sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Antes da coisa toda começar"

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Náufragos de si mesmos


Lionel Fischer


"Quando principia...o espectro de um ator começa a materializar suas lembranças corporificando a memória. Dessa corporificação, surgem três personagens que espelham as facetas do seu eu. São três personagens que enfrentam impasses decisivos diante da vida. Téo é um ator em crise que começa a se questionar sobre o sentido de seu ofício. Zoé é uma jovem que avança sem amarras sobre as belezas e abismos da paixão. Léa é uma cantora que tenta se recuperar de uma tentativa de suicídio mal sucedida. Três personagens atravessando processos distintos, entre os impasses da vida e os impasses da morte, seguindo na tentativa de não se acomodarem diante das regras do mundo".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o que de mais essencial ocorre no presente espetáculo, mas sem com isso esgotar as possibilidades de apreensão do mesmo. Em cartaz no Teatro III do CCBB, "Antes da coisa toda começar" é o décimo nono espetáculo da Armazém Companhia de Teatro, fundada há 22 anos. Escrita em parceria por Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes, cabendo a este último a direção, a peça chega à cena com elenco formado por Patrícia Selonk (Zoé), Thales Coutinho (Téo), Simone Mazzer (Léa), Ricardo Martins (Espectro/Rufus), Marcelo Guerra (Irmão de Zoé/ator bufão/ pai de Téo/enfermeiro), Simone Vianna (enfermeira/mulher 1/atendente/Katrina/puta/amiga2) e Verônica Rocha (irmã de Léa/Marcele/mulher 2/namoradeira/viúva/amiga1).

Exibindo uma estrutura fragmentária, o texto mostra, como me parece já ter ficado implícito, três histórias paralelas - as de Téo, Zoé e Léa, fruto das recordações do espectro. Mas isso não significa que o espectador não possa estabelecer conexões entre elas, a partir de sua própria subjetividade. E nada também o impede de se colocar na pele do espectro e imaginar serem suas as lembranças do personagem. Enfim, são muitas as variantes propostas pelo texto, no tocante ao olhar de quem o vê materializado na cena.

Quanto a mim, acho que as três histórias têm pelo menos algo em comum: a aterradora possibilidade da não concretização de desejos essenciais, o que geraria a igualmente aterradora tarefa de tentar lidar com impensáveis renúncias. Uma cantora que perde a voz, uma mulher que não consegue consumar sua paixão, um ator forçado a admitir sua falta de talento, são evidentemente situações trágicas e, portanto, imunes a soluções ditadas pela razão e pelo bom senso.

Assim, nada mais natural que se comportem como náufragos de si mesmos, como espectros a promover orgias sobre a campa das próprias sepulturas, como se todos fossem portadores de um tumor cerebral. O real da vida se afigura como intolerável e a dor de existir passa a ser a tônica. Neste sentido, seria ridículo que os personagens, com a lama até o pescoço, tentassem manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. Até porque talvez até mesmo os dedos já tenham desaparecido...

Enfim...esta é apenas uma opinião e, como toda opinião, sujeita a todos os enganos. Mas foi assim que me relacionei com este texto belíssimo, que aborda temas da maior pertinência, e que me provocou internamente o mesmo efeito que causaria à minha pele a incisão (sem anestesia) de um afiado bisturi. E com a seguinte agravante: um "ferimento" físico tem sempre a possibilidade de cicratizar; já aqueles que nos atingem a alma, aí a questão é bem mais complexa.

Com relação ao espetáculo, este talvez seja o mais belo e inquietante da atual temporada. Sendo Paulo de Moraes um encenador de exceção, nada mais natural que crie soluções tão criativas como imprevistas, frutos de uma imaginação que parece não ter limites. E nenhuma delas, cumpre registrar, ocorre de forma gratuita, como pueril reafirmação de um talento já há muito comprovado. Pelo contrário: todas as marcações, as pausas, a exploração das muitas alterações cenográficas, o universo gestual, os tempos rítmicos, a forma como os atores proferem o texto, enfim, tudo ocorre no sentido de conferir unidade a algo que, supostamente, deveria prescindir dela. Mas, como todos sabemos, uma das missões mais difíceis para um artista é organizar o caos. E neste quesito, Paulo de Moraes é um mestre.

No que se refere ao elenco, mais uma vez os atores da Armazém Companhia de Teatro imprimem sua marca registrada: vastos recursos expressivos, total entendimento do que estão realizando e uma notável capacidade de entrega. Assim, seria de certa forma injusto destacar uma ou mais atuações. Mas como a injustiça é inerente ao humano, torna-se impossível para mim não destacar as performances de Patrícia Selonk e Simone Mazzer, ainda que as demais também mereçam incontidos aplausos. Mas ver Patrícia e Simone em cena constitui, para mim, um privilégio difícil de ser descrito com palavras. A ambas, portanto, agradeço mais esta oportunidade que me proporcionaram de sair do teatro muito mais enriquecido do que quando nele entrei.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as maravilhosas contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta inesquecível empreitada teatral - Ricco Viana (direção musical), Paulo de Moraes e Carla Berri (cenografia), Maneco Quinderé (iluminação), Rita Murtinho (figurinos), Rico e Renato Vilarouca (projeções de vídeo), Ana Beviláqua (preparação corporal), Simone Mazzer (preparação vocal) e Alexandre de Castro (programação visual).

ANTES DA COISA TODA COMEÇAR - Texto de Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes. Direção de Paulo de Moraes. Com a Armazém Companhia de Teatro. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 20h.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"A garota do biquíni vermelho"

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Emocionado e divertido tributo


Lionel Fischer


Ela estrelou filmes como "Garotas e samba", "De vento em popa", "É um maior", "Esse milhão é meu", "Pintando o sete", "O cupim", "Cacareco vem aí" e "Assim era a Atlântida", dentre outros. Na televisão, encantou e divertiu o país vivendo a inesquecível Ofélia, ao lado de Lúcio Mauro (Fernandinho), no programa "Balança mas não cai". Ainda na TV Globo, participou de "Planeta dos homens", "Satiricom" e "Chico City", no qual deu vida a outra personagem adorada pelo público: Terta, mulher de Pantaleão (Chico Anysio). Já é o bastante para identificar de quem estou falando? Talvez não. Então, prossigamos um pouco mais.

Pelas mãos de Silvio de Abreu, que a dirigiu em "Elas são do baralho" e "A árvore dos sexos", ela volta à TV na novela "Jogo da vida". Na extinta TV Rio, atuou nos programas "Noites cariocas" e "Praça Onze". E em 1978, com "Revista do Henfil", ganha o Prêmio Mambembe de melhor atriz, tornando-se a única ex-vedete a receber tal premiação. E agora? Já deu para matar a charada? Talvez ainda não, ao menos para os mais jovens. E justamente por isso, dentre outras razões, o presente projeto assume uma dimensão oportuníssima, pois presta emocionado e divertido tributo a uma artista popular da maior relevância: Sonia Mamed.

Em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, "A garota do biquíni vermelho" leva a assinatura do jornalista Artur Xexéu, estando a direção a cargo de Marília Pêra, tendo o projeto sido idealizado por Eduardo Barata. No elenco, Regiane Alves (Sonia Mamed), Theresa Amayo (Dona Mercedes, mãe da protagonista), Karin Roepke (Dagmar Del Rio), Tatiana Pasquale, Ricca Barros (Narrador) e vários outros papéis, o mesmo ocorrendo com Ricardo Graça Mello, com ambos dando vida aos muitos homens com quem Sonia Mamed se relacionou. Manoel Francisco tem pequena partipação dançando um fragmento de "O corsário".

Sendo o Brasil um país que parece eternamente empenhado em relegar ao esquecimento artistas que marcaram época, o projeto em questão exibe mais este mérito: o de relembrar a importância que tiveram nomes como o de Sonia Mamed, falecida há 20 anos, e que fez enorme sucesso em todos os gêneros em que atuou, exibindo enorme versatilidade e um carisma que seduzia as mais diversificadas platéias.

Com relação ao texto, trata-se do primeiro escrito pelo jornalista Artur Xexéu, que tem como ponto de partida o seguinte: a artista está internada em um hospital, já à beira da morte, e então começa a recordar sua vida, sua carreira e seus muitos amores. Então o autor retorna no tempo e faculta ao público uma visão abrangente, divertida, humana e emocionada de Sonia Mamed. Mas é claro que, por ser um autor estreante, Xexéu ainda não domina completamente a carpintaria teatral, às vezes alongando um pouco algumas cenas, às vezes priorizando a informação em detrimento da ação. Mas tais detalhes em nada minimizam o alcance desta mais do que oportuna empreitada teatral.

No tocante ao espetáculo, senti falta de mais personagens em cena, ou talvez mais coristas nas passagens cantadas e dançadas. E essa carência se torna ainda mais evidente em função das dimensões do palco do Ginástico - em um espaço menor, tal carência seria menos gritante. Seja como for, Marília Pêra impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, conseguindo valorizá-lo ao máximo.

No que diz respeito ao elenco, Regiane Alves é uma figura encantadora no palco, mas talvez ainda possa explorar bem mais a malícia e sensualidade da homenageada, aqui materializadas de forma excessivamente ingênua. Theresa Amayo encarna bem a mãe eternamente preocupada com as atividades da filha, sendo que os demais intérpretes exibem desempenhos corretos, além da evidente alegria e emoção por estarem participando desta mais do que merecida homenagem.

Na equipe técnica, Kalma Murtinho responde por figurinos impecáveis, com Marcelo Marques assinando uma cenografia funcional, mas não muito expressiva. Tomás Ribas de Faria ilumina a cena de forma correta, a mesma correção presente na direção musical de Amora Pêra e Paula Leal, e na coreografia de Manoel Francisco, cuja participação dançando "O corsário" não cheguei a compreender.

A GAROTA DO BIQUÍNI VERMELHO - Texto de Artur Xexéu. Direção de Marília Pêra. Com Regiane Alves, Theresa Amayo e outros. Teatro Sesc Ginástico. Quarta a domingo, 19h.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Um enredo não é uma peça

Eric Bentley


A matéria-prima do enredo é vida, mas não a média sofrível da vida cotidiana em sua banalidade exterior; pelo contrário, os raros clímax das situações extremas da vida ou da existência cotidiana, em suas formas secretas, não inteiramente conscientes. A perspectiva que rejeite essas situações extremas é antidramática. O enredo é a ordenação desse material. Acarreta a aplicação de um princípio racional aos caos do irracional. Logo, qualquer enredo tem um caráter dualista: compõe-se de matéria violentamente irracional, mas a "composição" é em si racional, intelectual. O interesse num enredo - ainda o mais rudimentar - é interesse em ambos esses fatores e, talvez ainda mais, na sua interação mútua.

Somos renitentes em conceder a existência de um elemento intelectual nas novelas do rádio e da TV ou noutras formas de melodrama. É o reverso da nossa relutância em aceitar um elemento cruamente emocional na arte superior. Contudo, o elemento intelectual é muito restrito na arte inferior. Está apenas na escala do elemento intelectual dos jogos infantis. Entretanto, os jogos requerem verdadeira engenhosidade para a solução dos pequenos problemas que criam. Um enredo é como um tabuleiro de xadrez: seu desafio e atração, em parte considerável, são devidos ao amor ao engenho ou talento.

"Todos os homens desejam, por natureza, conhecer", diz Aristóteles. Numa história policial, desejamos descobrir "o assassino desconhecido" e, ao desejá-lo, somos filósofos. A emoção em causa é a ânsia de descobrir - chamamos-lhe a sede de conhecimentos quando aprovamos, investigação quando desaprovamos, e curiosidade quando somos neutros. Torno-me curioso quando me surpreendem e deixam a surpresa sem explicação. Fico sobre brasas até que me esclareçam. É sobre essas brasas que se cozinha o drama simples. A palavra é suspense. A expressão "enredo engenhoso" significa uma hábil manipulação da surpresa e do suspense. Contudo, nem todas as obras dramáticas são assinaladas pelo "enredo engenhoso" nesse sentido, e a maior parte dos dramas assim marcados é de segunda categoria. Se a finalidade em vista é um drama de primeira categoria, a finalidade em vista não é surpresa e suspense, não é enredo. A teoria de que é foi "derivada" de Aristóteles, mas à revelia de sua própria intenção.

Mesmo quando alude a estratagemas tais como Inversão e Reconhecimento, considerando-os "elementos poderosíssimos de interesse emocional", é evidente que Aristóteles tem em mente algo mais do que mera curiosidade. Ele prevê uma platéia que "estremece de horror e se entermece de piedade". Horror (o medo) e piedade são, evidentemente, as emoções citadas no mais famoso, se não, o mais lúcido pronunciamento de Aristóteles - quando afirma que a tragédia, através da compaixão e do medo, efetua "a própria catarse dessas emoções". Basta dizer, por enquanto, que, apesar de todas as interpretações variadas dessa afirmação, ninguém tentou até hoje reduzi-la a uma defesa do drama do mero "interesse" (ou curiosidade).

O que é um bom enredo? A pergunta é difícil de ser respondida porque o enredo não é bom em si mesmo, mas uma parte integrante de um padrão. Ao chamar ao enredo a "alma" da tragédia, Aristóteles está afirmando, talvez, que na sua opinião o enredo é o principal instrumento do dramaturgo, entre muitos outros. Se o drama é uma arte de situações extremas, o enredo é o meio pelo qual o dramaturgo nos leva a penetrar nessas situações e (se assim o desejar) a sair novamente delas.

O enredo é o processo pelo qual o dramaturgo cria as necessárias colisões - como um perverso agente de trânsito que orientasse os carros não para se cruzarem, mas para se chocarem uns nos outros. As colisões despertam curiosidade e podem ser combinadas de modo a criarem suspense. Por enquanto, dispomos de um sólido teatro de segunda ordem. Algumas das coisas que o enredo pode trazer para criar um teatro de primeira ordem foram sugeridas neste capítulo. Falta sugerir as contribuições que podem ser dadas para tal teatro pela personagem, pelo diálogo, pelo pensamento e pela representação.
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Extraído de "A experiência viva do teatro", Zahar Editores/1967, tradução de Álvaro Cabral.
Teatro/CRÍTICA

"O pintor"

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Protagonistas evitam martírio


Lionel Fischer


"Ao voltar de suas férias no exterior, Márcia descobre que o escritório de seu marido não foi pintado, como ela havia providenciado, e que o pintor, Walter, ainda está em sua casa. Quando ele está começando o trabalho, chega Jane, esposa do homem com quem Márcia está tendo um caso, disposta a contar tudo para o marido traído sobre a infidelidade da esposa. Márcia, à beira de um ataque de nervos, tem uma brilhante ideia: pedir ao pintor, na verdade um ator decadente, que passe por seu marido, enganando Jane. Walter leva seu papel de maneira muito séria e, no ensaio para a cena do fatídico encontro ele, muito envaidecido, gesticula exageradamente reproduzindo partes mal decoradas de trechos de peças famosas, como 'Othelo' e 'Vidas privadas', e ataca Márcia rudemente sempre que ela o critica. Finalmente a tentativa do flagra acontece com resultados hilários e muita confusão".

Este trecho, extraído do release que me foi enviado, sintetiza a trama da comédia "O pintor", de autoria de Donald Churchill. Contando com tradução de Barbara Heliodora e adaptação de João Emanuel Carneiro, o texto chega à cena (Teatro do Leblon - Sala Marília Pêra) com direção de Guilherme Piva e elenco formado por Antonia Frering (Jane), Solange Badim (Márcia) e Gustavo Gasparani (Walter).

Objetivando o riso e apenas isto, o presente texto exibe uma estrutura semelhante à dos vaudevilles, com muitas portas no cenário e incontáveis entradas e saídas de cena. Mas mesmo carente de maiores ambições, a verdade é que a peça é muito fraca, e tal fragilidade pode ser comprovada com um argumento bastante singelo: se Gustavo Gasparani e Solange Badim (excelentes comediantes) não estivessem em cena e em seu lugar dois intérpretes apenas medianos, assistir ao espetáculo se converteria em verdadeiro martírio. Porque o texto, em primeira e última instância, nada mais faz do que repetir uma fórmula já há muito esgotada e sem a ela nada acrescentar de novo.

Com relação ao espetáculo, Guilherme Piva faz o que pode para conferir um mínimo de interesse à montagem, a ela imprimindo um ritmo quase sempre vertiginoso e aproveitando ao máximo o enorme talento dos intérpretes já mencionados. Quando a Antonia Frering, infinitamente menos experiente do que seus colegas de cena, ainda assim a atriz exibe uma atuação correta.

Na equipe técnica, a cenografia de Sergio Marimba jamais sugere um escritório, posto que nenhum teria tantas e inexplicáveis portas. Cao Albuquerque assina figurinos corretos, a mesma correção presente na luz de Maneco Quinderé - como não li o original, abstenho-me de analisar a tradução de Barbara Heliodora e a adaptação de João Emanuel Carneiro.

O PINTOR - Texto de Donald Churchill. Tradução de Barbara Heliodora. Adaptação de João Emanuel Carneiro. Direção de Guilherme Piva. Com Antonia Frering, Solange Badim e Gustavo Gasparani. Teatro do Leblon (Sala Marília Pêra). Terças e quartas, 21h.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XIX


- Monsenhor, estou nessa cidade há mais ou menos um mês. Minha vida aqui tem sido tão atribulada que até agora não pude refletir sobre as coisas extraordinárias que presenciei. Mas sinto que preciso fazê-lo e talvez o senhor possa me ajudar.

- Se estiver ao meu alcance...- e sorriu, com extrema simpatia.

- Há quanto anos o senhor vive aqui?

- Em novembro faria 30 anos...

- Por que "faria"? O senhor pretende ir embora?

- Claro. Não há mais nada a fazer aqui. E mesmo que houvesse eu...

Monsenhor interrompeu bruscamente sua fala. O peso das lembranças o impediu de concluí-la. Era tão grande o seu remorso que sequer imaginava a hipótese de se conceder uma nova chance. Tentei fazer-lhe ver que uma postura tão radical entrava em contradição com sua condição de religioso, já que o próprio Cristo fora o primeiro a declarar que sempre haveria a possibilidade de redenção para os que se arrependessem de suas faltas. Mas monsenhor se manteve impermeável a qualquer argumentação. Em vista disso, preferi não insistir, mesmo porque não iniciara aquela conversa com o objetivo de aliviar sua consciência, mas sim visando esclarecer alguns pontos obscuros.

- Está certo, monsenhor. Numa outra ocasião, voltamos ao assunto. De momento, gostaria de saber o seguinte: por que havia tanta gente armada no enterro de Ambrosina?

- Isso era uma tradição aqui, um costume adotado em ocasiões importantes. Algo meio folclórico, mas que nunca gerara qualquer tipo de problema.

- E qual a sua opinião sobre a violência que se desencadeou quando Ambrosina se meteu na tumba?

- Até hoje não consegui chegar a uma conclusão definitiva sobre isso. O que eu posso dizer é que Ambrosina se tornara uma espécie de grande mãe desta comunidade. Quando retornou à cidade, passados 60 anos, ela a encontrou tão atrasada, tão presa ainda ao passado que se lançou à tarefa de, pode-se dizer, conduzí-la ao presente. Ao constatar, por exemplo, que a única escola daqui mal ensinava as crianças a dominar o alfabeto, mandou vir da capital uma excelente professora, que realizou um trabalho esplêndido. Dos adultos se ocupou ele mesma. Depois de conhecer um a um todos os habitantes e vendo que tudo que lhes interessava era o plantio e o gado, começou a promover palestras, que de início foram algo boicotadas pelo assombro que causavam, mas que aos poucos se tornaram uma verdadeira coqueluche. Abordando todos os assuntos, Ambrosina foi ampliando os horizontes das pessoas, fazendo-as perceber que estavam atrasadas quase um século em relação ao resto do mundo, sendo imperioso recuperar o tempo perdido.

- Desculpe o interrogatório, mas existe ainda um fato que me intriga. Pelo que pude observar, havia pouquíssimas crianças na cidade. Por quê?

Monsenhor demorou algum tempo para responder a essa pergunta. A impressão que tive foi a de que tocara num ponto que muito o incomodava. Primeiro ele levou um certo susto, depois permaneceu absorto fitando a noite, como se fizesse um esforço para organizar as idéias. Por fim, e com a voz carregada de ódio, ele disse:

- A responsável por essa anomalia chama-se Ecúria.

- Como assim, monsenhor?

- Essa desgraçada manifestara, desde a infância, certas tendências que a presença de Ambrosina, enquanto estava na cidade, impediu que assumissem uma dimensão perigosa. Mas quando ela foi embora, Ecúria, que só respeitava e temia a irmã...A propósito: você sabia que elas eram irmãs?

- Sabia, monsenhor. Eu li num dos diários de Ambrosina.

- Pois bem: quando percebeu que ninguém ousava se opor às suas experiências cabalísticas e inclusive a temiam por causa delas, Ecúria foi se tornando cada vez mais atrevida e em pouco tempo dominou a cidade. O sentimento religioso, que é uma coisa mais ou menos inata em todas as pessoas, foi substituído pela crença nas bruxarias e poderes sobrenaturais dessa pérfida criatura. A natureza, ou o demônio, não estou bem certo, a dotou de uma voz espantosa, assim como da capacidfade de falar de boca fechada. Acrescente-se a isso os seus cabelos verdes e você bem pode avaliar o efeito que ela causava nessa gente simples. Da mesma forma que a irmã, ao retornar à cidade, Ecúria também promovia encontros, só que para solidificar seu poder e difundir idéias nefastas. E uma delas foi a de exortar a comunidade a se abster de procriar, sob a alegação de que o final dos tempos estava próximo e as crianças nem chegariam à adolescência. Algumas pessoas se rebelaram e abandonaram a cidade. Outras tiveram filhos às escondidas. Mas a maioria acatou as ordens de Ecúria. Ao chegar aqui essa mulher já mandava na comunidade há mais de 30 anos. Minha tarefa teve que se limitar quase que exclusivamente a combater esse domínio.

- E o senhor obteve bons resultados?

- Acabei obtendo, mas de forma lenta e gradativa. Eu ia de casa em casa, mas não me deixavam entrar. Então, diante de cada porta, eu recitava aos berros um trecho do Evangelho e seguia adiante. E isso dia após dia. Quando retornava à noite para a igreja, que inclusive reformei sozinho, a garganta me doía tanto que minhas orações tinham que ser feitas em silêncio. Mas quanto mais a tarefa me parecia inexeqüível, mais forças encontrava para continuar tentando. Nas reuniões públicas, realizadas diante da casa de Ecúria, eu surgia brandindo a Bíblia como se ela fosse uma espada e não poucas vezes fui escorraçado de modo violento pelos mais fanáticos. Mas como retornava no encontro seguinte, eles acabaram me aceitando e ao tumulto que minha presença causava. Estabelecia-se, invariavelmente, um furioso embate entre mim e a bruxa, ao qual a comunidade assistia com assombro e que terminava quando Ecúria, à falta de argumentos, passava a ameaçar todas as pessoas que porventura me dessem ouvidos, vaticinando as piores desgraças. Nesse ponto as pessoas se dispersavam, cada uma procurando atingir a própria casa o mais rápido possível. Numa noite, ao perceber que a comunidade relutava em abandonar o local, convencí-me de que era chegada a hora de mudar de tática. A partir daí, sempre que ela convocava uma reunião, eu fazia o mesmo, anunciando por toda a cidade que na mesma hora, diante da igreja, eu falaria sobre Cristo, o futuro, a esperança. Minha platéia, de início, era bem menos numerosa, mas aos poucos a coisa começou a se equilibrar, para desespero de Ecúria, que resolveu colocar feitiços na porta da igreja para me intimidar. Mas nada poderia me deter, pois eu sentia que o Senhor estava comigo. Quando se tornou patente que a maioria da população já havia decidido me seguir e não à feiticeira, aconteceu um fato estranhíssimo.

Nesse momento, monsenhor deu uma pausa tão longa que tive a impressão de que desistira de me contar o tal fato estranhíssimo. Mas felizmente prosseguiu.

- Numa mesma manhã, apareceram mortas sete pessoas!

- Sete pessoas, monsenhor? - exclamei, abismado.

- Exatamente. E todas pertencentes ao grupo que rejeitara as idéias da hedionda.

- Mas como se explica que...

- Não havia uma explicação plausível para tão macabra coincidência! - bradou o prelado, interrompendo-me. - Por isso o pânico se instalou na cidade, do qual Ecúria se aproveitou o mais que pôde, afirmando que desgraças como essa se tornariam corriqueiras se todos não voltassem a lhe prestar a antiga e cega obediência. Aterrorizadas, as pessoas me acossavam exigindo que eu elucidasse o mistério, mas eu não conseguia estabelecer um plano de ação eficaz. Intuía que algo fora do normal havia causado aquelas mortes, mas o pandemônio era tamanho que não conseguuia imaginar o que poderia ter sido. As pessoas me agarravam, imploravam e seu desespero aumentava na mesma proporção em que eu me revelava impotente para contê-lo. Até que todos me deixaram sozinho e se reuniram em torno da velha Ecúria, que sem perda de tempo anunciou que eu deveria embarcar no próximo trem, que passaria dali a dois dias, para nunca mais voltar.

- Ele teve a ousadia de pretender expulsá-lo da cidade? - perguntei, indignado, como se a absurda proposta tivesse sido feita a mim.

- Naquele momento ela se sentiu segura o bastante para fazer isso.

- E ninguém se opôs?

- Ninguém ousou se manifestar, embora eu estivesse certo de que muitos não concordavam com essa decisão. Mas é curioso: ao ouvir a sentença e em meio àquele silêncio sepulcral, ao invés de me sentir arrasado percebi que se apossara de mim uma grande sensação de paz. A princípio não consegui detectar a origem dessa inesperada calma, mas aos poucos fui me dando conta de que ela nada mais era do que uma demonstração de que o Senhor não me abandonara, que Ele me ajudaria a encontrar uma maneira de permanecer na cidade lutando contra as forças obscuras que tentavam dominá-la. Aproximando-me então da multidão, que se comprimiu ainda mais em torno de Ecúria, declarei que do momento em que ninguém se opunha à minha expulsão, nada mais me restava a fazer naquela cidade. E que iria embora, sem dúvida, no próximo trem. Mas antes fazia questão absoluta de abençoar os mortos.

A partir desse ponto, como se fosse experiente ator capaz de interpretar ao mesmo tempo dois papéis, monsenhor encarnou a si mesmo e à velha Ecúria, materializando à minha frente o diálogo que travaram. Tão impressioonado fiquei com esssa inesperada habilidade que passo a reproduzir a memorável batalha verbal como se monsenhor e a hedionda fossem personagens de um texto teatral. E os comentários feitos por ele e a mim dirigidos virão em itálico, a fim de evitar qualquer dificuldade de apreensão.

Ecúria - Eles não necessitam da tua bênção!

Monsenhor - Só deixarei de cumprir minhas obrigações de religioso se for impedido pelos parentes. A tua opinião não me diz nada.

Ecúria - Como ousas falar assim, gerador de desgraças?

Sentindo-se dona da situação, Ecúria abriu caminho por entre a multidão e veio se colocar a um metro de onde eu estava.

Monsenhor - O tempo haverá de demonstrar quem sempre foi, é e continuará sendo o gerador de desgraças nesta cidade!

Minhas palavras atingiram fisicamente a multidão, que de estática passou a se agitar.
Em poucos segundos, algumas vozes se fizeram ouvir e quando Ecúria resolveu se virar para ver o que estava acontecendo, a balbúrdia se tornou ensurdecedora. Temendo perder o controle da situação, Ecúria, depois de fazer calar a multidão com um rosnar de fera mitológica, fez a seguinte proposta:

Ecúria - Pois que seja. Se os parentes estiverem de acordo, te será permitido pronunciar junto aos mortos tuas inúteis palavras. Mas depois te enfurnarás na igreja e dela só sairás para embarcar!

Monsenhor - Enquanto estiver nesta cidade disponho do meu tempo como bem entender.

A massa assistia, fascinada, ao nosso duelo, talvez até mesmo sem entender como é que eu conseguia me manter calmo numa situação tão desfavorável. A velha Ecúria, também desnorteada com a minha segurança, virou-se para a multidão e uivou:

Ecúria - E então? O que resolvem?

Aqui se encerra a narrativa teatral, com evidentes conotações brechtianas, e monsenhor Flávio deixou de se relacionar comigo como se eu fosse sua platéia.

- Era chegado o momento decisivo. Mas meu coração mantinha-se sereno. Por isso não me surpreendi quando os parentes dos mortos se destacaram da multidão. O rosto da velha Ecúria deformou-se de forma impressionante, tamanha a carga de ódio que sentia. Mas aí já não havia mais jeito: eu teria acesso aos cadáveres e nisso residia minha única e última esperança!

Como um sentinela, monsenhor Flávio começou a caminhar pela varanda, de um lado para o outro. Devido à pouca luz reinante, sua pessoa se confundia com as trevas e o rumor de seus passos assumia uma dimensão terrorífica - cumpre ressaltar que esse detalhe sonoplástico só fez aumentar meu interesse pela história momentaneamente interrompida.

- Evidentemente...- prosseguiu monsenhor, imobilizando-se - eu não tinha ainda uma idéia muito clara do que pudesse ter acontecido. Apenas um vago pressentimento. No entanto, uma coisa me parecia óbvia: numa cidade tão pequena era impossível que sete pessoas aparecessem mortas na mesma manhã. Portanto, a hipótese de uma trágica coincidência estava descartada. Deveria haver algo por trás daquelas mortes, algo que...

- Desculpe interrompê-lo, monsenhor, mas o senhor disse que a única esperança de elucidar o caso residia na possibilidade de o senhor examinar os cadáveres. Por quê?

- Porque a morte sempre deixa marcas, Gabriel!? O aspecto de um homem que morre de infarto é completamente diferente do de um outro que morre de edema pulmonar, compreende?

- Compreendo! - respondi, embora não entendesse nada do assunto.

- Logo, se todos aqueles corpos apresentassem sinais comuns e tendo sido a palavra "coincidência" banida do meu vocabulário, isso significaria que as mortes não haviam sido acidentais, mas provocadas!

- Um crime! - bradei, fazendo alarde de extraordinária perspicácia.

- Sim, um crime! - emendou monsenhor. - Ou melhor, sete...

Agora invertia-se o processo e era eu quem caminhava de um lado para o outro tentando organizar as idéias, como se disso dependesse a elucidação do caso. A narrativa de monsenhor tomara um rumo tão imprevisto que eu, sem o perceber, passei a me comportar não como receptor dela, mas como seu agente. É claro que essa curiosa inversão de perspectiva só durou um breve instante, findo o qual implorei a monsenhor que desse prosseguimento à sua história. Mas como ele, ao atender-me, voltou a caminhar, de vez em quando nos dávamos tremendos esbarrões, até que descobrimos que a única solução seria andarmos em círculo e no mesmo sentido. Resolvido o impasse, passei a perseguir a sombra de monsenhor sem maiores problemas até quase o fim de seu espantoso relato.

- O exame do primeiro cadáver já me deixou vivamente impressionado. O homem, um senhor de meia-idade, tinha os olhos esbugalhados, a boca aberta e seus lábios estavam roxos. Além disso exalava um cheiro forte, que nada tinha a ver com a decomposição de seu corpo, visto que morrera há poucas horas. Examinando suas gengivas vi que elas estavam ainda mais arroxeadas que seus lábios, e que de sua boca provinha o acentuado odor que sentira. Para mim foi o bastante. E embora seus familiares quisessem a todo custo obter alguns esclarecimentos, eu me recusei a dá-los; limitei-me a abençoar o corpo e parti para a casa seguinte. Lá chegando, deparei-me com os mesmos sintomas. E assim sucessivamente. Quando, por fim, examinei o último dos sete cadáveres, já não tinha mais qualquer dúvida: todas as pessoas haviam sido envenenadas!

- Envenenadas! - repeti, trêmulo de espanto, como um personagem de sonêto.

- Como não havia tempo a perder ... - prosseguiu o prelado, impondo à narrativa uma cadência aflita - reuni todos os parentes das vítimas e pedi que me acompanhassem até a igreja. Quando lá chegamos, sugeri que se sentassem nos bancos e me dirigi ao púlpito. Mas fui forçado a aguardar pelo menos cinco minutos até as pessoas se acalmarem. Durante o trajeto até a igreja elas haviam trocado informações e a maioria já sabia que todos os seus partentes haviam passado ao outro mundo de boca aberta, olhos esbugalhados e lábios roxos. Como a simultaneidade das mortes já lhes parecera estranha, com o conhecimento desses dados suplementares esse sentimento de estranheza evoluiu para o de total perplexidade. Vendo-me, porém, aparentemente calmo e seguro, acabaram dominando os próprios nervos e se aquietaram para me ouvir. Então, eu lhes disse...- e neste ponto monsenhor Flávio voltou a interpretar sua narrativa, assumindo uma postura cuja gravidade em tudo se assemelhava à de um estadista prestes a comunicar a seu povo a iminência de um grave conflito armado.

Monsenhor - Desde o primeiro momento eu senti que deveria haver algo de estranho por trás de tudo isso. Afinal, numa cidadezinha como a nossa, é impossível que sete pessoas apareçam mortas numa mesma manhã. Quando solicitei que me deixassem abençoar aqueles que se tinham ido, todos se lembram de que Ecúria tentou furiosamente me impedir de fazê-lo. E por que, eu lhes pergunto? O que poderia inquietá-la tanto, desde o momento em que, segundo ela própria afirmou, eu apenas pronunciaria "inúteis palavras?". A resposta, meus amigos, é muito simples. Ecúria não estava preocupada com o que eu diria, mas sim com o que eu veria! Ela sabia que se eu tivesse acesso aos cadáveres poderia descobrir aquilo que de fato lhes causara a morte. E isso não a interessava de modo algum. Seu objetivo era o de fazê-los acreditar, como ela mesma disse, que a mim cabia toda a responsabilidade pela tragédia e que, portanto, sua idéia de me expulsar da cidade era não apenas justa, mas sobretudo necessária. Mas infelizmente para ela vocês não abriram mão de minha bênção e graças a essa atitude corajosa pude desvendar o mistério. O que vou lhe dizer agora é aterrorizante, mas precisa ser dito. Seus parentes não morreram de forma acidental: todos eles foram envenenados!

Ao final deste trecho e por culpa exclusiva de monsenhor Flávio, cuja capacidade de sensibilizar um ouvinte era realmente impressionante, tive de novo um pequeno rasgo de histeria. Quando dei por mim estava com os olhos marejados e fungava intensamente. Assumira o papel de um filho que acabava de ser informado da morte trágica de seu pai, vítima de uma brutal dose de arsênico. E aqui cabe um adendo: não sei porque escolhi logo meu pai, uma figura tão encantadora, para desempenhar a função de morto. Tempos mais tarde, ao refletir sobre isso, cheguei à conclusão de que assim agira porque o amava muito e tinha tanto medo de perdê-lo que, tendo-me sempre resusado a admitir que um dia ele morreria, aproveitara a narrativa de monsenhor Flávio para vivenciar, no plano da fantasia, a perda desse homem tão fundamental em minha vida. Quando um dia me reencontrei com meu pai e lhe contei esse fato, esperando iniciar um diálogo de altíssimo nível sobre o amor, a morte, as relações entre pais e filhos etc., tudo que ele conseguiu me dizer foi o seguinte: "É incrível...depois de tudo que eu fiz por você...".

Monsenhor Flávio, ao perceber minhas fungadas, resolveu dar uma pausa em sua narrativa, até que meu estado geral o autorisasse a prossegui-la. Naturalmente que ele jamais poderia supor que minha cabeça estivesse a milhares de quilômetros dali e que meu pranto nada tivesse a ver com seus mortos. Em todo caso, ele teve uma atitude gentil, guardando silêncio. Quando consegui dominar minha coriza, monsenhor prosseguiu com seu intrigante relato, mas agora não mais "representando".

- A partir do momento em que decidira não ocultar a terrível verdade aos parentes das vítimas, sempre esteve claro para mim que poderiam surgir as mais diversas reações, já que nunca se sabe com certeza como alguém receberá uma novidade dessa natureza. Mas a atitude daquela platéia me desarmou totalmente: nada disseram, nenhum gesto esboçaram, como se minha revelação tivesse interrompido o fluxo de suas vidas. Pareciam bonecos, feitos de cera e encharcados de morte. Passaram-se uns dez minutos e a situação permanecia inalterada. A essa altura eu já havia abandonado o púlpito e andava de um lado para o outro sem saber o que fazer. E embora muitas vezes tenha me aproximado de alguém com a intenção de lhe dizer alguma coisa ou simplesmente de sacudir a pessoa, acabava me afastando sem realizar nem uma coisa nem outra, por temor de que qualquer iniciativa direta pudesse piorar tudo. Quando cheguei à conclusão de que não conseguiria realizar nada de prático e a situação ameaçava se perpetuar, me ajoelhei diante do altar e implorei ao Senhor que não me abandonasse num momento em que eu era de suma importância para tantas vidas. Oferecí-lhe, inclusive, a minha, se isso pudesse salvar aquelas pessoas e a cidade. Em seguida, comecei a rezar. Foi então que o Senhor demonstrou mais uma vez que continuava ao meu lado. Nem bem atingira a metade do "Pai Nosso" e já o primeiro pranto se fez ouvir. Ao concluir a reza, as 40 pessoas que lá estavam haviam de novo se humanizado e por todos os cantos se ouviam lamentos, maldições, promessas de vingança, enfim, a vida! Agradecido, beijei o altar e fui cumprir meu papel. Já não havia mais ninguém nos bancos. Uma mulher, que perdera o marido, sacudia com tanta força o confessionário que parecia empenhada em destruí-lo, enquanto seu filho pequeno, agarrado à sua saia, gritava aterrorizado. Um rapaz de 17 anos, cujo pai Ecúria vitimara, arrancara o manto que cobria a imagem de São José, o rasgara ao meio e improvisava uma espécie de corda, cujo destino era o pescoço da bruxa. Já um senhor de uns 60 anos fazia a apologia da fogueira, que deveria arder, segundo suas palavras, ainda naquela noite. A maioria, no entanto, não arquitetava vinganças, apenas extravasava seu desespero.

- Deve ter sido muito difícil para o senhor conseguir acalmar os ânimos...-apartei, desnecessariamente.

- Sim, mas era imprescindível fazê-lo. Em primeiro lugar para evitar que os mais exaltados levassem a cabo seus planos homicidas. E depois para traçar uma estratégia que nos permitisse desmascarar aquela que urdira a abominável trama. Felizmente, após inúmeras tentativas, consegui serenar um pouco os ânimos e então expus o plano que me veio à cabeça enquanto durava a balbúrdia. Todos deixariam a igreja o mais calmamente possível e iriam direto para suas casas. Lá chegando, velariam seus mortos e só no dia seguinte, quando toda a população estivesse reunida no cemitério, seria anunciado o resultado de minha investigação. A princípio muitos estranharam o local e a hora escolhidos, mas acabaram se curvando ante a argumentação de que uma acusação como a que iria fazer teria muito mais impacto se proferida na presença dos mortos, de seus parentes e no momento do derradeiro adeus. É claro que eu compreendia o sentimento deles, a vontade que tinham de se despedir daqueles que amavam sem o clima tenebroso que se instalaria no cemitério. Mas estava em jogo a sobrevivência espiritual de toda uma comunidade. Portanto, o seu sacrifício era imprescindível. E assim foi feito. No dia seguinte, às dez da manhã, horário marcado para a saída do cortejo fúnebre, toda a população já estava nas ruas. Embora as pessoas procurassem aparentar uma certa calma, seu nervosismo era evidente. Com exceção de umas poucas que conversavam em voz baixa, a maioria se mantinha silenciosa, observando atentamente as casas de onde saíam os mortos. Reparei isso porque passei em cada uma delas para ver como estavam os parentes das vítimas. Ao perceberem que eu me aproximava, as pessoas abriam caminho, evitando me encarar de frente e só tornavam a se agrupar quando eu partia. Tratavam-me como se eu fosse portador de uma doença contagiosa. Mas eu os conhecia o suficiente para saber que essa rejeição não era autêntica, fora antes determinada pelo medo, pela ignorãncia, pela morte. Se eu conseguisse demonstrar o que de fato motivara o aparecimento dos sete cadáveres, todos voltariam a se relacionar comigo. Às onze em ponto o féretro chegou ao cemitério. Os mortos foram colocados ao lado de suas sepulturas, situadas bem próximas umas das outras e a multidão ocupou todos os espaços. Desejando ser visto e ouvido por todos - o que seria impossívbel devido à minha baixa estatura - pedi a um dos parentes das vítimas, o tal jovem de 17 anos que pretendia enforcar Ecúria com o manto de São José, que me erguesse nos ombros. Uma vez instalado, dei início ao meu discurso.

Nesse momento, monsenhor Flávio parou de caminhar. Apoiando-se à grade de madeira, fixou a noite, imóvel e concentrado, como se reunisse forças para concluir sua dramática narrativa, que reproduzirei de forma abreviada, abolindo os pequenos detalhes para que o essencial possa ser apreendido com clareza. O prelado cumpriu à risca o que prometera a si mesmo. Primeiro, demonstrou que todas as pessoas haviam morrido devido à ação da mesma e poderosa substância; em seguida, revelou que esta nada mais era do que um conhecido veneno; e finalmente acusou Ecúria de ser a responsável pelos múltiplos assassinatos. Ao ouvir a espantosa novidade, amultidão horrorizada ameaçou se dispersar, mas monsenhor conseguiu retê-la ao desafiar Ecúria a demonstrar que ele se enganara.

A primeira resposta da megera, se proferida num tribunal, já seria suficiente para dar consistência às acusações, pois de imediato alegou que o fato de ter visitado as sete vítimas na véspera não significava necessariamente que as tivesse envenenado. Monsenhor, que desconhecia até então esse detalhe, dele se aproveitou como um grande promotor, fazendo a velha Ecúria cair várias vezes em contradição, sobretudo quando ela insistiu em justificar sua presença na casa de pessoas que haviam repudiado publicamente suas idéias.

Quanto à platéia, composta de gente muito simples e pouco afeita a discussões cheias de duplo sentido, monsenhor me deu a entender que ela acompanhava o debate sem no fundo compreendê-lo. E se ainda permanecia no cemitério, era mais por causa dos mortos, que ainda não haviam baixado à sepultura. Finalmente, por volta do meio-dia, desabou uma chuva torrencial e um dos parentes sugeriu a monsenhor que abençoasse os mortos para que eles pudessem ser enterrados. Embora o impasse ainda persistisse, monsenhor teve que se conformar e cumpriu com sua obrigações. Em seguida, todos voltaram para suas casas.

No dia seguinte, quando já se dispunha a retomar o debate, monsenhor foi informado de que Ecúria caíra gravemente enferma e que portanto não poderia continuar rebatendo as acusações que lhe eram dirigidas. Julgando tratar-se de um ardil, monsenhor foi até a casa da megera e a encontrou inconsciente, estendida em seu leito, com o aspecto de quem agonizava. Não podendo, naturalmente, negar assistência a quem dela parecia necessitar, solicitou que algumas pessoas permanecessem à cabeceira da bruxa e no dia seguinte mandou pelo trem um pedido de socorro. Um mês depois, quando um rfenomado médico da capital a examinou, Ecúria continuava no mesmo estado. Incapaz de diagnosticar a moléstia, o doutor prescreveu uma meia dúzia de medicamentos, que por sinal já trazia consigo, e foi embora no mesmo trem que o trouxera.

Por uma questão de decência, monsenhor se absteve, durante a doença de Ecúria, de tentar influenciar as pessoas, visto que sua antagonista se encontrava impossibilitada de se defender. Essa atitude, no entanto, acabou se revelando nefasta, pois a bruxa só recobrou a consciência um ano depois, alegando não se recordar em absoluto dos fatos que monsenhor tornou a trazer à tona. Como o tempo já havia cicatrizado a dor e a revolta dos parentes, o caso acabou caindo no esquecimento, e pouco a pouco a feiticeira recomeçou a atormentar a vida da comunidade. Mas jamais readquiriu sobre ela a antiga ascendência.

Monsenhor Flávio terminou seu longo relato por volta das 22h. A noite estava belíssima, mas fazia um certo frio. Propus então que nos banhássemos e trocássemos de roupa, já que além de imundos nos arriscávamos a pegar uma penumonia. Em seguida, jantaríamos. Monsenhor concordou e me pediu de novo emprestado o meu pijama, pois teria que lavar sua batina. Quando nos sentamos para comer, tornei a me lembrar das premonições que ambos havíamos tido pela manhã. Como a minha não se cumprira, pois não sofrera 24h sem parar, conceitrei-me na dele, que previra para mim um momento de grande felicidade naquele dia. Meu relógio marcava exatamente 23h, ou seja, a premonição de monsenhor ainda tinha um crédito de 60 minutos.

Naturalmente que eu não acreditava mais que ela pudesse se cumprir, mas às onze e meia meu coração começou a bater num ritmo descompassado. Não estando nervoso e tampouco tenso, a inesperada arritmia me deixou bastante assustado. Cheguei a levantar a hipótese de estar reagindo com retardo à narrativa de monsenhor, mas renunciei a essa idéia tão logo percebi que não passava de um recurso que fabricava para me tranquilizar. Mas o que seria, então?

Durante os 15 minutos que se seguiram fiz de tudo que estava ao meu alcance não para descobrir as causas da formidável arritmia, mas para sofreá-la. Respirei fundo, bebi dois copos de vinho, caminhei pela sala assoviando, mas foi tudo em vão. Meu coração, como um presidiário ensandecido, se atirava de encontro às minhas costelas como se de meu peito procurasse se evadir. À meia-noite em poonto, não suportando mais a terrível sensação e certo de que morreria em poucos minutos, fui para a varanda contemplar a lua pela última vez. Mas meus olhos, que pretendiam o céu, fixaram-se na terra: um grande cavalo branco, montado por um vulto que se confundia com a noite, aproximava-se da porteira da granja!

Assim que o vi, parti ao seu encontro, certo de que era a Morte que chegava para me levar. No entanto, quando a distância que nos separava se reduziu a poucos metros, percebi que, ao contrário do que imaginara, era a Vida que se aproximava!

Irmã Geovana cumpria sua promessa.

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Corpo e Movimento

Derek Browskill


"O QUE FAÇO COM AS MÃOS?"
"ONDE PONHO OS PÉS?"

Estas duas perguntas preocupam muitos atores, experientes ou não. A ansiedade causada por estes detalhes podem chegar a um tal ponto que faz com que pensamentos e perguntas sejam verbalizados. Para o diretor, as respostas não são tão simples. É fácil assumir uma postura cinicamente crítica para com os atores cuja imaginação leva às perguntas. Mais difícil é ajudá-los. Aparentemente simples, estas perguntas muitas vezes escondem verdadeiros pedidos de socorro. Este capítulo não vai mostrar o que fazer com as mãos, ou onde pôr os pés. No entanto, vai oferecer sugestões, que provavelmente eliminarão a necessidade das perguntas.

A movimentação corporal é a base de tudo o que aconteceu antes - respiração, fala, imaginação, concentração. Sem os movimentos suficientes e necessários, que por um lado mantêm a vida, e por outro geram as próprias atividades, nada disso pode ocorrer. O movimento pode ser quase imperceptível a olho nu, mas enquanto houver vida, haverá movimento mantendo-a.


RITMO

O ritmo pode ser descrito como "o fluxo e o movimento, ou a aparência de fluxo e movimento, suficientes e necessários para dar uma impressão natural de vida e energia". Parado ou em movimento, o corpo deve possuir um ritmo peculiar e essencial. Ao movimentar-se sem ritmo, o corpo dará a impressão de ser formado por partes que não combinam entre si. Faltará unidade por trás da diversidade de ação, e os movimentos atrairão a atenção por si próprios.

Quando parado sem ritmo, o corpo dará a impressão de ser completamente desprovido de potencial. Não dará nenhuma indicação de energia latente ou de dinâmica em repouso - parecerá vazio ou morto. Em ambos os casos, a falta de ritmo chamará a atenção e indicará algum tipo de debilidade.

Esta falta de ritmo é a grande característica de um animal agonizante ou um cadáver humano. No primeiro, os movimentos podem conter uma nota de pânico ou de nervosismo histérico, e no segundo, o que poderia ser um corpo vivo em repouso é percebido com simplesmente parado.


EQUILÍBRIO

Parado ou em movimento, para ter ritmo o corpo deve também ter equilíbrio. Se observarmos um amigo tentando equilibrar-se em uma perna só, de olhos fechados e com um livro na cabeça, logo notaremos os movimentos hesitantes que caracterizam a falta de equilíbrio. Andar de trem, ou caminhar dentro de um ônibus em movimento faz com que o corpo reaja naturalmente à sensação de desequilíbrio.

O ato rotineiro de caminhar demonstra claramente de que modo o corpo organiza as suas partes para garantir o equilíbrio, criando assim o ritmo adequado. Quando caminhamos de modo natural, neutralizamos o desequilíbrio, movimentando automaticamente o braço direito para a frente ao darmos um passo com a perna esquerda. Essa oposição natural funciona como os pratos de uma balança.

Para manter o equilíbrio, qualquer movimento precisa ser contrabalançado por outro igual e oposto. Tente caminhar movendo a perna e o braço direitos para a a frente ao mesmo tempo. Verá como o corpo tende a resistir. Para compensar a falta de equilíbrio, ele se mexe, se inclina e balança.

Uma combinação correta de ritmo e equilíbrio mostra que o corpo tem a capacidade de manter esta condição - parado ou em movimento - e demonstra também a capacidade de mudança e rapidez de reação. Numa boa movimentação corporal, existe uma constante declaração de energia e uma garantia de continuidade, com qualidades essencialmente plásticas e móveis. Nada há que ser rígido, espasmódico ou mecânico. Tais qualidades combinam-se no ideal continuamente buscado por um bom ator - economia de ação e elegância de execução.


CONSCIÊNCIA PERCEPTIVA:
ECONOMIA E ELEGÂNCIA

Pouquísimas pessoas organizam seu ritmo de movimento ou de fala conscientemente. Elas confiam em seus padrões naturais, usando-os inconscientemente. Mas no organizado microcosmo do palco, um ator precisa estar profundamente consciente do ritmo que utiliza e de seu efeito no público. Entretanto, não é necessário um estudo detalhado de cada movimento feito em cena. Uma análise cuidadosa dos momentos principais possibilitará a criação de um ritmo geral de trabalho. (Isto é especialmente importante no estudo do texto). Assim, pode-se chegar mais rapidamente à economia de ação e à elegância de execução, qualidades que são a marca de um bom ator.

Boa postura, respiração correta e bons exercícios de tensão e relaxamento muscular são elementos essenciais para um ator que objetive economia de ação. Para a elegância, é fundamental um corpo que represente com flexibilidade, confiança e sem esforço aparente. Sem controle e sem flexibilidade, jamais se chegará à economia e à elegância. Estes elementos são importantes na vida diária - e para um ator são vitais.


A IMPORTÂNCIA DO OLHAR

Evidentemente, escutar bem e ouvir com sensibilidade são os melhores instrumentos para uma boa fala. De modo semelhante, os olhos de um ator auxiliam-no na profunda compreensão do papel do corpo na expressão e na comunicação. É altamente proveitoso observar o modo como as pessoas utilizam seus corpos - mãos, pés, costas, ombros; sentadas, em pé, deitadas, caminhando ou correndo. Olhar conscientemenmte, tocar e ser tocado são elementos tão essenciais para o treinamento de uma boa movimentação, quanto escutar e ouvir para a fala.

Olhe à sua volta em lojas e restaurantes e observe como as pessoas usam o corpo para se comunicar. Umas possuem ampla gama de movimentos, gestos e expressões faciais, enquanto outras, não. Algumas usam muitos movimentos, e outras, praticamente nenhum. Enquanto estiver reparando como as pessoas usam as mãos e o rosto para se relacionar lembre-se que o verdadeiro teste para qualquer movimento ou gesto é o seu resultado.

Observe especialmente as reações dos outros à pessoa que se movimenta ou gesticula. Repare na utilidade e adequação (ou não) de seus movimentos; as oportunidades ganhas e as oportunidades perdidas. Observe em especial os movimentos usados em horas de tensão ou de leve desconforto emocional - mexer num cigarro, numa xícara, nas roupas ou no cabelo. Repare a freqüência com que as mãos são usadas para aumentar a auto-confiança e criar uma atmosfera segura, e não para ajudar o falante a defender seu ponto de vista.


IMAGEM CORPORAL

O corpo tem uma linguagem própria, que se manifesta muito antes de nos aproximarmos o suficiente de alguém para que os detalhes mencionados no parágrafo anterior possam ser percebidos. Pense na primeira impressão que lhe dá um homem andando de bicicleta, uma mulher num ônibus que passa ou o motorista do carro à sua frente. Muitas relações se formam, e algumas vezes perduram, como resultado desta primeira impressão corporal: a impressão geral dada pelo modo como uma pessoa anda, senta ou fica em pé. O modo como ele inclina a cabeça, o ângulo dos ombros, a posição dos cotovelos, a linha dos joelhos ao caminhar - tudo isso faz declarações poderosas.

Declarações que fornecem informações com um impacto muuito maior do que a soma de suas partes. No ritmo, parece haver algo de indefinível desafiando uma última análise; o mesmo também acontece com a imagem corporal. A impressão total transcende uma simples soma de componentes.


SENSAÇÃO CORPORAL

A imagem corporal não afeta só os observadores: afeta a própria pessoa. Pode-se definir isso como "sensação corporal". Em qualquer atividade, as pessoas assumem posições físicas nas quais se sentem bem. Sendo uma medida de apoio e dando a sensação de satisfação, essas posições auxiliam a pessoa no papel que está sendo representado ou na atividade executada.

Alguns indivíduos assumem uma atitude tão inflexível em relação à sua imagem corporal, que só conseguem ler, concentrar-se, prestar atenção ou costurar quando colocam seus corpos em determinadas posições. É lógico que a posição escolhida estará intimamente relacionada com o conforto físico na tarefa executada - mas o que influencia esta posição é a implicação de conforto emocional que esta sensação trará.

Em algumas pessoas, isso não é muito acentuado, enquanto para outras é mais importante do que as roupas que vestem. Se estiverem numa posição errada - que pode advir da diferença de um centímetro na altura de uma cadeira - essas pessoas terão a mesma sensação de desconforto que teriam se estivessem nuas, ou vestidas de modo ridículo.

A imagem e a sensação corporais são importantes em todas as áreas da expressão e da comunicação de experiências pessoais. São mais importantes do que pareceria possível, numa sociedade que pouco nos educa nesse sentido. Para perceber seu alcance e impacto, pense apenas em como, ao rever um velho amigo, você é invadido por lembranças, estimuladas às vezes por pequenos gestos, como o jeito que ele tem de estender a mão - ou, de longe, seu gesto característico de balançar um braço mais do que o outro.

Considere as diferenças no relacionamento de duas pessoas, das quais uma está sentada e a outra, em pé; ou a primeira assume uma postura ereta e a outra, encurvada, ou então uma pessoa que gesticula ativamente, enquanto o interlocutor permanece passivo. Sem que uma só palavra seja dita, pode-se observar os efeitos causados na base dos relacionamentos e das comunicações. Quando mudam as posições, mudam também a imagem e a sensação corporais, e mudará também a base do relacionamento e da comunicação.

É característico, nos britânicos, a ausência de percepção da imagem e sensação corporais, apesar de sua importância nos relacionamentos pessoais e na comunicação interpessoal. O ato de tocar as pessoas ainda é visto com desconfiança na Grã-Bretanha, mesmo numa hora em que as convenções sociais estão um pouco mais relaxadas. "Não tocar" vai além do aviso colocado perto de máquinas perigosas - é também um modo de vida. Para animais humanos que passaram os primeiros nove meses de vida em contato íntimo com outro ser humano, este é um verdadeiro desafio.


AUTO-PERCEPÇÃO ou AUTO-CONSCIÊNCIA?

Algumas pessoas normalmente acham que a percepção da imagem e da sensação corporais leva automaticamente a uma auto-consciência desinibida. Não é um risco muito grave. É um risco que devemos correr, a não ser que prefiramos correr o risco maior de não conseguirmos comunicar nossos verdadieros pensamentos, intenções e sentimentos.

Considere o exemplo de entrar em algum lugar. Há vários modos de fazê-lo, e, uma vez lá dentro, várias posições de chegada. Nesse lugar podem estar muitos amigos, um amigo em especial, um grupo de entrevistadores, o seu superior no trabalho num estado de espírito crítico, uma criança agitada. Seja qual for a situação, a imagem corporal que apresentarmos e a sensação corporal que tivermos afetarão diretamente os relacionamentos, durante pelo menos alguns minutos - talvez até por mais tempo.

A imagem corporal pode ter sido aparente no máximo por alguns segundos, às vezes por menos de um segundo. Já que a imagem e a sensação corporais podem causar um impacto tão grande e tão importante, parece-nos lógico melhorar a percepção que temos disto. Para um ator em treinamento, é um argumento atraente e indiscutível.
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Artigo extraído - e aqui reduzido - de "Acting and Stagecraft Made Simple", W. H. Allen 1979. Tradução de Livia Mazzocato (Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio). Este artigo consta da edição nº 133 da revista Cadernos de Teatro/1993.



sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Realismo Mágico

David Lodge


O realismo mágico - a interferência de acontecimentos fantásticos e impossíveis em uma narrativa realista - é um efeito associado em particular à ficção latino-americana contemporânea (encontram-se exemplos na obra do colombiano Gabriel García Márquez, por exemplo), mas ocorre também em romances vindos de outros continentes, como os de Günter Grass, Salman Rushdie e Milan Kundera. Todos esses autores viveram perto de grande turbulência histórica e conflitos pessoais pungentes, que, a seu modo de ver, não se prestam à representação em um discurso realista tradicional. Talvez a pouco traumática história recente da Inglaterra tenha levado os autores ingleses a se manter no caminho do realismo tradicional. O elemento fantástico foi trazido de fora até a nossa ficção, mas ainda assim foi adotado com grande entusiasmo por alguns romancistas ingleses genuínos - em sua maioria, mulheres de posicionamento forte em questões de gênero, como Fay Weldon, Angela Carter e Jeanette Winterson.

Como desafiar a lei da gravidade foi e continua sendo um grande sonho impossível, não é surpreendente que imagens de voo, levitação e queda livre ocorram com freqüência neste tipo de romance. No "Cem anos de solidão" de Márquez, um personagem ascende aos céus enquanto põe a roupa lavada para secar. No ínício de "Os versos satânicos", de Salman Rushdie, os dois personagens principais caem agarrados um ao outro de um avião que explode, cantando, e aterrissam, sem nenhum arranhão, em uma praia inglesa coberta de neve. A heroína de "Noites no circo" de Angela Carter é uma trapezista chamada Fewers, que tem lindas plumas úteis não apenas para compor um figurino de palco: também são asas de verdade, que lhe permitem voar. "Sexing the Cherry", de Jeanette Winterson, apresenta uma cidade flutuante com habitantes flutuantes.

Milan Kundera foi um dos muitos jovens tchecos que viram com bons olhos o golpe comunista de 1948, certos de que o novo regime promoveria um admirável mundo novo de liberdade e justiça. Logo ele se desiludiu, "disse algo que seria melhor não ser dito" e foi expulso do Partido. Suas vivências posteriores serviram de matéria-prima ao seu primeiro romance, "A brincadeira" (1967). Em "O livro do riso e do esquecimento" (1978), o autor explorou as ironias públicas e as tragédias pessoais na Tchecoslováquia do período pós-guerra com uma narrativa mais solta e mais fragmentária, que flerta com o documentário, a autobiografia e a fantasia.

O sentimento de exclusão vivido pelo narrador, afastado da convivência humana e do Partido, a impressão de ter se tornado uma "não pessoa", é simbolizado pela exclusão da roda de estudantes que dançam dia após dia celebrando os aniversários aprovados pelo Partido. Ele se lembra de um certo dia em junho de 1950, quando "as ruas de Praga mais uma vez estavam repletas de jovens dançando em círculos. Andei de uma roda à outra, me aproximei deles o quanto pude, mas negaram-me a entrada". No dia anterior, uma representante socialista e um escritor surrealista haviam sido enforcados como "inimigos do Estado". O surrealista, Zavis Kalandra, era amigo de Paul Éluard, na época um dos mais celebrados poetas comunistas no mundo ocidental, capaz de salvar a vida do artista. Mas Éluard recusou-se a intervir: ele estava "ocupado demais dançando na enorme roda que circundava todos os países socialistas e todos os partidos comunistas do mundo; ocupado demais recitando seus lindos poemas sobre alegria e irmandade".

Ao perambular pelas ruas, Kundera de repente encontra o próprio Éluard dançando em uma roda de jovens. "Não havia dúvida. A celebridade de Praga. Paul Éluard!". Éluard começa a recitar um de seus poemas idealistas sobre alegria e irmandade e a narrativa "decola", tanto em termos literais quanto metafóricos. A roda de dançarinos desprende-se do chão e começa ,a flutuar pelo céu. O acontecimento é impossível. Mesmo assim, suspendemos nossa descrença, pois a imagem expressa de forma poderosa e comovente as emoções que vinham se preparando nas páginas anteriores. A imagem dos dançarinos alçando-se aos ares, levantando os pés ao mesmo tempo em que a fumaça das duas vítimas cremadas ergue-se no mesmo céu, simboliza o autoengano estapafúrdio dos camaradas, a ansiedade por declararem-se puros e inocentes, a obstinação em não enxergar o terror e a injustiça do sistema político a que servem. Ao mesmo tempo, expressa a inveja e a solidão do personagem do autor, para sempre afastado da euforia e da segurança dessa dança coletiva. Uma das características mais atraentes de Kundera é que ele nunca reclama para si o título de mártir e nunca subestima o custo humano de ser um dissidente.

Não sei como é essa passagem no texto original em tcheco, mas ela funciona muito bem em tradução, talvez graças ao brilhante apelo visual. Kundera chegou a dar aulas de cinema em Praga por um tempo, e essa descrição evidencia um senso de composição cinematográfica no modo como a perspectiva alterna entre o personagem aéreo de Praga e o olhar desejoso que o narrador lança de baixo para cima enquanto corre pelas ruas. A roda de dançarinos voadores funciona como um efeito especial. Quanto à forma, a passagem consiste em uma frase imensa; as diferentes orações são como uma seqüência de tomadas cinematográficas unidas pela simples conjunção e em uma sucessão fluida que se recusa a priorizar seja o sentimento de ironia, seja o sentimento de perda do narrador. Ambos estão ligados de modo inseparável.
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Artigo extraído do livro "A arte da ficção", Editora L&PM POCKET, tradução de Guilherme da Silva Braga

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XVIII


O quarto dia de permanência na granja começou da pior maneira possível. Assim que despertei tive o pressentimento de que sofreria sem parar ao longo das próximas 24 horas. Não sabia a que atribuir a incômoda premonição, já que me deitara satisfeito e não tivera nenhum sonho desagradável. Ainda no leito tentei atribuir essa sensação à chuva torrencial que caía, tão forte que dava a impressão de que faria o teto desabar. Mas essa justificativa não me satisfez, pois a chuva nunca me gerara uma aflição parecida. Minha dificuldade em respirar e meus acelarados batimentos cardíacos deveriam, portanto, ter uma outra explicação.

Após meia-hora de intensas especulações, resolvi enfrentar a vida. Quando caminhava pelo corredor em direção ao banheiro escutei a voz de monsenhor, vinda da sala, que gorgeava desafinadamente uma canção inexpressiva. Isso teve o poder de me irritar, pois sabedor de que já deviam ser umas dez horas não via nenhum motivo para que o prelado ainda estivesse naquela casa. Em todo caso, fui até o banheiro, fiz o que todo mundo faz assim que acorda e voltei para o quarto. Enquanto me vestia e ouvia os malditos trinados, minha irritação crescia, a ponto de me fazer considerar a hipótese de tamponar a boca de monsenhor com um chumaço de algodão. Ou no mínimo lhe passar uma reprimenda, pois eu não era obrigado a conviver com seus gorgeios.

Mas ao chegar na sala, minha ira se aplacou de imediato, embora monsenhor prosseguisse massacrando a tal musiquinha: tendo acordado mais cedo do que eu e possivelmente querendo retribuir minha hospitalidade, ele resolvera fazer uma faxina completa no ambiente. Para tanto, com exceção da mesa onde depositara nosso desdejum de forma impecável, arrastara todo o resto do mobiliário para os cantos. Com um trapo amarrado na cintura em forma de avental e munido de um rodo em cuja extremidade enrolara um pano úmido, monsenhor, com o empenho de uma doméstica recém contratada, fazia a assepsia do assoalho. Ia e vinha em movimentos ritmados, cuja sincronia com a canção o fazia parecer-se com um personagem de opereta. Quando julgava que o pano já estava imundo, ele o retirava do rodo e desaparecia na direção da área, de onde retornava com o paninho gotejando, que novamente enrolava na ponta do rodo e então recomeçava sua incansável tarefa. Depois de observá-lo por uns 15 minutos, resolvi intervir:

- Mas monsenhor, que absurdo! Quem lhe deu ordens para empreender tão exaustiva faxina? - perguntei, aparentemente sério.

- Não sei quais são seus padrões de higiene, Gabriel, mas me foi impossível permanecer mais um minuto nesta casa em meio a essa poeirada...- retorquiu, faceiro, sem interromper a limpeza cadenciada.

- Por que o senhor não me acordou? Eu poderia ajudar.

- Você só iria atrapalhar. Ficaria dando palpites, tentando abreviar o serviço...

- Mas o senhor nem ao menos se alimentou!? Poderá ter vertigens...

- Estava esperando você acordar. Um hóspede nunca se serve antes do anfitrião.

Nesse momento, ele interrompeu sua obsessiva faxina e se virou para mim. Seu rosto denotava tanta simpatia que não reprimi um sorriso. Dizem que as pessoas em vias de morrer afogadas conseguem relembrar, em poucos segundos, grande parte de suas vidas. Embora meus pulmões não estivessem cheios d'água, deu-se comigo o mesmo fenômeno. Toda a minha curta mas intensa vida em comum com monsenhor me veio à cabeça, com uma incrível riqueza de detalhes. E o saldo dessa convivência era extremamente positivo, pois se chagáramnos a ter algumas brigas, em contrapartida também vivêramos momentos de grande cumplicidade. A partir daí, monsenhor e eu nunca mais nos desentendemos, ao menos seriamente. Esse sorriso que trocamos nessa manhã de temporal veio como que selar um pacto de amizade que nem a morte do prelado conseguiu romper, pois mesmo depois que ele se foi continuei sentindo sua presença amiga, como se ele tivesse se convertido em meu anjo da guarda. Aliás, em minha opinião, certos sentimentos, como o amor e a amizade, quando realmente verdadeiros, transcendem a existência temporal e se prolongam por toda a eternidade.

Assim que concluí essas divagações, falei:

- Bem, monsenhor, e que tal se agora sentássemos para comer?

- Acho uma ótima idéia! - retrucou, tirando o avental e dirigindo-se para a mesa.

Como de costume, comemos em silêncio. Mantivemos sempre esse singular hábito, para o qual nunca encontrei uma explicação convincente, pois o que não nos faltava era assunto. Quanto ao nosso desdejum, monsenhor fora pródigo em sua escolha, já que além de pão, queijo e leite ele colocara na mesa biscoitos, geléia e um doce de goiaba cuja calda era o néctar dos deuses. Embora sem sofreguidão, nos empanturramos como dois romanos que participassem de uma orgia gastronômica. Só nos levantamos quando percebemos que uma próxima garfada, colherada ou golada poderia ser fatal. Um tanto zonzos, fomos cada qual cuidar de seus interesses. Monsenhor recomeçou a faxina interrompida, sempre a solfejar, e eu fui até o quarto onde depositara a vida de Ambrosina, decidido a continuar a trabalhar em sua história.

Mas infelizmente não conseguia me concentrar. Tentei durante mais de duas horas dar prosseguimento à curta narrativa iniciada na véspera, mas meus pensamentos se voltavam a todo momento para aquela que amava desesperadamente e cujo amor já imaginava haver perdido. Quando percebi que a qualquer momento acabaria ateando fogo em toda aquela papelada, deixei o quarto e fui para a varanda. Ao passar pela sala, monsenhor já havia terminado a limpeza e todos os móveis estavam em seus lugares. Mas sua vozinha, vinda dos fundos da casa, indicava que ele continuava empenhado em transformar todo o espaço em algo habitável. Sentado nos degraus da varanda, comecei a contemplar a inacreditável chuva que caía.

Minha impressão era a de habitar uma casa fluvial, pois não havia nas imediações um único pedaço de terra que não tivesse sido coberto pelas águas. Numa tentativa de dominar a angústia que a ausência de irmã Geovana me causava, iniciei inúmeras conjecturas: tentei adivinhar as espécies de árvores que circundavam a granja, avaliei até que ponto a casa resistiria ou conseguiria se manter impermeável àquele aguaceiro, enfim, agarrei-me a essas e outras banalidades como um náufrago a um tonel flutuante. Mas uma hora depois, apesar dos meus esforços, irmã Geovana se apossou de mim como uma doença incurável. Escutava sua voz, sentia nos cabelos a maciez de suas mãos, a tristeza que um dia transferira de sua boca para a minha e que agora me umedecia os lábios. Em suma: minhas lembranças se materializavam de forma avassaladora.

De repente, levado por um súbito descontrole, abandonei a varanda e saí feito um louco pela granja, chutando a água que me impedia de correr, golpeando as árvores à minha frente, arrancando flores cuja beleza me parecia agora uma afronta à minha dor e amaldiçoando aquela que me acenara com a perspectiva de um futuro comum que jamais se cumpriria. Deus, que inventara o amor, não escapou à minha cólera - como naquela noite no terraço do convento - e contra Ele dirigi as piores ofensas, como se assim agindo pudesse amenizar o sofrimento que minha imaturidade impedia de suportar com resignação. Quando, por fim, se esgotaram tanto o meu fôlego como minha capacidade de inventar novas injúrias, tombei de quatro como um animal agonizante e nessa ridícula postura permaneci até meus músculos amolecerem, quando então mergulhei no charco.

Incapaz de compreender o que me acontecia, teria morrido afogado não tivesse monsenhor Flávio me agarrado pelos cabelos e, dando mostras de uma imprevista energia, me arrancado dali. Como disse há pouco, ele estava nos fundos da casa fazendo faxina e por sorte me vira passar feito um alucinado. Imaginando que algo de grave deveria estar acontecendo, resolveu me seguir. Devido ao defeito pernal, só pôde fazê-lo a uma certa distância, felizmente não tão grande que o impedisse de chegar a tempo de evitar minha morte. Conseguindo levantar-me da descomunal poça em que mergulhara, amparou-me até a casa, em cuja varanda nos estiramos, ambos exaustos. Dessa vez quem chorava amargamente era eu, mas monsenhor teve o bom senso de aguardar que se esgotasse o meu pranto, para então manter comigo o seguinte diálogo:

- Você acredita em premonições, Gabriel?

- Acredito, monsenhor...embora todas as que tive até hoje tenham sido péssimas.

- E você acha que elas se dão de forma casual ou revelam um desejo íntimo, profundo, adormecido no nosso inconsciente?

- Não sei, monsenhor...eu desconheço os mecanismos que regem a nossa mente. Mas se for verdade que as premonições são o reflexo de um desejo, então o meu inconsciente só nutre a meu respeito as piores intenções.

Nós não estávamos nos olhando, portanto não pude avaliar a reação de monsenhor a essa afirmativa. Em todo caso, depois de um breve silêncio, ele prosseguiu:

- É engraçado...mas hoje, assim que acordei, tive a intuição de que você teria um dia muito feliz.

- Pois eu tive uma intuição diametralmente oposta! - retruquei, erguendo-me nos cotovelos. - E pelo visto estava certo...

- O dia mal começou, Gabriel...-retorquiu, imitando minha postura.

- Eu sei...- e tornei a me estirar. - Mas tenho certeza de que a única coisa que poderia realmente me fazer feliz, hoje, não vai acontecer. Seria bom demais...

- Quem sabe?

Monsenhor se sentou e então eu pude vê-lo. Sua expressão denotava tamanha confiança que por um momento acreditei que o milagre se daria. Interessante figura, monsenhor Flávio: seu desespero e sua esperança se manifestavam com idêntico vigor. Ele, nesse instante, irradiava tanta certeza, tanta fé e, mais do que isso, tanta vontade de que eu fosse feliz que novamente me descontrolei e comecei a soluçar. Mais uma vez monsenhor aguardou que eu me acalmasse, sem pronunciar uma única palavra ou esboçar qualquer gesto. E no entanto eu o sentia todo tempo ao meu lado, presente, amigo. Quando tornei a olhá-lo, ele estava encostado à grade de madeira que limitava a varanda, olhando absorto a chuva que ainda caía, mas já com menor intensidade.

- O temporal se vai, meu amigo. É um bom sinal.

- Monsenhor...- falei, acercando-me dele - que a chuva caia ou deixe de cair, isso não altera nada!?

- Engano seu, Gabriel...- retrucou, olhando-me fixamente. - É imprescindível que pare de chover. Senão os caminhos se tornam impraticáveis.

Sua resposta me encheu de perplexidade. Que estaria monsenhor pretendendo dizer? Meu coração começou a bater mais forte, enquanto eu tentava desvendar o real sentido de suas palavras. Ele sustentou meu olhar com amesma serenidade e confiança anteriores, mas percebi em sua expressão o sorriso típico daquele que, mesmo conhecendo o segredo do outro, se abstém de explicitá-lo. Mas...seria a minha alma assim tão fácil de ser devassada? Não era possível que ele tivesse detectado o motivo de minha angústia, a menos que...

Foi então que para mim tudo se tornou claro. Ele ouvira meus gritos, portanto sabia do meu amor por irmã Geovana. Sua intuição, na verdade, não passava de um ardil que ele utilizara para tocar no assunto. Assim, ainda que movido pelas melhores intenções, ele me mentira e isso era grave. Afantando-me um pouco, disse:

- Essa história de premonição não passa de um blefe. O senhor ouviu meus greitos, nos quais o nome de uma determinada pessoa foi inúmeras vezes invocado. Agradeço sua intenção de me reconfortar, como sou grato por ter salvo a minha vida. Mas o senhor poderia ter ido direto ao assunto, me privando de escutar um preâmbulo totalmente dispensável!

Monsenhor ouviu esse breve e ardoroso discurso de forma impassível. Quando o concluí, se aproximou de mim e disse, com toda a calma:

- O nosso pacto de confiança absoluta ainda se mantém de pé?

- De minha parte, sim. Por quê?

- E se eu disser que a chuva torrencial que caía me impediu de compreender uma única palavra que você proferiu, você acreditaria?

- Só se o senhor jurar! - retorqui, secamente.

- A confiança dispensa juramentos. O essencial é a palavra dada - ajuntou, com firmeza.

À minha frente se achava um homem a quem eu fizera uma proposta, prontamente aceita, que me parecera a única que nos permitiria continuar convivendo em paz. Entretanto, na primeira ocasião em que sua consistência era posta à prova, eu vacilava. Não que estivesse arrependido de tê-la feito, apenas nunca vivera uma situação em que precisasse confiar cegamente em alguém.Isso me assustava. Não se tratava apenas de ceder, mas de aceitar sem qualquer restrição que monsenhor não estivesse mentindo. A manutenção de nosso pacto dependia disso, assim como nossa amizade.

Quando não suportei mais a urgência de seu olhar, afastei-me um pouco e fitei o horizonte. A chuva, nesse momento, já cessara e alguns raios de sol se infiltravam, atrevidos, por entre as nuvens que o vento dispersava. A natureza alterava seu humor, bania a própria angústia. Dentro de poucos minutos, os animais abandonariam seus refúgios e tornariam a caminhar pelos campos. As aves dançariam num céu sem nuvens e todos os seres dotados de vida haveriam de festejar, cada qual à sua maneira, a paz que de novo se instalava.

Pouco a pouco, esse espetáculo foi exercendo sobre mim uma poderosa influência e tal como o vento fizera com as nuvens, acabou afastando do meu coração toda a incerteza que o oprimia. Finalmente, quando tornei a olhar para monsenhor Flávio, já não tinha mais qualquer dúvida quanto à resposta que lhe daria. Curiuosamente, não senti nenhuma vontade de verbalizar a confirmação de nosso pacto. Nossa cumplicidade era evidente e as palavras, portanto, dispensáveis.

Monsenhor e eu continuamos na varanda, observando o fantástico espetáculo que a natureza nos oferecia. Pouco nos importamos com nossas roupas encharcadas. O essencial era apreciar as cores, os reflexos, as transparências, as infinitas gradações tonais que se davam no firmamento, que parecia empenhado em nos demonstrar sua incrível capacidade de mutação. Por volta das seis horas o céu se encheu de diamantes e só então voltamos a conversar.

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Os cegos

de Michel de Ghelderode
tradução de Aníbal Machado

PERSONAGENS:

De Witte
De Strop
Den Os
Lamprido (o caolho, rei do país dos fossos)

CENÁRIO:

Uma estrada em Brabante, perto de uma grande cidade.


(Ouve-se um canto. Peregrinos aproximam-se, pela estrada. É bastante lento o canto, se bem que entoado por homens de boa saúde. Os peregrinos são cegos que avançam, tateando com um bastão e segurando-se um ao outro pela ponta do casaco. Eis seu canto de marcha: "Congaudeant catholici retentur vivis celivi. Die ista.")

De Witte - E agora? Por mim eu paro! Se a nossa canção de peregrinos agrada a Deus, não comove as pedras do caminho. Meus pés estão sangrando e tenho a garganta seca que nem uma cratera.

De Strope - É preciso parar. Quando um de nós para, os três devemos parar; e quando um canta, devemos cantar; e quando um anda, andamos os três...Que destino!

Den Os - Que destino! Caminhar numa estrada que não enxergamos o fim, cantar uma lamentação em latim que não entendemos! Companheiros de miséria, proponho gemer os três com todas as nossas forças. Talvez alguém nos ouça, lá pelas nuvens ou na terra. Vamos gemer! Miserere!

Os Três - Miserere! Miserere! (Desafinados)

A Voz (Ao longe) - Miserere!

De Witte - Vocês ouviram? (Silêncio, ouvindo) Mais nada.

De Strope - Parecia que estava ouvindo...É a fome e a sede, a sede principalmente que nos perturba os sentidos.

Den Os - Eu ouvi. Sabem o que é? O eco. Vou experimentar: ou é o diabo que faz troça de nós e não responderá, ou então é o eco, que não mente e responde. Porque vou provocá-lo religiosamente.

De Witte - Sim, cante a missa para ele.

Den Os (Canta) - Kyyyy...

Os Três - Vamos escutar.

A Voz (ao longe, concluindo o cantochão) - Kyyyrie eleison...

De Witte - Está se vendo que não é coisa do diabo! É o eco, um eco de verdade, na certa um eco de um convento!

Den Os - Ah! Se esse eco quisesse nos dar uma esmola, ou pelo menos nos arranjar um canecão de cerveja escura!

De Strop - Não percam a esperança! Nosso sofrimento, nossa fome, nossa sede vão acabar, eu sei. É que nisso eu enxergo melhor que vocês.

De Witte - Mentiroso duas vezes! Você nasceu tão cego como nós.

Den Os - Mentiroso três vezes! Você é o mais cego de nós três!

De Strop - Amigos da minha dor, fiquem sabendo: já não estamos longe de Roma!

Den Os - Oh! Oh! Oh!

De Strop - Não sentiram que o sol ficou mais quente? Faz sete semanas que andamos. Vejam, ainda agora ouvimos um eco que canta missa...Em Flandres, para falar a verdade, não existe eco: tudo é chato, tudo é plano...Nas montanhas, sim, existem ecos. Estamos nas montanhas! E esse pintor que nos pintou faz pouco, que esteve na Itália, não disse que devíamos atravessar as montanhas? Como se chamava o pintor? Aquele esquisito, que nos deu um florim?

De Witte - Acho que era um tal de Brueghel.

De Strop - Esse mesmo, Brueghel! Ele disse que passando as montanhas já não estávamos longe de Roma!

Den Os - Disse também que podíamos andar sem medo nem receio, que de qualquer jeito acabávamos chegando, porque todos os caminhos vão dar em Roma.

De Strope - Aleluia! Vamos ver o Papa em pessoa, o Papa que nos vai fazer um milagre: dar-nos de novo nossos olhos!

De Witte - Aleluia! Vamos ver um montão de maravilhas...Ou então não veremos nada! O certo é que Roma é a cidade mais mirífica da Cristandade, e que lá beberemos até não poder mais, comeremos à farta, e dormiremos e dançaremos...Sei, de boa fonte, que esses romanos são de natural alegre e amigos dos prazeres. E nunca mais voltaremos para Flandres. Eu me planto nos degraus da Basílica, e acabo meus dias, ao sol.

De Strop - Eh! mau paroquiano! Faremos o que o Santo Papa nos mandar fazer!

Den Os - Quem sabe se ele não quer que a gente dê uma chegadinha até Jerusalém?

De Witte - Ou quem sabe, depois de nos ter olhado bastante, nos aconselha a voltar para o nosso país?

De Strop - Silêncio! Abram depressa os ouvidos! (Ouve-se um carrilhão longínquo)

Den Os - Agora sim! Sinos numa torre! Os sinos de Roma!

De Witte - Você está doido! É um carrilhão! E toca uma música que eu conheço, uma canção que em nossa terra se canta nos mercados.

De Strop - Vou dizer a vocês a verdade. É o célebre carrilhão de Roma! Como o Papa soube que três peregrinos flamengos estavam chegando, mandou tocar uma ária de Flandres, em nossa honra. Vejam só!

Os três (cantando a ária com o carrilhão) - La-la...la...bing...bong...(Gritando) Tocai, sinos benditos! Tocai para os que vêm de Flandres! Aqui estamos! Viva Roma e suas igrejas!

De Strop - Como dói ouvir, em terra estranha, os cantos de nossa velha pátria!

De Witte - Até parece o carrilhão de Bruges, onde nasci.

Den Os - Ou melhor, o do altivo campanário de Gand, minha nobre cidade.

De Strop - É tal e qual o de Antuérpia, a riquíssima, onde vi a luz do dia...(Choram os três sem nenhuma harmonia)

A Voz (ao longe, rindo às gargalhadas) - Ah! Ah! Ah!

De Witte - Escutem! Estão rindo no horizonte! Que nação maravilhosa esta Itália! Enquanto choramos, os ecos riem para os anjos! (Riem)

De Strop - Esse humor é que é admirável! Contemplem estes altos cimos nevados, donde vamos descobrir as cúpulas e os campanários da Cidade Eterna.

Den Os - Antes de mais nada, sintam estes perfumes estranhos. As flores têm cheiro de incenso, garanto!

De Witte - E vejo num relógio de sol que já é tempo de a gente se por a caminho. Quem vai à frente? Eu! Eu quero ser o primeiro a entrar na cidade mística.

Den Os - Serei eu! Nisto vejo melhor que vocês!

De Strop - Por que não eu, o menos cego dos três?

Den Os - Vamos!

De Witte - Seguremo-nos pelo casaco e batamos os cajados em cadência. (Caminham e cantam "Plenus pulchris caminibus studeat atque cantibus die ista").

A Voz - Die ista...

De Witte - Ué! O eco já não tem a mesma voz. Em que ponto cardeal está agindo agora?

De Strop - Será que estamos voltando, em vez de ir para Roma?

Den Os - Seria terrível! Acho bom interrogar o eco. Se é que ele sabe latim, deve saber geografia. Eu me encarrego disto. (Solenemente) Senhor Eco, digne-se a responder a três cegos que procuram seu caminho. Onde está, eco sutil?

A Voz de Lamprido - Numa árvore da qual descerei para ser-lhes agradável. Sou uma voz que tem patas e chegarei até vocês.

De Witte - Bem que eu pressentia, é um homem! Tanto melhor, ele nos dará esmolas. Vejo-o que vem chegando; um grandalhão, de chapéu redondo.

Den Os - É um pequeno, de chapéu quadrado.

De Strop - Calem-se! É um grande que ficou pequeno, porque é corcunda, nem mais nem menos, e o chapéu dele não passa de um boné de medalhas!

Lamprido (entrando) - Aqui estou, minha gente.

Os Três (tomando ares de mendigo e salmodiando em falsete) - Aqui está o bondoso cristão! Tende piedade de pobres ceguinhos, grandes pecadores! Piedade de calamitosos peregrinos, peregrinando neste vale de lágrimas! Tende piedade de nós!

Lamprido - Piedade tenho de cegos pecadores peregrinando. (ri)

Den Os - Por que ri? (Furioso) Quem é você?

Lamprido - Sou D. Lamprido, rei do país dos fossos, homem sábio que fica pendurado numa árvore em vez de caminhar tolamente para uma Roma onde vocês jamais chegarão. Pedem esmola? Vou dar-lhes maçãs, peras, ameixas, pêssegos, mel, ovos de pata.

De Strop - Nada disso! Queremos dinheiro!

Lamprido - Não o terão, mas posso dar-lhes conselhos e minha ajuda, que é certamente o de que vocês precisam.

De Witte - Não precisamos nem de ajuda nem de conselhos! Por mais cegos que sejamos, os três juntos enxergamos bem claro.

Lamprido - Orgulhosos! Sabem em que lugar estão?

De Witte - Sabemos! Estamos nas altas montanhas, no limiar da campanha romana.

Lamprido - Pois sim! Então escutem!

Den Os - Sim, sim...Somos cegos, não surdos. É o carrilhão de Roma!

Lamprido - Inocentes! Estão no país dos fossos. É preciso acreditarem em mim. Porque, sendo caolho, tenho a vantagem de ver com um olho; mas um só olho basta. Há muitos cegos no país dos fossos, onde sou rei, eu, caolho clarividente.

Os três (sem arrebatamento) - Iii! Ii! É um aleijado! Ha! Ha! E diz que é clarividente! Hi! Hi! E acha que não estamos perto de Roma!

Den Os - Vai-te embora, rei caolho! Não queremos saber nada de ti. És um farsante e teu país dos fossos não existe! Nossos longos cajados têm olhos e nos descrevem os aspectos das campinas. Sai daqui ou nós te batemos!

Os Dois Outros - Vamos dar nele, sim! (Os três dão cajadadas em todas as direções)

De Strop - Quem me bate?

Den Os - Assassino! Você está batendo em mim!

De Witte - Estão nos batendo! Acudam!

Lamprido - Ó trágico engano! Batem uns nos outros e se desancam! Batam à vontade, meus ceguinhos! Mas..o que? Pararam? Sim, sejam pacíficos. Agora escutem! Vou fazer-lhes uma caridade.

Os Três - Tende piedade, piedade dos pobres ceguinhos condenados a peregrinar pelos seus pecados.

Lamprido - Nem um vintém! Nem um tostão roído! O hálito de vocês bem me diz que adoram a pinga. Ouçam-me! Vou, caridosamente, desviá-los da desgraça iminente. (Silêncio) Os três escutam boquiabertos). O sol vai se por, as brumas sobem, violáceas...Há semanas que os vejo passar e repassar por estes caminhos, que de maneira alguma levam a Roma...Vocês não deixaram Brabante, e os sinos que ouvem são os da torre de São Nicolau, de Bruxelas. Pela minha única vista, avisto daqui os muros da cidade, as torres de Santa Gúdula e o famoso São Miguel Guerreiro, todo dourado, em cima da flexa de sua torre de pedra.

Den Os - É feio caçoar de três miseráveis que não enxergam!

De Witte - Está mentindo para nós. Não é meio-dia. E já faz semanas que deixamos os Países Baixos.

Den Strop - Tome cuidado, Lamprido! Você é um malvado! Denunciaremos você ao Papa! Compadres, não será algum bandido de estradas que vai cortar nossos tornozelos? Senhor!

Lamprido - Pela última vez lhes digo: estão no país dos fossos e a estrada é toda cheia de pântanos e prados inundados. Um passo em falso e desaparecerão! Dentro em pouco descerão as trevas. Vou tomá-los pela mão e conduzí-los ao refúgio da abadia, onde passarão a noite. Eis uma oportuna caridade, e a única que eu quero fazer.

De Witte - Acabemos com isto! A caminho! Deixemos esse velhaco com seus disparates!

De Strop - Embora cegos, temos dignidade! Acha que vamos aceitar auxílio de um caolho? Havemos de entrar em Roma, ainda esta noite!

Lamprido - Pois vão! Entrem em Roma! Mas tenham cuidado de, antes, recomendar suas almas e seus corpos à Providência! Cem vezes cegos aqueles que não querem acreditar no caolho! (Fica aborrecido) Todos os caminhos levam à morte! (Zombando) É ainda uma vaidade entre todas, querer bem ao próximo! Prossigam!

Os Três - Caminhemos.

De Strop - Adeus, caolho! E obrigado pela esmola!

Den Os - Adeus, rei dos fossos, rei das rãs e dos batráquios!

De Witte - Adeus, eco asneirento! Trepa de novo na tua árvore e prega às corujas! Chegou a nossa vez, amigos. Para adiante! E segurem o meu casaco.

Den Os - Eu seguro o casaco, segura o meu. Quem vai à frente?

De Strop - Para o Oriente! Direto!

Lamprido - Vocês estão indo para o Ocidente! Direitinho para a lama fétida, para o nada! Sigam!

Os Três - Honra aos gloriosos peregrinos de Flandres! (Avançam, afastando-se, e o canto ressoa) Haec este dies laubadilis divina luce nobilis...(O canto se interrompe) Socorro! Não me empurrem! Não me puxem! Lamprido! Socorro! É a água! Misericórdia! Estamos afundando...Eu me afogo! Jesus salvai-me! (Gritos ainda ofegos, e as vozes se extibguem).

Lamprido - Nada posso fazer por eles! Os fossos são tão profundos! Não cantarão mais os cegos! Acabou-se o seu caminho...Descansem em paz, meus irmãos, no velho barro de que todo mortal é formado. A noite avança. Vou ganhar de novo a minha árvore onde, por entre os pássaros adormecidos, rezarei por vossas almas cegas, pobres ceguinhos. Amém! (Lamprido sai. O carrilhão soa alegremente nos confins do crepúsculo).

FIM
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Esta peça está publicada na revista Cadernos de Teatro nº 68/1976/edição já esgotada.