverendo quando da chegada do grupo)
Voz - ...e a nossa fé será como um gigantesco coração, que pulsará de dentro dessas matas e cujo eco alertará os homens mais sensíveis de que alguém, em algum lugar, não se entregou e resiste! (Nesse momento os guardas se fecham sobre o homem, que emite um grito desesperado que agoniza pelo espaço. O corpo do homem tomba. Os guardas se afastam sem pressa)
CENA 6
(Pouco depois que os guardas saem, a mulher do homem assassinado surge. Ela se abraça ao corpo do marido. No gravador, começa a se escutar a voz do Pai)
Voz (Palavras textuais do reverendo Jim Jones) - A noite está clara e estrelada. Há tanta paz aqui. Não pode haver nada tão satisfatório quanto levar esta vida comunitária. Amo o trabalho. É profundamente triste que a vasta maioria do povo se submeta à arregimentação e extrema tensão de uma sociedade altamente tecnológica. No entanto, aqueles que se atrevem a viver ideais elevados, ao invés de se contentarem com a mediocridade, apatia e indiferença que são a ordem do dia, tornam-se alvos da perseguição vingativa, pois a vida em cooperação proporciona extrema segurança...(Um grupo de fiéis se aproxima) Quando não se tem ideais, vive-se sozinho e morre-se rejeitado...(Ao perceber a aproximação do grupo, a mulher, enfurecida, começa a rasgar as roupas do morto e a entregar os farrapos a cada um) De certa forma, viemos para cá afim de não contribuirmos para a destruição que nosso país de nascimento continua a infringir às nações menos prósperas. Como se pode viver livre de culpa quando os nossos próprios recursos servem para patrocinar atrocidades nos outros países? A vida sem princípios é desprovida de sentido. Não se pode saber o que é a felicidade até se viver plenamente. Encontramos a segurança e a realização na coletividade e podemos ajudar a desenvolver uma nação agrícola pacífica. Nós passamos além da alienação e encontramos um meio de viver que alimenta a confiança, o que não pode existir numa sociedade que se tornou cínica e indiferente...
CENA 7
(Todo o elenco está em cena. O ambiente está preparado para uma festa. Deve-se perceber, pelo clima exagerado de felicidade, que há tensão no campus. Presentes o Deputado e o Repórter)
Guarda 1 – Bem-vindos a Anaiug, irmãos. O reverendo pede que os senhores o desculpem por não poder estar aqui para recebê-los. Alguns assuntos de ordem administrativa inadiáveis reclamam sua presença. Tão logo os resolva ele os receberá com prazer. Enquanto isso os senhores estão autorizados a entrevistar os irmãos que desejarem, assim como a visitar as dependências do campus.
Deputado - Transmita ao reverendo os nossos mais sinceros agradecimentos. Nossa missão é de paz. Não nos encontramos aqui para julgar, apenas para informar a opinião pública.
Guarda 2 - O reverendo confia na sinceridade dos senhores. E ele, mais do que ninguém, está ansioso para que a opinião pública seja informada com rigor à cerca das nossas atividades em Anaiug.
Deputado - Nós agradecemos a confiança e reafirmamos que nossos propósitos são os de informar, sem emitir qualquer espécie de julgamento pessoal.
Guarda 1 - Em nome de toda a comunidade, o reverendo lhes deseja boas vindas e que os senhores possam exercer suas atividades dentro da mais absoluta paz e cordialidade.
(Saem os guardas. O grupo se dispersa, menos uma fiel, que se aproxima)
Mulher (Ao Repórter) - O Senhor também é deputado?
Repórter - Não, sou repórter.
Mulher - Ah, sim.
Deputado - Nós estamos trabalhando juntos nesse caso.
Mulher - Caso? Como assim?
Deputado - Bem...a senhora deve estar informada de que está havendo uma grande confusão em torno da seita. Ao menos lá...
Mulher - O que nós sabemos é que os inimigos de sempre mantêm as acusações de sempre. É possível que elas tenham se intensificado um pouco ultimamente. Mas nós já estamos habituados.
Deputado - Elas nunca foram tão contundentes. Nem tão numerosas.
Mulher - O mundo não suporta que lhe desafiem os dogmas. E aqueles que ousam fazê-lo devem estar preparados para tudo.
Deputado - A senhora parece muito tranqüila quanto à opinião pública. Como se não lhe atribuísse a menor importância.
Mulher - O senhor sabe que o que caracteriza a opinião pública é justamente não ter opinião.
Deputado - Isso não a impede de aderir a alguma causa.
Mulher - Claro que não, pois isso é tudo que ela pode fazer. Aderir...
Deputado - Quando isso acontece, ela pode se tornar perigosa.
Mulher - Nós sabemos. A sua inépcia para criar se revela proporcional à sua obstinação em seguir. É por isso que todos temem tanto a opinião pública e procuram sempre estar do seu lado. A sua força destruidora é incomparável.
Deputado - A senhora acredita que esteja havendo uma perseguição ao movimento de vocês?
Mulher - É mais do que óbvio.
Deputado - Com que finalidade?
Mulher - O sistema não perdoa que lhe seja contestada a autoridade.
Repórter - A senhora se importaria se nós falássemos um pouco sobre algumas das acusações que estão sendo feitas a Anaiug?
Mulher - Absolutamente. Nós estamos preparados para responder a qualquer pergunta.
Deputado - Muito bem. Uma das coisas de que mais se fala diz respeito aos trabalhos coletivos. Como são distribuídos esses trabalhos?
Mulher - Para começar, o termo “trabalho” não é empregado aqui. O que existe são atividades coletivas, que cada indivíduo opta por fazer. E que não são fiscalizadas por ninguém.
Deputado - E em que consistem essas atividades coletivas?
Mulher - Nós formamos uma comunidade agrícola. Portanto, tudo se relaciona com o campo. Nós cultivamos a terra e vivemos do que ela nos dá. (Num outro ponto do palco vemos alguns homens que trabalham. Um guarda se encontra próximo, numa atitude discreta)
Deputado - O que é que aqueles homens estão fazendo?
Mulher - Eles preparam o terreno para uma nova horta.
Repórter - E aquele, um pouco afastado? O que usa óculos...por que ele apenas assiste?
Mulher - Ele não assiste, apenas. É um membro mais antigo que orienta os mais novos.
Repórter - Claro...alguém tem que orientar. (Eles desviam a atenção do grupo. Um homem cai)
Deputado - E essas atividades coletivas obedecem a uma carga horária pré-estabelecida? (O guarda se aproxima e ergue o homem)
Mulher - Não, cada um decide seu horário.
Repórter - Dizem que o número de horas é desumano...(O guarda torna a se afastar)
Mulher - O senhor admite que aqueles homens que acabou de ver possam estar sendo submetidos à uma carga horária desumana? (Eles se voltam para o grupo) Examinem um por um: não é evidente o seu prazer e a sua alegria com o que fazem?
Deputado - Aparentemente, sim. (As luzes no grupo se apagam)
Mulher - Aparentemente, o senhor diz...Ah, os políticos! São os seres mais desconfiados que existem, os mais céticos. Nem a evidência objetiva parece possuir qualquer valor para eles.
Deputado - Nunca lhe aconteceu assistir a uma representação brilhante de um texto medíocre?
Mulher - É possível que no teatro uma boa encenação consiga disfarçar um texto ruim. Mas será que na vida esse mecanismo é possível?
Deputado - Depende dos atores.
Mulher - Para o senhor, então, Anaiug seria pouco mais que um grande palco onde estaria se desenrolando uma gigantesca farsa?
Deputado - Eu ainda não tenho opinião formada. É a primeira vez que venho aqui.
Mulher - Isso não significa que o senhor já não tenha uma opinião formada. Seguindo seu raciocínio, o senhor poderia perfeitamente estar desempenhando o papel de um homem interessado, curioso, mas que no fundo já chegou aqui com seu veredicto pronto.
Deputado - Não é o caso.
Mulher - Esperemos que não.
Repórter - É verdade que as sessões de culto são obrigatórias?
Mulher - Nada é obrigatório aqui. Todas as nossas atividades são uma fonte inesgotável de prazer.
Repórter - A imprensa tem divulgado com insistência que o número diário de horas de culto aumentou consideravelmente nos últimos tempos. É verdade?
Mulher - Por insistência nossa. E mesmo estando adoentado ultimamente o reverendo jamais se negou a atender-nos. Ainda que em detrimento de sua própria saúde.
Repórter - Há rumores de que o reverendo estaria sofrendo de câncer.
Mulher - O seu mal não foi ainda diagnosticado. Talvez não passe de um esgotamento nervoso por excesso de trabalho e preocupação.
Deputado - E como transcorrem essas sessões?
Mulher - Nós rezamos, cantamos, escutamos as palavras insubstituíveis do reverendo...comentamos nosso dia-a-dia, procuramos resolver em conjunto todos os problemas eventuais...enfim, como uma verdadeira família.
Deputado - E não se verificam incidentes durante essas sessões?
Mulher - O que é que o senhor quer dizer com “incidentes”?
Deputado - Nós fomos informados de que muitas vezes acontecem punições e castigos. Que as falhas cometidas pelos irmãos são punidas publicamente e que essas punições vão desde a humilhação até castigos físicos, que muitas vezes acarretam a morte.
Mulher - Chega a ser fantástica a imaginação desses senhores da imprensa.
Repórter - Eles se basearam em depoimentos de antigos membros da seita que se revoltaram e resolveram contar o que sabiam.
Mulher - Os antigos membros da seita normalmente se colocam a serviço de uma nova causa, o que os faz perder a memória e inventar absurdos desse tipo.
Repórter - Com o que então todos eles não passariam de consumados mentirosos? Que estariam agindo dessa forma em função de uma nova causa?
Mulher - É o que imaginamos.
Repórter - E que causa seria essa?
Mulher - Isso não podemos saber. Eles não informaram?
Deputado - Nós soubemos da existência de poços em que membros da seita ficariam mergulhados por vinte e quatro horas para se penitenciarem de erros cometidos.
Mulher - Nos poços de Anaiug só são mergulhados baldes. E a água que neles se encontra serve apenas para beber, nunca para torturar.
Repórter - Como é que o reverendo reage a todas essas acusações?
Mulher - Com tranqüilidade. Ele tem consciência da grandeza de sua obra e já imaginava que as críticas viessem em proporção à sua importância.
Repórter - E se elas se tornarem insuportáveis?
Mulher - O processo agora é irreversível. Os membros da seita aprenderam a lição de uma vida comunitária e aos nossos olhos a atuação desse gigantesco coral é desprezível. O barulho ensurdecedor das vozes reacionárias se dispersará como as nuvens de tempestade, que amedrontam por um breve instante, mas cujo efeito é passageiro.
Deputado - É verdade que inúmeras vezes foram encenados suicídios coletivos?
Repórter - Disseram-nos que os membros da seita seriam forçados periodicamente a ingerir líquidos que conteriam venenos, a fim de serem testados em sua lealdade ao reverendo.
Mulher - A resposta a esse turbilhão de insultos e acusações é a nossa serenidade. Aos senhores, aqui presentes, nós abrimos nossos corações e nossas portas. São livres para visitar todo o campus, conversar com quem quiserem. Tudo lhes está sendo facilitado para que os senhores possam chegar a uma conclusão real e justa quanto à nossa organização. Ninguém lhes obstruirá o caminho. A verdade está aqui, diante dos senhores, nas nossas instalações impecáveis, nas nossas colheitas abundantes, no sorriso dos velhos e das crianças. Enfim, em tudo o que o nosso amor e a nossa fé foram capazes de construir. Nós esperamos que os senhores sejam imparciais e informem o mundo do que realmente viram e sentiram em Anaiug e não do que ouviram falar. (Tempo) Bem...eu agora preciso me retirar. Mesmo num dia como o de hoje, não devo me esquecer da minhas ocupações. Se precisarem de algo, qualquer irmão poderá lhes ajudar. Bem-vindos a Anaiug, irmãos. (E sai)
CENA 8
Repórter - Mulher estranha...quem será?
Deputado - Não sei...mas decorou perfeitamente o papel.
Repórter - Você acha que ela mentiu?
Deputado - Você tem alguma dúvida?
Repórter - Bom, eu suponho que grande parte das informações que ela nos prestou sejam falsas. Mas quais, exatamente? Por ora, é a palavra dela contra a dos outros.
Deputado - É evidente que ela recebeu instruções, não veio até nós por acaso. Foi selecionada.
Repórter - Eu sei, não é possível que esse lugar seja tão perfeito. Mas o problema é que cabe a nós demonstrar o contrário. E para isso nós precisamos de fatos. Sem eles a nossa viagem terá sido uma perda de tempo.
Deputado - Pois é, nós precisamos de fatos. Mas onde buscá-los?
Repórter - O ideal seria se nós pudéssemos documentar algo, fotografar, filmar, para sairmos daqui com algumas provas concretas.
Deputado - Mas se é verdade mesmo que todo o campus nos será aberto é sinal de que todo ele se encontra preparado para nos transmitir uma determinada imagem. Portanto, nessas condições, filmar ou fotografar só traria benefícios para eles.
Repórter - Eu não acredito que todo o campus nos seja aberto. Afinal de contas, nós possuímos dezenas de depoimentos de antigos membros da seita em que eles afirmam existir, em Anaiug, locais especialmente destinados a punições e castigos. Construídos com essa única finalidade. Alguns chegaram até a denunciar a existência de depósitos de armas!? É só uma questão de descobrir...
Deputado - Você fala como se isso fosse a coisa mais simples. Você se esquece de que há muito tempo já que eles sabiam que nós viríamos? O elemento surpresa não existe mais...
Repórter - Muito bem, suponhamos que eles não queiram nos mostrar determinado pavilhão. Nós insistimos um pouco, mas ainda assim eles se negam, alegando qualquer coisa. Isso já seria um trunfo a nosso favor. A partir daí tudo se limitaria a descobrir alguém que se dispusesse a nos levar até lá!
Deputado - O seu otimismo é impressionante...
Repórter - É tudo uma questão de fé...(Ambos sorriem) Nós já sabíamos que seria muito difícil. Trata-se, apenas, de não desanimar.
Deputado - O que é que você sugere?
Repórter - Eu proponho que a gente converse com aquela mulher.
Deputado - Que mulher?
Repórter - Aquela, sentada logo ali adiante. Ela acompanhou toda a nossa conversa, desde o início.
Deputado - E daí?
Repórter - Daí que foi a única. Todos os demais passam por aqui como se nem nos vissem!? Ela, ao menos, agiu diferente. Quem sabe?
Deputado - Bem, nós podemos tentar.
Repórter - Afinal, foi para isso que viemos. (Eles se dirigem à mulher)
CENA 9
Repórter - Bom dia.
Mulher - Boa tarde.
Repórter - Tem razão, já são quase quatro horas.
Mulher - Quatro horas...mais um pouco e eu lhes daria boa noite.
Repórter - Tão cedo?
Mulher - Os dias em Anaiug são curtos, mas as noites...
Repórter - A senhora se importaria se conversássemos um pouco?
Mulher - Seria um prazer.
Repórter - A senhora já deve saber quem somos nós.
Mulher - Claro, todos aqui sabem quem são os senhores. Há muito tempo que todos se preparam para recebê-los.
Deputado - Se preparam, a senhora disse?
Mulher - Há pelo menos três meses que só se vive em função desse encontro.
Deputado - E seríamos nós tão importantes assim?
Mulher - Pelas palavras do reverendo....
Repórter - E de que forma foi feita essa preparação?
Mulher - Durante as sessões de culto. O pai nos dizia que mais cedo ou mais tarde nós receberíamos a visita de pessoas importantes e era preciso estar preparado.
Repórter - E a que horas se realizavam essas sessões?
Mulher - Durante a noite, como sempre.
Deputado - Por quanto tempo?
Mulher - Muito tempo...às vezes, a noite inteira.
Deputado - E todos compareciam?
Mulher - Claro! Quem é que gostaria de usar o chapéu amarelo?
Repórter - Chapéu amarelo...o que significa isso?
Mulher - Significa que quem o usa perde o respeito de todos, passa a ser evitado até...resolver ser bom de novo.
Deputado - E quando surgiu esse hábito?
Mulher - Faz tempo...
Repórter - A senhora já usou esse chapéu?
Mulher - Eu não, mas um amigo meu... usou.
Repórter - E o que foi que aconteceu com esse seu amigo?
Mulher - Ele nunca mais foi visto.
Deputado - Como assim?
Mulher - Deve estar ainda no pavilhão número três.
Repórter - Por que no pavilhão número três?
Mulher - Porque é para lá que eles vão.
Repórter - Eles quem?
Mulher - Os que cometem alguma falha...deixam de ser bons...ou que duvidam...o pai sempre nos diz que fé e disciplina devem caminhar de mãos dadas.
Deputado - Aonde é que fica o pavilhão número três?
Mulher - Depois do lago. É o mais afastado. E também o menor. Uma vez eu fui até lá, sem que me vissem e espiei por uma das janelas.
Repórter - E o que foi que a senhora viu?
Mulher - Nada...estava muito escuro. Dizem que há um porão lá dentro.
Repórter - Quem lhe disse isso?
Mulher - Meu marido.
Deputado - Será que nós poderíamos falar com ele?
Mulher - Com ele? É difícil...
Deputado - Por quê?
Mulher - Ele foi embora...
Repórter - Ele não teria sido forçado a usar o chapéu amarelo?
Mulher - Não... nele não colocaram o chapéu amarelo.
Repórter - E o que foi que fizeram com ele?
Mulher - Foi bem aqui...numa noite...nós estávamos reunidos e eles o levaram...
Deputado - Para o pavilhão número três?
Mulher - Não sei.
Repórter - E quem o levou?
Mulher - Os homens de óculos.
Repórter - Porque é que eles usam isso?
Mulher - O sol daqui é muito intenso...em pouco tempo os olhos se gastam.
Deputado - E os poços de Anaiug? Para que servem, exatamente?
Mulher - Os poços de Anaiug são tão profundos...(Entra um homem)
Homem - Senhor deputado! Eu gostaria de lhe pedir uma coisa!
Deputado - Pois não.
Homem - Eu queria ir embora. Por favor, enquanto ainda há tempo. Amanhã, me leve com o senhor.
Deputado - Eu não estou entendendo. De que se trata?
Homem - É a minha última chance!
Deputado - Calma, meu amigo!
Homem - Guarde esse papel. Nele eu escrevi meu nome. Amanhã, aconteça o acontecer, o senhor tem que prometer que me levará junto!
Deputado - Então o senhor não é livre para ir quando quiser?
Homem - Livre? (Olha aflito para os lados) Além dos senhores não me resta mais nada! O fim está próximo, eu sei!
Deputado - Fim? Mas o que é que o senhor quer dizer com...(O homem se afasta. Entra um guarda)
Guarda - O reverendo manda lhes dizer que hoje, infelizmente, não poderá recebê-los. Pede-lhes que voltem amanhã de manhã.
Deputado - Será que o reverendo não nos ofereceria abrigo por essa noite?
Guarda - Não há leitos disponíveis.
Repórter - Mas os caminhos se acham impraticáveis. E são oito quilômetros até o povoado mais próximo.
Guarda - O reverendo lamenta, mas não poderá atendê-los. Os senhores terão que pernoitar fora do campus. Um jeep se encontra à disposição no pátio número cinco.
Deputado - Nós lhe agradecemos. Boa noite. (Saem Deputado e Repórter)
Guarda - Boa noite.
CENA 10
(Esta cena se passa no dia seguinte. Num canto do palco vemos, por trás de uma tela, as silhuetas de três homens que discutem. São eles o Deputado, o Repórter e o Reverendo, como de hábito denominado Voz. À medida que se desenrola essa conversa, o palco vai sendo lentamente iluminado e os fiéis, orientados pelos guardas, começam a chegar para a cena de despedida do Deputado e do Repórter)
Deputado - Eu lhe fiz uma pergunta objetiva, reverendo. Basta que o senhor confirme ou desminta. É tão simples!
Voz - Eu já tive a ocasião de observar que tudo, para os senhores, é sempre muito simples.
Deputado - Certas perguntas só admitem como resposta um sim ou um não!
Voz - Isso do ponto de vista dos senhores.
Repórter - É ou não é verdade que a comunidade se encontra fortemente armada?
Voz - De onde é que o senhor tirou isso?
Deputado - Alguns irmãos nos confirmaram a existência de trabalhos forçados!
Voz - Gostaria que esses irmãos confirmassem isso na minha frente.
Deputado - Para que o senhor os mandasse para o pavilhão número três?
Voz - O que é que o senhor está pretendendo insinuar?
Repórter - Nós descobrimos, senhor reverendo, que é para lá que o senhor envia a todos aqueles que não se comportam exatamente como determinam as suas leis, que são as do campus, é claro! E descobrimos, também, que o processo de reeducação dos infratores é realizado no fundo dos porões que o senhor mandou construir nesse local! E que nem todos conseguem sobreviver à violência com que são tratados!
Voz - Chega! Os senhores enlouqueceram! E não admito continuar com essa conversa nem mais um minuto! Os senhores estão convidados a deixar o campus imediatamente!
Deputado - E aqueles que quiserem nos acompanhar?
Voz - Que partam junto!
Deputado - Eu exijo uma declaração sua autorizando essas pessoas a partirem conosco. E exijo igualmente um salvo-conduto até o aeroporto. Sem essas duas garantias nós não deixaremos essa sala!
Voz - Não se inquietem. Eu as redigirei agora mesmo.
CENA 11
(Todo o grupo já está em cena, guardas e fiéis, mais ou menos dispostos como no início da cena 7. As silhuetas do Deputado, Repórter e Reverendo continuam visíveis)
Guarda 1 - Dentro de alguns minutos a entrevista que o pai está concedendo ao deputado e ao repórter estará terminada. Então os dois virão até aqui e apresentarão suas despedidas.
Guarda 2 - Que ninguém se esqueça das recomendações do pai. Que ninguém faça indagações desnecessárias. Quanto mais cedo eles se forem, melhor.
Guarda 3 - É indispensável que ambos partam de Anaiug com a melhor das impressões. A consolidação do nosso movimento dependerá, em grande parte, do que eles divulgarem.
Guarda 4 - Se opinarem desfavoravelmente, as pressões poderão se tornar insuportáveis.
Guarda 1 - Que todos se mantenham cordiais e solícitos até o fim, para que o mundo possa compreender, de uma vez por todas, a grandeza da nossa cousa.
Homem (Do bilhete) - O mundo jamais compreenderá a grandeza da nossa causa porque ela simplesmente não existe.
Guarda 1 - O que é que você está dizendo? (As silhuetas do Deputado e do Repórter somem. Permanece visível a do Reverendo)
Homem - Anaiug foi um sonho que fabricamos a partir do próprio desespero. Mas se transformou num pesadelo! Chegou o momento de acordar desse sono de morte!
Guarda 3 - Você enlouqueceu!
Homem - Eu nunca estive tão lúcido em toda minha vida! Isso aqui não passa de um campo de concentração! E vocês, que no início eram exatamente iguais a todos os outros, se transformaram em carcereiros implacáveis!
Guarda 2 - Ou você se cala nesse instante ou nós vamos...
Homem - Vocês não vão fazer nada! Vocês não podem me fazer nada! O deputado e o repórter já estão informados de que eu quero partir junto com eles! Eu lhes pedi isso ontem e eles prometeram que me levariam! Eles têm meu nome anotado, seria uma péssima política sumir comigo agora! Portanto, senhores verdugos, pelo menos no que diz respeito à minha pessoa, esse massacre termina aqui, hoje!
Guarda 4 - Não tenha tanta certeza assim. O reverendo não costuma perdoar aqueles que o abandonam.
Homem - Já estarei longe.
Guarda 1 - É o que vamos ver. (Entram o Deputado e Repórter. Ao fundo, a silhueta do Reverendo)
Guarda 2 - Estávamos esperando os senhores.
Deputado - Nós sabemos.
Guarda 3 - A comunidade se reuniu para lhes desejar uma boa viagem e agradecer o carinho e interesse que os senhores demonstraram por todos aqui.
Deputado - Nós é que agradecemos. A visita que fizemos a esse lugar se converterá num enorme benefício para muita gente. (Ao homem do bilhete) O senhor confirma o desejo de partir conosco?
Homem (Juntando-se a eles) - Sim.
Deputado - Há alguém mais que deseje fazer o mesmo?
Guarda 1 - Estamos certos de que ele é o único.
Repórter - Já perguntou a todos?
Guarda 1 - Certas perguntas são desnecessárias.
Repórter - E é o senhor quem decide quais são as perguntas necessárias?
Deputado - Em todo caso, gostaríamos de formulá-la uma vez mais. Existe alguém, dentre os senhores, que deseje, por livre e espontânea vontade, deixar este lugar e seguir conosco? (O Deputado mostra o salvo-conduto) Tenho aqui uma declaração assinada pelo reverendo autorizando todos que desejem ir embora a fazê-lo agora. (Ao guarda 1) O senhor reconhece a assinatura do reverendo?
Guarda 1 - Sim, é a sua assinatura.
Deputado - Portanto, é um documento autêntico. Ninguém tem nada a temer. O reverendo nos garantiu salvo-conduto até o aeroporto. Se comprometeu a respeitar a vontade dos irmãos que queiram regressar ao continente.
Guarda 2 - É inútil. Todos são felizes aqui. Não há por que ir embora.
Deputado - Muito bem. Os senhores é que sabem. Adeus. (E saem os três. Os guardas se reúnem. Confabulam em voz baixa. De repente um deles retira os óculos escuros)
Guarda - Senhor deputado! (Esse guarda sai atrás dos três. Fica implícito que é para matá-los)
Guarda 2 - Sentem-se, meus irmãos. A qualquer momento o pai nos falará.
(Todos se sentam. De repente se escuta um som violento, assustador, que indica que o Deputado e o Repórter, assim como o homem que os seguira, acabam de ser mortos. Todos se levantam apavorados, há grande confusão. Os guardas não conseguem dominar os fiéis. Ouve-se, então, a voz do Reverendo, cuja silhueta esteve sempre presente)
CENA 12
Voz - Meus irmãos! Tenham calma! O desespero só nos será prejudicial! Nunca, como agora, necessitamos tanto de lucidez e força! É imprescindível que todos tenham fé e convicção! (O grupo começa a se acalmar) A visita do deputado e do repórter se transformou num fracasso. Eles não vieram em busca de informações imparciais. Pelo contrário: já chegaram aqui com uma opinião formada e se recusaram a mudá-la. Nada do que lhes foi mostrado teve o poder de demovê-los. Eles abusaram de nossa boa fé e como se isso não bastasse ainda se julgaram no direito de nos fazer acusações. E mais: tiveram a ousadia de tentar fomentar a discórdia entre nós. Não nos foi possível, portanto, evitar as conseqüências de tal comportamento. Ambos acabam de ser mortos, assim como o irmão que nos traiu. Mas isso não é tudo. Dentro de muito pouco tempo o mundo estará informado do que se passou hoje, aqui. E Anaiug, não tenham dúvidas, será invadida e arrasada. Era o pretexto de que o sistema necessitava para nos colocar numa situação insustentável perante o mundo. O nosso sonho de construir uma comunidade agrícola pacífica chegou ao fim.
Homem - Eles não farão isso! Não ousarão invadir nossas terras!
Voz - Nós sabemos que sim. Não nos enganemos. Dentro de uns poucos dias já não existirá mais nada aqui...nós seremos presos, enviados a campos de concentração!
Homem - Eu não irei! Não vou permitir que me façam mal, nem à minha família!
Voz - O irmão se expressou com sabedoria. Nós não pertencemos mais ao mundo exterior. Portanto, não seria lógico que nos submetêssemos aos seus tribunais e acatássemos as suas sentenças.
Homem - E o que faremos, pai?
Voz - Só nos resta dar o passo definitivo. O mundo não está interessado em nós. O seu único objetivo é o de nos punir, nos castigar pela ousadia que tivemos de contestá-lo, renegá-lo para sempre. O que nos cabe, nesse momento, é demonstrar claramente que nos consideramos superiores a todos os seus dogmas. Que suas leias não nos dizem respeito e que somos por demais conscientes de nossa importância para nos curvarmos ante sua tirania. Nossa comunidade desaparecerá, meus irmãos... Nossas construções serão demolidas e essa terra será salgada. Destruirão tudo que conseguimos edificar em Anaiug. Mas aquilo que conseguimos estabelecer entre nós não poderá ser destruído nunca. Continuará a existir sempre, independentemente dos governos, dos organismos oficiais! Todos os corações sensíveis hão de se colocar do nosso lado e talvez um dia, quem sabe, parta de um deles uma nova tentativa de uma vida melhor, mais justa, em que todos possam ter oportunidades iguais. Nós deixaremos de existir, mas não a memória do que fizemos. Não nos rebaixaremos a ser perseguidos, encurralados e mortos como gado num curral. Nossa comunidade desaparecerá, mas não pela mão de seus carrascos. Desaparecerá porque seus membros assim o decidiram. O ideal que nos uniu em vida há de nos manter unidos na morte. Através dela nós transcenderemos nosso próprio destino e daremos ao mundo uma demonstração inequívoca da grandeza de nossos propósitos. (Tempo. Os fiéis se entreolham) Muitas vezes nós admitimos a possibilidade de uma situação como a que se apresenta. E em nenhuma dessas ocasiões nenhum irmão vacilou um minuto sequer. Quero crer que não o farão agora...(O grupo vacila, ninguém toma a iniciativa. Até que um dos irmãos se dirige a uma das estacas. Com os lábios cerrados entoa baixinho a melodia do cântico, só que num ritmo bem lento. Pega a estaca e a crava num dos orifícios restantes. Se imobiliza. Continua a murmurar essa melodia. E o processo se repetirá com cada um até que todos estejam mortos. Do teto começa a descer a lona escura. Estará formado um grande coral. A silhueta do reverendo tomba)
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