quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A tragédia de Althusser

Wilson de Lyra Chebabi


(O presente artigo apresenta os comentários de Chebabi após a leitura dramatizada da peça "A tragédia de Althusser", de Carlos Henrique Escobar, dirigida por Dina Moscovici no Tablado, em 2000. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 161)


A experiência que vivemos ao assistir a leitura da peça é muito instigante porque permite compartilhar de uma etapa importantíssima da gestação de um evento teatral. A leitura pelos atores e o empenho em cada um de colocar-se no palco e no personagem, constitui uma espécie de metabolização do texto do autor. Evidentemente, esta metabolização vai permitir que o próprio autor se surpreenda com o que ele escreveu, ao verificar a pluralidade das nuanças possíveis em função da vivência de cada ator e do diretor. Esta vivência depende daquilo que o drama de cada personagem apresentado como que puxa de dentro da pessoa do ator e que vai permitir que ele vá, durante a representação, vindo a ser o personagem. Quanto melhor o ensaio conseguir essa espessura de experiência humana de representação, mais eficaz será a peça na proposta de colocar o espectador em contato com a teia do seu vivido e portanto compartilhar do drama com a sua inteligência e com a sua emoção.

Qual o valor de colocar-nos em conexão com o que a vida vem tatuando em nós? Qual a vantagem de nos reconhecermos em Louis Althusser, como nos foi apresentado por Carlos Henrique Escobar, que com isso representa-se também em novas facetas, além daquelas através das quais já o conhecemos?

Como todas as perguntas, estas foram feitas para não serem respondidas. Qualquer resposta interpor-se-ia entre o evento teatral que nos alcança, e sua força de emergência do que se acha velado dentro de nós. A pertinência da pergunta está em potencializar a força do que todos nós assistimos, cada um a seu modo, para que o acontecimento prossiga a sua vocação de despertar novas perguntas. Será então que o ator vai emprestar densidade ao personagem à medida que for se deixando tatuar por ele? Ou é o ator que tatua o personagem com a maneira como empresta a ele seus dramas pessoais? Qual dos dois é o tatuador e qual é o que está sendo tatuado? Não será que o que caracteriza esse animal estranho que é o ser humano, é justamente não poder escapar da tatuagem da cultiva e da mecessidade de praticar nos demais essas marcas indeléveis?

A tendência mais corrente é impingir marcas impressas com ferro e fogo, como se faz com gado, para classificar as pessoas, em vez de descobrir-lhes as múltiplas características. Esssa marca, que enxerta um estigma, visa ferir dolorosamente alguém para intimidar e com isso exercer o poder. Um proeminente professor da Sorbone, na época, declarou: "Eu lhes havia dito que aquela filosofia era homicida".

Essa obra que assistimos, de autoria de Carlos Henrique Escobar, e de seus metabolizadores desta noite, tem uma função valiosa: a de incentivar a ler Althusser como ele se empenhou em ler Marx e ainda Montesquieu, Spinoza, Gramsci, Freud e Lacan. É uma dedicação íntima, uma devoção de conhecimento que nos está trazendo a este evento. Que devoção teria levado Louis Althusser a assassinar Helène? Mais uma pergunta para não ser respondida e sim para acionar uma nova pergunta: que assassinato era praticado por Helène em sua devoção - mostrada abundantemente na peça - em cuidar de Althusser com tal constância e devoção?

A tragédia de Althusser é a tragédia do homem que pensa. Pensar é ponderar e ponderar é recusar a cegueira da adoção cega de uma facção. Pôr os dois pesos na balança. Pensar é recusar o sectarismo, isto é, recusar tentar invalidar os motivos dos setores aos quais não nos filiamos. Para isso ser tentado - pois não sei se é possível - torna-se indispensável manter uma vigilante capacidade crítica da posição que adotamos. Isto significa ter a coragem de não se sujeitar à pressão dos co-participantes para silenciar toda crítica que revela que a facção que adotamos ainda carreia em seu bojo núcleos profundos daquela facção da qual nos destacamos e contra a qual nos voltamos. Essa crítica é extremamente ameaçadora porque nos joga a todos no inferno da incerteza. E aí abre-se o abismo entre a atividade de pensar e a luta pelo poder.

Há uma diferença profunda entre pensar para saber e pensar para o poder. Do saber, sem a menor dúvida, surge também um poder, que é secundariamente alcançar conclusões que possam ser empregadas como armas que destroçam os adversários. A ilustração mais eloqüente disto é o desenvolvimento da física atômica. Pensar é, portanto, ponderar também a possibilidade dos usos destrutivos que possam ser feitos dos saberes alcançados pelo pensamento. Mas não há nenhum recurso do pensamento que garanta o bom uso de qualquer descoberta. E é por isso que só se pode pensar para valer se suportarmos pisar nas areias movediças da incerteza.

Para combater, contudo, é necessário contar, embora ilusoriamente, com o solo firme da certeza. É este solo que sustenta as guerras com as suas campanhas baseadas na sugestão e no hipnotismo das massas. Ninguém desconhece o fascínio criado pelo aparato de propaanda nazista, tanto mais bem sucedido quanto mais conseguia eleger um causador de todos os males: o judeu. Aí está o germe de todo racismo. Esta configuração de fatores estabelece um estado de coisas que não deve ser abalado a qualquer preço. O pensar é sem a menor dúvida o boicote mais perigoso, embora tardio, contra o status-quo. Para os que se apoiam na certeza que sustenta a conjuntura, pensar é trair.

Fervoroso católico em sua juventude, já nesta época Althusser via-se atormentado por dúvidas e pelo medo de estar sendo insincero. E por mais paradoxal que pareça, foi em fidelidade ao espírito da Igreja que tornou-se comunista. Teve de fazer a guerra, mobilizado em 1939 e foi preso em 1940, ficando cinco anos em campo de concentração. O cativeiro permitiu que tivesse a experiência do contato com proletários, camponeses e militantes comunistas, percebendo-se apaixonado pela política. Já em 1947 era hospitalizado em um estabelecimento psiquiátrico, por apresentar "sinais de desequilíbrio mental" e foi diagnosticado como "psicótico maníaco-depressivo". Como sabemos, esta assim chamada entidade nosológica é considerada causadora, pela psiquiatria tradicional, do que chamaram de "acessos melancólicos repetitivos".

Sujeitando-se a ficar marcado por essa tatuagem, podia ter um lugar na cultura. De outro modo sua inquietação cognitiva e a profunda dor pelo desperdício de vida na sociedade em que vivemos e a aguda consciênia da impotência em conseguir mudá-la, despertariam no meio social a desorientação e o caos. Com o selo de doente mental podia ser respeitado pelo seu meticuloso e profundo trabalho conceitual, que não teria nada a ver com os impasses a que chegaram o seu percurso cristão, o seu percurso marxista e o seu porte filosófico.

Na peça de Escobar não fica muito nítido a sua ânsia de encontrar uma síntese dessas vertentes que tivesse a possibilidade de mudar o mundo. Mas classificado como doente ficava invalidado como líder de qualquer movimento renovador. A doença que ele adotava permitia aplacar o desespero da sociedade ao ver denunciadas as razões gananciosas que movem os seus desastres. Como doente, seu pensamento ficava limitado ao universo teórico para ser respeitado e estudado, mas não para ser exercido. Aceitando esse estigma, aplacava o medo que os outros tinham da prática das suas propostas ideológicas.

Deste modo, foi possível então tornar-se professor de filosofia. Seus estudos nesse anos de 1948 na Escola Normal Superior em Paris deram-lhe o título de agregado de filosofia. Sua tese sobre Hegel revela a influência da tradução de Jean Hyppolite, também mestre de Jacques Lacan. Além destes, filiou-se ao ensinamento da epistemologia com Gaston Bachelard, supervisor de sua tese. Foi nomeado para substituir Georges Gusdorf na preparação dos candidatos a serem agregados. Outra relação importante foi com Michel Foucault, a quem aconselhou não se internar em hospital psiquiátrico e influenciou para entrar no Partido Comunista. Mantinha-se bem relacionado com o grupo católico da Escola.

Althusser toma a decisão, ao lado da maioria dos universitáriios franceses, de aderir ao marxismo e ao Partido Comunista. Disse mais tarde que encontrava no Partido os meios para a realização da fraternidade universal. Sem dúvida era a maneira de manter-se fiel ao espírito do cristianismo. Declarou que as mulheres lhe haviam dado tudo: "Não sabem quanta capacidade têm para fazer política".

Em minhas fontes, foi Helène que lhe abriu, no campo de concentração, as portas do marxismo. Em 1950 Helène continuava a ser acusada, sem a menor prova, de manter contato com grupos ligados à Espanha republicana. Foi expulsa do Partido e Althusser teria sido instado a romper com ela. E sentiu-se obrigado a comprometer-se a fazê-lo. Esse também é o período de novas internações e da assistência de Diatkine. Helène, contudo, continuou a visitar Althusser na Escola. Mais uma vez, a versão de que era um doente tornava mais possível suportar a contradição entre a sua maneira de pensar e o seu ato de traição à Heléne e a si mesmo.

Todos esses eventos estavam ocorrendo nos bastidores do andamento das coisas que aparecem na peça de Escobar. Várias de suas convicções e afeições profundas entravam em choque dentro dele. Como compatibilizar sua fé cristã com a repulsa marxista à religião? Em parte, sem dúvida, tendo a esperança de encontrar no marxismo a caixa de ferramentas que faltava ao cristianismo. Mas, em sendo uma luta decididamente assumida como procurando o poder, teria de infligir as propostas do amor ao próximo como a si mesmo. É bem verdade que tinha como argumento que também a Igreja sempre o fez. Mas tinha por outro lado a formação filosófica que, incitando o pensamento, punha em crise a adesão incondicional à qualquer versão da verdade. A pedido de Alain Badiou, Sartre fez uma palestra na Escola Normal Superior e um interlocutor conseguiu encurralá-lo. Foi Louis Althusser. Para nossa lástima o debate nunca foi publicado.

Althusser era acusado, cada vez mais, de "pluralismo perigoso", que abala as bases "maoistas" do marxismo. A gana crítica de Althusser era considerada coqueteria. Ao suspender os seus seminários, em função das intervenções repressivas da maioria dos psicanalistas franceses da época, Jacques Lacan foi convidado por Althusser a prossegui-los na Escola Normal Superior.

Althusser foi acusado de "esquerdismo" e teve de declarar que a linha própria e adequada era a do Partido Comunista francês. Daí para a frente foi se tornando a fonte do pensamento estudantil marxista. Passa a deplorar a indigência teórica do pensamento operário e postula que cabe aos intelectuais devolver ao marxismo o seu rigor científico. Faz reparo, pois, ao "humanismo" de Sartre, como aliás ao de Heidegger. Como Lacan apresentava a "releitura de Freud", Althusser se propunha a reler Marx. Em 1964 publicou "Freud e Lacan", mantendo sempre um respeito pela psicanálise até 1980, quando irritou-se tremendamente contra Lacan, numa época em que essa irritação já se estendia em muitos meios.

Althusser e seus seguidores eram considerados a esquerda da esquerda em contraste com a esquerda insossa do Partido. Esta queixava-se da ausência, em seus escritos, de referências à literatura escrita pelo Partido e a abundância de articulação ao estruturalismo, considerado reacionário. Essa erupção incessante, que incluía sucesso e infortúnio, não era ignorada por Althusser, que procurava tomar iniciativas de articular todas as forças internas e externas para não perder a lucidez.

A peça de Escobar revela a constância de recorrer a Diatkine, sempre incerto da certeza deste último. Fontes revelam que queixava-se fundamentalmente de ser tratado com reverência pelo analista em prejuízo do cuidado analítico de que precisava. De algum modo, Diatkine pareceu apoiar-se no diagnóstico psiquiátrico de psicose maníaco-depressiva. Os episódios da peça de Escobar com respeito à sensibilidade ao sofrimento dos animais e a cena pungente de auto-culpabilização pela morte do bizarro pequeno animal que lhe haviam presenteado podem já estar influenciados pela assunção básica e não questionada da enfermidade mental. Não se pergunta se o patológico é a sensibilidade pelo sofrimento de qualquer ser vivo ou se é a frieza para a vida e a paixão pelos engenhos que contemplam o poder e que se alastra cada vez mais na humanidade.

O que a peça nos mostra é uma Helène profundamente comprometida com o analista que se mantinha também psiquiatra medicando e internando. Não se pergunta se essa medicalização visava de fato a preservação da pessoa real de Althusser, inteiro, sacudido pelas contradições da vida e da sociedade paradoxal em que vivemos, ou a preservação do seu prestígio em cima do qual tantas pessoas se apoiavam. Helène também apoiava-se em seu saber caleidoscópico e o apoiava emocionalmente como uma espécie de mãe emparceirada com Diatkine. Tudo bem. Mas a questão fundamental continua flutuando sem ponto de fixação. Todos nós suportamos essa revisão na esperança de saber por que Althusser matou Helène? Essa pergunta só faz lançar-nos no redemoinho de novas dúvidas.

Será porque Althusser padecia da enfermidade "maníaco-depressiva?" Mas será que existe essa doença e será que ela é de origem orgânica? E mesmo que exista, a melancolia move as pessoas que a sofrem a matar? O que se estuda nos tratados psiquiátricos é que o melancólico se mata por considerar-se culpado de tudo e carente de castigo. A não ser que sua aspiração de auto punição fosse a de morrer em seu prestígio. Diz-se muito que essa foi a primeira morte de Althusser. Mas com toda a sua sofisticação espiritual, teria podido arruinar o seu prestígio escrevendo contra as suas posições até então tomadas, despertando então o desprezo dos que o apoiavam. Os melancólicos mencionados nos tratados de psiquiatria usam constantemente este expediente de auto condenação. Não foi o que fez Althusser.

Terá sido uma vingança contra o psicanalista? Se este se apoiava em seu prestígio intelectual, o assassinato de Helène por um lado comprovava a tese de ser ele um doente mental submetendo-se ao analista e por outro ferrava a pretensão de Diatkine de saber o que estava fazendo com Althusser. Terá sido um pacto de morte entre os dois amantes como há tantos? É verdade que Helène revelava uma certa culpa de estar com Althusser e se imaginava por vezes responsável por seu sofrimento.

Por que Althusser assassinou Helène? Não se sentiria assassinado por ela que funcionava como veículo da intolerância da sociedade com quem não toma partido cego de uma causa? A resistência heróica de Althusser contra a pressão social de abortar sua capacidade crítica precisava ser quebrada. Não terá Helène, sem disso dar-se conta, se deixado levar pela pressão do meio ambiente em sendo induzida a matá-lo aos poucos com a medicação que diminui a lucidez crítica?

Por que, afinal, Althusser matou Helène? Terá sido um gesto piedoso, ligado à sua mania de grandeza? Uma espécie de eutanásia misericordiosa? Em alguns momentos da peça parece que isot fica insinuado.

Ainda nos faltam dados essenciais para perguntar mais ainda: o percurso da análise de Althusser, se for possível chamar essa intervenção de análise, como foi acompanhada e exercida por Diatkine. Dados deste cunho, contudo, não podem ser exigidos de um analista que tem como dever resguardar o segredo médico. A única resposta só pode ser: não sabemos senão que não sabemos. E o que sabemos guarda-se no fundo de nós sem sabermos que sabemos.

A vida, contudo, não se sustenta sem uma ilusão de saber. A autocrítica sistemática e a incerteza radical põe-nos impotentes e sem vigor. Saber que assassinou a sua própria mulher, da qual dependeu tanto para sustentar-se vivo, ficou sendo um saber inegável. A impotência, filha da incerteza, devanecia-se uma vez que agora tinha posto em prática um ato hediondo concreto. Libertava-se do encarceramento na teoria em que ele havia sido isolado.
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Wilson de Lyra Chebabi é psicanalista

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A catástrofe do sucesso

Tennessee Williams


(Este ensaio, publicado pela primeira vez no New York Times, foi mais tarde reproduzido na revista Story)


Este inverno assinalou o terceiro aniversário da estréia, em Chicago, de À margem da vida, um evento que pôs término a uma parte de minha vida e começou outra tão diferente da precendente em todas as circunstâncias externas quanto será fácil imaginar. Fui arrancado do meu quase anonimato e atirado aos píncaros de uma fama repentina e, do precário aluguel de quartos mobiliados em várias regiões do país, fui trasladado para um apartamento de um hotel de primeira classe em Manhattan. Minha experiência não foi única, pois o sucesso muitas vezes já irrompeu, da mesma forma abrupta, na vida de muitos americanos. A história de Cinderela é nosso mito nacional favorito, a pedra fundamental da indústria cinematográfica, senão a própria Democracia.

Eu já a vira representada na tela tantas vezes que estava agora inclinado a recebê-la com um bocejo de enfado, não com descrença mas com a atitude de quem desse de ombros, exclamando: "Que bem me importa!". Qualquer pessoa dotada de dentes e cabelos tão lindos, como a protagonista cinematográfica de tal história, tinha, por força, que se divertir a valer, fosse como fosse. Você podia apostar seu último dólar e todo o chá da China em que aquela estrela nunca seria vista, viva ou morta, em qualquer tipo de reunião que exigisse um mínimo de consciência social.

Não, minha experiência não era exepcional, mas por outro lado não era tampouco comum e caso você esteja disposto a aceitar a tese um tanto eclética de que eu não escrevera tendo em mente tal experiência - e há muita gente não disposta a crer que um dramaturgo possa estar interessado em outra coisa que não seja o sucesso popular - talvez haja ceta razão para compararmos estas duas fases de minha vida.

A vida que eu levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocado mais alto que o precedente - mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado. Eu sou me dei conta de quanta energia vital eu desprendera naquela luta quando esta cessou. Encontrei-me então num planalto, com meus braços ainda se agitando no ar e meus pulmões sorvendo sofregamente um ar que já não oferecia resistência. Isto era a segurança, afinal.

Sentei-me e olhei ao meu redor e de repente me senti muito deprimido. Pensei comigo mesmo: não é nada, é só o período de adaptação. Amanhã de manhã, acordarei neste hotel de luxo, pairando sobre o ruído discreto que sobe de um bulevar dos quarteirões elegantes do East Side e então apreciarei seu requinte e mergulharei em seu conforto, consciente de que cheguei ao nosso conceito americano do Olimpo. Amanhã de manhã, quando eu olhar para este sofá de cetim verde, me apaixonarei por ele. É só agora, temporariamente, que aquele cetim verde me dá a impressão de limo em água estagnada.

Mas na manhã seguinte o sofazinho inofensivo parecia ainda mais repugnante do que na noite anterior e eu já começava a engordar demais para usar o terno de 125 dólares que um conhecido elegante escolhera para mim. Na suíte que eu ocupava, objetos começaram a quebrar-se acidentalmente. Um braço saiu do sofá. Queimaduras de cigarro apareciam na superfície brilhante dos móveis. Eu deixava as janelas abertas e uma vez uma chuvarada inundou a suíte. Mas a empregada sempre endireitava tudo e a paciência do gerente do hotel era inextinguível. Só uma bomba de demolição, parecia-me, podia incomodar meus vizinhos.

Eu recebia minhas refeições no apartamento. Mas também isto também tinha seu quê de desencanto. No tempo que decorria entre o momento que eu escolhia o jantar pelo telefone e o momento em que ele entrava em meu quarto num carrinho, como um cadáver transportado numa mesa de rodas de borracha, eu perdia todo o interesse por ele. Um vez pedi um bife de filé e um sundae de chocolate, mas tudo estava disfarçado tão habilmente na mesa que confundi a cobertura de chocolate com o molho da carne e a derramei sobre o bife.

É claro que tudo isto era só o aspecto mais trivial de um deslocamento espiritual que começou a manifestar-se de formas muito mais perturbadoras. Logo notei que comecei a ficar indiferente às pessoas. Senti-me presa de uma onda de cinismo. As conversas que eu ouvia me pareciam todas gravadas há muitos anos e tocadas de novo num toca-discos. Parecia que a sinceridade e a bondade tinham desaparecido da voz dos meus amigos. Suspeitei que fossem hipócritas. Parei de telefonar-lhes, parei de vê-los. Não tinha mais paciência com o que me parecia ser os sintomas de uma adulação idiota.

Fiquei tão saturado de ouvir gente dizer "adorei sua peça!" que já nem podia mais agradecer. Eu me engasgava com aquelas palavras e virava as costas grosseiramente à pessoa geralmente sincera que as dissera. Já não sentia orgulho pela peça em si, ao contrário, comecei a enjoar dela, talvez porque me sentia demasiado morto por dentro para poder escrever outra. Eu caminhava como um zumbi, um morto conduzido pelos seus próprios pés. Sabia disso mas não contava então com amigos em quem confiasse o suficiente para levá-los para um canto e contar-lhes o que me estava acontecendo.

Esta situação estranha persistiu durante três meses, até quase fins da primavera, quando decidi submeter-me a outra operação na vista, principalmente devido ao pretexto que ela me oferecia de retirar-me do mundo detrás de uma máscara de gaze. Era já minha quarta operação na vista e talvez eu deva explicar que eu sofria há uns cinco anos de uma catarata no olho esquerdo que exigia uma série de operações torturantes e finalmente uma operação no músculo do olho (ainda tenho esse olho, agradeço).

Bem, a máscara de gaze teve sua serventia. Enquanto eu estava repousando no hospital, os amigos, que abandonara ou insultara de uma forma ou de outra, começaram a visitar-me e agora que eu jazia em meio à escuridão e às dores, suas vozes pareciam ter mudado. Ou melhor: aquela mutação desagradável, que eu suspeitara antes, desaparecera no presente e elas soavam agora como sempre nos dias saudosos de minha obscuridade perdida. Novamente eu as reconhecia como sendo vozes sinceras e bondosas, animadas por um tom inconfundível de verdade e pela virtude da compreensão que me fizera buscá-las desde o início.

No tocante à minha visão física, essa última operação tinha tido resultados só relativamente bons (embora me tivesse deixado com uma pupila aparentemente preta na posição devida ou quase) mas em outro sntido, figurado, da palavra, ela servira a um propósito muito mais profundo. Quando foi retirada a máscara de gaze, encontrei-me readaptado ao mundo. Deixei o apartamento elegante do hotel de luxo, guardei na mala meus papéis e alguns pertences e parti para o México, um país telúrico em que se podem esquecer rapidamente as falsas dignidades e as vaidades impostas pelo sucesso, um país em que vagabundos inocentes como crianças enrolam-se para dormir nas calçadas e as vozes humanas, principalmente quando a linguagem em que falam não é familiar aos nossos ouvidos, parecem-nos suaves como o gorjeio dos pássaros. Meu "eu" público, aquele artifício de espelhos sobrepostos, não existia aqui, e, portanto, eu voltava a meu "eu" natural.

Depois, como um ato final de restauração espiritual, permaneci durante algum tempo em Chapala, para trabalhar numa peça chamada A partida de pôquer, que se tornaria mais tarde Um bonde chamado desejo. É só no seu trabalho que um artista pode encontrar a realidade e a satisfação, pois o mundo ambiente, real, é menos intenso que o mundo de sua invenção e consequentemente sua vida, sem recorrer a desordens violentas, não lhe parece muito importante. A condição verdadeira de vida para um artista, é aquela em que seu trabalho é não só conveniente mas também inevitável.

Para mim, um lugar conveniente para trabalhar é um lugar distante, em meio a estranhos, onde eu possa dar umas braçadas. Mas a vida deve exigir um mínimo de esforço de nossa parte. Você não deve ter gente demais a servi-lo, ao contrário: você devia fazer sozinho a maioria das coisas. O serviço oferecido pelos hotéis é embaraçoso. As empregadas, os garçons, os boys e os porteiros etc. são as pessoas mais embaraçosas do mundo porque continuamente estão a recordar-nos as iniqüidades que nós aceitamos como coisas certas.

O quadro de uma velhinha ofegante que carrega com enorme esforço um balde pesado d'água por um corredor de hotel para limpar a imundice de um hóspede bêbado e cheio de privilégios sociais é um quadro que me faz ficar doente e oprime meu coração, fazendo-o murchar de vergonha deste mundo, em que essa situação é não só tolerada mas considerada a prova dos nove de que o mecanismo da Democracia está funcionando devidamente, sem interferência de cima ou de baixo. Ninguém deveria ter que limpar a imundice de outrem neste mundo. É intoleravelmente horrível para ambas as pessoas, mas talvez pior ainda para quem recebe esse tipo de serviço.

Fui tão corrompido quanto qualquer outra pessoa pelo número vastíssimo de serviços humilhantes que nossa sociedade se acostumou a esperar e do qual ela depende. Mas nós devíamos fazer tudo por nós mesmos ou deixar que as máquinas o fizessem por nós, a gloriosa tecnologia que garente ser o facho de luz do mundo futuro. Somos como um homem que comprou uma quantidade enorme de equipamento para acampar, que tem a canoa e a barraca, as linhas de pescar e o machado, os fuzis, os lençóis e os cobertores mas que agora, que todos os preparativos e providências estão empilhados, por mão de perito, uns sobre os outros, sente-se de repente demasiado tímido para inicar a jornada e fica-se onde estava ontem e antes de ontem e antes e antes, olhando com desconfiança, através das cortinas de renda branca, para o céu claro de que se suspeita.

Nossa grandiosa tecnologia é uma oportunidade, que Deus nos enviou, para gozarmos da aventura e do progresso que temos medo de arriscar. Nossas idéias e nossos ideais continuam sendo exatamente os mesmos, no mesmo ponto em que os deixamos, três séculos atrás. Não, desculpe! Já ninguém mais se sente seguro bastante para sequer afirmá-los! - esta foi uma digressão longa, partida de um tema pequeno para um imenso, que eu não tinha intenção, originalmente, de fazer, por isso voltemos ao que eu estava dizendo antes.

O que venho afirmando é uma simplificação extrema. Ninguém escapa assim tão facilmente da sedução de uma maneira de viver sibarítica. Você não pode arbitrariamente dizer a si mesmo, de um momento para o outro: agora vou continuar minha vida como ela era antes de esta coisa, o Sucesso, me acontecer. Mas logo que você aprender a vacuidade de uma vida sem lutas, você estará equipado com os meios básicos de salvação. Logo que você souber que isto é verdade, que o coração do ser humano, seu corpo e seu cérebro são forjados numa fornalha de brasas vivas especificamente para o propósito do conflito, do choque (a luta criadora), e que, uma vez desaparecendo esse conflito, o homem é uma mera espadinha de criança, boa para cortar margaridas, que não é a privação mas sim o luxo o lobo mau, que os dentes agudos do lobo são formados pelas vaidadezinhas e indolências pequeninas que constituem o legado do Sucesso - então, de posse desta certeza, você está pelo menos apto a saber onde reside o verdadeiro perigo.

Você sabe, então, que o "alguém" público que você é quando "tem um nome" é uma ficção criada por espelhos, e que o único alguém digno de você ser é o seu "eu" solitário, não visto pelos demais, que existiu desde a sua primeira respiração e que é a soma de todas as suas ações e, portanto, está sempre num estado de eterno devenir, moldado pela sua própria vontade - sabendo essas coisas, você poderá sobreviver até à catástrofe do Sucesso!

Nunca é tarde demais, a menos que você abrace a deusa-cadela, a Fama, como William James a alcunhou, com os braços abertos e ache em seus abraços sufocantes exatamente aquilo que o menininho inquieto dentro de você, com saudades de casa, queria: proteção absoluta e uma vida sem sacrifício e esforços de espécie alguma. A segurança é uma espécie de morte, creio, e pode atingi-lo numa enxurrada de cheques de direitos autorais, junto a uma piscina em forma de rim em Beverly Hills ou em qualquer outro lugar que esteja divorciado das condições que tornaram você um artista, se é isso que você é ou foi ou quis ser. Pergunte a qualquer pessoa que já passou pelo tipo de sucesso de que estou falando. Para que serve? Provavelmente para obter uma resposta honesta, você terá que dar-lhe uma injeção de soro da verdade, mas a palavra que ele emitirá finalmente, com um gemido, não pode ser publicada em publicações refinadas.

Então o que nos serve, afinal? O interesse obsessivo pelas vicissitudes humanas, além de uma certa dose de compaixão e de convicção moral, que pela primeira vez tornou a experiência de viver algo que deve ser traduzido em pigmento, música, movimentos corpóreos ou poesia ou prosa ou qualquer coisa dinâmica e expressiva. Isso é que lhe será útil se é que você tem objetivos sérios. William Saroyan escreveu uma grande peça sobre esse tema, o de que a pureza de coração é o único sucesso que vale a pena termos. "Durante sua vida - viva!". A vida é curta e não volta nunca mais. Ela está fluindo furtivamnte agora, enquanto eu escrevo isto e enquanto você me lê e o pêndulo do relógio, ao oscilar, repete somente: "Nunca mais, nunca mais, nunca mais", a menos que você se lance, de coração, em oposição a ele.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Teatro/CRÍTICA

"A máquina de abraçar"

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Poderosa metáfora da atualidade


Lionel Fischer


Sem dúvida uma das atividades mais relevantes exercidas pelo homem, posto que objetiva livrá-lo de todos os males que o afligem - tanto físicos como psicológicos -, e mesmo levando-se em conta seus inegáveis avanços, mesmo assim a Medicina ainda engatinha em muitos campos. Como, por exemplo, no que se refere ao Autismo. Doença até o momento incurável e de origem desconhecida - ainda que muitas hipóteses venham sendo formuladas -, em contrapartida dela conhecemos inúmeros sintomas, capazes de indicar que uma criança seja autista.

Dentre esses sintomas, podem ser citados: acentuada falta de reconhecimento da existência ou dos sentimentos dos demais, anormalidade na comunicação não verbal, marcada anomalia na emissão da linguagem com afetação, anomalia na forma e conteúdo da linguagem, movimentos corporais estereotipados, preocupação persistente por parte de objetos, intensa aflição em aspectos insignificantes do ambiente, insistência irracional em seguir rotinas com todos os seus detalhes, limitação marcada de interesses com concentração em um interesse particular e, finalmente, múltiplas ausências: de busca de consolo em momentos de aflição, de capacidade de imitação, de relação social e de vias de comunicação adequadas.

Embora um tanto extensa, a introdução acima me parece justificável na medida em que o presente texto, do espanhol José Sanchis Sinisterra, foi inspirado no relato de uma autista real ao neurologista Oliver Saks, que o converteu no livro Um antropólogo em Marte - mas é possível que Sinisterra tenha também se inspirado em Wilhelm Reich (1897-1957), médico e cientista natural alemão, em especial em uma das três técnicas terapêuticas que criou: "A vegetoterapia caractero-analítica". A partir desta leitura, Sinisterra escreveu A máquina de abraçar, ambientada em um congresso psicanalítico e protagonizada por uma terapeuta e sua paciente autista. Com direção de Malu Galli, a peça pode ser vista no Espaço Tom Jobim, interpretada por Marina Vianna (terapeuta) e Mariana Lima (autista)

A mola propulsora da ação seria a surpreendente recuperação da paciente - ainda que parcial -, que lhe permitiu, dentre outras coisas, escrever um livro sobre a vida afetiva das pantas, já em sua 11ª edição, e a criação da tal máquina de abraçar. No entanto, e salvo monumental engano de minha parte, o autor apenas se serviu da doença para convertê-la em poderosa e assustadora metáfora dos tempos que correm. Isto fica claro, em especial, quando a terapeuta denuncia os "tubarões" que dominam o mundo - banqueiros, empresários, empreiteiros, especuladores etc. - que, a exemplo dos autistas, não estabelecem com os demais mortais nenhum tipo de comunicação, carecem de uma mínima capacidade de escuta e apenas se empenham em materializar seus próprios interesses. O mundo estaria, portanto, dominado por um autismo inteiramente imune a quaisquer esforços terapêuticos convencionais.

Bem escrito, contendo ótimos personagens e mexendo em feridas que tendem cada vez mais a se agravar, o ótimo texto de Sinisterra recebeu uma versão cênica à altura de sua pertinência. Em sua primeira direção teatral, a excelente atriz Malu Galli impõe à cena uma dinâmica austera, seca, plena de nervosidade, provocando na platéia um permanente estado de inquietação. Mas tal feito, evidentemente, só se materializou graças à colaboração de todos os profissionais envolvidos neste mais do que oportuno projeto. A começar pelas duas atrizes.

Na pele da terapeuta, Marina Vianna consegue transmitir, com vigor e sensibilidade, as principais características da personagem, dentre elas sua determinação em tratar a paciente através de métodos nada ortodoxos e sua entrega absoluta à tarefa de tentar recuperar uma pessoa destinada à solidão e à indiferença - afinal, autismo não tem cura, não é mesmo?

Com relação a Mariana Lima, esta exibe aqui a melhor performance de sua carreira. E isto se deve não somente à sua notável capacidade de criar gestos que nos remetem aos dos autistas, tampouco às pausas e modulações de voz - certamente admiráveis - mas sobretudo porque a atriz dá a sensação de que o resultado de sua composição partiu de suas entranhas e não de mera imitação de pacientes portadores da doença. Certamente posso estar enganado, mas ouso supor que Mariana Lima deva ter feito uma exaustiva e, quem sabe, dolorosa pesquisa interna, buscando em si própria os elementos que mais tarde conseguiu converter em comoventes e emocionantes signos visuais e auditivos. Sem dúvida, estamos diante de um trabalho de exepcional qualidade, um dos melhores da atual temporada.

Na equipe técnica, Raul Mourão responde por irretocáveis cenografia, direção de arte e instalação, a mesma excelência aplicando-se à tradução de Eric Nepomuceno, à direção de imagens de Caetano Gotardo, aos figurinos de Domingos Alcântara, à direção de movimento de Denise Stuz, à direção musical de Rodrigo Marçal e à iluminação de Maneco Quinderé.

A MÁQUINA DE ABRAÇAR - Texto de José Sanchis Sinisterra. Tradução de Eric Nepomuceno. Direção de Malu Galli, Com Marina Vianna e Mariana Lima. Espaço Tom Jobim. Quinta e domingo, 19h. Sexta e sábado, 21h30.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Teatro/CRÍTICA

"Gorda"

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Divertida crítica ao preconceito

Lionel Fischer


Como todos sabemos, vivemos acossados por múltiplas tiranias - sociais, econômicas, políticas etc. Mas também por outras, digamos, menos atreladas à dinâmica da História, mas sem dúvida de caráter extremamente nocivo. Nos tempos que correm, a imagem é tudo. E no caso específico da mulher, ela pode reunir dezenas de qualidades - morais, espirituais, intelectuais, dentre muitas outras - mas estará a um passo da desgraça se não for magra.

Trata-se, evidentemente, de uma completa estupidez, posto que oriunda da bizarra crença de que a magreza seria uma espécie de passaporte para a felicidade. E o modelo a ser seguido seria o das manequins, em sua maioria anoréxicas, deprimidas e de curta sobrevida em uma profissão que impõe medicamentos que aniquilam a saúde.

No presente caso, estamos diante de uma gorda assumida e feliz, que se apaixona por um jovem e belo executivo - sendo plenamente correspondida - e com ele inicia um romance, certa de que ele é diferente de todos os homens, já que despido de preconceitos quanto ao conceito de beleza em voga. E a platéia também embarca nessa ilusão, pois o dito executivo tinha um caso com uma colega de trabalho perfeitamente enquadrada nos padrões vigentes - bonita e MAGRA! - e a troca pela gordinha. No entanto, ele acaba não resistindo às pressões e piadas dos amigos, assume sua fraqueza e o romance naufraga.

Eis, em resumo, o enredo de "Gorda", do norte-americano Neil Labute, em cartaz noTeatro das Artes. O argentino Daniel Veronese assina a direção do espetáculo, Kledir Ramil a tradução e a adaptação, estando o elenco formado por Fabiana Karla (Helena, a gorda), Michel Bercovitch (Tony, o jovem e belo executivo), Fávia Rubin (Joana, a magrinha) e Mouhamed Harfouch (Caco, colega de trabalho de Tony).

O presente texto pode ser definido como uma comédia e como tal desperta muitos risos. No entanto, acreditamos que tais risos não são apenas fruto das muitas piadas e passagens realmente engraçadas, mas de uma espécie de manifestação do inconsciente coletivo da platéia, que, embora torça pela Gorda, certamente compactua com os preconceitos de que ele é vítima. Se assim não fosse, todos ririam menos e se indignariam mais. E quando se chega a um final melancólico, certamente a platéia fica triste, mas no fundo deve acreditar que o desfecho não poderia ser outro. Ou seja: somos todos, ou quase todos, descaradamente preconceituosos e certamente não aprovaríamos que um filho nosso, belo e bem sucedido, se unisse a uma mulher que norteia sua vida a partir de valores que não podem ser aferidos numa balança.

Quanto ao espetáculo, Daniel Veronese impõe à cena uma dinâmica simples, basicamente centrada na relação entre os personagens. E tal escolha se revela totalmente adequada, pois aqui o que realmente interessa está muito mais ligado às palavras do que a marcações mirabolantes. E os conteúdos propostos pelo autor afloram de forma irrepreensível, graças ao ótimo rendimento que Veronese extraiu do elenco.

Na pele da Gorda, Fabiana Karla exibe performance irretocável, plena de humor e humanidade. A mesma excelência está presente na atuação de Michel Bercovitch, que materializa com grande sensibilidade um caráter não isento de impulsos salutares, mas essencialmente fraco. Mouhamed Harfouch também brilha encarnando aquele americano típico - brincalhão, aparentemente parceiro e solidário, mas no fundo um canalha inteiramente dominado por abjetos preconceitos. Finalmente, Flávia Rubin também apresenta uma performance em total sintonia com a idiota a quem dá vida.

Na equipe técnica, consideramos de bom nível o trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta oportuna empreitada - Kledir Ramil (tradução e adaptação), Graciela Platek (direção musical), Alberto Negrin (cenografia), Vanessa Lopes (figurinos) e Gonzalo Cordova (iluminação, aqui adaptada e operada por Marcelo Andrade).

GORDA - Texto de Neil Labute. Direção de Daniel Veronese. Com Fabiana Karla, Flávia Rubin, Michel Bercovitch e Mouhamed Harfouch. Teatro das Artes. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

"Nunca há satisfação,
nunca há sucesso"

(Um dos dramaturgos mais controvertidos e badalados dos Estados Unidos, diretor de um grupo que atende pelo curioso nome de Teatro Histérico Ontológico, Richard Foreman concedeu a entrevista que se segue - aqui parcialmente reproduzida - a Elinor Fuchs no St. Mark's Theatre, em Nova York, em novembro de 1993. Essa entrevista está publicada na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 154, assim como a peça de Foreman "Minha cabeça era uma marreta", tradução de Fernanda Espíndola).

* * *

FUCHS - Com muita frequência, os palcos de suas peças são "cercados" por textos escritos, seja por jornais, pôsteres ou slogans colados no cenário, e isso acontece nas formas mais abstratas de escrita.

FOREMAN - Eu costumava dizer que queria que a experiência de assistir uma peça fosse como a experiência da leitura. Não tenho pensado muito nisso ultimamente. Mas sempre quis que o que estivesse diante dos espectadores tivesse o maior número de camadas possível. E ler instruções de vários tipos, referências a uma língua que estava se dissolvendo, era apenas uma tentativa - eu acho, apesar de eu não conceitualizar nada se estiver tendo idéias - de indicar que sempre se vê alguma coisa, vêem-se também todas as interpretações e frações de interpretação que foram herdadas. O uso de letras, alfabetos e roteiro sugere, para mim, todos os tipos de comentários que se sobrepõem às visões que as pessoas têm do mundo. Em Hotel China, em 1971, usei retroprojetores com comentários de Brecht na peça, mas não eram os comentários tipicamente brechtianos. Lembro que as pessoas liam estas 12 pequenas placas coloridas, que eram cobertas com um pedaço de pano, e por baixo deste havia uma pedra, revelada quando o pano era retirado. Quando isso acontecia, a tela se acendia e dizia algo para a platéia, como "Não preste atenção nas pedras, mas nas cores das mesas".

FUCHS - Você citou Brecht quando falava de "visão complexa". Isto está nas anotações de A ópera dos três vinténs, onde ele fala da "literalização do teatro". Ele tenta explicar por que está dando título às cenas. Ele tem uma visão de que pode criar rodapés para a peça, mas não sabe como e então exclama: "É necessário algum exercício de visão complexa!".

FOREMAN - À medida que envelheço, adoto com firmeza uma postura quase anti-brechtiana no sentido de que não quero esclarecer nada, não quero dar idéias. O que quero expressar e evocar continuamente nas pessoas é a sede de sentido, o desejo que nos impulsiona de que as coisas poderiam fazer sentido e de que haveria um sentido final. No qual, obviamente, não acredito. Acredito que todas as explicações são contingentes. E ser capaz de aceitar isso sem deixar de se interessar por idéias é meu principal objetivo.

FUCHS - Se temos sede de sentido, sem sentido, sem um sentido fixo, que tipo de entendimento devemos ter quando você usa uma combinação de palavras no palco, como nas caras dos personagens de Eddie Goes to Poetry City, nos quais lemos "Teoria Poética". Como tratamos estas palavras? Tratamos como objetos, como um tapete persa? Tratamos o sentido como objeto? Pergunto isso porque acho que não devemos atribuir sentido a "Teoria Poética".

FOREMAN - Sinceramente, não sei. Acho que sou fundamentalmente um artista cômico, apesar de não fazer a platéia rolar de rir. Então eu ridicularizo minhas próprias pretensões de ter uma teoria poética e, novamente, ridicularizo minha sede de ser poeta e de ter uma teoria, sabendo que, numa análise final, nada disso vai mudar o mundo, emocioná-lo ou mesmo ser percebido por ele. Mas esta é a minha sede.

FUCHS - Vejo camadas de anotações nos seus cenários que transformam-se gradativamente em esferas bastante misteriosas. Primeiro, palavras em inglês, às vezes lemas ocultos e finalmente uma penumbra de letras hebraicas. É então que começo a associá-lo à cabala. É claro que as letras hebraicas não estão lá apenas para serem alegorizadas pela platéia. As letras têm estado lá por quase o mesmo tempo que conheço seu trabalho. Pode dizer algo sobre elas sem que eu faça uma pergunta floreada?

FOREMAN - Na verdade, posso dizer muito pouco. Não entendo hebraico, então não sei que letras uso. Acho que só estou escolhendo decoração. Quando era jovem, odiava ir à sinagoga. Nunca fui "crismado". Jurei nunca mais entrar numa sinagoga, larguei tudo. Contudo, ainda me fascinavam alguns aspectos da literatura judaica, alguns autores. Eric Gutkind foi um cara que influenciou muito os Becks que fez com que eu me interessasse pelo judaísmo esotérico. É claro que Scholem também. Há ainda uma figura bastante esquisita, Carlo Suares, um escritor judeu místico que começou como discípulo de Krishna Murti, se não me engano. Eu me interessei por alguns de seus livros sobre o significado místico das letras hebraicas. Recentemente, comecei a me interessar por Levinas. Baseio minhas escolhas em todas essas fontes, que são essencialmente literatos ocidentais, não verdadeiros "judeus"...

FUCHS - Então as letras estão lá como uma espécie de metáfora não atribuída e não como uma reflexão literal de um interesse pelo judaísmo.

FOREMAN - Eu simplesmente odiava a sinagoga, mas acho que escrevo a partir das minhas raízes de infância. Percebi que, nos cenários de minhas peças, acabo retornando obsessivamente a uma área entre paredes. De início, pensei que fossem cercadinhos de criança, recordações da infância. Agora, porém, acho que estas áreas sugerem a sinagoga, onde existe uma pequena área cercada para a leitura do Torá. Frequentemente, quando estou frustrado e não sei o que fazer com o cenário, dou uma olhada em fotos de sinagogas antigas e pego algumas idéias arquiteturais desse local de culto e ritual dominado pelo Livro, quer dizer, pela leitura.


quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Conversa sobre teatro

Federico Garcia Lorca


(Em 31 de janeiro de 1935, os atores dos vários teatros de Madrid solicitaram a Margarita Xirgu, a genial criadora de "Yerma", que fizesse para eles um espetáculo extra, ao qual estaria presente o autor, o poeta e dramaturgo andaluz Federico Garcia Lorca. Após este espetáculo, Lorca proferiu as palavras que se seguem).


Queridos amigos: fiz, há tempos, a promessa firme de recusar toda a espécie de homenagens, festas ou banquetes que se fizessem à minha modesta pessoa. Em primeiro lugar, por entender que cada uma dessas cerimônias equivale à colocação de uma pedra sobre o nosso túmulo literário. E, em segundo lugar, porque notei que não há coisa mais desoladora que o discurso frio pronunciado em nossa honra, nem momento mais triste que o do aplauso organizado, ainda que inteiramente de boa fé.

Além disso - e isto é segredo - creio que banquetes e pergaminhos trazem maus agouros para o homem que os recebe; mau agouro proveniente da atitude descansada dos amigos que, ao homenageá-lo, pensam: "Com este já estamos quites". E mais: um banquete é uma reunião de profissionais que comem junto de nós e onde se encontram, normalmente, as pessoas que na vida menos gostam de nós. Para os poetas e dramaturgos, eu organizaria, em vez de homenagens, torneios e desafios nos quais fôssemos galharda e injuntivamente emprazados: "Aposto que não é capaz de fazer isto!", "Aposto que não é capaz de exprimir numa personagem a angústia do mar!" etc.

Os teatros estão cheios de enganadoras sereias coroadas de rosas de estufa, e o público sente-se satisfeito e aplaude quando vê corações de serradura e escuta diálogos à flor dos dentes. Mas o poeta dramático não deve esquecer, se quiser salvar-se do esquecimento, os campos de rosas molhadas pelo amanhecer, em que os lavradores sofrem, e essa pomba ferida por um misterioso caçador, que agoniza entre os juncos sem que ninguém ouça seus gemidos.

Fugindo das sereias, das solicitações e das vozes falsas, não aceitei qualquer homenagem por ocasião da estréia de Yerma; mas experimentei a maior alegria da minha breve vida de autor quando soube que a família teatral madrillena pediu à grande Margarita Xirgu, atriz de imaculada história artística, luzeiro do teatro espanhol e criadora admirável do papel, juntamente com a companhia que tão brilhantemente a secunda, uma representação especial para vê-la.

Pelo que isto significa de curiosidade e atenção para com um esforço notável de teatro, quero apresentar, agora que estamos reunidos, os melhores e mais sinceros agradecimentos a todos. Esta noite não falo como autor nem como poeta, nem sequer como simples estudante do panorama riquíssimo da vida do homem: falo como ardente apaixonado de um teatro de ação social.

O teatro é um dos instrumentos mais expressivos e úteis para a edificação de um país; é o barômetro que marca a sua grandeza ou a sua decadência. Um teatro sensível e bem orientado em todos os seus setores, da tragédia au vaudeville, pode em poucos anos modificar a sensibilidade do povo; e um teatro desordenado, em que as patas substituem as asas, pode abastardar e adormecer uma nação inteira. O teatro é uma escola de lágrimas e de riso, uma livre tribuna onde os homens podem pôr em evidência velhos ou equivocados princípios de moral e explicar, com exemplos vivos, normas eternas do coração e do sentimento do homem.

Um povo que não ajuda e não fomenta o seu teatro, se não morreu ainda, está moribundo; do mesmo modo que o teatro que não atende à pulsação social, à pulsação histórica, ao drama de seu povo e à genuína cor de sua paisagem e do seu espírito, através do riso ou das lágrimas, não tem o direito de se chamar teatro, mas antes sala de jogo ou lugar para fazer essa coisa medonha que se chama "matar o tempo". Não me refiro a ninguém em particular, nem quero ferir ninguém; não falo da realidade viva, mas o problema posto em tese.

Todos os dias ouço falar da crise do teatro, e penso sempre que o mal não está diante dos nossos olhos, mas sim no mais obscuro da sua essência; não é um mal de flor atual, mas de raiz profunda, ou seja, o mal não está nas obras mas sim na própria organização. Enquanto os atores e autores estiverem nas mãos de empresas absolutamente comerciais, entregues a sí próprias, e sem qualquer fiscalização literária ou estatal de nenhuma espécie, empresas carentes de todo o critério e sem garantia de nenhuma classe, os atores, os autores e todo o teatro cada dia mais se afundarão, sem salvação possível.

O delicioso teatro ligeiro de revista, o vaudeville e a comédia-bufa, gêneros de que sou afeiçoado espectador, poderiam defender-se e salvar-se ainda; mas o teatro em verso, o gênero histórico e a chamada zarzuela cada dia sofrerão mais reveses, porque são gêneros muito exigentes e que comportam autênticas inovações, e não há autoridade nem espírito de sacrifício para incorporá-las a um público que precisa ser dominado com elevação e em muitas ocasiões contraditado e atacado. É o teatro que deve impor-se ao público, e não o público ao teatro.

Para isto, autores e atores deverão revestir-se, mesmo à custa de sangue, de uma grande autoridade, porque o público de teatro é como as crianças nas escolas: adora o professor grave e austero que exige e faz justiça, e espeta agulhas cruéis nas cadeiras em que se sentam os professores tímidos e complacentes, que não ensinam nem deixam ensinar.

O público pode ser ensinado - repare-se que falo em público, não em povo -; pode ser ensinado, porque eu vi Debussy e Ravel serem vaiados há anos, e tempos depois assisti às clamorosas ovações que um público popular dirigia às obras que antes repudiara. Estes autores foram impostos por um alto critério de autoridade superior ao do público comum; o mesmo sucedeu a Wedekind na Alemanha e a Pirandello na Itália, e a tantos outros.

Há necessidade de assim proceder para o bem do teatro e para a glória e dignificação dos seus intérpretes. Há que manter atitudes dignas, com a certeza de que serão recompensadas com juros. O contrário é tremer de medo nos bastidores e matar a fantasia, a imaginação e a graça do teatro, que é sempre uma arte, e sempre há de ser uma arte excelsa, embora tenha havido uma época em que se chamava arte a tudo o que apenas servia para rebaixar a atmosfera e destruir a poesia.

Arte acima de tudo. Arte nobilíssima; e vós, queridos atores, artistas acima de tudo. Artistas dos pés á cabeça, pois que foi por amor e por vocação que haveis ascendido ao mundo fictício e doloroso das tábuas do palco. Artistas por ocupação e preocupação. No teatro mais modesto como no mais elevado deve sempre escrever-se a palavra "Arte" na sala e nos camarins, porque senão teremos que escrever a palavra "Comércio".

Não quero dar-vos uma lição, porque me encontro em condições de recebê-la. O entusiasmo e a certeza ditam as minhas palavras. Não sou um iludido. Pensei a fundo - e a frio - no que digo e, como andaluz, possuo o segredo da frieza, porque tenho sangue antigo. Sei que a verdade não a detém aquele que repete "hoje, hoje, hoje" enquanto come o seu pão junto à lareira, mas sim o que serenamente olha à distância as primeiras luzes da alvorada no campo.

Sei que não tem razão aquele que diz "Agora mesmo, agora, agora" com os olhos postos na garganta estreita da bilheteria, mas sim o que diz "Amanhã, amanhã, amanhã" e sente aproximar-se a vida nova que avança sobre o mundo.
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Extraído de Teatro Moderno, Luiz Francisco Rebello, 1964. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 72/1977, edição já esgotada.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A nova técnica da
arte de representar

Bertolt Brecht


Tentarei descrever uma técnica de representação utilizada para distanciar os acontecimentos apresentados ao espectador. O objetivo desta técnica do efeito de distanciamento é conferir ao espectador uma atitude analítica e crítica perante o desenrolar dos acontecimentos. Os meios empregados para tal são de natureza artística.

Para a utilização deste efeito, segundo o objetivo já mencionado, é condição necessária que no palco e na sala de espetáculos não se produza qualquer atmosfera mágica e que não surja também nenhum "campo de hipnose". Não se intenta, assim, criar em cena a atmosfera de um determinado tipo de espaço (um quarto à noitinha, uma rua no outono), nem tampouco produzir, através de um ritmo adequado da fala, determinado estado de alma.

Não se pretende "inflamar" o público dando-se rédea solta ao temperamento, nem "arrebatá-lo" com uma representação bem feita de músculos contraídos. Não se aspira, em suma, pôr o público em transe e dar-lhe a ilusão de estar assistindo a um acontecimento natural, não ensaiado. Como se verá a seguir, a propensão do público para se entregar a uma tal ilusão deve ser neutralizada por meios artísticos.

É condição necessária para se produzir o efeito de distanciamento que, em tudo o que o ator mostre ao público, seja nítido o gesto de mostrar. A noção de uma quarta parede que separa fisicamente o palco do público e da qual provém a ilusão de o palco existir, na realidade, sem o público, tem de ser naturalmente rejeitada, o que, em princípio, permite aos atores voltarem-se diretamente para o público.

O contato entre o público e o palco fica, habitualmente, na empatia. Os esforços do ator convencional concentram-se tão completamente na produção deste fenômeno psíquico que se pode dizer que nele, somente, se descortina a finalidade principal da sua arte. As minhas palavras iniciais, ao tratar desta questão, desde logo revelam que a técnica que causa o efeito de distanciamento é diametralmente oposta à que visa a criação da empatia. A técnica de distanciamento impede o ator de prodzir o efeito da empatia.

No entanto, o ator, ao esforçar-se para reproduzir determinadas personagens e para revelar o seu comportamento, não precisa renunciar completamente ao recurso da empatia. Servir-se-á deste recurso na medida em que qualquer pessoa sem dotes nem pretensões teatrais o utilizaria para representar outra pessoa, ou seja, para mostrar o seu comportamento.

Todos os dias, em inúmeras ocasiões, se vêem pessoas a mostrar o comportamento de outras (as testemunhas de um acidente demonstram aos que vão chegando o comportamento do acidentado; este ou aquele brincalão imita, trocista, o andar insólito de um amigo etc.), sem que estas pessoas tentem induzir os espectadores a qualquer espécie de ilusão. Contudo, tanto as testemunhas do acidente como o brincalhão, por exemplo, é por empatia para com as suas personagens que se apropriam das particularidades destas.

O ator utilizará, portanto, como ficou dito, este ato psíquico. Deverá consumá-lo, porém - ao invés do que é hábito no teatro, em que tal ato é consumado durante a própria representação e com o objetivo de levar o espectador a um ato idêntico - apenas numa fase prévia, em qualquer momento da preparação do seu papel, nos ensaios.

Para evitar que a configuração dos acontecimentos e das personagens seja demasiado "impulsiva", simplista e desprovida do mínimo aspecto crítico, poderá realizar-se maior número de ensaios à "mesa de estudo" do que habitualmente se faz. O ator deve rejeitar qualquer impulso prematuro de empatia e trabalhar o mais demoradamente possível, como leitor que lê para si próprio (e não para os outros). A memorização das primeiras impressões é muito importante.

O ator terá que ler o seu papel assumindo uma atitude de surpresa e, simultaneamente, de contestação. Deve pesar prós e contras e apreender, na sua singularidade, não só a motivação dos acontecimentos sobre o que versa a sua leitura, mas também o comportamento da personagem que corresponde ao seu papel e do qual vai tomando conhecimento. Não deverá considerar este como pré-estabelecido, como "algo para que não havia, de forma alguma, outra alternativa". Antes de decorar as palavras, terá de decorar qual a razão da sua surpresa e em que momento contestou. Deverá incluir na configuração do seu papel todos estes dados.

Uma vez em cena, em todas as passagens essenciais, o ator descobre, revela e sugere, sempre em função do que faz, e tudo o mais que não faz. Que dizer, representa de forma que se veja, tanto quanto possível claramente, uma alternativa, de forma que a representação deixe prever outras hipóteses e apenas apresente uma entre variantes possíveis. Diz, por exemplo, "isto você há de me pagar", e NÃO diz "está perdoado". Odeia os filhos e não procura aparentar que os ama. Caminha para a frente, à esquerda, e não para trás, à direita. O que não faz tem de estar contido no que faz, em mútua compensação. Então todas as frases e gestos adquirem o significado de decisões, a personagem fica sob controle e é examinada experimentalmente. A designação técnica deste método é: determinação do não-antes-pelo-contrário.

O ator, em cena, jamais chega a metamorfosear-se integralmente na personagem representada. O ator não é nem Lear, nem Harpagon: antes, os representa. Reproduz sua falas com a maior autenticidade possível, procura representar sua conduta com tanta perfeição quanto sua experiência humana o permite, mas não tenta persuadir-se (e dessa forma persuadir, também, os outros) de que neles se metamorfoseou completamente. Será fácil aos atores entenderem o que se pretende se, como exemplo de uma demonstração sem metamorfose absoluta, indicar-se a forma de representar de um encenador ou de um ator que estejam mostrando como se deve fazer determinado trecho de uma peça. Como não se trata do seu próprio papel, não se metamorfoseiam completamente, acentuam o aspecto técnico e mantêm a simples atitude de que está fazendo uma proposta.

Se tiver renunciado a uma matamorfose absoluta, o ator nos dará o seu texto não como uma improvisação, mas como uma citação. Mas, ao fazer a citação, terá, evidentemente, de dar-nos todos os matizes de sua expressão, todo o seu aspecto plástico humano e concreto; identicamente, o gesto que exibe aparecerá como uma cópia e deverá ter o caráter material de um gesto humano.

Numa representação em que não se pretenda uma metamorfose integral, podem utilizar-se três espécies d recursos para distanciar a expressão e a ação da personagem representada:

1 - Recorrência à terceira pessoa.

2 - Recorrência ao passado.

3 - Intromissão de indicações sobre a encenação e de comentários.

O emprego da forma da terceira pessoa e do passado possibilitam ao ator a adoção de uma verdadeira atitude distanciada. Além disso, o ator deve incluir em seu desempenho indicações sobre a encenação e também expressões que comentem o texto, proferindo-as juntamente com este, no ensaio. ("Ele levantou-se e disse, mal-humorado, pois não tinha comido nada..." ou "Ele ouvia aquilo pela primeira vez, e não sabia se era verdade...", ou ainda "Sorriu e disse, com demasiada despreocupação..."). A intromissão de indicações na terceira pessoa sobre a forma de representar provoca a colisão de duas entoações, o que, por sua vez, provoca o distanciamento da segunda pessoa (o texto propriamente dito).

A representação distanciar-se-á também se a sua ralização efetiva for precedida de uma descrição verbal. Neste caso, a adoção do passado coloca a pessoa que fala num plano que lhe permite a retrospecção das falas. Desta forma, distancia-se a fala, sem que o orador assuma uma perspectiva irreal; com efeito, este, ao contrário do auditório, já leu a peça até o fim e pode, pois, pronunciar-se sobre qualquer fala, partindo do desfecho e das consequências, melhor do que o público que sabe menos do que ele e que está, portanto, como que alheio à fala.

É pela conjugação destes processos que se distancia o texto nos ensaios; mas também durante a representação o texto se mantém, de maneira geral, distanciado. Quanto à dicção propriamente dita, da sua relação direta com o público, sobrevém-lhe a necessidade e a possibilidade de uma variação que será conforme o grau de importância a conferir às falas. O modo de falar das testemunhas, num tribunal, oferecem-nos um bom exemplo disto.

A maneira de a personagem frisar as suas declarações deverá produzir um efeito artístico especial. Se o ator se dirigir diretamente ao público, deve fazê-lo francamente, e não num mero "aparte", nem tampouco num monólogo do estilo dos do velho teatro. Para extrair do verso um efeito de distanciamento pleno, será conveniente que o ator reproduza, primeiro, em prosa corrente, nos ensaios, o conteúdo dos versos, acompanhado, em certas circunstâncias, dos gestos para ele estabelecidos. Uma estruturação audaciosa e bela das palavras distancia o texto. (A prosa pode ser distanciada por tradução para o dialeto natal do ator).

Dos gestos propriamente nos ocuparemos depois; mas desde já devemos dizer que todos os elementos de natureza emocional têm de ser exteriorizados, isto é, precisam ser desenvolvidos em gestos. O ator tem de descobrir uma expressão exterior evidente para as emoções de sua personagem, ou então uma ação que revele objetivamente os acontecimentos que se desenrolam em seu íntimo. A emoção deve manifestar-se no exterior, emancipar-se, para que seja possível tratá-la com grandeza. A particular elegância, força e graça do gesto provocam efeito de distanciamento. A arte chinesa é magistral no tratamento dos gestos. O ator chinês alcança o efeito de distanciamento por observar abertamente seus próprios gestos.

Tudo o que o ator nos dá, no domínio do gesto, do verso etc., deve denotar acabamento e apresentar-se como algo ensaiado e concluído. Deve criar uma impressão de facilidade, impressão que é, no fundo, a de uma dificuldade vencida. O ator deve, também, permitir ao público uma recepção fácil da sua arte, do seu domínio da técnica. Representa o acontecimento perante o espectador, de uma forma perfeita, mostrando como esse acontecimento, a seu ver, se passa ou como terá, porventura, se passado. Não oculta que o ensaiou, tal como o acrobata não oculta o seu treino; sublinha claramente que o depoimento, a opinião ou a versão do passado que está nos dando são seus, ou seja, os de um ator.

Visto que não se identifica com a personagem que representa, é possível escolher uma determinada perspectiva em relação a esta, revelar sua opinião a respeito dela, incitar o espectador - também, por sua vez, não solicitado a qualquer indicação - a criticá-la. A perspectiva que adota é crítico-social. Estrutura os acontecimentos e caracteriza as personagens realçando todos os traços a que seja possível dar um enquadramento social. Sua representação tranforma-se, assim, num colóquio sobre as condições sociais, num colóquio com o público, a quem se dirige. O ator leva seu ouvinte, conforme a classe a que este pertence, a justificar ou a repudiar tais condições.

O objetivo do efeito de distanciamento é distanciar o "gesto social" subjacente a todos os acontecimentos. Por "gesto social" deve enterder-se a expressão mímica e conceitual das relações sociais que se verificam entre os homens de uma determinada época.

A invenção de títulos para as cenas facilita a explicação dos acontecimentos, do seu alcance, e dá à sociedade a chave desses acontecimentos. Os títulos deverão ser de caráter histórico.

Chegamos assim a um método decisivo, a historiação dos acontecimentos. O ator deve representar os acontecimentos dando-lhes o caráter de acontecimentos históricos. Os acontecimentos históricos são acontecimentos únicos, transitórios, vinculados a épocas determinadas. O comportamento das personagens dentro desses acontecimentos não é, pura e simplesmente, um comportamento humano e imutável, reveste-se de determinadas particularidades, apresenta, no decurso da história, formas ultrapassadas e ultrapassáveis e está sempre sujeito á crítica da época subsequente, crítica feita segundo as perspectivas desta. Esta evolução permanente distancia-nos do comportamento dos nossos predecessores.

Ora, o ator tem de adotar para com os acontecimentos e os diversos comportamentos da atualidade uma distância idêntica à que é adotada pelo historiador. Tem de nos distanciar dos acontecimentos e das personagens. Os acontecimentos e as pessoas do dia-a-dia, do ambiente imediato, possuem, para nós, um cunho de naturalidade, por nos serem habituais. Distanciá-los é torná-los extraordinários. A técnica da dúvida, dúvida perante os acontecimentos usuais, óbvios, jamais postos em dúvida, foi cuidadosamente elaborada pela ciência, e não há motivo para que a arte não adote, também, uma atitude tão profundamente útil como essa. Tal atitude adveio à ciência do crescimento da força produtiva da humanidade, tendo-se manifestado na arte exatamente pela mesma razão.

No que diz respeito ao aspecto emocional, devo dizer que as experiências do efeito de distanciamento realizados nos espetáculos de teatro épico, na Alemanha, levaram-nos a verificar que também se suscitam emoções por meio dessa forma de representar, se bem que emoções de espécie diversa das do teatro corrente. A atitude do espectador não será menos artística por ser crítica. O efeito de distanciamento, quando descrito, resulta muito menos natural do que quando realizado na prática. Esta forma de representar não tem, evidentemente, nada a ver com a vulgar "estilização". O mérito principal do teatro épico - com o seu efeito de distanciamento, que tem por único objetivo mostrar o mundo de tal forma que este se torne suscetível de ser moldado - é justamente a sua naturalidade, o seu caráter terreno, o seu humor e a renúncia a todas as espécies de misticismo, que imperam ainda, desde tempos remotos, no teatro vulgar.
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Extraído de Estudos sobre Teatro (Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1978). O presente artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 82/1979, edição já esgotada.
O homem da flor na boca

de Luigi Pirandello


Das várias peças em um ato que Pirandello escreveu - algumas das quais, como Limões da Sicília (1910) e Sonho, mas talvez não (1931), autêncicas obras-primas - L'uomo del fiore in bocca, estreada em 1923 no Teatro dos Independentes de Roma, sob a direção de Anton Giulio Bragaglia, é talvez a mais densa de humanidade. Neste diálogo patético de um homem com sua própria morte, uma extraordinária vibração trespassa as palavras, elevando-as do seu significado cotidiano a um plano de angustiante e verdadeira tragédia. A tradução a seguir é de Gino Saviotti e foi utilizada, pela primeira vez, quando da estréia da peça em Lisboa, em 30 de março de 1946, no Teatro-Estúdio do Salitre.

* * *

Personagens:

O Homem da flor na boca
O pacífico freguês

(Quase no fim do diálogo, na altura indicada no texto, aparecerá por duas vezes um vulto de mulher, vestida de negro, com um velho chapéu enfeitado de penas já sem frescor. A ação se passa numa noite de verão. Uma pequena rua solitária, que acaba numa avenida. Ao fundo, por entre as ramagens das árvores da avenida, transparecem os candeeiros elétricos acesos. No prédio de esquina da pequena rua, à esquerda, um pobre café noturno, com mesinhas e cadeiras de passeio, fracamente iluminadas por um candeeiro, à beira do mesmo passeio. É um pouco mais de meia-noite. Vem da avenida, a espaços, o som tilitante de um bandolim. Quando o pano sobe, O Homem da Flor na Boca, sentado diante de uma das mesas, está a observar demoradamente, em silêncio, o Pacífico Freguês que, na mesa ao lado, chupa por um canudo um refrigerante)

HOMEM - Bem me queria parecer! O senhor, um homem pacífico e metódico...perdeu o trem?

FREGUÊS - Por um minuto, sabe? Chego à estação, e lá o vejo, a fugir diante de mim!

HOMEM - Podia correr atrás dele!

FREGUÊS - Pois sim! É cômico, bem sei. Bastava, meu Deus, que não trouxesse todos aqueles embrulhos e embrulhinhos...mais carregado que um burro! Mas as mulheres, já se sabe - recados...recados... - é um nunca acabar de coisas. Acredite! Levei três minutos, quando desci do carro, para arrumar nos dedos os barbantes de todos os volumes: dois em cada dedo.

HOMEM - Gostaria de o ter visto. Sabe o que fazia, no seu lugar? Deixava-os todos no carro.

FREGUÊS - E a minha mulher? E as minhas filhas? E todas as amigas delas?

HOMEM - Berrava-lhes alto! Divertir-me-ia a valer com isso!

FREGUÊS - Talvez o senhor não saiba como se tornam as mulheres quando estão a veranear!

HOMEM - Ora! Sei até muito bem. Justamente por saber é que assim falo. Dizem todas que não precisam de nada.

FREGUÊS - Só isso? São até capazes de afirmar que vão para fora no intuito de fazer economias. Depois, mal chegam a uma aldeia aqui nos arredores, quanto mais feia, miserável e suja for, mais teimam em enfeitá-la com todos os seus atavios! Ora, as mulheres, meu caro senhor! Mas, afinal, é a profissão delas..."Se tu desses um saltinho até a cidade, meu amor!? Eu tinha realmente necessidade disto...daquilo...e também podias, se não te incomoda (tem piada o "se não te incomoda", não acha?) ...já que vais para lá, ao passares em frente..." - Mas, minha querida, como queres tu que em três horas, eu possa fazer tudo isso? - "Ora, que estás tu a dizer? Tomas um táxi..." - O pior é que contava demorar-me só três horas e não trouxe as chaves de casa.

HOMEM - Essa é muito boa! E depois?

FREGUÊS - Ora, depois! Deixei o montão de embrulhos no depósito da estação e fui jantar em um restaurante. A seguir, para espairecer, fui ao teatro. Morria-se de calor. À saída, pergunto a mim próprio: e agora, o que vou fazer? Já é meia-noite, às quatro horas tomo o primeiro comboio; por três horas escassas de sono, nem merece a despesa do hotel...E vim até cá. Este café não fecha, pois não?

HOMEM - Não fecha, não senhor. (Pausa). E, então, deixou todos os seus embrulhos na estação?

FREGUÊS - Por que me pergunta isso? Acaso não estarão lá em segurança? Estavam todos tão bem atados...

HOMEM - Não, não digo isso! Muito bem atados, calculo: com aquela arte especial que põem os caixeiros das lojas em embrulhar os objetos que vendem...(Pausa) Que mãos! Uma bela folha de papel dobrada, vermelha, polida...que só olhar para ela já é um prazer...Tão lisa que até apetece encostá-la à cara, para lhe sentir a carícia fresca...Estendem-na sobre o balcão, e depois, com elegância e desembaraço, pousam-lhe em cima, precisamente no meio, a fazenda fina, bem dobrada. Levantam primeiro de baixo, com o dorso da mão, uma ponta de papel: até lhe fazem uma pquena prega, supérflua, só por amor à arte. A seguir, dobram, de um lado e de outro, em triângulo, a folha de papel, e viram por baixo as duas pontas; estendem uma das mãos para a caixa do cordel; puxam quanto basta para atar o embrulho. E atam tão rapidamente que nem temos tempo de admirar a habilidade do empregado, e já nos apresentam o embrulho feito, com o nó pronto para o levarmos pendurado nos dedos.

FREGUÊS - Vê-se bem que o senhor dedicou muita atenção aos empregados das lojas...

HOMEM - Eu? Meu caro amigo: eu passo nisto dias inteiros! Sou capaz de ficar mais de uma hora parado a olhar para dentro de uma loja através da vitrine. Chego a esquecer-me de mim...Parece-me que sou, e realmente gostaria de ser aquele tecido de seda...aquela chita...a fita encarnada, ou azul, que as caixeiras das retrosarias, depois de a medirem com o metro...já viu como fazem? Enrolam no polegar, em forma de oito, antes de embrulhar. (Pausa) Fito o cliente ou a cliente que saem da loja com o embrulho pendurado no dedo, ou na mão, ou debaixo do braço...Sigo-os com os olhos, até que me saem da vista...imaginando...Ah, quantas coisas imagino! O senhor nem pode fazer idéia! (Pausa. Depois, para si) Mas serve-me. Isto serve-me.

FREGUÊS - Serve-lhe? Desculpe...o que é que lhe serve?

HOMEM - Agarrar-me assim - quero dizer, com imaginação - à vida. Como uma planta trepadeira em volta das grades de uma cancela...(Pausa) Ah, nunca deixá-la descansar, nem por um instante sequer, a imaginação - aderir, aderir com ela, continuamente, à vida dos outros...mas não da gente que conheço! Não! Não! A essa não, não poderia! Sinto por ela....uma repugnância, se o senhor soubesse! Um nojo! Agarro-me à vida dos estranhos, em volta dos quais a minha imaginação pode trabalhar livremente: mas não a capricho. Bem pelo contrário, levando em conta as menores aparências encobertas neste ou naquele. E se soubesse quanto e como a minha imaginação trabalha! Até que ponto consigo aprofundar vejo a casa deste ou daquele; vivo lá dentro; sinto-me nela até aprender...sabe? Aquela espécie de hálito particular que paira em cada habitação! Na sua, na minha...- mas na nossa, nós já não damos por ele, porque é o próprio hálito da nossa vida...Não sei se me faço entender. Ah, vejo-o dizer que sim...

FREGUÊS - Sim, porque...quero dizer: deve ser realmente um prazer que o senhor experimenta, imaginando tantas coisas...

HOMEM (Com evidente fadiga, depois de pensar um instante) - Um prazer? Eu?

FREGUÊS - Isto é...calculo...

HOMEM - Ora, diga-me: já foi consultar algum médico de renome?

FREGUÊS - Eu não! Por quê? Não estou doente!

HOMEM - Não se assuste! Pergunto-lhe para saber se já viu, no consultório desses grandes médicos, a sala onde os clientes esperam a sua vez de serem observados.

FREGUÊS - Já vi, sim. Tive de acompanhar uma vez uma de minhas filhas, que sofria dos nervos e...

HOMEM - Muito bem. Não me interessa saber. Só me interessam aquelas salas...(Pausa) Já reparou nelas? Um sofá forrado de escuro, de feitio antigo...as cadeiras estofadas, muitas vezes desiguais...Tudo coisas compradas de ocasião, em segunda mão, postas ali para os clientes; não pertencem à casa. O senhor doutor tem para si, para as amigas da esposa, outra sala, rica e bela. Quem sabe como destoaria uma das suas cadeiras ou poltronas se fosse trazida para aqui, para o lugar reservado aos clientes, a quem basta este mobiliário sem pretensões, decente, sóbrio. Queria saber se o senhor, quando foi com sua filha, reparou bem na poltrona ou na cadeira onde se sentou enquanto esperava.

FREGUÊS - Eu não, com franqueza...

HOMEM - É verdade: o senhor não estava doente...(Pausa) Mas nem todos os doentes reparam naquilo, mergulhados como estão no pensamento de sua própria doença...(Pausa) E, no entanto, quantas vezes alguns deles ali estão, atentos, a fitar o dedo que traça sinais inúteis no braço puído daquele sofá em que estão sentados! Pensam e não vêem. Mas que efeito faz, quando, depois, saímos do consultório, e tornamos a atravessar a sala, vermos de novo a cadeira onde há pouco estávamos sentados, à espera da sentença acerca do nosso mal ainda ignorado! Encontrá-la ocupada por outro cliente; também ele ali com sua doença secreta; ou ali, vazia, impassível, à espera de que um outro qualquer vá ocupá-la...(Pausa) Mas que estávamos nós a dizer? Ah, sim, é verdade...O prazer da imaginação. Não sei bem por quê, lembrei-me logo de uma das cadeiras destas salas de médicos, onde os clientes estão à espera da consulta...

FREGUÊS - Sim, realmente...

HOMEM - Não vê a relação? Nem eu. Mas é que certos laços ligando imagens entre si longínquas, são tão particulares a cada um de nós, e determinados por causas e experiências tão singulares, que deixaríamos de nos compreender se, ao falarmos, não nos inibíssimos de os utilizar. Nada mais ilógico, por vezes, do que essas analogias. Mas a relação pode talvez ser esta, repare: "Teriam prazer, aquelas cadeiras, em imaginar quem é o cliente que vai sentar-se nelas, à espera da consulta? Que doença o mina? Para onde irá, o que fará, depois da consulta?". Nenhum prazer. E assim eu também: nenhum! Entram e saem os clientes, e elas, pobres cadeiras, lá estão à espera de serem ocupadas. Pois bem, a minha é uma ocupação parecida. Ora me ocupa este, ora aquele. Presentemente, está-me ocupando o senhor, e creia que não sinto prazer algum com o comboio que perdeu, com a família que espera por si na aldeia, com todos aqueles aborrecimentos que lhe imagino...

FREGUÊS - Ai, tantos, nem calcula!

HOMEM - Dê graças a Deus se não passam de aborrecimentos! (Pausa) Há quem tenha pior, meu amigo. Eu digo-lhe que tenho necessidade de me agarrar com imaginação à vida alheia; mas assim, sem prazer, sem me interessar de maneira alguma, bem pelo contrário...pelo contrário...para sentir-lhe o enfado, para a julgar estúpida e inútil, a vida, tanto que realmente não deve importar muito a ningém perdê-la! (Raivosamente) E isto é preciso demonstrá-lo bem, sabe? Com provas e exemplos contínuos, a nós próprios, implacavelmente. Por que, meu caro senhor, não sabemos de que é composta, mas existe, existe! Todos o sentimos aqui, como uma angústia na garganta, o gosto da vida, no próprio ato de a vivermos; ela é tão gulosa de si própria, que não se deixa saborear. O sabor está no passado, que permanece vivo dentro de nós. É daí que nos vem o gosto da vida, das recordações que nos mantêm presos. Mas presos a quê? A esta estupidez...a estes aborrecimentos...a tantas ilusões absurdas...a tantas sensaborias que nos ocupam...Sim! Esta, que foi uma estupidez! Aquela, que foi um aborecimento! E até mesmo esta outra que no momento em que sucedeu, foi para nós uma grande desgraça, uma verdadeira desgraça...À distância de quatro, cinco, dez anos, quem sabe que gosto virá a adquirir? Que gosto virão a ter as próprias lágrimas? E a vida, por Deus! So à idéia de a perdermos...especialmente quando se sabe que é uma questão de dias...(Neste momento aparece o vulto da mulher vestida de negro, espreitando à esquina) Pronto...está a ver? Acolá, acolá, naquela esquina...Então, não vê um vulto de mulher? Ah...já se escondeu!

FREGUÊS - Quem? Quem era?

HOMEM - Não a viu? Escondeu-se.

FREGUÊS - Uma mulher?

HOMEM - Sim...a minha mulher.

FREGUÊS - Ah! A sua esposa!

HOMEM (Depois de uma pausa) - Vigia-me de longe. E acredite, tenho ganas de ir ter com ela e corrê-la a pontapés! Mas seria inútil...É como uma dessas cadelas sem dono, teimosas, que quantos mais pontapés se lhes dão, mais se nos colam nos calcanhares. (Pausa) O que aquela mulher está a sofrer por mim, o senhor nem pode imaginar. Já não come, não dorme...Segue-me dia e noite, assim, à distância. Ainda se ao menos tratasse de escovar aquele coque que traz na cabeça, aqueles vestidos...Já não parece uma mulher, mas um trapo velho. Até o cabelo lhe ganhou pó! E tem apenas 34 anos! (Pausa) Sinto uma raiva tão grande que não imagina. Às vezes, enfrento-a, grito-lhe na cara: "Parva, parva!" E sacudo-a. Mas ela tudo aceita. Fica parada, a olhar para mim, com uns olhos...com uns olhos que - juro-lhe! - fazem-me subir aos dedos um desejo selvagem de a estrangular. Mas, nada. Espera que eu me afaste, para recomeçar a seguir-me de longe. (De novo a mulher torna a espritar) Ora veja...espreitou outra vez à quela esquina!

FREGUÊS - Pobre senhora!

HOMEM - Qual pobre senhora! Percebe o que ela queria? Queria que eu ficasse em casa, muito calmo, muito quieto, a aninhar-me no meio dos seus mais desentranhados carinhos; a gozar a ordem perfeita de todos os móveis, a harmonia de todos os quartos, aquele silêncio de espelho que havia dantes na minha casa, medido pelo tiquetaque do relógio de pêndulo da sala de jantar. Era isto o que ela queria! E eu pergunto-lhe agora a si, para lhe fazer compreender o absurdo...não, que estou a dizer? "O absurdo"...a macabra ferocidade dessa pretensão! Pergunto-lhe se julga possível que as Casas de São Francisco, as casas de Messina, se tivessem tido conhecimento do tremor de terra que daí a pouco as iria derrubar, teriam conseguido ficar muito sossegadas sob o luar, bem ordenadas, em fila, ao longo das ruas e das praças, obedecendo ao plano regulador da Comissão Urbanizadora da Câmara Municipal. Casas, por Deus! de pedra e madeira, e tamém elas teriam fugido! Imagine então os habitantes de São Francisco, os habitantes de Messina, a despirem-se, plácidos, para se deitarem, dobrando as roupas, pondo os sapatos diante da porta, e enfiando-se depois debaixo dos cobertores gozando a alvura fresca dos lençóis bem lavados com a consciência de que, daí a umas horas, morreriam. Parece-lhe possível?

FREGUÊS - Mas talvez a sua esposa...

HOMEM - Deixe-me falar! Se a morte, meu amigo, fosse como um daqueles insetos esquisitos, repugnantes, que pousam em cima de nós, sem darmos por isso...O senhor a viu passar pela rua; outro transeunte, de repente, fá-lo parar, e com toda a cautela, com dois dedos estendidos, diz-lhe: "Perdoe, dá licença? Vossa Excelência tem a morte em cima de si!" E, com os dois dedos estendidos, pega-a e atira com ela para longe...Então seria magnífico! Mas a morte não é como um desses insetos repugnantes. Muitos que passeiam desembaraçados, e sem preocupações, talvez a tragam em cima; ninguém a vê; e eles pensam, calmos e tranquilos, no que farão amanhã e depois. Ora, eu, meu caro senhor...(Lavanta-se) Venha! Venha mais para aui...(Conduz o Freguês para junto de um candeeiro aceso) Aqui, junto deste candeeiro! Quero mostrar-lhe uma coisa...Olhe aqui debaixo do bigode...Aqui, então não vê? Não vê que linda tuberosidade violácea? Sabe como se chama isto? Ah, um nome muito doce, mais doçe que um rebuçado: epitelioma, é assim que se chama. Pronuncie...verá que doçura: epitelioma...A morte, percebe? passou por mim. Pôs-me esta flor na boca, e disse: "Fica com ela, querido: tornarei a passar por aqui dentro de oito ou dez meses!" (Pausa) E agora diga-me, se com esta flor na boca, eu podia ficar em casa tranquilo e sossegado, como desejava aquela infeliz. Eu grito-lhe: Com que, então, queres que eu te beije?" - "Sim, beija-me!. Mas sabe o que ela fez? Com um alfinete, na semana passada, fez um arranhão aqui no lábio superior e depois agarrou-me a cabeça, e queria beijar-me...beijar-me na boca...porque diz que quer morrer comigo!? (Pausa) Está doida...(Raivosamente) Em casa é que eu não fico! Preciso estar atrás das vitrines das lojas, a admirar a habilidade dos caixeiros. Por que, o senhor compreende, se por momentos se estabelece um vácuo dentro de mim...compreende, até posso matar, como se nada fosse, uma pessoa que nem sequer conheço...sacar a pistola e matar um sujeito que, como o senhor, tenha apenas perdido o trem...(Rindo) Não, nada receie, meu caro senhor: estou a brincar! (Pausa) Vou-me embora. (Pausa) Matava-me a mim próprio, primeiro...(Pausa) Mas há, nesta altura do ano, certos damascos tão bons...De que maneira costuma comê-los? Com a casca, não é? Abrem-se ao meio; depois apertam-se com dois dedos, até o sumo escorrer...como dois lábios carnudos...Que delícia! (Ri. Pausa) E talvez possa fazer-me um favor, amanhã de manhã, quando chegar. Penso que a aldeia deve estar um pouco afastada da estação. Ao romper do dia, poderá fazer o caminho a pé. O primeiro feixe de ervas que encontrar ao longo da estrada, repare bem nele. Conte os fios de erva por mim. Quantos fios contar, tantos serão os dias que ainda terei de viver. Mas escolha-o bem grande, pelo amor de Deus! (Ri. Depois de um tempo...) Boa-noite, meu caro senhor. (Afasta-se cantarolando, de boca fechada, a ária que o bandolim toca, ao longe. Mas antes de chegar à esquina da direita, lembra-se de que a mulher está lá à sua espera. Então recua uns passos, atravessa a rua e dobra a esquina do outro lado, seguido pelo olhar do Freguês, quase petrificado)

F I M

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Martins Pena:
uma visão dos seus personagens

Colin M. Pierson


Embora as farsas ou comédias realistas de Martins Pena tenham sido objeto de estudo, não tem sido dada a atenção devida a seus personagens (ou caso se prefira dizer, esteriótipos) como uma base importante na tradição da comédia realista no Brasil. Antes de iniciar nosso exame, contudo, seria bom revisar certos desenvolvimentos sócio-históricos que influenciaram Martins Pena, tanto como sua época.

O ímpeto original de interesse no drama moderno no Brasil foi a transmigração da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, a fim de fugir dos exércitos de Napoleão. Os portugueses estavam muito mais próximos geograficamente do que os brasileiros dos centros de idéias literárias na Europa que, com respeito ao drama do século XIX, tanto em Portugal como no Brasil, eram representados principalmente na França. Não é de surpreender que os dramaturgos portugueses, mesmo estando, quase sempre, com anos de atraso em relação aos seus colegas franceses, tivessem uma influência contínua no Brasil, no último século. Se Portugal sempre parecia um pouco atrasado no uso de novas idéias e técnicas, os brasileiros o eram ainda mais, porque muitas inovações eram filtradas por Portugal. É correto afirmar que o teatro brasileiro em geral, desde os primórdios até a 1ª Guerra Mundial, nunca se libertou do teatro português.

Esse domínio por parte de Portugal não se limitava aos dramaturgos e suas peças, mas incluía as companhias de atores também. A primeira companhia portuguesa de atores que incluía a famosa atriz Ludovina Soares, veio para o Brasil m 1829 com a ajuda de D. Pedro I. Esta era apenas a primeira de uma longa série de companhias estrangeiras, portuguesas e outras, que vieram exibir suas peças no Brasil e se concentravam principalmente no já reconstruído Teatro São Pedro.

No século XIX o teatro brasileiro, de uma forma ou de outra, estava muito ligado em todas as fases de sua existência ao desenvolvimento do drama e técnicas dramáticas de Portugal. O resultado foi que os brasileiros, apesar dos protestos não muito frequentes contra a influência portuguesa, sempre mantiveram certa reverência por Portugal. Por conseguinte, o Brasil tratava Portugal abaixando a voz, por sinal de respeito e por medo de ser tido como bobo.

Era o mesmo tipo de relacionamento que existia entre os Estados Unidos e a Inglaterra, exceto que quando examinamos o que o Brasil conseguiu sem nenhuma tradição teatral que lhe auxiliasse (o mesmo acontecendo com relação a Portugal), pode-se concluir que seu complexo de inferioridade era bem menos justificável.

Um subgênero, entretanto, uma exceção a essa reverência a Portugal, estava sendo criado no Brasil, no mesmo momento em que Gonçalves de Magalhães (1811-1882) começava a introduzir o drama romântico "sério" da França: a comédia realista de Martins Pena (1815-1848). A comédia realista ou a comédia impregnada de matizes regionais, de Martins Pena, deveria ter a aceitação do público teatral brasileiro e também dos dramaturgos. Contudo, posto que o intercâmbio de influência dramática entre Portugal e Brasil fora de curta duração, Martins Pena - bem como outros dramaturgos brasileiros - seria completamente ignorado pelos portugueses.

Em outubro de 1838, o mesmo ano em que foi produzida a peça de Magalhães Antônio José ou o poeta e a Inquisição (um acontecimento importante como a primeira tragédia escrita por um brasileiro usando um tema nacional), foi estreada uma farsa em um ato, de Martins Pena, intitulada O juiz de paz na roça. O surgimento desta comédia realista, juntamente com a tragédia de Magalhãs, marcou, se não a criação do teatro brasileiro no sentido histórico estrito, pelo menos marcou seu início de maneira moderna.

Pena, mais do que qualquer um, foi o fator principal e a força motriz do desenvolvimento deste movimento teatral autenticamente brasileiro. O próprio Martins Pena fez várias tentativas de escrever tragédias, seis ao todo. Das cinco completas, de todas que foram escritas quando o autor não tinha mais de 25 anos e portanto muito distante da maturidade dramática, somente Vitiza ou o Nero da Espanha foi apresentada. Nenhuma adicionou mais nada à sua fama como dramaturgo. Ou seja, a fama de Pena reside inteiramente em suas comédia que eram, na maioria, peças de um só ato e descrições vivas sobre a moral e os costumes de sua época.
Apesar de Pena ter escrito em um período romântico no Brasil, suas comédias realistas fizeram dele, por assim dizer, o precursor do realismo. Em especial, a linguagem que ele usava era realista e captava o sabor da linguagem falada na época.

Em suas comédias, Martins Pena concentrou sua atenção, em geral, na sociedade da classe média inferior, observando e apresentando, entretanto, somente aquelas peculiaridades e fraquezas visíveis apenas na superfície. Eram comédias de matiz regional, e Pena não tinha intenção de fazê-las de outro modo. Ele não era de maneira alguma um dramaturgo filosófico, e suas observações, mesmo realistas, eram superficiais, pois ele satisfazia sua audiência e a si mesmo com zombarias, improvisações e situações cômicas, um jogo de palavras. Algumas vezes os trocadilhos poderiam chegar às raias do "risqué", mas nunca seriam verdadeiramente ásperos ou grosseiros:

Clemência - Como é mesa em francês?

Júlia - Table.

Clemência - Braço?

Júlia - Bras.

Clemência - Pescoço?

Júlia - Cou.

Clemência - Menina!

Júlia - É cou mesmo, mamã!?

Clemência - Está bom, basta.

Eufrásia - Esses franceses são porcos. Ora veja, chamar o pescoço, que está ao pé da cara, com este nome tão feio (O inglês maquinista)

Era uma época propícia, no Brasil, para o tipo de comédia de Pena. Ele era um funcionário público do Segundo Império, que entrava em um período de relativa calma depois de muitos anos de contendas. O Rio de Janeiro era ainda uma capital colonial provinciana, com uma sociedade simples, ainda razoavelmente isolada da Europa do século XIX. Pena podia zombar de certos aspectos da sociedade e, ao mesmo tempo, apelar para seu sentimento de orgulho nacional para os valores brasileiros. Nada no teatro foi alguma vez - antes ou depois - mais completamente brasileiro que as comédias de Pena.

No entanto, as fontes necessárias às comédias realistas de Pena não podem ser constatadas com certeza, dentre outras razões porque o autor relutava em entrar em discussões teóricas sobre suas peças. Mas é óbvio que diversos elementos de suas peças mostram que ele era familiarizado com Molière, embora diferenciasse deste em muitos aspectos básicos e importantes. Talvez Pena se deixasse influenciar por autores de comédia antigos e novos, como Gil Vicente, Antonio José da Silva e Scribe, ou por viajantes estrangeiros como Debret e Luccocü, que escreveram pitorescos livros de viagens sobre as maravilhas do Brasil do século XIX.

Outras fontes possíveis para Martins Pena foram as farsas portuguesas e as comédias baixas trazidas ao Brasil por companhias estrangeiras - exatamente o mesmo tipo de comédia baixa que Almeida Garret e outros reformistas românticos tentaram eliminar em Portugal. Junto com essas possíveis fontes de influência sobre Pena, não podemos esquecer também a possibilidade de influência da commmedia dell'arte italiana.

As comédias de Pena foram, frequentemente, peças curtas para abertura de programa, quase como peças humorísticas, que acompanhavam ou seguiam dramas mais longos e mais "sérios" no palco, e esses primeiros esforços não o mencionavam sequer como autor. Pena teve de realizar sua veia cômica em um objetivo imediato, pois ele tinha, geralmente, apenas um ato para trabalhar.

A sua fórmula de sucesso foi a criação de um tipo de comédia onde tipos e personagens secundários eram colocados em certas situações das quais dependeria todo o desenrolar da peça. Embora muitas dessas peças fossem comédias padronizadas, repletas de ações ridículas, deve ser lembrado que personagens e tipos de personagens eram muito importantes, pois esses "tipos" (ou caricaturas) foram desenvolvidos em comédias realistas por autores posteriores.

O que acontece, naturalmente, na grande maioria das comédias de Pena, é que quando o dramaturgo pensa ter esgotado todos os motivos de graça possível da peça, ele precisa terminá-la - ou melhor, desembaraçar-se da mesma. Dessa forma, os finais nem sempre são o resultado lógico das ações desenroladas no enredo.

Outra técnica muito usada é a de finalizar a peça em estilo de "deus-ex-machina" que às vezes chega às raias do que poderia ser denominado humor negro. Em O diletante, por exemplo, Pena zombava de um de seus alvos preferidos: o brasileiro que está fascinado por toda e qualquer cultura estrangeira, mas que acha indigno tudo que é brasileiro indigno - até mesmo incivilizado. Com a chegada oportuna de uma carta, Pena acaba a peça.

As farsas em um ato de Pena, caracterizadas por movimentação rápida e quase que do tipo "pastelão", não significam que ele não tivesse tentado fazer peças mais longas, no mesmo gênero. Ele escreveu várias comédias em três atos: As casadas solteiras foi uma imitação dos modelos fanceses, enquanto que O usurário permaneceu inacabada. O noviço é a única no repertório de Pena, e consiste em três atos, tendo equilíbrio e unidade entre forma e conteúdo, o que mostra certa moderação no aspecto cômico. Pena dava a impressão de ter em mente as comédias romanas, particularmente as de Plauto. Apesar do equilíbrio e da originalidade desta comédia mais longa, Pena voltaria, até a sua morte, à comédia de um só ato, nas qual ele se sentia mais à vontade.
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Artigo extraído de Latin American Theatre Review, Spring/1978. nº 11/12. Tradução de Ubiratan Garcia de O. Junior. Este artigo, aqui um pouco reduzido, está publicado na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 79/1978, edição já esgotada.