sexta-feira, 30 de setembro de 2022

 Teatro/CRÍTICA


"Três mulheres altas"


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Obra-prima em versão irrepreensível


Lionel Fischer


Após um longo período relegado ao esquecimento, o dramaturgo norte-americano Edward Albee (1928-2016), autor, dentre outras obras, de  "The zoo story", "Quem tem medo de Virgínia Woolf", "Um equilíbrio delicado" - literalmente ressurgiu das cinzas em 1994: ganhou o Prêmio Pulitzer de Teatro com "Três mulheres altas", considerada pela crítica como a melhor peça norte-americana das últimas décadas. Em cartaz no Teatro Copacabana Palace, a peça chega à cena dirigida por Fernando Philbert, estando o elenco formado por Suely Franco, Deborah Evelyn, Nathalia Dill e João Sena.

Assumidamente autobiográfico, o texto gira em torno da mãe adotiva do autor, com quem ele viveu até os 18 anos, quando foi expulso de casa sob a acusação de ser homossexual e possuir ideias políticas excessivamente liberais para os padrões de sua família. Escrita em dois atos, no primeiro a peça se concentra nas recordações algo desconexas de A (Suely Franco), autoritária e amarga matriarca de 92 anos. Junto dela estão B (Deborah Evelyn), uma espécie de  cuidadora terna e desiludida e C (Nathalia Dill), jovem e vaidosa advogada que representa o escritório que cuida dos interesses financeiros da caquética milionária - por razões que ficarão claras no segundo ato, Albee não dá nome às suas personagens.

Na segunda parte, o autor promove o que os franceses chamam de Coup de Théâtre, uma surpresa tão desconcertante que aclará-la equivaleria a privar o espectador de um impacto realmente avassalador. Em todo caso, cumpre ressaltar que o brilhante recurso contribui para conferir um peso ainda maior às sensíveis reflexões sobre a vida - com todas as suas variantes e infinitas possibilidades -, o tempo e fundamentalmente sobre a condição feminina.

O diretor Fernando Philbert impõe à cena uma dinâmica que traz algumas de suas marcas registradas: sobriedade, elegância e uma notável capacidade de extrair o máximo de seus intérpretes. Abstendo-se de dispensáveis firulas formais, concentrando-se basicamente em explicitar todos os conteúdos propostos pelo autor através de um mergulho nas contradições e psicologia dos riquíssimos personagens, Philbert consegue criar uma encenação de altíssimo nível, totalmente à altura desta obra-prima.

Mas é óbvio que numa peça dessa natureza, seu alcance e maior significado estão condicionados ao desempenho do elenco. Só intérpretes de enorme talento seriam capazes de, por um lado, fazer aflorar uma infinidade de sentimentos, em geral dolorosos; e por outro, mergulhar profundamente em seu próprio universo afetivo -não acredito que um resultado tão expressivo possa ser fruto apenas de técnica e experiência. E Suely Franco, Deborah Evelyn e Nathalia Dill conseguem superar todos os desafios artísticos e humanos propostos por Albee.

Exibindo atuação que cativa a platéia ao longo de toda a montagem, Suely Franco convence plenamente em todos os momentos, tanto no que diz respeito à composição física quanto na forma como explicita o rico e contraditório mundo interior da personagem. Além disso, cumpre ressaltar seu imenso carisma e o mais do que merecido carinho do público, certamente agradecido pelos inúmeros encontros que teve com a atriz ao longo de sua brilhante carreira.

Deborah Evelyn consegue materializar, de forma absolutamente irrepreensível, todas as nuances de sua complexa personagem - no primeiro ato terna e acolhedora, no segundo sua angústia, ódio, desespero e sensualidade explodem com um furor em tudo semelhante ao das grandes tempestades. Salvo engano de minha parte, a atriz exibe aqui a mais expressiva performance de sua bela e vitoriosa trajetória artística.

Quanto a Nathalia Dill, a ainda bem jovem e lindíssima atriz - cujos olhos mereceriam um parágrafo à parte, que prometo escrever numa próxima oportunidade -, valoriza com extrema sensibilidade uma personagem inicialmente apenas chata e implicante, e mais adiante perplexa e inconformada com o futuro que haverá de viver. Finalmente, João Sena tem breve e correta participação.

Com relação ao trabalho da equipe técnica, este também merece ser considerado excepcional. Tanto a cenografia de Natalia Lana como os figurinos e visagismo de Tiago Ribeiro retratam de forma impecável o ambiente e as personalidades criadas por Albee. Quanto à iluminação de Vilmar Olos, cabe destacar as sutis alterações de cor, invariavelmente associadas ao estado emocional das personagens. Gustavo Pinheiro assina excelente tradução.

TRÊS MULHERES ALTAS - Texto de Edward Albee. Direção de Fernando Philbert. Com Suely Franco, Deborah Evelyn e Nathalia Dill. Teatro Copacaba Palace. Quinta a sábado, 19h30. Domingo, 18h.




terça-feira, 13 de setembro de 2022

 Teatro/CRÍTICA


"Como sobrevivi a mim mesma nesta quarentena"


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Imperdível montagem de ótimo texto


Lionel Fischer


Como todos sabemos, existem inúmeros manuais de sobrevivência. Alguns ensinam como sobreviver a um naufrágio, outros a uma avalanche de neve e certamente muitos dão preciosas dicas caso você, por exemplo, esteja fazendo um safári na África e subitamente se depare com um leão faminto. 

Mas aqui, ainda que tudo aconteça em função de um fator externo - a pandemia da Covid 19 -, as soluções dependem exclusivamente das alternativas criadas por aqueles que se viram obrigados a lidar com a própria solidão.

E é este exatamente o contexto de "Como sobrevivi a mim mesma nesta quarentena", de autoria de Rita Fischer, também intérprete do monólogo. A montagem, em cartaz no Espaço Provocações (Shopping Barra Point), leva a assinatura de Thiago Bomilcar Braga.

Um dos muitos méritos do texto consiste em sua estrutura fragmentada, com muitas idas e vindas no tempo, abarcando não somente o período da pandemia em si como também outros em que a personagem usufruía a vida sem jamais imaginar o que o futuro lhe reservava. E a forma como a autora trabalha este contraponto prioriza, de forma totalmente coerente, o estado caótico que a acometeu durante a pandemia.

Cabe também ressaltar a capacidade de Rita Fischer de alternar passagens em que o humor predomina com outras em que o desespero impera. E isto sempre ocorre sem nenhuma preparação, assim impedindo a platéia de se sentir confortável - são muitas as passagens em que o riso é subitamente interrompido por uma súbita mudança de postura da intérprete ou um silêncio que ninguém poderia supor que ocorreria. 

Repleto de humor, dramaticidade e fantasia, assim como de pertinentes observações sobre a natureza humana, "Como sobrevivi a mim mesma nesta quarentena" recebeu excelente versão cênica de Thiago Bomilcar Braga, que teve a sapiência de se abster de inócuas mirabolâncias formais e apostou todas as suas fichas em seu trabalho junto à intérprete - mas isso não significa que a cena careça de expressividade, muito pelo contrário. Cabe também ressaltar a ideia do diretor de pontuar os quadros com românticas canções francesas.

Com relação à atriz Rita Fischer, esta exibe vastíssimos recursos expressivos, tanto vocais como corporais. Dotada de um tempo de comédia absolutamente extraordinário, assim como de um magnetismo que fascina a platéia ao longo de toda a montagem, a intérprete exibe uma das melhores performances da atual temporada teatral. E caso conte, mais do que merecidamente, com as bençãos dos sempre caprichosos Deuses do Teatro, tudo leva a crer que "Como sobrevivi a mim mesma nesta quarentena" haverá de cumprir longa e bem sucedida temporada, que ora se inicia no Espaço Provocações.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as participações de todos os envolvidos nesta mais do que oportuna e imperdível empreitada teatral - Rita Fischer (figurino e produção), Cristina Fagundes (orientação dramatúrgica) e Léo Dallendone (identidade visual).

COMO SOBREVIVI A MIM MESMA NESTA QUARENTENA - Texto e atuação de Rita Fischer. Direção de Thiago Bomilcar Braga. Espaço Provocações (Shopping Barra Point, Avenida Armando Lombardi 350). Ingressos promocionais pela SYMPLA (R$ 25,00) e pelo Rio no Teatro.