terça-feira, 5 de março de 2013

O ator contemporâneo em seus paradoxos

Fátima Saadi


          O trabalho do ator tem sido apontado como a síntese da experiência teatral em sua imediatidade e em sua efemeridade. Reduzido à sua expressão mais simples, o teatro é o encontro entre semelhantes dessemelhantes.

          O ator é um homem cujo trabalho é transformar-se num signo artístico, assumindo que o que caracteriza o signo artístico é sua múltipla significação. O signo artístico cria uma saturação, uma concentração na noção de signo pois trabalha justamente para tornar mais densa a relação entre o suporte material do signo, o significante, e seu significado. Como o signo artístico não visa prioritariamente à comunicação mas à criação de sentido no domínio do estético, sua materialidade e sua forma assumem uma importância muito maior que no signo não artístico.

          Na obra de arte, a materialidade, o fazer, a concretude, a aparência, exibem-se como essenciais. Posso descrever uma tela de Van Gogh mas, por melhor que seja minha descrição, ela jamais poderá dar sequer uma idéia dos tons, da força da pincelada, da estruturação do quadro, em uma palavra, ela jamais poderá substituir a fruição direta.

          A situação teatral é extremamente rica do ponto de vista da significação porque ali interagem signos de naturezas diversas: signos espaciais e signos temporais. Roland Barthes, por exemplo, refere-se ao espetáculo teatral como "uma polifonia de significados".

Fundamental

          No tecido constituído pelo espetáculo, o ator é peça fundamental. Participa do domínio dos signos espaciais pela forma de seu corpo que entra em relação com o espaço cênico, com a disposição do edifício teatral, com o cenário e com seus acessórios e adereços, e é simultaneamente o portador da palavra que se desdobra no tempo.

          Seu trabalho é extremamente difícil porque se, por um lado, a situação teatral, como bem definiu Kantor, já o coloca para além da barreira da igualdade, diferenciando-o, distanciando-o do mundo habitual do espectador que o assiste, por outro lado é grande para ele a tentação, alimentada por uma longa tradição de representação mimética e figurativa, de acreditar que, no domínio da atuação, a operação estética resume-se a uma espécie de empréstimo de sua humanidade ao personagem e ao espetáculo. (KANTOR, Tadeusz. O Teatro da Morte. Trad. Ângela Leite Lopes. Folhetim. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 1998, p.3-19.)

Curto-circuito

          Como vimos, a noção de signo envolve um jogo entre a presença e a ausência. No caso do ator, há como que um curto-circuito entre estas duas esferas. Não é a sua pessoa o que ele deve apresentar-nos mas uma síntese encarnada da experiência do humano, da experiência da finitude e do desejo de transcendê-la. No entanto, é sobre si mesmo e a partir de si mesmo que ele constrói seu trabalho. A operação do ator que se transforma em signo assume caminhos e procedimentos diferentes em função dos objetivos a que se propõe.

          Num sobrevôo muito esquemático, poderíamos dizer que as técnicas do ator visam a dois grandes resultados distintos, porém menos antagônicos do que normalmente se supõe:

1 - A criação, por meio de artifícios que permanecem em geral dissimulados, de um personagem redondo, sem fissuras, cuja aparência de realidade remete-nos à vida de todos os dias, ainda que ele esteja vivendo uma situação excepcional, um personagem transitivo, por assim dizer;

2 - A criação manifesta de um personagem que se distancia tanto da pessoa do ator quanto do homem da rua, isto é, um trabalho de criação cujo objetivo não é a cópia do real mas o mergulho na estrutura das relações da realidade, utilizando a analogia ou o estranhamento como procedimentos preferenciais.

Dicotomias

          A história do ator tem sido contada basicamente através de dicotomias. Vamos abordar rapidamente algumas delas.

          A primeira dicotomia aprisiona o ator entre o sagrado e o profano, o sacerdote e o excomungado, o instrumento dos deuses e o criador consciente de suas técnicas.

          No diálogo Íon, Platão enclausura o rapsodo no seguinte dilema: ou bem ele sabe do que está falando e é a origem de seu próprio trabalho – e nesse caso, ele deveria ser capaz de discorrer com conhecimento de causa sobre tudo que Homero descreve nos poemas que fazem parte de seu repertório - ou bem sua atuação releva de uma loucura divina – a manía, espécie de transe sob o qual o rapsodo se apresentaria - e só assim ele poderia ser desculpado por referir-se, sem um saber verdadeiro, às técnicas de construção e manejo de embarcações, às técnicas guerreiras, aos procedimentos agrícolas, à vida nos palácios etc. É evidente que Íon prefere se ver despossuído de sua arte a ser considerado um mentiroso e retruca a Sócrates:

          "Faz uma grande diferença, Sócrates! Porque é muito mais belo ser considerado um homem divino!" (PLATON. Íon. Trad. Monique Canto. Paris: Flammarion, 1989, p. 129)

          Passemos à segunda dicotomia: para Platão, o ator representava um perigo fundamental ao demonstrar a simultaneidade entre o fictício e o real, entre o personagem e seu criador sem que, ali, se pudesse separar racional e sensível.

          As conseqüências da dicotomia entre fictício e real transbordam do âmbito da filosofia e espraiam-se pelo domínio da moral: por ser capaz de encarnar diferentes caracteres, o ator é visto como alguém sem nenhum caráter. A condenação moral de que até bem recentemente ele foi vítima perpetua o desprezo da Antigüidade por aquele que exibe seu corpo por dinheiro, mesclando-o com a prevenção contra aquele que, por dever de ofício, finge, mente, parece mas não é.

Rousseau

          O depoimento de Rousseau na Carta a d'Alembert pode ser considerado paradigmático da vertente cristã (neste caso, calvinista) da rejeição filosófico-moral do ator:

           “Qual é o talento do comediante? A arte de imitar, de adotar um caráter diferente do que se tem, de parecer diferente do que se é, de se apaixonar com serenidade, de dizer coisas diferentes das que se pensam com tanta naturalidade como se realmente fossem pensadas e, enfim, de esquecer seu próprio lugar, de tanto tomar o do outro. Que é a profissão de comediante? Um ofício pelo qual ele se dá como espetáculo em troca de dinheiro, se submete à ignomínia e às afrontas que se compra o direito de lhe fazer e põe publicamente sua pessoa à venda. Desafio todo homem sincero a dizer se não sente no fundo da alma que nesse comércio de si mesmo há algo de servil e de baixo. Vós outros, filósofos que vos pretendeis tão acima dos preconceitos, não morreríeis todos de vergonha se, frouxamente fantasiados de reis, tivésseis que representar diante do público um papel diferente do vosso, e expor vossas majestades às vaias da populaça? Qual é então, no fundo, o espírito que o comediante recebe do seu estado? Uma mistura de baixeza, de falsidade, de ridículo orgulho e de indigno aviltamento, que o torna capaz de toda espécie de personagens, com exceção da mais nobre de todas, a de homem, que ele abandona”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a d'Alembert sobre os espetáculos. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Unicamp, 1993, p. 92)

          Uma terceira dicotomia será aqui evocada, embora não possamos nela nos deter longamente: o ator tem sido alternadamente denunciado como perigoso elemento de demonstração da possibilidade de mobilidade social ou capturado como instrumento de propaganda do status quo.

Diderot

          Retomemos agora, com Diderot, o Paradoxo sobre o comediante (editado em 1830, mas escrito em 1770 e revisto provavelmente em 1777, 1778 e talvez mais algumas vezes até a morte de Diderot, em 1784), cuja tese fundamental é a seguinte:

          “Afirmo que é a sensibilidade que faz os atores medíocres, a extrema sensibilidade os atores limitados e o sangue frio e a cabeça os atores sublimes”. (Carta de Diderot a Grimm, em 14/11/1769. Cit. por Paul Vernière em sua introdução ao Paradoxo Sobre o Comediante. In: DIDEROT. Oeuvres Esthétiques, p. 292.)

          O que nos importa aqui ressaltar é que partindo do esquema básico do teatro, centrado na relação ator-espectador, através da colocação de Diderot, somos levados a nos interrogar tanto a respeito da natureza do procedimento técnico-artístico da atuação quanto sobre o efeito por ele obtido sobre o espectador.

          A compreensão do Paradoxo exigiria de nós um passeio pelas concepções de Diderot a respeito da fisiologia humana e das relações entre sistema nervoso periférico, responsável pela sensação, e sistema nervoso central, responsável pela percepção e pelas demais funções da sensibilidade, como memória, imaginação etc. E gostaria de, em seu favor, dizer que, grosso modo, ele identifica sensibilidade com afetação ou descontrole e a ausência de sensibilidade com o refinamento do gênio, do seu instinto, do seu tato, o que o torna capaz de observar o real e de nele perceber relações originais, inusitadas, de que se comporia seu trabalho. Para aquilatar a originalidade destas noções que integram natureza, percepção, razão e obra de arte num continuum dinâmico, basta contrastá-las com os conceitos edênicos e estáticos de natureza e moral em Rousseau.

Efeitos

          Do ponto de vista do espectador, os efeitos obtidos de identificação ou distanciamento podem ser escalonados ao longo de um eixo que vai da adesão emocional total à simpatia intelectual, acreditando-se que o prazer deve presidir a todas as reações.

          O que mais nos importa ressaltar é que Diderot, no âmbito de uma época que acredita na identificação da platéia com o palco como condição sine qua non para que o efeito do teatro se dê, levanta o véu da existência de uma desproporção entre a natureza e o teatro (“Nada se passa exatamente na cena como na natureza”. Paradoxo Sobre o Comediante. Trad. Jacó Guinsburg, Os Pensadores. p.162) e entre o que sente o ator e o que a platéia sente. O ator que comove a multidão com suas lágrimas, “chora como um padre incrédulo que prega a paixão, como um sedutor aos joelhos de uma mulher que ele não ama mas que deseja enganar...ou como uma cortesã que nada sente mas que desmaia em vossos braços”(Ibidem, p. 165).

          O objetivo do ator diderotiano é fomentar a identificação e desencadear a emoção, mas sua técnica opera por distanciamento em relação ao personagem, ao criar um modelo a partir do qual trabalhará, e que deve ser eqüidistante tanto da natureza bruta quanto de suas próprias emoções. Distanciamento também em relação ao espectador, que ele pode acompanhar de seu posto privilegiado de observação no palco.

Confronto

          Na verdade, a importância do raciocínio de Diderot sobre o ator é que, a partir dele, é estruturada uma teoria da obra de arte em que, mais que as regras estéticas - e, no caso do teatro daquela época, essas regras emanavam quase todas da retórica e diziam respeito basicamente ao texto dramático - conta o momento da apresentação, o confronto entre o personagem que o ator preparou previamente a partir do texto, e a platéia.

          E, para finalizar, considero que o paradoxo realmente contemporâneo em que se vê enredado o ator diz respeito à consciência de participar de um todo, o espetáculo, sem se prevalecer das prerrogativas que uma tradição retórica e logocêntrica atribuiu ao texto dramático e, por extensão, a seu intérprete.

          Em colaboração estreita com o encenador, o ator é o criador de um depoimento sobre o tipo de relação que entre si estabelecerão os elementos de um espetáculo: harmonia, hierarquia, tensão, estranhamento?

          Esta é, em verdade, a síntese do que se compreende por encenação, o conceito através do qual o teatro – e o ator - se posicionam no panorama da modernidade.

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Este texto foi apresentado em julho de 1998 num dos Painéis de discussão que integraram o XXIII Festival de Inverno de Campina Grande (Paraíba).

Fátima Saadi é Dramaturg do Teatro do Pequeno Gesto, tradutora e editora da revista Folhetim.

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