sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Teatro/CRÍTICA

"Nastácia"

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Excelente recorte de obra-prima de Dostoiévski


Lionel Fischer


"Primeiro ela é vítima de um grão-senhor e gentleman pedófilo, que se vale do repentino estado de miséria dela e do muito dinheiro que possui e a transforma em concubina aos 12 anos de idade, sem sofrer qualquer censura da sociedade: é o poder do dinheiro falando mais alto. Depois, já adulta, é vítima de um amante paranoico, que, por não conseguir conquistar seu amor, simplesmente a mata. Portanto, duas formas de crime contra a mulher: o crime alicerçado no dinheiro e o crime derivado da impossibilidade de conquistar o coração e a mente da mulher. Ou seja, o crime motivado pelo sentimento de posse, pela tentativa de coisificação da mulher".

O trecho acima, que consta do release que me foi enviado, é de autoria de Paulo Bezerra, um dos principais tradutores da obra de Dostoiévski no Brasil e consultor da presente montagem. Esta, em cartaz no Teatro III do CCBB, faz um recorte do romance "O idiota", centrando a ação na festa de aniversário de Nastassia Filíppovna (aqui rebatizada de Nastácia), sobre quem Bezerra tece as considerações expostas no parágrafo inicial, afora a breve e precisa avaliação que faz da condição da mulher. Após cumprir temporada em Belo Horizonte, o espetáculo chega ao Rio de Janeiro com elenco formado por Flávia Pyramo (Nastácia), Julio Adrião (Totski) e Odilon Esteves (Gánia), estando a direção a cargo de Miwa Yanagizawa. 

Como já dito, toda a ação gira em torno da festa de aniversário de Nastácia, em sua casa, quando é promovido uma espécie de leilão cujo objetivo é saber com quem ela se casará. Mas dois dos principais personagens do romance não estão presentes: o Príncipe Michkin (por quem Nastácia nutre uma mescla de admiração e piedade) e o famigerado Rogójin (por quem se sente carnalmente atraída e termina por assassiná-la). Os dois últimos personagens são muitas vezes citados, e até mesmo dão a sensação de estarem ali - mas trata-se de uma opção dramatúrgica que permite cortes no tempo e torna plenamente crível que a protagonista a eles se dirija, a mesma credibilidade presente com a conversão da plateia em convidados da festa, dela até mesmo participando ativamente em alguns momentos. 

Em função do já exposto, torna-se evidente que a prioridade dramatúrgica de Pedro Brício é a de refletir sobre o papel da mulher, e não apenas no século XIX na sociedade russa. E ainda que atualmente as mulheres estejam cada vez mais se insurgindo contra as barbaridades de que são vítimas desde sempre, continua estarrecedor o número espantoso de crimes contra elas perpetrado, em todas as camadas sociais. Como não sou sociólogo, não sei a que atribuir a perpetuação desse comportamento masculino, que talvez remonte às cavernas. No entanto, ouso uma hipótese, ainda que sob o risco de provocar escárnio das mentes eruditas: acho que os homens têm medo das mulheres - e fico por aqui, já que o que importa não é o que eu penso sobre o tema, mas o que o espetáculo nos propõe.

E este, ancorado na ótima dramaturgia de Pedro Brício, é de altíssimo nível. E por diversas razões, a começar pela forma como a diretora Miwa Yanagizawa explora a belíssima direção de arte (instalação artística) de Ronaldo Fraga, cujo principal destaque são as dezenas de molduras vazadas, como a sugerir que o passado torna-se inócuo ante a urgência do presente - posso estar enganado, naturalmente, mas foi essa a sensação que tive. Além disso, a encenadora consegue algo extraordinário, que consiste em conferir tamanha relevância aos lindos objetos manipulados pelos atores que os mesmos dão a sensação de efetivamente integrarem o elenco. Finalmente, cumpre destacar a expressividade das marcações, o domínio dos tempos rítmicos e a capacidade de Miwa Yanagizawa de extrair maravilhosas performances do elenco.

Na pele de Nastácia, Flávia Pyramo - cujo trabalho creio que jamais analisei - exibe atuação deslumbrante, esbanjando carisma, presença, inteligência cênica e visceral capacidade de entrega, extraindo o máximo que a personagem permite. Sem dúvida, uma das mais expressivas performances da atual temporada. A mesma eficiência se faz presente no trabalho de Julio Adrião, impecável na construção de um caráter despótico e abjeto, predicados quase sempre presentes nos que possuem dinheiro e poder. Odilon Esteves também exibe atuação plenamente convincente, valorizando com grande sensibilidade o perigo que representam homens como Gánia, cuja fraqueza de caráter os tornam capazes de  fazer qualquer concessão, desde que suas ambições sejam atendidas.

Com relação ao restante da ficha técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Ronaldo Fraga (figurinos), Cao Guimarães (videoarte), Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal (iluminação), Gabriel Lisboa (trilha sonora e composição), Tuca Pinheiro (direção de movimento), Paulo Bezerra (tradução), Bezerra e Flávio Ricardo Vassoler (consultoria teórica), Paola Menezes (programação visual) e Sophia Clementino (visagismo).

NASTÁCIA - Dramaturgia de Pedro Brício a partir do romance "O idiota", de Dostoiévski. Direção de Miwa Yanagizawa. Com Flávia Pyramo, Julio Adrião e Odilon Esteves. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30.









segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Teatro/CRÍTICA

"3 maneiras de tocar no assunto"

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Montagem imperdível no Poeirinha



Lionel Fischer


"Um tema, três solos curtos. No primeiro, O homem de uniforme escolar, o público assiste a uma aula de bulling homofóbico: o que é, como praticar e quais as suas consequências físicas e emocionais. São histórias reais de crianças e jovens que sofreram com o preconceito e a intolerância na escola. Na sequência, O homem com a pedra na mão parte do depoimento ficcional de um dos participantes da Revolta de Stonewall, ocorrida em junho de 1969 em Nova York, marco fundamental da luta pelos direitos da comunidade LGBT, que completou 50 anos em 2019. Desenvolve-se, então, uma descrição minuciosa da noite em que os frequentadores (gays, lésbicas, travestis, dragqueens) do bar Stonewall Inn reagiram, pela primeira vez, a uma batida policial no local. O último solo, O homem no Congresso Nacional, foi construído a partir de falas do ex-deputado federal Jean Wyllys, proferidas entre janeiro de 2011 e dezembro de 2018. Para criar o texto, Leonardo Netto assistiu e transcreveu discursos, pronunciamentos, entrevistas e declarações de Jean e criou o depoimento de um deputado gay e ativista na tribuna da Câmara".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Paula Catunda, o parágrafo acima não resume, como costumo fazer, o contexto de um espetáculo, mas o explicita integralmente - achei importante fazer esta opção porque assim o leitor terá uma visão clara e detalhada de algo que recomendo com o maior entusiasmo, como se verá a seguir. Em cartaz no Teatro Poeirinha, "3 maneiras de tocar no assunto" tem texto e atuação de Leonardo Netto, estando a direção a cargo de Fabiano de Freitas.

No primeiro solo, Leonardo Netto encarna, digamos assim, uma espécie de conferencista, que expõe para a plateia praticamente todas as variantes possíveis da abjeta prática do bulling homofóbico escolar. No entanto, não estamos diante de uma conferência em seu sentido óbvio e convencional, já que o ator, quase sempre atuando numa chave que prioriza a ironia, dá a entender que todos nós, os espectadores, sabemos exatamente do que se trata, deixando em aberto a possibilidade de sermos coniventes - ao menos em alguma medida. 

Em O homem com a pedra na mão, o espetáculo atinge seu ponto máximo, e por diversas razões. A primeira delas diz respeito ao caráter lúdico da narrativa, mesmo nas passagens que evocam a violenta batalha travada entre os frequentadores do local e as forças de segurança. De um lado, a violência bruta e injustificada; de outro, a poesia libertária dos que acreditam no amor e em seu legítimo direito de vivê-lo e expressá-lo. Afora isso, Leonardo Netto vivencia, com visceral e comovente capacidade de entrega,  tantas camadas emocionais que torna-se literalmente impossível acompanhar a narrativa sem torcer para que seu desfecho seja favorável àqueles que ousaram, pela primeira vez, dizer Não ao obscurantismo - e aqui não hesito em afirmar que Leonardo Netto exibe a melhor performance de sua carreira.

Já no último solo, o ator incorpora o corajoso e lúcido ativista a ponto de acreditarmos que o mesmo está em cena - e mais uma vez somos tratados não como meros espectadores, mas como os congressistas que o repudiavam e agrediam sempre que ele ocupava a tribuna para se insurgir contra o preconceito e a violência que vitimam gays, negros e demais categorias que o Estado e o fanatismo religioso encaram com inaceitáveis desprezo e rejeição. 

Com relação ao espetáculo, Fabiano Freitas impõe à cena uma dinâmica de grande expressividade, para tanto valendo-se de marcas que valorizam ao extremo todos os conteúdos emocionais em jogo. Afora isto, cabe ao encenador o crédito suplementar de haver extraído do ator, como já foi dito, a melhor performance de sua carreira, e sem dúvida uma das mais potentes da atual temporada.

No tocante à equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral - Renato Machado (iluminação), Luiza Fardin (figurino), Elza Romero (cenário), Marcio Mello (visagismo), Marcia Rubin (direção de movimento) e Rodrigo Marçal e Leonardo Netto (trilha sonora). 

3 MANEIRAS DE TOCAR NO ASSUNTO - Texto e atuação de Leonardo Netto. Direção de Fabiano Freitas. Teatro Poeirinha. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.