segunda-feira, 30 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA

"A esposa e a noiva"

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Delicadeza e intensidade


Lionel Fischer


"A esposa" conta a história de Nikolai, que descobre que sua mulher, Olga, é amante de um jovem que mora em Monte Carlo. Desanimado, ele decide dar o divórcio a Olga, mas ela não aceita: quer apenas que o marido lhe dê o passaporte para visitar o amante. Já "A noiva" fala de Nádia, que escapa não só de um casamento fútil, mas de uma vida que sente ser falsa e sem perspectiva".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o enredo de dois contos de Tchecov, aqui reunidos no espetáculo "A esposa e a noiva", que acaba de encerrar sua temporada no Espaço Sesc, mas voltará brevemente a ser exibido. Luciana Fróes interpreta as duas protagonistas (afora outros personagens), estando a direção a cargo de Antonio Gilberto.

Como é sabido, os mais renomados especialistas na obra tchecoviana ainda não chegaram a uma conclusão definitiva: Tchecov seria melhor contista ou melhor dramaturgo? Em minha modesta opinião, trata-se de uma discussão bizantina, pois o autor russo é absolutamente genial em ambos os gêneros. Isto posto, vamos ao espetáculo.

Ao contrário dos franceses, de estilo mais refinado, os autores russos exibem uma escrita que, obviamente sem ser simplória, caracteriza-se fundamentalmente por uma aguda observação da natureza humana, em toda a sua complexidade. No caso específico de Tchecov, tanto em suas peças como em seus contos e novelas, praticamente inexistem passagens bombásticas, arroubos operísticos etc.

Muito pelo contrário: tudo ocorre num registro em que os variados conflitos são, por assim dizer, explicitados numa atmosfera que poderia ser definida como uma mescla de delicadeza e intensidade. Afora o fato, naturalmente, de que grande parte dos conteúdos só podem ser apreendidos através do não-dito, de tudo aquilo que as palavras não conseguem traduzir.

Enfim...estamos diante de um gênio de infinita capacidade de compreender o ser humano, abstendo-se de julgá-lo. E que nutre por suas personagens um carinho todo especial, mesmo por aquelas cujos eventuais desvios as levam para a perdição.

No presente caso, Tchecov criou duas personagens maravilhosas, completamente díspares, mas ainda assim, cada uma à sua maneira, exibindo contradições que permanecem inalteradas até hoje. E que receberam interpertações absolutamente irrepreensíveis de Luciana Fróes.

O fato de Luciana ser uma mulher linda é o que menos importa, pois sua real beleza vem de dentro, assim como sua abordagem das personagens não advém de truques ou maneirismos de qualquer espécie, mas sugere ter sua origem em suas entranhas. Estamos, portanto, diante de uma atriz que possui, obviamente, vastos recursos expressivos, mas que nos encanta por sua precisa compreensão dos conteúdos em jogo e por sua notável capacidade de entrega.

Quanto ao espetáculo, o diretor Antonio Gilberto prossegue inabalável em sua pesquisa de transpor obras literárias para o palco, ao invés de adaptá-las. Isso implica em criar uma partitura para o ator que o obriga a narrar e interpretar simultaneamente, e não apenas um único personagem. E para tanto faz-se imperioso criar uma dinâmica cênica simultaneamente despojada e expressiva, e sobretudo clara em seu aspecto expositivo.

E aqui, mais uma vez, o diretor chega a um resultado maravilhoso, ratificando a melhor definição que já ouvi sobre o fenômeno teatral, de autoria de Peter Brook, o maior encenador vivo, com quem tive o supremo privilégio de estudar por um breve período: "O teatro é a arte do encontro". 

Na equipe técnica, Marcos Ribas de Faria criou uma trilha sonora simplesmente deslumbrante, ainda que calcada basicamente em cima de uma única música, muitas vezes repetida. Mas por que deslumbrante? Porque não ilustra a cena, não se contenta em reforçar um determinado clima emocional, mas gera na plateia uma inquietante sensação, como se os sons brotassem da alma da personagem, assim traduzindo suas perturbações internas.

Igualmente irrepreensíveis a poética cenografia de Flavio Graff, o elegante e, digamos, neutro figurino de Angèle Fróes e a expressiva iluminação de Tomás Ribas, cabendo ainda destacar as preciosas participações de Rose Gonçalves (preparação vocal) e Cristina Moura (preparação corporal), sem dúvida determinantes para o sucesso deste que é, até o presente momento, um dos espetáculos de maior destaque da atual temporada.

A ESPOSA E A NOIVA - Textos de Tchecov. Direção de Antonio Gilberto. Com Luciana Fróes.   

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Minha vida com as estrelas

Domingos Oliveira


          Tenho tido a oportunidade, durante a vida profissional, de dirigir muitos dos nossos estrelos (as). As atrizes ou atores que alcançam grande popularidade tornam-se de modo geral criaturinhas insuportáveis e arrogantes. Que se opõem a seus diretores por princípio, tornando impossível qualquer espetáculo sério.

          Como são exatamente estas pessoas que atraem o público ao teatro, a situação é grave. Nenhum diretor mais sério pode suportar a arrogância dessas senhoras (em geral são senhoras, poucos senhores) e acaba por sair fora do chamado teatrão, o teatrão profissional, procurando exercitar o lado mais conseqüente de sua arte através de grupos de atores menos notórios e mais sérios. E não há nada de errado nisso.

          Certa vez, uma semana antes de estrear um espetáculo com uma senhora dessas, telefonei-lhe e, evocando velha amizade, implorei para que em nome da qualidade do espetáculo, ela assumisse a direção da peça. Ofereci-me, no mesmo momento, para a assistência, em tudo que fosse preciso! Mas tentei fazer com que ela compreendesse a necessidade de alguém dirigir a peça!

          E de sair da situação ridícula em que nos encontrávamos há cerca de 40 dias: eu tentando colocar minha visão e ela me antagonizando a cada momento, não sei bem por quê. Claro que ela não aceitou. E preferiu continuar esgotando minha paciência até o fim. Alegou que não podia fazer isso diante dos outros atores, que tinha de cuidar de sua própria intepretação.

          Não há dúvida de que qualquer estrela (o) tem capacidade e conhecimentos técnicos para dirigir o espetáculo em que atua. Afinal, não é nenhum bicho de sete cabeças. Mas aí vem a pergunta mais curiosa: eles querem? Estão dispostos a assumir a posição do diretor? Estão dispostos a ter de confiar no seu próprio julgamento e opinião? Assumem a solidão inerente ao líder? A resposta, creiam-me, vem com maiúsculas: NÃO!

          Eles querem decidir...sem decidir. Escolher...sem escolher. Dirigir...sem determinar a direção. Querem que o diretor dirija do mesmo modo que elas (eles) dirigiriam, embora não tenham a menor idéia do que isso seja. E sem que ninguém saiba! Posto que não estão dispostos à responsabilidade de nenhum fracasso.

          Resumindo: as estrelas (os) não querem um diretor, querem um porta-voz, discreto e enérgico ao mesmo tempo. Em outras palavras: querem um alto-falante. Um imbecil que organize o trabalho paternalmente para que ela (ele) termine por aparecer em cena exatamente como sempre foi: o mesmo estrelo ou a estrela de sempre.

          Elas dizem assim ao diretor: "Não vamos fazer o seu espetáculo, vamos fazer o nosso". Esta frase lapidar em geral é proferida em tom lânguido e carinhoso mas que nem por isso deixa de ser uma grossa besteira. São muitos os caminhos de uma montagem teatral. Algém tem de apontar aquele que vai ser seguido. Um aponta; os outros seguem.

          Pelo menos até todos chegarem à conclusão de que o caminho está errado, que estamos perdidos. E também aí alguém terá de apontar o novo caminho. Não acho que um ator tenha por obrigação aceitar uma proposta que faço; não, isso seria horrível. Mas acho que tem por obrigação segui-la por um ensaio ou dois, com boa vontade! Investindo seu talento, para depois negá-la.

          Se uma proposta não é seguida, ela não alcança conseqüência, profundidade. Apenas um mau diretor traz o resultado de casa. Fazemos enveredar o trabalho por certos caminhos, tentamos sentir como repercutem nos atores. E a partir daí tentamos trazer, com delicadeza, os aprofundamentos. Se a proposta do diretor é negada sem ser experimentada, jamais ninguém saberá o que ela realmente significava.

          Mas está bem, aceitemos a negação. Então é preciso que alguém ponha outra proposta em prática. As estrelas (os) em geral o fazem, ao mesmo tempo em que negam a do diretor. Ótimo, sigamos para ver onde dá! Nesse momento, quando você concorda com a proposta da estrela (o), ela muda sempre de opinião! Discorda da própria proposta e não sabe o que pôr no lugar, uma vez que não entende de direção.

          Esse inferno e essa confusão estão sendo aqui descritos de modo sucinto, mas pode-se prolongar indefinidamente. Até que ambos, estrala (o) e diretor, comecem a odiar-se mortalmente. Resultado? Um ensaio (e depois um espetáculo) híbrido, indefinido, no qual a estrela (o) acaba fazendo exatamente o que tem feito nas últimas décadas, isto é, repetindo os mesmos gestos e tiques e ganhando o mesmo dinheiro. Cultuando, acima de qualquer conteúdo ou filosofia, a sua própria divina personalidade. É um saco de gatos.

          Falando sério, é preciso que diretores e atores se amem muito e tenham confiança mútua. Se você é um ator e sente, por algum motivo, que não quer ou não precisa de um diretor, saiba que tem todo direito. Mas ouça, por amor de Deus, um conselho: dirija a peça você mesmo! Evite ficar enchendo a paciência de um pobre coitado que foi chamado sem ser querido. Creia-me: ou permita a direção ou dirija. Ainda não foi inventada a terceira hipótese.

          Não existe criação coletiva. É apenas um slogan publicitário, descrevendo no máximo que não há brigas na equipe. Por trás de uma criação coletiva há sempre um diretor inconfesso.
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Extraído de "Do tamanho da vida - Reflexões sobre o teatro". Minc/INACEN, Coleção Documentos, 1987.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

A Arte de Amar

Ovídio


NO LEITO


Fico acanhado com os ensinamentos que me restam dar, mas a boa Dionéia me diz: "Do que temos vergonha é justamente nossa obrigação". Que cada mulher se conheça bem; de acordo com seu físico, escolha esta ou aquela posição; a mesma postura não serve para todas.

A mulher que é particularmente bonita deitará sobre as costas. É de bruços que deverão se mostrar aquelas que estão satisfeitas com suas costas. Lucina deixou rugas em seu ventre? Faça você também como o parta que combate voltando as costas. Melanião levava sobre os ombros as pernas de Atalante: se as suas são belas, é preciso mostrá-las da mesma forma.

A mulher pequena ficará na posição do cavalheiro; como era muito alta, jamais a tebana, esposa de Heitor, montou sobre seu marido como sobre um cavalo. Ficará de joelhos sobre o leito, a cabeça um pouco curvada para trás, a mulher que deve ser admirada em todo o contorno lateral.

Se suas coxas têm o encanto da juventude e seu peito também não tem imperfeição, o homem ficará em pé, e você estendida sobre o leito perpendicularmente. Não tenha vergonha de soltar sua cabeleira, como as Bacantes, e virar a cebeça, deixando balançar seus cabelos. Há mil maneiras de provar os prazeres de Vênus; a mais simples e menos fatigante é ficar semideitada sobre o lado direito.

Mas nem os tripés de Febo, nem Amon com cabeça de touro serão para você oráculos mais seguros do que minha Musa; se algo merecer confiança, sigam os conselhos deste tratado, fruto de uma longa experiência: nossos versos não enganarão sua confiança.

Que a mulher sinta o prazer de Vênus se abater até o mais fundo de seu ser, e que o gozo seja igual para seu amante e para ela! Que as promessas de amor e os doces murmúrios não se interrompam nunca, e que palavras lascivas caibam entre suas contendas.

Mesmo você, a quem a natureza recusou as sensações de amoroso prazer, finja, com inflexões mentirosas, apreciar os doces júbilos. Como é preciso lamentar a mulher em quem este órgão, que deve trazer fruição tanto à mulher quanto ao homem, permanece insensível!

Mas que este fingimento não seja descoberto! Que seus movimentos e a própria expressão de seus olhos consigam nos enganar! Que a volúpia, que as palavras, que a respiração ofegante dêem essa ilusão!

Enrubesço ao prosseguir: este órgão tem seus meios de expressão secretos. Após essas alegrias de Vênus, pedir a seu amante um presente é querer que as preces não tenham nenhum peso.

Esquecia-me: não deixe a luz penetrar por todas as janelas no quarto de dormir; muitas partes do seu corpo são favorecidas não sendo vistas à luz do dia.
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Extraído de "A arte de amar", L&PM POCKET, primeira edição piblicada em 2001. Tradução de Dúnia Marinho da Silva.

Sobre o Autor

Ovídio nasceu em 43 a.C, em Sulmona, e morreu em 17, em Tomi (atual Constanta, Romênia). Estudou em Roma, onde conquistou a sociedade mundana com seus poemas. Consagrou-se com as obras Amores, As Heróides e A arte de amar. A partir dos 40 anos começou a reunir e reeditar sua obra. Escreveu, então, seu grande trabalho, As metamorfoses, lendas da mitologia greco-latina em 15 volumes. No ano 8 foi exilado de Roma por motivos políticos pelo imperador Augusto. Escreveu vários livros onde deixou transparecer a amargura e as dificuldades do exílio. Sua obra atravessou os séculos, sendo recuperada definitivamente na Idade Média, quando passou a servir de paradigma para os grandes poetas latinos.
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Teatro/CRÍTICA

"Loucura - um autoelogio desconcertante"

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Ótima versão de um clássico


Lionel Fischer


Nascido Desidério Erasmo, mas conhecido como Erasmo de Rotterdam (1467-1536), o pregador do evangelismo filosófico ingressou na ordem dos agostinianos e tornou-se padre, e pouco depois aceitou o cargo de secretário do bispo de Combai, na França. Em Paris, estuda teologia e em 1499 viaja pela primeira vez à Inglaterra, onde toma contato com o movimento humanista e conhece aquele que seria seu melhor amigo, Thomas More.

Autor de vasta e diversificada obra, uma delas despertou acirrada polêmica: "Elogio da Loucura" (dedicada a Thomas More), onde apresenta a loucura como uma deusa que conduz as ações humanas. Identifica a loucura no casamento, na guerra, na formação das cidades, na manutenção de governos, na religião e na justiça. Além disso, critica muitas virtudes humanas, em especial a mediocridade e a hipocrisia.

Narrado na primeira pessoa pela Loucura, "Elogio da Loucura" está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. Brunna Napoleão assina a direção da montagem, estando a cargo de Paula Goja a adaptação e a interpretação da única personagem.

Sendo Erasmo de Rotterdam um gênio, nada mais natural que suas reflexões sejam mais do que pertinentes, ainda que passíveis de contestação - como já dito, a obra gerou acirradíssimas polêmicas. Mas é simplesmente brilhante, cabendo ressaltar a veia satírica do autor e sua espantosa capacidade de detectar absurdos tanto na filosofia como na fé e no comportamento humano, de uma maneira geral. 

Por tratar-se de uma adaptação, é evidente que nem todo o livro foi encenado. Mas diante do material apresentado, o espectador que porventura desconheça a presente obra e/ou as demais escritas pelo autor, certamente terá acesso a algumas das principais ideias e pensamentos do imortal filósofo holandês.

Quanto ao espetáculo, ainda que estruturado de forma confessional, o mesmo transcorre pleno de teatralidade, pois a diretora Brunna Napoleão imprimiu à cena uma dinâmica que, valendo-se de muitos e encantadores elementos, permite à Loucura  explicitar seus pensamentos sempre de uma forma teatral.

Na pele da protagonista, Paula Goja exibe performance totalmente convincente, tanto no que diz respeito ao texto articulado quanto à expressividade corporal. A mesma eficiência se faz presente na encantadora cenografia de Márcia Breves e na sensível iluminação de Wilson Reis, cabendo ainda destacar a ótima direção de movimento de Isabel Chavarri.

LOUCURA - UM AUTOELOGIO DESCONCERTANTE - Texto de Erasmo de Rotterdam. Direção de Brunna Napoleão. Adaptação e atuação de Paula Goja. Casa de Cultura Laura Alvim. Terça e quarta, 21h.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Um violinista no telhado"

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Obra-prima em versão inesquecível


Lionel Fischer


"Hair foi um mergulho de cabeça num mundo muito diferente do nosso, o mundo lisérgico e da contracultura dos anos 60/70, um musical do qual saímos impregnados de valores únicos, ligados à cultura oriental, a uma posição clara diante de guerras em geral, a um respeito à individualidade e a tudo que é humano e merece ser tratado sem preconceito e sem meias-palavras. E ao sair de Hair, mergulhamos de cabeça num universo que, a princípio, seria a negação daquele: A TRADIÇÃO.

Um violinista no telhado seria, a um olhar superficial, o "anti-Hair". Mas não é. É novamente uma história de libertação, de quebra de conceitos arcaicos, um texto que fundamentalmente só faz retratar as tentativas de humanização dos personagens principais, tirando-os daquilo que os amarrava no convencional, e trazendo-os para a luz de suas individualidades, seus desejos, suas tomadas de posição em favor de uma vida mais justa e não baseada em dogmas vazios de significado".

Os dois trechos acima, que constam do programa e levam a assinatura de Charles Möeller e Claudio Botelho, estão aqui reproduzidos por duas razões básicas. A primeira: revela a permanente disposição dos dois artistas de jamais se tornarem uma espécie de parasitas de suas próprias conquistas, sempre buscando novos desafios. A segunda: sintetiza de forma admirável os principais conteúdos tanto do espetáculo anterior da dupla ("Hair") quanto deste, "Um violinista no telhado", que acaba de estrear no Oi Casa Grande.

Baseado em histórias de Sholem Aleichem, "Um violinista no telhado" chega à cena com direção de Charles Möeller, versão brasileira de Claudio Botelho e elenco formado por José Mayer (Tevye), Soraya Ravenle (Golda, sua esposa), Ada Chaseliov, Dudu Sandroni, Malu Rodrigues, Nicola Lama, Rachel Rennhack, André Loddi, Julia Bernat, Cirillo Luna, Jitman Vibranovski, José Steinberg, Cassio Pandolfi, Augusto Arcanjo, Yashar Zambuzzi, Léo Wainer, Kelzy Ecard, Sergio Stern, Julia Porto, Rodrigo Cirne, Beto Vandesteen, Carlos Sanmartin, Giulia Nadruz, Karin Dreyer, Lucas Drummond, Darwin del Fabro, Emmanuel Pasqualini, Fabio Porto, Arthur Marques, Tomás Quaresma, Wallace Ramires, Guilherma Lazary, Hannah Zeitoune, Raquel Bonfante, Sofia Viamonte, Jonas Queiroz, Raul Guaraná, Tiê de Kühl, E. Machado, Marya Bravo, Cristiana Pompeu e Ricca Barros - se omiti algum nome, de antemão já peço que me perdoem.

Jerry Bock responde pela música, Sheldon Harnick pelas letras, Joseph Stein pelo libreto e Jerome Robbins pela coreografia original. "Imersos" no fosso, os seguintes profissionais: Marcelo Castro (regência), Kelly Davis (violino 1 - Spalla), Taís Soares (violino 1), Marcio Telles (violino 2), Stoyan Gomide (viola), Saulo Vignoli (cello), Omar Cavalheiro (baixo), Thiago Trajano (violão/bandolim), Priscilla Azevedo (teclado/acordeon), Kreinski (flauta/picollo), Whatson Cardoso (clarineta), Ernani Piu-Piu (trompete 1), Matheus Moraes (trompete 2), Fabiano Segalote (trombone) e Marcio Romano (bateria/percusão).

Ambientada em uma pequena aldeia ucraniana chamada Anatevka, a história gira em torno da família do leiteiro Tevye, sua esposa Golda e suas filhas. Como ocorre em todo contexto familiar, aqui são exibidos atritos e cumplicidades, mas aos poucos a situação vai  ganhando contornos mais densos com os noivados das meninas - e em especial de uma delas, que resolve se unir a um goy - e fundamentalmente a partir do momento em que pequenas agressões começam a se consumar contra a população judaica, sendo esta finalmente obrigada a deixar sua terra natal.

Contendo ótimos personagens, pleno de humor e humanidade, e fundamentalmente investindo decisivamente contra a intolerância, seja esta de que natureza for, "Um violinista no telhado" merece ser considerada uma obra-prima. E não apenas pelo texto, mas igualmente pelas belíssimas canções, perfeitamente inseridas na trama e decisivas para a absorção de todos os conteúdos propostos pelo autor.

Com relação ao espetáculo, este traz a inconfundível grife Botelho/Möeller. Soluções criativas e imprevistas, absoluta precisão cênica, ótimo domínio dos tempos rítmicos, afora uma aparentemente inesgotável capacidade de gerar emoção sem apelar para pieguices de qualquer natureza. Estamos, sem sombra de dúvida, diante de um musical que poderia ser exibido nos palcos mais exigentes do mundo, nada ficando a dever ao que de melhor neles se produz.

Mas os méritos de Charles Möeller e Claudio Botelho não se restringem ao já citado. Torna-se imperioso destacar sua sensibilidade na condução do elenco. Na pele do protagonista, é bem possível que José Mayer exiba aqui uma das melhores, senão a melhor, performance de sua brilhante carreira. Sem ser propriamente um cantor, no sentido estrito do termo, ainda assim Mayer canta de forma esplêndida, cabendo ressaltar sua capacidade de, em dados momentos, "falar" a letra, conferindo à mesma um sentido todo especial. E nas passagens em que o texto predomina, Mayer extrai todo o humor e humanidade do magnífico personagem que interpreta.

A mesma eficiência se faz presente no trabalho de Soraya Ravenle. Sabidamente uma excelente cantora, aqui só faz confirmar o que dela se espera. Mas há que se destacar, em especial, sua notável composição física - linda e jovem, Soraya surge em cena meio curvada, pesadona, envelhecida, gestos ríspidos, quase uma histérica. Mas, ao mesmo tempo, doce e acolhedora. Outra performance brilhante.

Com relação aos demais, seria literalmente impossível particularizar todos os desempenhos. Mas todos eles, sem exceção, são de altíssimo nível, tanto nas partes cantadas ou dançadas quanto naquelas em que o texto torna-se o foco principal. Reunindo profisisonais de todas as idades, foi realmente emocionante e comovente constatar a enorme capacidade de entrega de todos, a ótima contracena que estabelecem e também a inegável alegria de estar em cena que todos exibem. A todos, portanto, minha gratidão eterna, pela inesquecível noite que me proporcionaram - e certamente a todos que compareceram à estreia.

Na equipe técnica, destaco com total entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral - Marcelo Castro (direção musical e regência), os músicos já citados, Rogério Falcão (cenografia), Marcelo Pies (figurinos), Paulo César Medeiros (iluminação), Beto Carramanhos (visagismo), Aniela Jordan (direção de produção), Luiz Calainho (produção executiva), Claudio Botelho (versão brasileira) e a todos os demais que integraram esta brilhante equipe.

UM VIOLINISTA NO TELHADO - Texto de Scholem Aleichem. Direção de Charles Möeller. Com José Mayer, Soraya Ravenle e grande elenco. Oi Casa Grande. Ver dias e horários nos veículos especializados. 

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA


"Autopeças 2 - Peças de encaixar"

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Faltou encaixe


Lionel Fischer


"Comédia, thriller psicológico, fábula, humor ácido e drama são os elementos que compõem o espetáculo. Dirigido por Cesar Augusto e Susana Ribeiro, o projeto reúne seis peças incompletas que são 'encaixadas' durante a encenação. 'Autopeças' é o resultado de uma oficina de dramaturgia realizada pela Cia. dos Atores que buscou novos talentos nas diversas áreas que um espetáculo de teatro comporta. Entre os envolvidos estão atores, autores, diretores e técnicos".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, resume uma proposta absolutamente válida, ainda que seu resultado seja um tanto confuso. Aliás, a confusão já começa no número de peças: no programa constam sete, no release, oito; em qual deles devo me basear?

Enfim, vamos aos textos - e aqui priorizo o aspecto quantitativo, temendo cometer uma imperdoável omissão: "Papo de mineiro" (Susana Nascimento e Raquel Alvarenga), "Tem um fantasma atrás de mim" (Suzana Nascimento), "Marcel e Marceau" (Diogo Liberano), "Tatu" (Monica Solon e Jaderson Fialho), "Primeiro eu" (João Rodrigo Ostrower), "Aquilo que fica" (Alexandre Rudáh), "Ponto de escuta" (Alexandre Pinheiro e José Caminha) e "BIZIU: Eu quase te amei de verdade" (José Caminha).

Em cartaz no Espaço Sesc, "Autopeças 2 - Peças de encaixar" tem direção assinada por Cesar Augusto e Susana Ribeiro, codireção de Diogo Liberano, Bel Garcia atua como dramaturg, estando o elenco formado por Ana Abbot, João Rodrigo Ostrower, Jonas Gadelha, Mariana Nunes, Susana Nascimento, Tracy Segal, Raquel Karro, Raquel Alvarenga, Eduardo Almeida, Átila Calache e Alex Pinheiro.

Como dito no segundo parágrafo, acho absolutamente válida a iniciativa da Cia. dos Atores de ministrar uma oficina de dramaturgia, posto que se trata de um dos melhores grupos cariocas, composto por excelentes profissionais com vasta experiência e  inúmeras e mais do que merecidas premiações. No entanto, e como também registrado no mencionado parágrafo, achei o resultado muito confuso. 

Como anunciado, as peças são incompletas, mas até aí nada demais, pois poderíamos encará-las como esboços de textos a serem posteriormente desenvolvidos. A questão crucial se resume ao tal "encaixe". Imaginei que, graças a um elaborado trabalho final de dramaturgia, a incompletude (acho que essa palavra não existe, mas serve ao que pretendo dizer) de cada texto seria, numa certa medida, prenchida pela incompletude do texto seguinte, e assim sucessivamente, o que acbaria conferindo ao todo uma certa unidade. Mas não foi essa a impressão que tive. No entanto, criar uma unidade talvez não tenha passado pela cabeça dos idealizadores do projeto. Enfim...

Seja como for, ao menos parte do material dramatúrgico evidencia qualidades e sua materialização cênica não deixa de exibir passagens muito criativas. Além disso, estamos diante de jovens profissionais de evidente talento que, numa próxima ocasião, tentarei avaliar a partir de bases mais sólidas.

No tocante à equipe técnica, Bia Junqueira assina uma cenografia despojada e criativa, a mesma criatividade presente na iluminação de Paulo César Medeiros, nos figurinos de Patrícia Muniz, na direção de movimento de Raquel Karro, na trilha sonora de Rodrigo Marçal e na programação visual de Radiográfico (uma empresa, ao que suponho, pois não consigo imaginar alguém que atenda por um nome como este).

AUTOPEÇAS 2 - PEÇAS DE ENCAIXAR - Textos de vários autores. Com Ana Abbot, João Rodrigo e grande elenco. Espaço Sesc. Quarta a sábado, 21h. Domingo, 19h30. 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Bartleby, o escriturário"

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Montagem imperdível na Laura


Lionel Fischer


Além de poeta e ensaísta, o norte-americano Herman Melville (1819-1891) escreveu onze romances - dentre eles o extraordinário "Moby-Dick" - e seis contos, sendo "Bartleby, o escriturário", um dos mais instigantes. Narrado na primeira pessoa por um advogado e ambientado em seu escritório, este funciona com monótona eficiência, com apenas três funcionários: dois copistas e um office-boy. No entanto, a placidez de tal rotina é quebrada a partir do momento em que é contratado um novo funcionário, Bartleby, que a tudo responde com um enigmático "prefiro não". 

Mais recente produção da Cia. Dramática de Comédia, "Bartleby, o escriturário" (Casa de Cultura Laura Alvim) chega à cena com adaptação e direção de João Batista e elenco formado por Gustavo Falcão (Bartleby), Duda Mamberti (Advogado), Claudio Gabriel (Turkey, alcoólatra que trabalha bem até o meio-dia, tornando-se a partir daí extremamente mal humorado), Eduardo Rieche (Nippers, que padece de indigestão crônica, irritado pela manhã e mais calmo à tarde) e Rafael Leal (Ginger Nut, office-boy cujo nome deriva dos bolinhos que busca para o patrão).

Em função de seu caráter profundamente enigmático, a presente obra já mereceu ensaios de renomados pesquisadores e pensadores, cabendo ressaltar a discrepância de seus pontos de vista. Isto, por um lado, só depõe a favor do conto, já que permite múltiplas leituras. E por outro evidencia a impossibilidade de se desvendar os reais objetivos de Melville ao escrever a obra.

De minha parte, o que mais me impressiona no texto é a devastadora e enigmática capacidade de transformação gerada por algo que poderia definir como "potência de uma resistência passiva". Mas certamente cada espectador encarará a obra de um ponto de vista particular. No entanto, se tentar "entendê-la", "explicá-la" ou algo no gênero, muito provavelmente estará criando para si mesmo uma cilada para a qual não encontrará uma saída.

Quanto ao espetáculo, a direção de João Batista exibe muitos méritos, a começar pela sensação de estranheza que gera no espectador e que só faz progredir ao longo da montagem. A perplexidade do narrador acaba sendo a nossa e, como ele, tentamos inutilmente decifrar o comportamento enigmático do estranhíssimo funcionário. Valendo-se de marcas imprevistas e criativas, afora uma notável capacidade de trabalhar os tempos rítmicos, o encenador consegue materializar na cena a atmosfera inquietante e claustrofóbica do conto.

Afora isto, João Batista extrai atuações irrepreensíveis de todo elenco. Na pele do Advogado, Duda Mamberti exibe a mesma competência tanto nas partes narradas quanto naquelas em que participa das cenas, dosando com precisão a progressiva perplexidade do personagem. Vivendo Bartleby, Gustavo Falcão valoriza ao extremo o caráter ambígüo do papel, cabendo destacar seu admirável trabalho corporal. E também cumpre destacar as seguras participações de Claudio Gabriel, Eduardo Rieche e Rafael Leal, ainda que em personagens com menores oportunidades.

No tocante à equipe técnica, Doris Rollenberg assina uma cenografia deslumbrante, com matizes expressionistas, que muito contribuem para acentuar a "deformação" de uma realidade graças ao desequilíbrio a ela imposta pelo estranho comportamento do novo funcionário. Igualmente notável a iluminação de Renato Machado, plena de contrastes de luz e sombra, inquietante na valorização de alguns detalhes, determinante para o fortalecimento da indispensável estranheza que é a tônica da montagem. Mauro Leite responde por figurinos em total consonância com a época e a personalidade dos personagens, cabendo ainda destacar a instigante música original de Marcelo Alonso Neves e a direção de movimento de Dani Cavanellas.    

BARTLEBY, O ESCRITURÁRIO - Texto de Herman Melville. Direção e adaptação de João Batista. Com a Cia. Dramática de Comédia. Casa de Cultura Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. domingo, 19h.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Diários do paraíso"

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Bom enredo gera morno resultado


Lionel Fischer


"A peça conta a história de Ted Klein, um renomado escritor e professor americano que, perto dos 80 anos, sai de Nova York para morar nos arredores do que sobrou do seringal que viu nascer e da cidade construída por seus compatriotas à beira do rio Tapajós, onde, quando jovem, viveu uma trágica paixão pela sua bela e proibida prima. Neste ambiente o escritor vive uma intensa relação de trabalho, companheirismo e crescente afeto por sua jovem assistente Laura, que o ajuda a escrever seu novo e biográfico livro, ao mesmo tempo que invoca figuras e situações de sua juventude, através de suas memórias afetivas e lembranças familiares, trazidas por três diários que ele, a irmã Stella, e a prima Chava teriam escrito quando adolescentes".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume os principais fatos que compõem a narrativa de "Diários do paraíso", de Caio de Andrade, também responsável pela direção do espetáculo. Em cartaz na Sala Marília Pêra do Teatro do Leblon, a montagem tem elenco formado por Jaime Leibovitch (ator convidado) e pelos integrantes do Grupo 4 Pontas - Fernanda Thuran, Klaís Bicalho, Monique Deboutteville e Ray Lucas.

Sempre que me perguntam se acho vital que um dramaturgo parta  de uma boa idéia para que seu texto resulte interessante, minha resposta é sempre a mesma: não. E cito como exemplo a melhor peça já escrita: "Hamlet". Se reduzida à sua essência, "Hamlet" conta a história de um príncipe que, informado pelo fantasma do pai de que este fora assassinado pelo irmão, com a cumplicidade de sua mãe, passa cinco atos acossado por dúvidas, até finalmente consumar sua vingança. Pois bem: trata-se de uma idéia genial? Obviamente que não. Ocorre que, nas mãos do fabuloso bardo, os temas que aborda e as questões que levanta sobre a natureza humana atingem o sublime.

No presente caso, estamos diante de um enredo com grande potencial, em princípio capaz de gerar um texto de  qualidade. No entanto, não é exatamente o que acontece. Autor de peças que muito aprecio, como "Trindade", "Os olhos verdes do ciúme" e, mais recentemente, a trágica e dilacerada "Rockantygona", aqui Caio de Andrade cria um texto que, em minha opinião - e como qualquer opinião, sujeita a todos os enganos - padece sobretudo de maiores alternâncias no que tange aos climas emocionais e também no tocante aos conflitos, quase sempre muito suavisados ou apenas evocados.

"Diários do Paraíso" não é um mau texto, já que exibe diálogos não isentos de interesse e personagens bem estruturados. Mas jamais ultrapassa os limites da correção, o que é muito pouco em se tratando de Caio de Andrade. E a mesma correção se faz presente na direção e no trabalho do elenco, que também atua numa chave interpretativa que jamais ultrapassa a zona de conforto - e, cumpre registrar, o elenco é capitaneado pelo excelente Jaime Leibovitch, com vasta e significativa contribuição à arte de representar.

No tocante à equipe técnica, Sérgio Marimba assina uma cenografia que atende a todas as necessidades da montagem, o mesmo aplicando-se aos figurinos de Antônio Medeiros, à iluminação de Tomás Ribas e à trilha sonora de Felipe Storino.

DIÁRIOS DO PARAÍSO - Texto e direção de Caio de Andrade. Uma realização do Grupo 4 Pontas. Com Jaime Leibovitch (ator convidado), Fernanda Thuran, Klaís Bicalho, Monique Deboutteville e Ray Lucas. teatro do Leblon. Terça e quarta, 21h.



  

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cenas para Estudo

O Despertar da Primavera

Frank Wedkind


Sra. Bergman - O médico garantiu que os vômitos vão passar e que também aos poucos a mocinha vai poder sair da cama...Eu quero tanto que você saia logo daí, menina...

Wendla - Mamãe, o médico disse mais alguma coisa?

Sra. Bergman - Não disse mais nada. Disse que a filha da Baroneza von Witziaben também sofria muitos desmaios...É sintoma de anemia!

Wendla - Ele disse que eu estou com anemia, mamãe?

Sra. Bergman - Você precisa tomar leite, comer carne e muitas verduras e legumes...

Wendla - Mamãe! Acho que eu não estou com anemia!

Sra. Bergman - Minha filha, você está com anemia, sim senhora! Wendla, fique quietinha, você está com anemia...

Wendla - Não, mamãe, não estou! Eu sei que não estou!

Sra. Bergman - A senhora está com anemia! O doutor von Braunsenpulve me disse que você está com anemia! Ele é um médico! Meu amor, fique quietinha, você vai melhorar!

Wendla - Mamãe, eu estou com barriga d'água! Mamãe, eu vou morrer!

Sra. Bergman - Você não vai morrer, minha filha! Você não vai morrer!

Wendla - Então por que a senhora está chorando?

Sra. Bergman - Você não vai morrer, minha filha! Wendla, você está esperando um filho!...Ah! Por que você foi me fazer uma coisa dessas, minha filha?

Wendla - Eu não te fiz nada!

Sra. Bergman - E ainda vai negar, Wendla? Eu sei de tudo! Eu sei, mas não tenho coragem de falar...Wendla, minha filha!...Wendla!

Wendla - Não pode ser, mamãe, eu não sou casada!

Sra. Bergman - Por isso mesmo, minha Santa Nossa Senhora! Você não é casada! Wendla, Wendla, minha filha, Wendla, o que é que você foi fazer?

Wendla - Não sei, mamãe! Deus sabe que eu não sei! Nós estávamos deitados no feno...Nunca eu amei outra pessoa no mundo que não fosse a senhora, mamãe!

Sra. Bergman - Meu tesouro!

Wendla - Por que a senhora não me disse nada antes, mamãe?

Sra. Bergman - Minha filha, não vamos complicar mais as coisas! Fique quietinha e confie em sua mãe. Como eu poderia dizer uma coisa dessas a uma menina de quatorze anos! Seria o fim do mundo! Se o Sol apagasse eu até poderia acreditar, mas acreditar no que aconteceu, aí, eu não acredito! Eu te eduquei como minha mãe fez comigo! Agora nós temos, mais que nunca, confiar em Deus! Na sua fé misericordiosa, e fazer o que é preciso! Minha filha, chorar não adianta mais. Se agora nós tivermos coragem não vai acontecer nada! Wendla, coragem! Por que você está tremendo tanto?

Wendla - Tem alguém na porta!

Sra. Bergman - Eu não ouvi nada, meu amor.

Wendla - Eu ouvi! Ouvi, sim! Quem está aí?

Sra. Bergman - Ninguém...Ah, é a senhora Schmidt! Meu deus, ela veio! Wendla, coragem! Agora você vai...Bem, eu vou abrir a porta! Bom dia, Dona Schmnidt, pode entrar! A senhora chegou na hora certa! Vamos entrando.
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Perdoa-me por me traíres

Nelson Rodrigues


Glorinha - Fala.

Nair - Você sempre não disse que a achava a morte de sua mãe linda? Não disse?

Glorinha - Disse.

Nair - Você se fartou de dizer, no colégio, que achava sem classe nenhuma essas mortes por doença, velhice ou desastre. Você queria morrer assim como sua mãe: moça, bonita, tomando veneno. Minto? Responde!

Glorinha - É isso mesmo!

Nair - Terias coragem?

Glorinha - De quê?

Nair - De morrer como tua mãe? Mas comigo, em minha companhia, nós duas abraçadas?

Glorinha - Morrer contigo?

Nair - Não achas legal um pacto de morte? É fogo, minha filha, fogo! Eu morreria agora, neste minuto se...Porque eu não queria morrer sozinha, nunca! O que mete medo na morte é que cada um morre só, não é? Tão só! É preciso alguém para morrer conosco, alguém! Te juro que não teria medo de nada se tu morresses comigo!

Glorinha - Não!

Nair - Eu não precisaria tirar o filho, não precisaria fazer a raspagem. E até já imaginei tudo, vê só: a gente entra num cinema e, lá, no meio da fita, toma veneno, ao mesmo tempo. E quando acenderem a luz, nós duas mortas...Estão levando um filme de Gregory Peck...

Glorinha - De Gregory Peck? Que ótimo!

Nair - Queres? Tua mãe não se matou?

Glorinha - Tenho medo!

Nair - Tens medo de tudo!

Glorinha - De tudo! Eu queria ir à casa de Madame Luba e te digo: tomei um banho caprichado, perfumei o corpo, me ajeitei toda e, na hora, fiz aquela vergonheira...E quando estou namorando - vem o medo outra vez...Medo não sei de quê...

Nair - De teu tio, ora!

Glorinha - Do meu tio? Sim, do meu tio!

Nair - Ou não é?

Glorinha - Tenho mais medo do meu tio do que da morte. É ele que me impede de morrer contigo, no cinema...Na Madame Luba só pensava nele...

Nair - Se eu fosse tu só dormia trancada a chave, por causa do teu tio!

Glorinha - Já vou!

Nair - Não vai, não senhora! Fica comigo, vai ao médico comigo!

Glorinha - E a hora?

Nair - É cedo!

Glorinha - Tarde. E, além disso, eu não posso ver sangue!

Nair - Ou você pensa que eu vou sozinha a esse médico? Tenho medo da dor e posso morrer, não posso? Dizem que o perigo é a perfuração, o perigo. Oh, meu Deus! Te chamei para morrer comigo e não quiseste! Pelo menos isso, não custa. Quero ter alguém comigo, alguém segurando a minha mão! E se eu morrer, quero que tu me beijes, apenas isso: quero ser beijada; um beijo sem maldade, mas que seja beijo!

Glorinha - Irei contigo! Te levarei!
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terça-feira, 17 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Baby, o musical"

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Doces agruras da gravidez


Lionel Fischer


"Três casais tem diferentes reações quando descobrem que esperam uma criança. Elisa e Dani são jovens universitários que acabam de se mudar para morarem juntos. Já a professora de Educação Física Pamela e seu marido, Nico, um instrutor de esportes, tem problemas para engravidar. E, por último, Arlene, que já é mãe de três filhas adolescentes, fica insegura quanto ao que fazer quando descobre que terá um bebê. Enquanto o marido, Alan, vibra com a chegada do novo herdeiro, ela pensa em fazer um aborto. As experiências emocionais das grávidas, os estresses típicos dos relacionamentos e as situações cômicas pelas quais passam as futuras mamães são os temas que compõem o antes e o durante das gestações".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o enredo de "Baby, o musical", que acaba de entrar em cartaz no Teatro João Caetano. Baseado na história desenvolvida por Susan Yankowitz, o texto leva a assinatura de Sybille Pearson, David Shire responde pelas músicas, Richard Naltby Jr. pelas letras, tendo as mesmas sido traduzidas e adaptadas por Flávio Marinho e Tadeu Aguiar. Richard Maltby Jr. dirigiu a montagem na Broadway e Fred Hanson a presente versão.

No elenco, Tadeu Aguiar (Alan), Sylvia Massari (Arlene), Amanda Acosta (Pamela), André Dias (Nico), Daíra Saboya (Elisa) - a atriz substituiu Sabrina Korgut na estreia -, Olavo Cavalheiro (Dani), com os demais atores desdobrando-se em vários papéis - Adriana Quadros, André Salles, Carol Futuro, Chris Penna, Flávia Rinaldi, Helga Nemeczyk, Maria Netto, Otávio Zobaran, Pedro Henrique Lopes, Sergio Somene e Victor Maia. 

E por tratar-se de um musical com música ao vivo, julgo indispensável citar os nomes de Liliane Secco (direção musical e regência), Maico Lopes (trompete), André Amaral (teclado), Carlos Henrique (bateria), Marco Moreira "Chiquinho"/Oswaldo Lessa (sax tenor, clarineta e flauta), Levi Chaves/Nocchi (sax alto, clarineta, flauta e picolo), Geovane Desiderio/Thiago Gonçalves (trompete), Marcelo Farias "Mef" (piano), Priscila Viana (trompa), Roberto Silva (trombone) e Tássio Ramos/Meco Dutra (baixo elétrico).

Findo este brevíssimo intróito...vamos ao espetáculo. Com relação ao texto, este certamente foi concebido para agradar a espectadores de todas as idades, posto que os temas são abordados de forma a evitar qualquer possibilidade de exacerbação dos conflitos em jogo. Trata-se, sem dúvida, de um espetáculo para toda a família e neste sentido cumpre perfeitamente sua finalidade.

No tocante à direção, esta exibe aquela precisão típica das montagens da Broadway, em que tudo funciona perfeitamente, mas neste caso sem maiores rasgos de criatividade. Com relação às dezenove canções que integram a montagem, estas são, em sua maioria, bastante agradáveis, mas poucas geram um arrebatamento maior, ainda que cantadas de forma irrepreensível por todo o elenco, cabendo registrar a eficiência interpretativa de todos os profisisonais que estão em cena, tanto nas passagens mais românticas quanto naquelas em que o humor predomina.

Com relação à equipe técnica, são irrepreensíveis os figurinos de Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo, os adereços de Derô Martin, a cenografia de Edward Monteiro, a iluminação de Rogério Wiltgen, a preparação vocal de Ângela de Castro, a coreografia de Kátia Barros, a direção musical e regência de Liliane Secco e as ótimas versões de Flávio Marinho e Tadeu Aguiar, cabendo ainda mencionar a excelência dos músicos. Cumpre também registrar as impecáveis participações de Norma Thiré (coordenação de produção), Lilian Bertin (produção executiva), Cláudia Xavier (programação visual) e o ótimo release a cargo de Ivone Kassu.

BABY, O MUSICAL - Texto de Sybille Pearson. Música de David Shire. Letras de Richard Maltby Jr. Direção de Fred Hansom. Com Tadeu Aguiar, Sylvia Massari, Amanda Acosta, André Dias, Olavo Cavalheiro, Daíra Saboya e grande elenco. Teatro João Caetano. Quinta a sábado, 20h. Domingo, 18h

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A Rafael Burgath

Amigo: li sua postagem e a correção já está feita na crítica de "Hell". Mais uma vez, parabéns pelo seu profissionalismo. (LF)
Jacques Lecoq

Lúcia Romano


           Lecoq foi ator, professor de educação física, reeducação corporal e movimento para o teatro, diretor de movimento, com Strehler, Grassi e Jean Villar, e pesquisador na Escola de Arquitetura, em Paris (U.P6, em 1969). Quando fundou em 1956 a École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, em Paris, voltada para o estudo da intepretação a partir da observação da vida cotidiana e da natureza do movimento e ritmos do corpo, Lecoq já acumulava uma trajetória significativa.

          Para Jacqueline Robinson, seu caráter de pesquisador foi marcado em definitivo pelos oitos anos em que viveu e trabalhou na Itália, culminando na experiência junto ao Piccolo Teatro de Milano. Na Itália, Lecoq descobriu as máscaras da commedia dell'arte, os princípios de Copeau - do palco nu, onde o ator, inspirado pelo germe do texto, pode encontrar espaço para o exercício da sua imaginação - e o coro grego.

          Com um rigor maior do que Gaulier no que tange à qualidade e à formalização do movimento, quanto ao treino do ator, considera como central a construção de uma expressividade baseada no domínio da fisicalidade do gesto; construção que se fundamenta na redescoberta das tradições teatrais, como a commedia dell'arte e a tragédia grega. A mímica corpórea é o treino que aviabiliza o desenvolvimento da precisão e da consciência do movimento; mas o ator deve superar os limites expressivos da mímica e buscar suas próprias ferramentas.

          O curso na École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq é dividido em dois anos. No primeiro ano, o programa prepara o vocabulário técnico do ator (voz e movimento), relacionando a observação da natureza e seus elementos - plantas, animais, cores, materiais, aspectos da vida cotidiana, obras de arte literárias, musicais e visuais - à expressividade no teatro. São desenvolvidos trabalhos com objetos, estruturas móveis, máscaras (neutra e expressiva) e acrobacia.

           No segundo ano, alguns alunos são convidados a continuar a formação, cuja ênfase recai sobre o trabalho coletivo e o processo de criação, tomando como vocabulário e estímulo para a imaginação diferentes estilos da tradição teatral - commedia dell'arte, tragédia grega, melodrama e bufonaria, entre outros.

          O treinamento de mímica na escola de Lecoq segue a tradição de Etienne Decroux, que concebeu uma nova visão para a expressividade do corpo, influenciando fortemente todo o teatro corporal. Nascido em 1898, ele estudou no Vieux Colombier com Copeau (onde aprendeu o trabalho com máscaras) e integrou o grupo do Atellier por dez anos, com Dullin, que o impulsionou na pesquisa de "jogo corporal" (pesquisa que já desenvolvia anteriormente, ao lado de Dorcy).

          Barault foi seu companheiro na busca de uma nova mímica, que frutificou em peças sem palavras, aulas e conferências. Nos anos de 1950, ministrou cursos no Actor's Studio, em Nova York, e no Piccolo Teatro de Milano, cessando as atividades pedagógicas em 1986, já com 86 anos.

          Decroux chegou a lamentar ter denominado seu método de mímica corpórea, "pois mímica evoca a pantomima, ao passo que o jogo corporal é muito mais amplo em suas implicações". Para ele, a pantomima, voltada para a narração de uma história por meio de gestos, diferencia-se do mimo - mais aberto às explorações poéticas do movimento, mas ainda seria uma tentativa inficiente de comunicação.

           Patrice Pavis observa que a intenção de Decroux foi construir um mimo corporal à maneira de Copeau, diverso tanto do mimodrama de Marcel Marceau quanto do mimo dançado do ballet clássico. A pesquisa que desenvolveu caracterizou-se enfim pelo rigor na observação, classificação, separação e codificação - obtida pela condensação, oferecendo seu resumo no tempo e no espaço - do movimento corporal.

          Sua busca perfeccionista pelos princípios geométricos do movimento humano, realizada em nome da expressividade essencial do corpo do ator, não considerou apenas os movimentos, mas também a respiração, a elocução e a voz. Por causa desse rigor, Decroux é tido por Eugenio Barba (Grupo Odin) como um dos poucos mestres no ocidente que constituíram um treinamento comparável às tradições orientais.

          Seu foco restrito nas bases do movimento humano permitiu alcançar o essencial para a geração do corpo cênico ficcional. Para Barba, Decroux conseguiu sistematizar os fundamentos do treinamento corporal do ator, que residem na criação do equilíbrio extracotidiano, na dança das oposições, no destaque para o papel do tronco (centro do corpo) para a concentração da energia do movimento e no princípio da substituição, operando não pela imitação direta, mas pela recriação do real por equivalência.

           Decroux formou muitos artistas na mímica corpórea, responsáveis pelos destinos diversos de seus princípios. Seu filho Maximilien - que mais tarde tornou-se professor na escola de Marcel Marceau, outro aluno de Decroux - e a dupla Soum e Wasson - dois dos últimos assistentes de Decroux, criadores do grupo Théâtre de l'Ange Fou - exemplificam duas das vertentes surgidas a partir do legado do mestre, que são a mímica "pura" e a mímica corpórea em cruzamento com as formas do espetáculo teatral.

          Em decorrência do fértil campo de influências que gerou, considera-se o valor de Decroux não na invenção de uma técnica, mas na constituição de uma abordagem cinésica do fenômeno teatral, o que cumpre a missão muito mais abrangente de investigar no teatro a "comunicação pelo gesto e pela expressão facial".

          Deidre Sklar vê na figura de Prometeu a síntese da estética, técnica física e visão de mundo do mestre da mímica corpórea. O personagem do mito grego simboliza a condição humana, nos aspectos do sofrimento, do esforço, da rebeldia, da autocriação e do predomínio do artifício racional sobre a natureza. O ator de Decroux, como Prometeu, almeja a ação transformadora e não teme o preço de sua escolha.

          Lecoq conheceu o trabalho de Decroux e teve contato com fontes semelhantes às dele, no período de trabalho na Itália e nos anos de aprendizado e criação na França. Investigando o mesmo universo que o mestre da mímica corpórea, no que diz respeito à geração no palco da presença (o aqui/agora material) do corpo do ator, por meio do emprego de signos não convencionais, Lecoq colaborou para a expansão das fronteiras da mímica. John Daniel ressalta que isso ocorre também porque seu método enfatiza a inspiração nascida do contexto social, ao invés da busca pela perfeição do movimento apenas no treino solitário do artista.

          A superação dos limites da mímica, em favor do livre emprego da imaginação e da expressividade do ator, propostas por Lecoq, foi relevante não só para a mímica, mas principalmente para o teatro. De acordo com o mestre, o que caracteriza a mímica e melhor exprime suas potencialidades comunicativas e artísticas não é a ausência de textos falados, mas a geração de um corpo expressivo que emprega o visual e o sonoro, numa revalorização do silêncio e do som: o visual é meio e não fim para o estabelecimento da presença expressiva do ator.

           Também as máscaras, tanto nas tragédias e comédias gregas como na comédia italiana, auxiliam essa presença, porque implicam na reestruturação da exprssão do som e do corpo. "Não há conflito entre a palavra e o silêncio; o silêncio dá à palavra sua profundidade. Um discurso que ignorasse a qualidade do silêncio não passaria de verborragia".

          No ensino da École Jacques Lecoq, muitas premissas do Teatro Físico estão presentes: são exemplares a estilização como recurso natural da linguagem do movimento e da cena; o emprego da improvisação; o resgate de formas populares como o melodrama e o clown; o emprego da mímica (com ou sem o acompanhamento do texto falado); a contraposição do estilo do bufão à personagem psicológica; a fusão de estilos; a ênfase no processo de criação e a aposta no processo colaborativo - desde 1968, os alunos praticam autocours, quando novamente trabalham as improvisações feitas em aula e desenvolvem em conjunto os aspectos técnicos e artísticos da performance.

           O fundamental, entretanto, está na ampliação da função do ator, convertido em criador do espetáculo e não apenas intérprete de um papel: quando a autoria da obra é democratizada, o ator-intérprete é substituído pelo ator-criador, um ator consciente de suas ferramentas expressivas, treinado na linguagem do teatro corporal e maduro para capitanear o processo criativo. O corpo do ator-criador, recriando-se na relação com o espaço, espelha as estruturas do drama, a construção arquitetônica do fenômeno teatral que ele faz efetivar.

           A influência de Lecoq é marcante não pela determinação de um modelo de espetáculo, mas na intenção criativa que impulsiona os espetáculos e dá unidade à diversidade de resultados do Teatro Físico. Os grupos assemelham-se na eleição de um processo criativo que reiventa as formas teatrais por meio da exploração do repertório expressivo do ator, nos seus aspectos gestual e vocal. Assim, cada artista ali formado pôde explorar a mímica e o teatro, em direção a um terreno que mistura as duas linguagens, oferecendo sua própria versão dos princípios de Lecoq.
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Extraído, e um pouco reduzido, de "O Teatro do Corpo Manifesto: Teatro Físico", Editora Perspectiva/2008.
Teatro/CRÍTICA

"Mulheres de Caio"

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Humor e angústia no Café Pequeno


Lionel Fischer


Se não me falha a memória, Caio Fernando Abreu foi "apresentado" ao Rio de Janeiro, em termos teatrais, em 1989 (ou 1990) com uma montagem belíssima, "Uma história de borboletas", protagonizada por Ricardo Blat e Gilberto Gawronski, este último grande amigo do autor e principal responsável pela divulgação de sua obra aqui.

A partir daí, inúmeras adaptações teatrais de seus escritos tem povoado os palcos da cidade e agora podemos apreciar a versão teatral de seus contos "O príncipe sapo", "Creme de alface", "Os sobreviventes" e "Dama da noite", reunidos sob o título "Mulheres de Caio".

Em cartaz no Teatro Municipal Café Pequeno, a montagem chega à cena com adaptação e direção assinadas por Delson Antunes, estando o elenco formado por Bruna Spinola, Carol Fazu, Larissa Sarmento, Linn Jardim, Patrícia Elizardo, Paula Guimarães e Rhavine Chrispim. 

Abordando com delicadeza e humor, e eventualmente com acidez, uma série de temas inerentes ao universo feminino (tendência ao romantismo, desejo de encontrar a felicidade na companhia de outro alguém, algumas frustrações e angústias decorrentes, sobretudo, da solidão etc.), o autor oferece ao público algumas facetas de sua diversificada criatividade, mesclando climas angustiantes com outros em que o humor predomina.

Com relação ao espetáculo, o diretor Delson Antunes procurou conferir unidade às quatro histórias, como se na verdade os contos em questão pudessem ser encarados como integrantes de uma mesma e única narrativa. Neste sentido, sua proposta merece ser considerada bem sucedida, pois a montagem flui sem cortes e quase sempre materializada através de marcas bastante expressivas, executadas com precisão e grande capacidade de entrega pelo 
elenco, composto de jovens profissionais com grande potencial. 

Na equipe técnica, são excelentes a cenografia e os figurinos assinados por Teca Fichinski, a mesma eficiência presente na expressiva iluminação de Luiz Paulo Nennén, na direção musical de Gomus Coletivo e na direção de movimento de Ana Bevilaqua. 

MULHERES DE CAIO - Texto de Caio Fernando Abreu. Direção de Delson Antunes. Com Bruna Spinola, Carol Fazu, Larissa Sarmento, Linn Jardim, Patrícia Elizardo, Paula Guimarães e Rhavine Chrispin. Teatro Café Pequeno. Sexta e sábado, 21h30. Domingo, 20h30.    

sábado, 14 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA

                                    "Hell"

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Amargo retrato de uma geração


Lionel Fischer


"Nós somos uma espécie de elétron sem núcleo. Temos um cartão de crédito no lugar do cérebro. Um aspirador no lugar do nariz, e nada no lugar do coração. Vamos às boates muito mais do que às  aulas. Temos mais casas do que amigos de verdade. Mas não temos o direito de nos queixar. Porque temos tudo para sermos felizes. Brincamos com a vida para fingir que a dominamos. Cheiramos pó em demasia. Beirando a overdose. Isso assusta os nossos pais que vêem seus genes de banqueiros se degenerarem. É inaceitável para eles. Tem uns que tentam fazer alguma coisa e outros desistem. Tem uns que nunca estão presentes mas que assinam o cheque no final do mês. Dão tanto para que a gente se foda por aí. E tão pouco do que realmente importa. E nós sempre acabamos sem saber o que importa. Morremos lentamente em nossos apartamentos grandes demais, fartos, estúpidos, entupidos de cocaína e antidepressivos...e um sorriso nos lábios..."

Este fragmento, extraído do programa oferecido ao público, foi escrito pela autora francesa Lolita Pille, nascida em 1982, e consta do livro "Hell", lançado em 2003 e que logo se tornou um fenômeno de vendas. Adaptado para o palco por Marco Antonio Braz e Hector Babenco, o texto chega à cena (Teatro dos Quatro) com direção de Babenco (codireção de Murilo Hauser) e elenco formado por Bárbara Paz e Paulo Azevedo.

Escrito a partir das vivências da autora, mas sem ser autobiográfico, "Hell" retrata o vazio de uma geração de jovens milionários parisienses que, por terem acesso a tudo que o dinheiro pode comprar, terminam por não encontrar um sentido para suas vidas, passando então a recorrer a drogas e a um frenesi sexual totalmente desprovido de afeto. E quando este aflora, ainda que muito raramente, os envolvidos não sabem como lidar com este "imprevisto", e o fracasso torna-se praticamente inevitável. 

Estruturado de forma confessional, a protagonista Hell quase sempre se dirige diretamente à platéia, ainda que ocasionalmente simule relacionar-se com outros personagens e efetivamente o faça apenas com Andrea, tão rico e desesperado quanto ela. Mas os dois jovens, ambos de 28 anos, estão completamente viciados em drogas, sexo ocasional e compulsão desenfreada por consumir tudo que o dinheiro pode comprar. Não têm projetos ou sonhos. Jamais exerceram seu potencial de doação e assim não conseguem materializar o único impulso sadio que talvez tenham tido em suas vidas: o ato de entregar-se ao verdadeiro amor. Andrea morre num acidente de carro - certamente provocado. E Hell, após um luto de alguns meses, retoma sua rotina desesperada, como se fosse um espectro a realizar orgias sobre a campa da própria sepultura.

Retrato amargo, ácido e ao mesmo tempo lúcido de uma geração que elegeu o desregramento como norma, "Hell" recebeu excelente versão cênica de Hector Babenco, que através de uma dinâmica sombria, claustrofóbica e angustiante, valoriza ao extremo todos os conteúdos propostos pelo autor. A única ressalva fica por conta do número excessivo de black-outs, que não raro contribuem para minimizar a exasperante pulsação da narrativa.

Com relação ao elenco, Bárbara Paz exibe performance admirável, vivendo com total entrega uma personagem ao mesmo tempo amarga e frágil, e cuja lucidez lhe permite tecer pertinentes reflexões sobre um universo em que o desespero e a desesperança são a tônica. Na pele de Andrea, e ainda que em participação menor, Paulo Azevedo também convence plenamente, conseguindo materializar na cena as principais características de seu personagem.

No tocante à equipe técnica, destaque absoluto para a soturna e precisa iluminação de Beto Bruel, que contribui de forma decisiva para acentuar a dramaticidade dos múltiplos climas emocionais em jogo. Igualmente irrepreensíveis a cenografia de Felipe Tassara, os figurinos de Renata Correa, a coordenação de movimento de Sandro Borelli, a consultoria corporal de Mary Cunha e a trilha sonora de Murilo Hauser, cabendo ainda destacar a precisa operação de luz de Rafael Burgath.

HELL - Texto de Lolita Pille. Direção de Hector Babenco. Com Bárbara Paz e Paulo Azevedo. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h. 

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Teatro/CRÍTICA

“Depois do filme”

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Ótima montagem inaugura o Poeirinha

Lionel Fischer

Antes de analisar o espetáculo em questão, julgo imprescindível reproduzir um delicioso fragmento do programa, no qual Aderbal Freire-Filho enumera 14 razões para “não escrever um texto para este programa”. Vamos a elas:
Já escrevi a peça/ Não tenho o que falar do elenco/ Pior ainda, não tenho elenco/ Quero vender um livro com o texto da peça, se o programa for grosso (o contrário de fino, não o contrário de bem educado) vou fazer concorrência a mim mesmo/ Não quero influenciar a leitura crítica (latu sensu) do espetáculo com o que poderia dizer no programa/ Meu pai falava de um vendedor de empadinha de camarão que não botava camarão nas empadas dizendo: doutor, uns gostam, outros não gostam, melhor não botar/ Uns lêem, outros não lêem, melhor não escrever/ Já escrevi tantos textos para programas, prefácios, posfácios, orelhas (de livros), contra-capas, que é melhor parar antes de virar o maior escritor menor de Ipanema/ Quando vejo um programa desprezado numa cadeira de teatro depois do espetáculo me digo: o pessoal da arte me cobrou tanto, virei uma noite para não perder o prazo, pra isso?/ Na Broadway não tem nada disso, basta o currículo de cada um e pronto, é muito mais informativo, o resto é frescura/ Até este momento o espetáculo não tem patrocinador (me inscrevi em oito editais, perdi em todos), não dá pra gastar papel/ Não tenho mais idade/ Não ganho pra isso/ Aliás, nesse espetáculo não ganhei para fazer nada/ Está na hora do ensaio.
Tendo como protagonista Ulisses, mesmo personagem interpretado por Aderbal no filme “Juventude”, de Domingos Oliveira, aqui o seguimos depois do filme, quando o personagem tem que se confrontar com a vida real. E esse embate revela-se profundamente doloroso, pois o protagonista tenta inutilmente resgatar sua juventude, administrar uma cabeça cheia de sonhos e um corpo que já não responde às suas vontades.
Curiosamente, mesmo sabendo que está sendo forçado a lidar com o real da vida, o personagem age como se estivesse fazendo um filme – ele detalha planos, relaciona-se com outros personagens (que ele mesmo encarna) reais ou fictícios, revisita lugares que freqüentou quando era jovem etc. Mas nada disso consegue aplacar sua progressiva angústia, fruto sobretudo da permanente alternância de ficção e realidade, que situa o personagem numa espécie de limbo existencial do qual não parece haver escapatória.
Eis, em resumo, o enredo de “Depois do filme”, que inaugura o Teatro  Poeirinha, anexo ao Teatro Poeira. Aderbal Freire-Filho assina o texto, a direção e dá vida ao único personagem.
Sendo Aderbal Freire-Filho um homem de teatro completo, na acepção máxima do termo – escreve, dirige, atua, dá cursos, traduz etc. – e, além disso, um artista absolutamente íntegro, fiel às suas convicções e inteiramente alheio a modismos, em nada me surpreende o excelente resultado aqui obtido. A partir de um texto que levanta questões da mais alta pertinência, de uma dinâmica cênica despojada, mas sempre expressiva, e de uma atuação marcada por comovente entrega, “Depois do filme” inaugura com êxito absoluto o charmoso Teatro Poeirinha, que certamente haverá de dar continuidade à excelente programação de seu “irmão mais velho”.

DEPOIS DO FILME – Texto, direção e atuação de Aderbal Freire-Filho. Teatro Poeirinha. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 19h.  

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cenas para Estudo

Vestido de Noiva

Nelson Rodrigues


Alaíde - Mas eu preciso da linha branca!

Mulher de Véu - Primeiro, vamos conversar! Linha branca!

Alaíde - Você vai querer discutir agora! Agora!

Mulher de Véu - Então! Por que não será agora? Que é que tem demais? Eu nunca falei, nunca disse nada, mas agora você tem que me ouvir!

Alaíde - Tem gente ouvindo! Fale baixo.

Mulher de Véu - Então você pensa que podia roubar o meu namorado e ficar por isso mesmo?

Alaíde - Você não vai fazer nada!

Mulher de Véu - Ah! Está com medo! Natural. Casamento até na porta da igreja se desmancha.

Alaíde - Mas o meu, não.

Mulher de Véu - O seu não, coitada! O seu, sim! Você não me desafie, Alaíde, não me desafie.

Alaíde - Então não fale nesse tom.

Mulher de Véu - Falo, falo - e se você duvida, faço um escândalo agora mesmo. Aqui, quer ver? Se eu disser uma coisa que eu sei. Uma coisa que nem você sabe!

Alaíde - O que é que você sabe?

Mulher de Véu - Se eu disser - Alaíde - duvido, e muito, que esse casamento se realize.

Alaíde - Mas o que foi que eu lhe fiz - diga? Para você estar assim?

Mulher de Veú - O que foi? Sua hipócrita!

Alaíde - Diga então o que foi!

Mulher de Véu - Quer dizer que não sabia que eu estava namorando Pedro?

Alaíde - Aquilo, "namoro"?! Um flirt, um flirt à toa!

Mulher de Véu - Você quer dizer a mim que foi flirt. Quer me convencer?

Alaíde - Foi.

Mulher de Véu - E aquele beijo que ele me deu no jardim também foi flirt?

Alaíde - Sei lá de beijo! Que beijo?

Mulher de Véu - Está vendo como você é? Viu tudo! Você apareceu no terraço e entrou logo. Mas viu!

Alaíde - Eu não admito que você venha recordar essas coisas! Ele é meu noivo!

Mulher de Véu - Viu ou não viu?

Alaíde - Não!

Mulher de Véu - Viu, sim!

Alaíde - Por que é que você não protestou antes? Por que não falou na hora?

Mulher de Véu - Porque não quis. Quis ver até onde você chegava. Esperei por este momento.

Alaíde - Mamãe deve estar estranhando.

Mulher de Véu - Não faz mal. Deixa! Se você não fosse o monstro que é.

Alaíde - E você presta, talvez?

Mulher de Véu - Pelo menos, nunca me casei com os seus namorados! Nunca fiz o que você fez comigo: tirar o único homem que eu amei! O único!

Alaíde - Não tenho nada com isso! Ele me preferiu a você - e pronto!

Mulher de Véu - Preferiu o quê? Você se aproveitou daquele mês que eu fiquei de cama, andou atrás dele, deu em cima. Uma vergonha!

Alaíde - Por que você não fez a mesma coisa?

Mulher de Véu - Eu estava doente!

Alaíde - Por que então não fez depois? Tenho nada que você não saiba conquistar ou...reconquistar um homem? Que não seja mais mulher - tenho?

Mulher de Véu - O que me faltou sempre foi o seu impudor.

Alaíde - E quem é que tem pudor quando gosta?

Mulçher de Véu - ...mas com Pedro você errou.

Alaíde - Vou me casar com ele daqui a uma hora, minha filha.

Mulher de Véu - Pois é por isso que eu estou dizendo que você errou. Porque vai casar!

Alaíde - Ah! é? Não sabia!

Mulher de Véu - Você roubou meus namorados. Mas eu vou lhe roubar o marido. Só isso!

Alaíde - Vá esperando!

Mulher de Véu - Você vai ver. Não é propriamente roubar.

Alaíde - Então está melhorando.

Mulher de Véu - Você pode morrer, minha filha. Todo mundo não morre?

Alaíde - Você quer dizer talvez que me mata?

Mulher de Véu - Quem sabe? Você acha que eu não posso matar você?

Alaíde - Você não teria coragem. Duvido!

Mulher de Véu - Talvez não tenha coragem para matar. Mas para isso tenho! (Esbofeteia Alaíde. Esta recua, levando a mão à face)

*     *     *

A lira dos vinte anos

Paulo César Coutinho


Ninon - Regina! Que bom você aparecer...

Regina - Que cheiro esquisito...que é isso?

Ninon - Jura que não conta pra ninguém?

Regina - Juro.

Ninon - Maconha.

Regina - Mas Ninon, que loucura!

Ninon - É mesmo, uma loucura...

Regina - E não faz mal?

Ninon - Que mal, isso é propaganda burguesa. Eles querem é vender tabaco, que dá câncer. Esse aqui, que faz bem pra acbeça, proíbem. Quer experimentar um pouquinho?

Regina - Agora não.

Ninon - Você está com uma cara...que que houve?

Regina - Nada.

Ninon - Hum, nada...Imagine, a doce espera acabou.

Regina - Não! Que legal, quero ver a cara do seu analista.

Ninon - Larguei a análise.

Regina - Agora você não precisa mais. Está feliz?

Ninon - Não, foi horrível.

Regina - Que pena, quem foi?

Ninon - Bruno.

Regina - Você é insistente, hein?

Ninon - Foi uma bebedeira. Estava todo mundo aqui em casa. Ficamos bebendo uísque, conversando, acabamos nos beijando. Mas ele estava bêbado, caiu por cima de mim, me arrancou a roupa, foi tudo bruto, depressa, sem palavras. Mas não tinha importância se ele ficasse comigo. Passei a noite sem dormir. No dia seguinte ele acordou nu do meu lado e vestiu de novo aquela máscara. Voltou do banheiro dizendo que isso não deve interferir na nossa prática. Na hora de ir embora nem me beijou, e ainda me chamou de companheira.

Regina - Eu disse a você que isso tem que acontecer, não se fabrica. Mas não fique assim, vai ter outras experiências, um encontro verdadeiro.

Ninon - Já perdi as esperanças. Passei não sei quanto tempo tomando pílulas, fazendo planos, sonhando com um príncipe revolucionário, e acabo sendo currada por um cossaco.

Regina - O que você não pode é começar a achar que todos os homens são uns bárbaros porque esse cara não foi capaz de te dar amor.

Ninon - E você, como vai com o Marcos?

Regina - Mal. Ele gosta de fazer coisas esquisitas na cama.

Ninon - Ah, é? O que, hein?

Regina - Gosta de apanhar.

Ninon - Ora, só isso? Que bobagem, lá no blube o pessoal contava cada história...Acho que você não devia complicar, as pessoas devem fazer o que gostam. É tão difícil assim?

Regina - Eu não consigo mais, estou cansada. Não desisto dele, nem de nada, mas não agënto mais. Ele é só uma criança desesperada, cheia de culpa, e eu tenho medo que ele vá embora. Fecho os punhos e o som que fazem nas costas dele é como um pedido de socorro na selva. Fico dizendo eu te amo, eu te amo, enquanto nego às minhas mãos o carinho que elas queriam fazer.

Ninon - E é você quem fala para acreditar nas amplas possibilidades do relacionamento humano...

Regina - É exatamente porque sofro na carne a impossibilidade, que tenho certeza de que existe uma outra forma, de que nós estamos mutilados, tentamos nos entender com palavras e gestos que não chegam ao outro, não tocam. O que nós vivemos não é humano, Ninon, por isso é que há sempre essa dor funda do soco no peito.

Ninon - Eu só queria que a gente ainda tivesse tempo para amar...

Regina - Nós temos vinte anos, temos a vida pela frente. Nós ainda vamos amar, tenho certeza.

*     *     *

O Jardim das Cerejeiras

Anton Tchecov


Varya - Graças a Deus vocês chegaram. Estão em casa de novo! A minha queridinha chegou! A minha belezinha adorada está de volta!

Anya - Foi uma coisa horrível!

Varya - Eu bem posso imaginar.

Anya - Partimos na Semana Santa - estava um frio terrível, e o tempo todo Charlotte não parou de falar e de fazer mágicas e truques. Por que é que você achou que tinha de me fazer carregar Charlotte comigo?

Varya - Você não podia viajar sozinha, querida. Com dezessete anos!

Anya - Finalmente chegamos a Paris; e lá também estava frio - coberto de neve. Meu francês é abominável. Mamãe mora em um quinto andar, e quando cedo cheguei, lá estava cheio de franceses, umas senhoras, um padre velho que carregava um livro. Tudo cheirava a fumo, sem conforto nenhum. Me deu uma pena, eu de repente senti tanta pena de mamãe que me atirei no pescoço dela e fiquei abraçando, sem conseguir largar. Mamãe foi tão boa, como sempre, e chorou...

Varya - Não fale mais nisso, não fale mais nisso!

Anya - Ela tinha vendido a vila de Mentone, não tinha mais nada, mais nada. E eu também não tinha mais dinheiro nenhum, só o bastante para chegarmos até aqui. E mamãe não compreende! Quando jantávamos na estação, sempre pedia os pratos mais caros e ainda dava um rubo inteiro ao garçon! E Charlottge é igualzinha. E é claro que Yasha tem de ter tudo igual a nós; é terrível. Não sei se sabe que, agora, Yasha é criado pessoal da mamãe, e por isso teve de vir junto conosco.

Varya - Eu já vi aquele sem-vergonha.

Anya - Agora, me diga - você conseguiu pagar os atrasados da hipoteca?

Varya - E aonde é que ia conseguir dinheiro?

Anya - Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!

Varya - Em agosto a propriedade vai ser vendida.

Anya - Santo Deus!

Lopakhine (Surge na porta e muge como uma vaca) - Múúúú! (Desaparece)

Varya - Eu sei o que eu queria fazer com ele!

Anya - Varya, ele fez o pedido? Mas ele ama você. Por que vocês não se entendem direito? O que é que está esperando?

Varya - Eu acho que nunca vai haver nada entre nós. Ele tem tanto o que fazer...não tem tempo para mim...nem sabe que eu existo. Para falar a verdade, para mim é um tormento ficar sempre a vê-lo. Todos dizem que nós vamos nos casar, todos me dão parabéns, mas na verdade não existe nada; é tudo um sonho. Esse broche de abelha é novo.

Anya - Mamãe comprou. Sabe de uma coisa? Em Paris eu andei de balão!

Varya - Minha querida está em casa! Minha belezoca voltou para casa! O dia inteiro, querida, enquanto tomo conta da casa, fico sonhando o tempo todo. Se ao menos pudéssemos casar você com um homem rico, eu ia ficar mais tranqüila. Aí eu ia embora, sozinha, fazer uma peregrinação a Kiev, a Moscou...passava o resto da vida assim...de santuário em santuário...seguindo, seguindo...que felicidade!

Anya - Os passarinhos estão cantando no jardim. Que horas são?

Varya - Devem ser quase três. Está na hora de dormir, querida. Que felicidade!
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