segunda-feira, 24 de abril de 2017



Teatro/CRÍTICA

"O que terá acontecido a Baby Jane?"

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Atrizes maravilhosas em atuações inesquecíveis

Lionel Fischer



"Após ser uma estrela mirim do teatro de vaudeville, Jane Hudson precisou lidar com a decadência de seu prestígio e posterior sucesso de sua irmã, Blanche, que se transformou em uma estrela do cinema hollywoodiano. Após um trágico e misteriosos acidente que encerrou definitivamente a carreira de ambas, elas se encontram confinadas - e abandonadas - em uma mansão, onde dividem um cotidiano recheado de mágoas e ressentimentos. Esta mansão é o cenário perfeito para o embate entre as irmãs e para uma vingança perversa de Jane, que passara boa parte da vida relegada ao papel de coadjuvante nos filmes da irmã. Disposta a voltar aos palcos, Jane tenta retomar o personagem da infância, passando por cima de tudo para atingir seu objetivo". 

Extraído do ótimo release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "O que terá acontecido a Baby Jane", em cartaz no Theatro Net Rio. Baseado no romance homônimo de Henry Farrell, o texto tem adaptação teatral assinada por Charles Möeller, que divide a direção do espetáculo com Claudio Botelho. No elenco, Eva Wilma, Nathalia Timberg, Paulo Goulart Filho, Teca Pereira, Nedira Campos, Juliana Rolim, Karen Junqueira, Sophia Valverde, Duda Matte, Alessandra Martins e Ágatha Félix. 

Como se sabe, o texto ganhou magistral versão cinematográfica em 1962, estrelada por Bette Davis e Joan Crawford - Robert Aldrich assinou a direção e Lukas Heller o roteiro. Afora os méritos estritamente artísticos da empreitada, também contribuíram para o retumbante sucesso do filme a jamais ocultada rivalidade entre as protagonistas, que ao que consta se odiavam.  

Para os que não assistiram o filme, a presente adaptação teatral consegue materializar os principais conflitos, abordados através de idas e vindas no tempo. No entanto, e por razões óbvias, não há como o teatro se equiparar ao cinema em um tal contexto, impregnado de suspense e momentos do mais absoluto terror. E tais componentes, ainda que bem trabalhados no espetáculo, geram um efeito bem menor do que no filme, fato que é agravado pela dimensão do palco do Net Rio, que coloca o espectador muito afastado do claustrofóbico e sombrio quarto onde ocorrem as cenas mais virulentas entre as irmãs. 

Seja como for, a história nos é contada através de uma dinâmica cênica que, mesmo sem materializar os aterrorizantes climas do filme (o que seria praticamente impossível, como já foi dito), ainda assim consegue manter a plateia sempre atenta e interessada. E isto se dá, fundamentalmente, em razão das ótimas atuações de Eva Wilma (Jane) e Nathalia Thimberg (Blanche). 

A primeira exibe performance irretocável na pele de uma mulher que, consumida pela inveja e pelo ressentimento, aos poucos vai se tornando cada vez mais perversa, e finalmente é dominada pela loucura. Quanto a Nathalia Timberg, seu desempenho só reafirma o que todos já sabem: trata-se de uma das melhores atrizes da história do teatro brasileiro. E que por isso consegue valorizar ao máximo todas as características de uma personalidade reduzida à mais absoluta impotência e que tenta desesperadamente aplacar as torturas que lhes são impostas. Estamos, sem a menor dúvida, diante de dois trabalhos que haverão de ficar em nossa memória por muito tempo.

Com relação aos demais intérpretes, todos exibem atuações seguras e sensíveis, sendo de excelente nível as contribuições de toda a equipe técnica - Claudio Botelho (tradução), Rogério Falcão (cenografia), Carol Lobato (figurinos), Paulo Cesar Medeiros (iluminação) e Beto Carramanhos (visagismo).

O QUE TERÁ ACONTECIDO A BABY JANE? - Texto de Henry Farrell. Adaptação de Charles Möeller. Direção de Möeller e Claudio Botelho. Com Eva Wilma, Nathalia Timberg e grande elenco. Theatro Net Rio. Quinta-feira às 18h; sexta e s´bado às 21h; domingo às 18h.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Falando frangamente"

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Delicioso cardápio no Porão

Lionel Fischer



"O espetáculo solo de Aloisio de Abreu é uma espécie de buffet de humor a kilo, onde, em formato de ato variado, Aloisio fala e canta assuntos de sabores variados. O ator, como uma espécie de garçon cênico, apresenta os pratos escritos num grande cardápio - na verdade, os assuntos que serão desenvolvidos na cena abrangem sexo, língua portuguesa, televisão, cirurgia plástica e dança, dentre outros. O espetáculo é teatro, é performance, é festa, show, dança, drama e celebração".

Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o delicioso cardápio em cartaz na Sala Rogério Cardoso (Porão da Laura Alvim). Ricardo Kosovski responde pela direção do espetáculo e Aloisio de Abreu, além de atuar, assina a concepção, textos e músicas, dividindo a cena com o DJ LC Ambient. 

Dizem que o homem é o único animal que ri - trata-se, em meu entendimento, de suposição duvidosa, pois tenho absoluta certeza de que meu cachorro, em dadas circunstâncias, me sorri de forma inequívoca. Mas admitamos ser verdadeira a máxima que sustenta ser o homem o único animal que ri. No entanto, e isso é inquestionável, há risos e risos. Vamos, então, dividi-los em dois grupos.

Há risos que advém de piadas idiotas, de grosserias patéticas, de melancólicas tentativas de autores que só obtém algum tipo de aprovação das próprias mães - desde que as mesmas sejam possuidoras de infinita compaixão. Em contrapartida, há risos oriundos de um olhar crítico sobre a realidade, em múltiplos de seus aspectos. E são apenas estes que realmente valem a pena, posto que potencialmente capazes de gerar reflexões e não raro imprevistas transformações. E é nesta categoria que se inserem os ótimos textos de Aloisio de Abreu.

Como se sabe, tratados já foram escritos sobre o riso e por pessoas infinitamente mais capazes do que eu. No entanto, e ainda que rubro de modéstia, ouso confessar que pretendo, em breve, escrever um diminuto ensaio (que ninguém lerá) sobre o tema, tendo como pilares a Vergonha e o Alívio. Mas, estando a dita obra ainda em processo de elaboração, por ora me permito apenas ressaltar o que já se sabe, ou seja, que na origem do humor está o desequilíbrio, a momentânea perda do eixo, algo que foge do controle e coloca o sujeito à mercê de fatos que não gostaria de vivenciar.

Digressão feita, e admito que um tanto longa, gostaria de enfatizar minha irrestrita admiração pela extraordinária capacidade de Aloisio de Abreu de enxergar além das aparências, de desprezar o meramente epidérmico e penetrar em camadas mais profundas, ainda que olhares desatentos ou distraídos não o percebam. Cito apenas um exemplo. 

Há um quadro em que três mulheres, que submeteram seus corpos às mais diversificadas plásticas, se alternam cantando uma música. Todos os espectadores se contorcem de rir, porque a cena é realmente engraçadíssima. Mas isso não nos impede de perceber a presença do trágico naquelas mulheres que, em sua ânsia de permanecerem jovens e sempre belas, acabam por se tornar nada além de patéticas caricaturas. Quanto aos demais textos, me abstenho de comentá-los, pois isso privaria o leitor de usufruir impagáveis surpresas. 

No tocante à atuação, considero Aloisio de Abreu um ator completo, na acepção máxima do termo. E se aqui ele nos faz rir, numa outra ocasião nos fará chorar, se assim o desejar. Possuidor de grande carisma, forte presença cênica, ótima voz e impecável trabalho corporal, além disso Aloisio de Abreu responde por ótimas canções, canta esplendidamente e, como se tudo isso não bastasse, permanece lindo como sempre foi.

Com relação à direção de Ricardo Kosovski, não sei até que ponto ela leva seu dedo - no sentido metafórico, naturalmente. Sendo ele um excelente ator e não menos excelente diretor, ainda assim fico curioso a respeito do processo de ensaio. Como terá sido? 

Não sei, evidentemente, mas imagino que, diante de um material dramatúrgico tão interessante e de um ator capaz de fazer qualquer coisa, ainda assim Kosovski tenha feito observações pontuais, proposto algumas alternâncias rítmicas, enfatizado a importância de uma dinâmica que transcendesse o que teoricamente seria apenas um show e assim por diante. Seja como for, é evidente que Kosovski tem que ter sido peça muito importante para o sucesso desta montagem imperdível.

No que concerne à equipe técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de Beli Araújo (cenografia), Allinges Tibau (figurino), André Poyart (direção musical) e Nadia Nardini e Tony Nardini (dinâmica corporal).

FALANDO FRANGAMENTE - Concepção, textos e músicas de Aloisio de Abreu. Direção de Ricardo Kosovski. Com Aloisio de Abreu. Sala Rogério Cardoso (Porão da Laura Alvim). Quinta-feira, 21h. 

   








quinta-feira, 13 de abril de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Josephine Baker - A Vênus Negra"


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Musical imperdível na Maison de France


Lionel Fischer



"A peça aborda a vida da dançarina, cantora, atriz e humorista Josephine Baker (1906-1975), norte-americana naturalizada francesa que conquistou o mundo com sua arte e talento, apesar das críticas ao seu estilo de vida rebelde e liberal. No palco, a dança selvagem, a sensualidade e o deboche. Fora dele, a luta pela igualdade racial, a defesa da miscigenação e da convivência harmônica entre os povos".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza a vida e trajetória artística de uma mulher que conquistou o mundo com seu talento e algumas atitudes admiráveis, dentre elas a de adotar 12 crianças de etnias diferentes e aliar-se à Resistência Francesa (como espiã) durante a Segunda Guerra Mundial.  

Em cartaz no Teatro Maison de France, "Josephine Baker - A Vênus Negra" tem dramaturgia assinada por Walter Daquerre, estando a direção a cargo de Otavio Muller. Aline Deluna encarna a personagem e é também responsável pala maioria das partes narradas, dividindo a cena com os músicos Dany Roland (bateria e percussão), Christiano Sauer (contrabaixo, violão e guitarra) e Jonathan Ferr (piano e escaleta) - estes últimos também têm importantes participações como atores ao longo da montagem.

Um dos aspectos que mais me fascinou no texto de Walter Daquerre é que ele teve a coragem de optar por uma estrutura narrativa que vai na contramão da chamada dramaturgia contemporânea - nada tenho contra tal dramaturgia, desde que os conteúdos propostos cheguem à plateia com um mínimo de clareza. 

Mas, no presente texto, Daguerre aposta na eficiência de uma escrita em ordem cronológica e que combina, de forma simples e natural, passagens representadas com outras em que predominam narrações. Outro ponto a destacar, além da ótima dramaturgia, diz respeito à participação decisiva dos músicos como atores, fato que não me recordo de haver presenciado em musicais exibidos no Rio de Janeiro. 

Com relação ao espetáculo, Otavio Muller impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico - tudo é simples e natural, tudo acontece às claras, o que converte o espectador em cúmplice total do que está assistindo e vivendo. Cabe também ressaltar a precisão dos tempos rítmicos e a sensibilidade com que o encenador valoriza todos os climas emocionais em jogo.  

No tocante ao elenco, Aline Deluna exibe performance maravilhosa, tanto nas passagens em que fala em seu nome como naquelas em que narra na pele de Josephine. E quando efetivamente encarna a personagem, aí o encantamento que gera é arrebatador: como se não bastasse ser linda, possuidora de raro carisma e fortíssima presença cênica, a atriz ainda dança de forma irretocável e canta esplendidamente em vários idiomas. Resumindo: estamos diante de uma verdadeira estrela, no sentido não narcísico do termo, mas em sua acepção mais justa e merecida. 

Quanto aos músicos-atores, neste último quesito todos contribuem de forma decisiva para o êxito da montagem, exibindo humor e dramaticidade com a mesma eficiência. No tocante à direção musical de Dany Roland, esta prima pela elegância e sofisticação, sempre em sintonia com o que está acontecendo na cena. E o trio de instrumentistas exibe predicados virtuosísticos só passíveis de serem testemunhados quando estamos diante de mestres.

Na equipe técnica, Paulo Cesar Medeiros exibe um dos melhores trabalhos de sua brilhante carreira - é impressionante como este profissional, abdicando de quaisquer firulas luminísticas, sublinha e enfatiza de forma admirável todos os sentimentos em causa. E o faz com simplicidade, algo que só se materializa quando o artista domina totalmente seu veículo expressivo. A mesma eficiência se faz presente nas preciosas colaborações de Marina Salomon (direção de movimento), Marcelo Marques (cenografia e figurinos), Débora Garcia (preparação vocal) e Guto Leça (visagismo).

JOSEPHINE BAKER - A VÊNUS NEGRA - Texto de Walter Daguerre. Direção de Otavio Muller. Com Aline Deluna, Danny Roland, Christiano Sauer e Jonathan Ferr. Teatro Maison de France. Quinta a sábado, 20h. Domingo, 19h.


Prêmio APTR de Teatro
11ª Edição
VENCEDORES


MÚSICA
Alfredo Del Penho e Beto Lemos - "Auê"

ILUMINAÇÃO
Artur Luanda Ribeiro e Hugo Mercier - "Gritos"

FIGURINO
Luiza Fardin - "Se eu fosse Iracema"

CENOGRAFIA
Daniela Thomas e Camila Schmidt - "Os realistas"
José Dias - "Dorotéia"

ATOR EM PAPEL COADJUVANTE
Ary França - "Galileu Galilei"

ATRIZ EM PAPEL COADJUVANTE
Juliana Guimarães - "Sucesso"

DIREÇÃO
André Curti e Artur Luanda Ribeiro - "Gritos"

AUTOR
Cláudia Mauro - "A vida passou por aqui"

ATOR EM PAPEL PROTAGONISTA
Marcos Caruso - "O escândalo Phillippe Dussaert"
Otto Jr - "Amor em dois atos"

ATRIZ EM PAPEL PROTAGONISTA
Suzana Faini - "O como e o porquê"

ESPECIAL
Cesar Augusto - pela multiplicidade de ações artísticas

ESPETÁCULO
"Auê" e "Gritos"

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Tom na fazenda"

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Arrebatador e imperdível encontro



Lionel Fischer



"Após a morte de seu companheiro, o publicitário Tom vai à fazenda da família para o funeral. Ao chegar, ele descobre que a sogra nunca tinha ouvido falar dele e tampouco sabia que o filho era gay. Nesse ambiente rural austero, Tom é envolvido numa trama de mentiras criada pelo truculento irmão do falecido, estabelecendo com aquela família relações de complicada dependência. A fazenda, aos poucos, vira cenário de um jogo perigoso, onde quanto mais os personagens se aproximam, maior a sombra de suas contradições".

Extraído do ótimo release que me foi enviado pelas assessoras de imprensa Bianca Senna e Paula Catunda, o trecho acima sintetiza o enredo de "Tom na fazenda" (Oi Futuro Flamengo), de autoria do super premiado autor canadense Michel Marc Bouchard, pela primeira vez encenado no Brasil. Rodrigo Portella responde pela direção do espetáculo, que tem elenco formado por Kelzy Ecard, Armando Babaioff, Camila Nhary e Gustavo Vaz.

Ao chegar à fazenda, em estado de total desamparo, Tom - como dito no parágrafo inicial - constata que a mãe de seu companheiro desconhecia sua existência e muito menos que seu filho era gay. Mas a esta imprevista surpresa se segue uma outra, bem mais contundente e que impulsiona a trama: Francis, irmão do falecido, sabia que ele era gay e, de forma truculenta, intima Tom a proferir, no funeral a realizar-se no dia seguinte, palavras elogiosas sobre seu irmão, apresentando-se apenas como um colega de trabalho. Perto do final, surge uma jovem que deveria se fazer passar por algo que efetivamente não é, o que enfatiza ainda mais um dos principais temas do texto: a mentira.

Como sabemos, a humanidade mente desde sempre. Mas há mentiras e mentiras, algumas bobas e inofensivas, que não geram maiores consequências, enquanto outras objetivam ocultar fatos que em nenhuma hipótese devem vir à tona. E por que não podem ser revelados? São muitas as variantes, evidentemente, mas uma delas diz respeito à necessidade de se preservar a moral vigente, o que implica no permanente exercício da hipocrisia. E aqueles que ousam revelar-se como realmente são, em geral estão fadados a amagar penosas consequências impostas pelo poder dominante.  

Não sei se, como apregoa o ditado popular, a mentira tem perna curta. Pode ser que sim, mas aqui o que importa é que a imposição de uma mentira acaba por funcionar de forma inversa, ou seja, vai aos poucos fazendo aflorar imprevistas e inusitadas verdades. Uma delas, talvez a principal, diz respeito ao homofóbico e truculento Francis, que, embora adorando o irmão e sabedor de sua homossexualidade, não admite que ninguém tome conhecimento dela, e muito menos sua mãe. 

No entanto, ao longo da trama, o espectador vai se dando conta de que nem tudo é efetivamente o que parece ser - e aqui me abstenho de revelar maiores detalhes, pois isso privaria o espectador de usufruir as surpreendentes reviravoltas desta peça absolutamente extraordinária.

Além da mentira, o autor explora de forma magnífica uma série de outros temas, como sentimentos dúbios e obscuros, a necessidade que temos de refrear grande parte de nossos impulsos, a obrigatoriedade de convivermos com os outros expondo apenas o que é ou parece ser conveniente, e assim por diante. 

Afora isto, cumpre destacar o recurso utilizado com o personagem Tom, que mescla os próprios pensamentos às palavras que profere diretamente às pessoas com quem está dialogando. E, finalmente, uma arrebatada admiração no tocante à capacidade de Bouchard de criar personagens maravilhosamente estruturados e diálogos de uma potência teatral digna de um autor de exceção.  

Com relação ao espetáculo, Rodrigo Portella impõe à cena uma dinâmica que, renunciando ao realismo, converte o palco em uma espécie de ringue, empoeirado e lamacento, belíssima metáfora da existência humana, já que parecemos condenados a chafurdar em meio aos abjetos detritos que nossa covardia impede de banir. Além disso, o encenador merece o crédito suplementar de haver extraído deslumbrantes atuações do elenco.

Na pele de Tom, Armando Babaioff (idealizador do projeto e responsável pela ótima tradução) exibe a melhor performance de sua carreira, conseguindo materializar todas as sutilezas de uma personalidade amorosa e delicada que, com o transcorrer da peça, vai aos poucos se deixando tomar pela loucura e virulência inerentes ao contexto desta ensandecida fazenda. Gustavo Vaz está irretocável vivendo o truculento Francis, cabendo salientar a sensibilidade e sutileza com que trabalha as mudanças que vão ocorrendo com seu personagem. 

Kelzy Ecard, como não me canso e jamais me cansarei de repetir, é uma atriz que se entrega de forma visceral às personagens que interpreta, e portanto em nada me surpreende que nos brinde com mais uma atuação de altíssimo nível. Em papel de menores oportunidades, ainda assim Camila Nhary convence plenamente como a jovem encarregada de protagonizar uma farsa, valorizando com igual competência tanto os momentos mais dramáticos quanto aqueles em que o humor predomina.  

Na equipe técnica, destaco com o mesmo e incontido entusiasmo as preciosas colaborações de Aurora dos Campos (cenografia), Tomás Ribas (iluminação), Bruno Perlatto (figurinos) Marcello H. (concepção sonora) e Lu Brites (preparação corporal).

TOM NA FAZENDA - Texto de Michel Marc Bouchard. Direção de Rodrigo Portella. Com Kelzy Ecard, Armando Babaioff, Camila Nhary e Gustavo Vaz. Oi Futuro Flamengo. Quinta a domingo, 20h.









sábado, 8 de abril de 2017

OFICINAS ROTEIRO de Cinema, de Humor e Dramaturgia - SEGUNDA começam! Ateliê Artístico do Rio
 
Hoje, 01:18
Teatro/CRÍTICA

"Gisberta"

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Emocionado e oportuno tributo

Lionel Fischer


Eram sete os filhos de uma família paulistana quando surgiu o oitavo, nomeado Gisberto Salce Junior. Mas ainda na primeira infância, o menino tomou consciência de que nascera no corpo errado. Sentia-se uma menina e agia como uma menina. Já adolescente, quem desconhecia sua história não hesitava em considerá-la uma mulher. 

Passou a frequentar noite, fez shows em bares e boates e vivia acompanhada por duas amigas, a exemplo dela transexuais. Mas depois que ambas foram assassinadas, mudou-se para Paris e mais adiante radicou-se em Portugal, na cidade do Porto, onde deu prosseguimento à sua carreira por 25 anos. 

No entanto, acabou se envolvendo com drogas, contraiu Aids, e já completamente destituída de recursos financeiros, foi morar em um prédio abandonado. Descoberta por um grupo de psicopatas com idades variando de 12 a 16 anos, foi impiedosamente torturada durante muitos dias, e finalmente atirada, ainda viva, em um poço. Tinha apenas 44 anos a mulher que atravessara um oceano em busca da felicidade e que, por umas dessas trágicas ironias do destino, terminaria por morrer afogada.

Eis, em resumo, a trajetória desta mulher de admirável coragem e inabalável determinação, brutalmente assassinada em fevereiro de 2006. E o presente espetáculo presta comovente tributo a ela. Em cartaz no Teatro III do CCBB, "Gisberta" tem dramaturgia assinada por Rafael Souza-Ribeiro, estando a direção a cargo de Renato Carrera. Luis Lobianco protagoniza o monólogo, no qual interpreta vários personagens e também atua como narrador. O ator divide a cena com os músicos Lúcio Zandonadi (piano e voz), Danielly Sousa (flauta e voz) e Rafael Bezerra (clarineta e voz).

Em sua primeira metade, o texto nos dá a conhecer a infância e adolescência da personagem, seja quando Lobianco encarna alguns familiares de Gisberta como nas passagens em que conversa diretamente com a plateia. Até aqui, tudo transcorre de forma deliciosa, sendo excelente o texto do autor. 

No entanto, a partir do momento em que vai se tornando evidente que uma tragédia se avizinha, o autor interrompe a tensão já estabelecida e retorna ao passado da personagem, priorizando a leveza, a ternura e o humor já competentemente explorados. E isso acontece não uma, mas várias vezes. Então, cabe a pergunta: será que, ao lançar mão deste recurso, Rafael Souza-Ribeiro teve algum receio de que a narrativa, a partir de um certo ponto, se tornasse pesada demais, sendo conveniente suavizá-la? Se foi isto que aconteceu, cabe nova pergunta: por que suavizar uma história que, como já dito, a partir de um certo ponto se encaminha para um trágico desfecho?

Outra questão diz respeito ao final. Há uma passagem em que Lobianco encarna um juiz e este explicita os fatos ocorridos e profere a absurda e indulgente sentença. Trata-se de um momento de fortíssima potência teatral, que mantém a plateia no mais absoluto e perplexo silêncio. Pois bem: por que o espetáculo não termina aqui? Qual a necessidade de, logo em seguida, Lobianco cantar, sorridente e sedutor, uma bela canção, envolto por apaziguante luz rosa? Será que o objetivo foi o de passar a subjacente mensagem de que, apesar desta ou de todas as tragédias, a vida continua e o melhor a fazer é tentar usufrui-la da forma mais leve possível? Enfim...

Com relação ao espetáculo, Renato Carrera impõe uma dinâmica cênica em total sintonia com o material dramatúrgico, trabalhando com a mesma competência tanto as passagens mais engraçadas quanto aquelas em que o drama prevalece. E também merece o crédito suplementar de haver extraído segura e sensível atuação de Luis Lobianco, que mantém a plateia magnetizada ao longo de toda a montagem. 

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Lúcio Zandonati (trilha sonora e músicas compostas), Renato Machado (iluminação), Mina Quental (cenografia), Gilda Midani (figurino), Simone Mazzer (preparação vocal) e Marcia Rubin (direção de movimento). Cabe também destacar a excelência dos músicos Lúcio Zandonadi, Danielly Sousa e Rrafael Bezerra.

GISBERTA - Texto de Rafael Souza-Ribeiro. Direção de Renato Carrera. Com Luis Lobianco. Teatro III do CCBB. Quinta a domingo, 19h30.