quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O estranho
(47)

O embate foi breve. Fui tomado por um acesso de loucura e, em meu braço, senti o vigor e a força de mil homens. Ao cabo de alguns segundos empurrei-o com força bruta de encontro ao lambril e, assim, tendo-o à minha mercê, embebi minha espada repetidas vezes em seu peito com uma fúria selvagem.
Naquele instante alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar a intrusão e, de imediato, voltei para junto do meu adversário moribundo. Que língua humana, no entanto, seria capaz de expressar a surpresa, o horror que senti ao testemunhar o espetáculo apresentado aos meus olhos? Aparentemente, o breve instante em que desviei o olhar fora o suficiente para desencadear uma alteração considerável na situação do lado mais alto ou oposto do aposento. Um enorme espelho - foi assim que me pareceu em meio à confusão - assomou onde instantes atrás não havia nada; e, enquanto eu me aproximava em um paroxismo de terror, minha própria imagem, de aspecto pálido e manchada de sangue, avançou em minha direção a passos débeis e hesitantes.
Foi assim que pareceu, mas não foi. Era o meu adversário - era Wilson quem se erguia diante de mim nas agonias do seu ocaso. A máscara e o manto dele estavam onde os havia atirado, no chão. Nenhum fio em seus trajes - nenhuma linha em todo o seu semblante marcado e singular que não fosse, mesmo na identidade mais absoluta, o meu próprio! (Edgar Allan Poe, "William Wilson", 1839).


O crítico estruturalista francês de origem búlgara Tzvetan Todorov propôs que as histórias sobrenaturais fossem divididas em três categorias: o maravilhoso, em que nenhuma explicação dos fenômenos sobrenaturais é possível; o estranho, em que são possíveis; e o fantástico, em que a narrativa hesita, sem se decidir, entre explicações naturais e sobrenaturais.

Um exemplo do fantástico, segundo esse uso, é a famosa história de fantasmas "A volta do parafuso", de Henri James. Uma jovem governanta assume a guarda de duas crianças órfãs em uma casa de campo isolada, e começa a ver vultos que parecem lembrar a ex-governanta e o criado maléfico que a seduziu, ambos já falecidos. A governanta acredita que esses espíritos do mal têm poderes sobre as crianças que estão sob seus cuidados e tenta livrá-las dessa influência. No clímax da história, a jovem heroína luta contra o fantasma do criado para evitar que ele se aposse da alma de Miles, e o garoto morre: "seu pequeno coração, despossuído, parara".

A história, narrada pela governanta, pode ser e vem sendo lida de dois modos diferentes, que correspondem ao "maravilhoso" e ao "estranho" de Todorov: ou os fantasmas são "reais" e a governanta se envolve em uma batalha heróica contra os poderes sobrenaturais do mal, ou são projeções das próprias neuroses e paranoias sexuais da jovem, com as quais ela literalmente mata de susto o garoto de quem deveria cuidar. Os críticos tentaram, em vão, provar a exatidão desta ou daquela leitura. O mais importante nessa história é a possibilidade de uma dupla interpretação, o que a torna imune ao ceticismo do leitor.

A classificação de Todorov é um chamado provocativo à reflexão sobre o assunto, ainda que sua nomenclatura possa causar alguma confusão quando traduzida, pois "fantástico" em geral é entendido como em oposição ao "real", e "estranho" parece um termo pouco natural para classificar uma história como "A volta do parafuso". Também podemos discutir as minúcias da aplicação desta terminologia.

O próprio Todorov foi obrigado a reconhecer que existem obras que desafiam essa categorização e precisam ser classificadas como "fantástico-estranhas" ou "fantástico-maravilhosas". "William Wilson", de Edgar Allan Poe, é uma dessas obras. Ainda que Todorov leia o conto como a alegoria ou a parábola de uma consciência perturbada (o que o torna "estranho", segundo sua própria classificação), a história traz um elemento de ambigüidade que o crítico encara como sendo a característica essencial do "fantástico".

"William Wilson" é uma história de Doppelgänger. O narrador epônimo, que admite a própria devassidão no início da história, descreve o primeiro internato onde estudou como uma construção onde "era difícil, a qualquer momento, dizer com certeza em qual dos dois níveis estava (essa ambigüidade sem dúvida é proposital). Lá, Wilson tinha um rival com o mesmo nome, admitido à escola no mesmo dia, com a mesma data de aniversário e fisicamente muito parecido com o narrador, cujo comportamento o segundo Wilson satirizava. A única diferença entre o duplo e o narrador é que o primeiro é incapaz de elevar a voz a mais do que à altura de um sussurro.

Wilson gradua-se em Eton e vai para Oxford, enquanto se afunda cada vez mais na degradação. Sempre que o personagem pratica alguma ação particularmente odiosa surge um homem vestido em trajes iguais aos seus e com o rosto escondido, que murmura "William Wilson" em um sussurro inconfundível. Desmascarado pelo duplo enquanto trapaceava em um jogo de cartas, Wilson foge para o estrangeiro, mas o Doppelgänger o persegue em toda a parte. "Muitas e muitas vezes, em comunhão secreta com o meu próprio espírito, eu perguntava-me: quem é ele - e o que pretende?. Em Veneza, Wilson, à espera de uma mulher casada para um encontro adúltero, sente "o leve toque de uma mão sobre o ombro, e aquele inesquecível, grave e odioso sussurro nos meus ouvidos". Tomado de ódio, o personagem investe sobre o algoz de espada em punho.

É óbvio que o duplo pode ser interpretado como a externalização alucinatória da consciência ou de uma versão melhorada de Wilson, e no texto existem várias pistas que apontam nessa direção. Wilson afirma, por exemplo, que o duplo de sua época de garoto tinha "princípios morais muito além dos meus próprios", e ninguém além do próprio Wilson parece espantar-se com a semelhança física entre os dois. Mas a história não teria essa força perturbadora e sugestiva se não conferisse uma concretude plausível aos acontecimentos estranhos.

O clímax do conto parece especialmente engenhoso graças à referência ambígüa ao espelho. A partir de uma perspectiva racional, poderíamos supor que, em um delírio motivado pela culpa e pelo ódio a si mesmo, Wilson tenha confundido a própria imagem refletida no espelho com o duplo e investido sobre ela, mutilando-se no processo; mas, segundo a perspectiva de Wilson, o contrário parece ter acontecido - o que Wilson a princípio crê ser o reflexo da prórpria imagem revela-se a figura ensanguentada e agonizante do duplo.

Narrativas "estranhas" clássicas usam sempre narradores em primeira pessoa e imitam formas discursivas como confissões, cartas e depoimentos para dar maior credibilidade ao relato. (Podemos citar "Frankenstein", de Mary Shelley, e "O médico e o monstro", de Robert Louis Stevenson, como exemplos). Esses narradores tendem a escrever num estilo bastante literário que, em outros contextos, poderia parecer um tanto batido: no primeiro parágrafo do trecho, por exemplo, aparecem "acesso de loucura", "força de mil homens", "força bruta" e "fúria selvagem".

Na tradição gótica de horror à qual pertence Poe, e à qual o autor americano deu um forte impulso, não faltam exemplos desses textos "mal bem escritos". A previsibilidade retórica e a própria falta de originalidade garantem a lisura do narrador e tornam mais plausíveis as estranhas experiências relatadas.
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Extraído de "A arte da ficção", de David Lodge (LYPM POCKET, tradução de Guilherme da Silva Braga). O livro contém 50 deliciosos artigos sobre a arte de contar histórias.

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