sexta-feira, 29 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Rosa"

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Comovente relato no Leblon


Lionel Fischer


"Rosa é uma senhora judia de aproximadamente 80 anos que, durante o shivah (período de luto judaico), relembra sua vida, como sua infância em Yultishka - cidadezinha perdida no meio da Ucrânia, de estradas de terra batida e de casinhas minúsculas - até seus dias atuais, em Miami Beach, na América que lhe acolheu.

Rosa também se recorda de vários outros momentos marcantes, como sua mudança para Varsóvia, a invasão da Polônia pelos nazistas, o sonho da Palestina - a terra dos antepassados, que Deus havia prometido - sua passagem por Jerusalém, Atlantic City e Connecticut. Clandestina num navio, em Sete, na França, Rosa também viu o mar pela primeira vez e achou que era uma alucinação. Com leveza, emoção e uma pitada de ironia, a personagem nos conduz para quase um século de histórias - suas e do mundo".

Extraído do release que me foi enviado, o texto acima resume o enredo de "Rosa", em cartaz na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. De autoria do norte-americano Martin Sherman (o mesmo de "Bent"), "Rosa" chega à cena com direção de Ana Paz e interpretação a cargo de Debora Olivieri.

Estruturado de forma confessional, o monólogo efetivamente nos conta, como dito no release, as histórias da protagonista e as do mundo em que viveu. E que histórias são essas? Certamente, as de Rosa; mas estas transcendem a singularidade da personagem e nos oferecem um amargo painel de todos os horrores impingidos aos judeus com o advento do nazismo. 

Em sua primeira parte, escutamos relatos tenebrosos de momentos que gostaríamos que não tivessem existido. Mas existiram e lembrá-los é sempre oportuno, ainda que doloroso, pois o neonazismo está mais vivo do que nunca. E não apenas ele, mas toda uma série de correntes políticas ou religiosas que, estruturadas no fanatismo e na intolerância, sustentam que a felicidade só pode se materializar com o aniquilamento de todos aqueles que não rezam a mesma cartilha.

Ou seja: nesta ou em qualquer outra esfera, se nos recusamos a refletir sobre nosso passado estamos condenados a repeti-lo. E obviamente que só mentes completamente doentias desejam que se repita algo parecido com o abominável massacre de que foi vítima o povo judeu.

Já em sua segunda parte, quando a protagonista está na América, aí o texto torna-se mais leve, com o autor permitindo-se exibir, em muitas passagens, o deliciosamente crítico humor judaico. Mas ainda assim as reflexões de Rosa não deixam de conter aspectos melancólicos, muitas carências, perplexidades e dúvidas. E a soma de tantas peculiaridades converte a protagonista numa personagem impregnada de comovente humanidade.

Quanto ao espetáculo, a diretora Ana Paz criou uma dinâmica cênica que prioriza de forma admirável os principais conteúdos deste texto belíssimo. Renunciando a inúteis mirabolâncias formais, a encenadora mantém a protagonista sentada, na maior parte da montagem, o que obriga o público a concentrar-se na riquíssima narrativa. E este singelo detalhe certamente contribuiu para que conseguisse extrair de Debora Olivieri uma atuação maravilhosa.

Compondo uma idosa sem valer-se de recursos óbvios, como um corpo encurvado, maquiagem pesada ou voz trêmula, Debora Olivieri não representa uma idosa, mas a vive - sei que os verbos "representar" e "viver" podem soar muito parecidos, mas um olhar atento sobre a cena permitirá a qualquer espectador mais sensível perceber a sutil diferença entre ambos.

Entregando-se por completo à personagem, valorizando tanto as passagens mais amargas quanto aquelas em que o humor predomina, Debora Olivieri extrai o máximo do extraordinário papel criado por Martin Sherman e sua performance é, sob todos os aspectos, uma das mais marcantes da atual temporada.

Na equipe técnica, Manuel Mendes Silva responde por fluente tradução, sendo absolutamente irretocáveis as expressivas  contribuições de Hélio Eichbauer (cenografia), Paulo César Medeiros (iluminação) e Ana Monteiro de Castro (figurinos).

ROSA - Texto de Martin Sherman. Direção de Ana Paz. Com Debora Olivieri. Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"O Idiota"

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Obra-prima em versão inesquecível


Lionel Fischer


Antes de mais nada, gostaria de declarar que Fiódor Dostoiévski (1821-1881) é o escritor que mais amo e cuja obra li em sua totalidade - isto não significa, bem entendido, que seja um especialista no autor e, portanto, capaz de tecer sobre ele considerações mais significativas do que as infinitas já formuladas por alguns dos mais brilhantes teóricos de todo o mundo. 

Isto posto, cabe uma segunda declaração: todas as vezes que vou assistir a um filme ou peça de teatro baseados em alguma obra do autor, em termos metafóricos me tremo todo, como se padecesse de malária, por temor de que a mesma resulte parcial ou completamente desfigurada. Felizmente, não é o caso desta inesquecível montagem, produzida pela Mundana Companhia de Teatro, de São Paulo, em cartaz no Espaço Tom Jobim (Galpão das Artes) e que encerra sua temporada carioca na próxima segunda-feira.

Contando com tradução de Paulo Bezerra, roteiro adaptado de Aury Porto, colaboração dramatúrgica de Vadim Nikitin, Luah Guimarães e Cibele Forjaz, consultoria teórica de Elena Vássina e direção de Cibele Forjaz, o espetáculo chega à cena com elenco formado por Aury Porto, Fredy Allan, Luah Guimarães, Lúcia Romano, Luís Mármora, Sérgio Siviero, Silvio Restiffe, Sylvia Prado e Vanderlei Bernardino.

Pensando naqueles que ainda não leram a obra, transcrevo a seguir a sinopse da mesma, extraída do programa oferecido ao público:

"O príncipe Míchkin está de volta a São Petersburgo depois de um período na Suíça, onde estivera se tratando de epilepsia. Ao chegar a São Petersburgo, ele pretende procurar por Lisavieta, uma parenta distante com quem deseja travar conhecimento. Apesar de príncipe, Míchkin é pobre e, ao viajar num vagão de terceira classe do trem da rota Petersburgo-Varsóvia, ele conhece Ragôjan, um novo-rico que acaba de ganhar uma vultuosa herança do pai, com a qual pretende arrebatar Nastássia Filípovna, mulher fatal, primeiro afilhada e depois amante de Tôstski, um milionário petersburguense.

Arma-se aí um dos pilares de O Idiota. Ragôjan, protótipo do homem rude, é apaixonado por Nastássia, que, por sua vez, fica fascinada pela santidade de Míchkin, também 'medusado' pela figura da concubina santa. A partir da segunda parte da peça vemos Míchkin enredado em outro triângulo amoroso. Agora, em um dos vértices do triângulo está Aglaia, a filha de sua parenta Lisavieta, que ficará fascinada com a possibilidade de Míchkin vir a ser o amante revolucionário com o qual ela tanto sonha. Nesse triângulo, Nastássia e Aglaia disputam o coração de Míchkin. Outros personagens envolvidos diretamente nesses triângulos tornam o enredo dessa história bem mais complexo, para além do simples jogo amoroso. No olho do furacão está Mítchkin, que tem como falha trágica compadecer-se de todas as personagens à sua volta".

Como se vê, estamos diante de uma trama com evidente caráter folhetinesco. Mas o que a difere do folhetim tradicional é a extraordinária capacidade do autor de mergulhar profundamente na alma humana, fazendo aflorar alguns de seus aspectos mais contraditórios e sombrios. Ao mesmo tempo, e por mais paradoxal que possa parecer, Dostoiévski reafirma sua crença no homem através do protagonista, que muitos consideram uma mescla de Dom Quixote e Jesus Cristo.

E tal crença baseia-se na suposição de que o homem, ainda que contendo aspectos nada meritórios, ao mesmo tempo também possui uma porção, digamos, de santidade, aqui materializada na capacidade de Míchkin de sentir compaixão (ao invés de julgar) e de perdoar a todos aqueles que se maltratam e, em especial, o maltratam com cruel insistência.

Tais predicados geram, inevitavelmente, sentimentos antagônicos. Quando alguém é vítima de uma ofensa, por exemplo, o natural é que reaja. Mas se, ao invés de fazê-lo, oferece a outra face, o agressor se sente confuso, não sabe como proceder diante de uma reação tão inesperada. Ao invés de ódio, recebe o perdão...

No entanto, ultrapassada a surpresa inicial, surge o grande impasse, pois o agressor é como que forçado a encarar aquele que agrediu como uma especie de materialização do ideal humano; não sendo ele capaz de se enquadrar nesta categoria, passa a amar e a odiar simultaneamente aquele que o perdoou. E que, assim agindo, mostra a viabilidade de um maior entendimento entre os homens. Em última instância, Mítchkin causa profundo desconforto em todos que o cercam exatamente pelo fato de personificar o bem, no sentido mais amplo da palavra.

Com relação ao espetáculo, este merece ser considerado como um dos mais significativos já vistos em palcos cariocas. Exibindo uma estrutura itinerante, o espetáculo convida o espectador a acompanhá-lo em diversos cenários, sempre colocando-o muito próximo da ação. E a tal ponto que me foi dado o privilégio de escutar o seguinte diálogo entre duas jovens, de no máximo 20 anos, quando a montagem estava chegando ao seu final.

Uma delas disse: "É como se a gente estivesse na peça", no que a outra retrucou: "Mas nós estamos na peça!". E foi exatamente essa a sensação que senti ao longo das seis horas do espetáculo.

E isto se deve não apenas ao fato de, eventualmente e com toda a delicadeza, os atores convidarem alguns espectadores a breves participações. O essencial é que desde o primeiro momento já estava implícito que a montagem só faria endossar a defininição de Peter Brook do fenômeno teatral: "O teatro é a arte do encontro". E tenho absoluta certeza de que todos que assistiram "O Idiota" jamais esquecerão este encontro tão arrebatador.

Impondo à cena uma dinâmica repleta de humor e humanidade, aqui materializadas através de marcas tão imprevistas quanto criativas, Cibele Forjaz consegue ser absolutamente fiel ao romance, mas ao mesmo tempo teatralizando-o de forma admirável. E mais: a ele conferindo um tamanho grau de contemporaneidade que por vezes temos a impressão de que o autor poderia perfeitamente estar sentado na platéia - e, sem dúvida, felicíssimo com o resultado exibido.

Com relação ao elenco, mais uma vez me vejo obrigado a repetir o que já disse em tantas críticas: este país pode carecer de tudo, menos de intérpretes maravilhosos. E os atores da Mundana Companhia de Teatro só fazem reafirmar esta minha inabalável crença. E não apenas por exibirem amplos recursos expressivos, mas também por sua notável capacidade de entrega e pelo inenarrável prazer que demonstram de estar em cena, partilhando suas emoções com o público.

A todos, portanto, agradeço essa noite memorável, e apelo aos sempre caprichosos deuses do teatro que continuem abençoando esta montagem e permitam que a mesma fique em cartaz por muito, muito tempo.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiamo os irrepreensíveis trabalhos de Paulo Bezerra (tradução), Aury Porto (roteiro adaptado), Vadin Nikitin, Luah Guimarães e Cibele Forjaz (coloboração dramatúrgica), Elena Vássina (consultoria teórica), Lu Favoreto (direção de movimento), Lúcia Gayotto (direção vocal e interpretativa), Otávio Ortega (direção musical, trilha sonora, música ao vivo), Laura Vinci (cenografia), Joana Porto (figurinos), Alessandra Domingues (iluminação) e Simone Mina (arte gráfica) - e aqui faço questão de ressaltar que este foi o melhor programa de uma peça que já me chegou às mãos, tantas e tão pertinentes são as informações nele contidas.

O IDIOTA - Texto de Fiódor Dostoiévski. Roteiro adaptado de Aury Porto. Direção de Cibele Forjaz. Com a Mundana Companhia de Teatro. Espaço Tom Jobim (Galpão das Artes). Sábado, domingo e segunda, 17h30. 




   

terça-feira, 26 de julho de 2011

Estrutura Dramatúrgica
do Teatro de Revista

1. Quadros obrigatórios e alegóricos:

da IMPRENSA - onde se apresentavas os jornais da época.
do TEATRO - traçava um panorama cômico das atividades teatrais do ano.
das DOENÇAS - a varíola e a febre amarela apareciam devidamente personificadas.
O ANO VELHO e o ANO NOVO - também eram personificados.

2. Compére ou Compadre - apresentava os quadros, comentava, pactuava com a platéia. Conduzia a ação, ligando o espetáculo de ponta a ponta. Era mais uma convenção do que um personagem. Dupla de compadres - como o tony (mais bobo) e o clown (vivo, esperto) circenses. Podia haver também a Comère.

Aglutinador, apresentador, comentarista, dançarino, cantor, bufão, contador de piadas, ele atravessa a revista de ponta a ponta para costurar os diversos quadros, cristalizando a dinâmica do pacto com a platéia, característica própria do teatro popular. Este papel era geralmente reservado ao primeiro cômico da companhia.

3. Personagens-tipo - estavam sempre relacionados diretamente com a cidade do Rio de Janeiro. Tipos sempre presentes:

O Malandro - encarnava o perfil do carioca - às vezes malandro, às vezes cômico. As comédias gregas já apresentavam personagens trapaceiros, vadios e mulherengos. Podia ter vários nomes. Mas sempre sabia se virar: trambiqueiro, clandestino, marginal. E tal como nas ruas do Rio de Janeiro, pelas revistas de ano de Artur Azevedo desfilam caloteiros, trapaceiros, assaltantes, todos trajados com o melhor figurino da tipificação nacional: a bilontragem. Atores: Oscarito, Grande Otelo e Zé Trindade, dentre outros.

Ao desrespeitar as duas maiores instituições do capitalismo, o trabalho e a família (pois o trambiqueiro estava pronto a cortejar qualquer mulher bonita, mesmo se ela fosse casada), o malandro deixava entrever a alegria de ser marginal. Ele desencadeava o jogo com o mito popular de que "nesta terra se virando tudo dá". E no sistema moral das revistas, as malandragens, os trambiques, as marmeladas e os pequenos golpes nunca eram punidos. No final, tudo era resolvido com o jetinho brasileiro.

A Mulata - tipo mais sedutor do teatro brasileiro. Na disputa do seu coração o português e o malandro se enfrentam. A mulata aparece inicialmente como baiana. As primeiras mulatas eram atrizes brancas. Linguajar da mulata - vindo da senzala, chega à cidade e incorpora as gírias, os neologismos à sua maneira peculiar de falar e ficou pernóstica. A mulata mais famosa foi Araci Cortes.

O Caipira - ingênuos sertanejos encantados com o progresso da Capital Federal. Podia ser um pobre coitado ou um rico fazendeiro do café. Os papéis a ele destinados eram diversos, transformando-o numa espécie de "valor nacional" em oposição aos moldes estrangeiros. Foi Martins Pena quem introduziu o caipira no teatro brasileiro, em 1883 (Um sertanejo na corte). Artur Azevedo escreveu o personagem Euzébio de O Tribofe para Brandão, o Popularíssimo. O personagem do caipira imortalizou-se com o ator Mazzaroppi. A atriz mais famosa foi Alda Garrido.

O Português - grossos bigodes, tamancos, sotaque, burro, vítima do escracho e do bom humor do brasileiro, o português da piada.

A Mulher Fatal - a cocotte. Fingia amor para tirar dinheiro do português ou do caipira. Muitas vezes era um falsa estrangeira.

A Caricatura Viva - retratava pessoas conhecidas da política, das artes ou da sociedade. Na encenação procurava-se copiar a figura. A platéia reconhecia com facilidade o ridicularizado, que geralmente tem um outro nome. Em O Carioca - revista de Artur Azevedo de 1886 - o Doutor Sá Bichão, caricatura viva do professor Castro Lopes, cria vários termos para substituir as palavras francesas em uso corrente pelos brasileiros. Foi Castro Lopes quem introduziu:

cinesíforo - no lugar de chauffeur
convescote - no lugar de piquenique
cardápio - no lugar de menu

Na peça o personagem Sá Bichão se assemelha a um personagem da comédia dell'arte, utilizando-se do latim e de extensas explicações complicadas - um prato cheio para os revistógrafos.

O presidente Getúlio Vargas se divertia com as caricaturas de sua pessoa no palco, porém, sem ridicularizações.

4. Metalinguagem - a prática de revelar as técnicas dramatúrgicas e da encenação sempre seduziu as platéias. A metalinguagem sempre foi um recurso utilizado pelo teatro popular. Na revista esse procedimento era comum.

5. Coplas - em francês couplets eram composições em versos destinadas a serem cantadas. No entanto, faziam parte integrante do texto dramático. Apresentava os personagens. O personagem se apresentava cantando - ária de apresentação.

6. A revista traz uma mudança espacial para os autores brasileiros. Até então, assistíamos ao teatro de gabinete, aos espaços domésticos íntimos, privados. Com a revista sobe à cena o espaço público e aberto. A revista supera o realismo convencional do drama realista e da peça de tese, levando-o aos seus limites:

Lá está a Capital, com sua ruas, prédios, monumentos, personagens típicos e mazelas características. (...) Lá está a linguagem popular, com seus acentos e gírias habilidosamente teatralizados. Lá está a História miniaturizada num painel anual onde se misturam guerras, personagens ilustres, eleições, Abolicionismo, República e reclamações do dia-a-dia contra a companhia telefônica, o preço do transporte ou os serviços de limpeza urbana. Lá está a Opinião Pública, eminência parda cujo poderio se fortalece nesta passagem do século XIX para o XX. (Flora Süssekind)
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Extraído de "História e Dramaturgia do Teatro Brasileiro I", professora Elza de Andrade, CAL, 2001. Bibliografia:

SÜSSEKIND, Flora. "As revistas do ano e a invenção do Rio de Janeiro". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 

VENEZIANO, Neyde. "O teatro de revista no Brasil". Campinas: Pontes, 1991.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Grito d'alma"

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Trama confusa no Solar


Lionel Fischer


"Feliz e Clara, dois irmãos atores donos de companhia mambembe, são abandonados pelo restante do grupo num desconhecido palco subterrâneo. Em meio a um clima tenso e denso, ao mesmo tempo em que delicado e sensual, representam a 'A peça de dois personagens' que ele escreveu para ela e cujos personagens são também dois irmãos com seus mesmos nomes vivendo numa Nova Belém ensolarada na casa dos pais após sua morte trágica, local de onde não querem sair. O público torna-se hostil e termina por abandonar o teatro, o que os obriga a encerrar a representação passando a enfrentar frio e escuridão naquele palco de fim de mundo, lugar de onde não conseguem sair. Para se livrarem da infernal situação só lhes resta voltar à peça e ao seu luminoso girassol".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Grito d'alma", de Tennessee Williams (1911-1983). Em cartaz no Centro Cultural Solar de Botafogo, a montagem tem direção assinada por Diogo Salles, estando o elenco formado por Glauce Guima e Marcelo Pio.

Um dos maiores dramaturgos norte-americanos do século passado, Tennessee Williams deixou uma obra vastíssima, com muitas de suas peças sendo representadas com freqüência em todo o mundo, dentre elas "À margem da vida", "Um bonde chamado desejo", "A rosa tatuada", "De repente, no último verão", "Gata em teto de zinco quente", "Doce pássaro da juventude" e "A noite do Iguana".

Segundo consta do release, Williams considerava "Grito d'alma" seu mais belo texto desde "Um bonde chamado desejo", e o ator Marcelo Pio não reluta em afirmar que "Grito d'alma" é um dos  melhores textos da dramaturgia mundial, "está na esfera de um 'Hamlet', sinceramente". São duas opiniões, obviamente que sinceras, e por isso merecem ser respeitadas. No entanto, me permito discordar de ambas, também valendo-me da mesma sinceridade.

Sou um admirador incondicional da obra de Williams, embora não a conheça em sua totalidade - é o caso de "Grito d'alma". E minha admiração advém, dentre outras razões, da extraordinária capacidade do autor de criar tramas que abordam algumas das questões mais pertinentes da natureza humana, para tanto valendo-se de personagens maravilhosamente construídos e de diálogos de espantosa fluência. E ao que acaba de ser dito vale acrescentar a óbvia ternura de Williams por seus personagens - postura semelhante à adotada por Tchecov - e a clareza com que expõe e desenvolve os conflitos em jogo.

Pois bem: no presente texto, a clareza acima mencionada jamais se fez presente, ao menos para mim. E isso não tem nada a ver com fato de estarmos diante de um texto que trabalha uma peça dentro de outra, recurso que nada tem de inusitado. Mas tornou-se inusitado para mim, em se tratando de Williams, que, ao menos em suas peças mais consagradas, jamais utilizou este expediente. 

No entanto, poderia tê-lo feito com sucesso. Mas não me parece ser este o caso. A trama é confusa, os conflitos entre os personagens não fazem progredir a ação e não raro se tornam repetitivos, como se o autor não soubesse exatamente o rumo que pretendia dar à sua história e a fizesse andar em círculos.

Isso não exclui, naturalmente, uma ou outra passagem significativa, já que estamos diante de um monstro sagrado da dramaturgia. Mas o fato é que jamais consegui me envolver com a montagem e com ela estabelecer um elo mais profundo - o que não significa que a platéia sinta o mesmo que eu, que fique bem claro.      

Quanto ao espetáculo, Diogo Salles impõe à cena uma dinâmica que tenta ao máximo materializar a atmosfera claustrofóbica e inquietante que, ao que suponho, tenha sido uma das pretensões do autor. E neste sentido sua encenação merece ser considerada bem sucedida, sendo muito expressivas grande parte de suas marcações.

No que se refere ao elenco, Glauce Guima e Marcelo Pio exibem grande capacidade de entrega, estabelecem ótima contracena e tentam ao máximo tornar convincentes personagens que, a meu ver, primam pela ausência de contornos mais nítidos.

Na equipe técnica, são igualmente eficientes a cenografia de Arthur Arnold, os figurinos de Manu Coutinho e Carlos Guilherme Azevedo, a iluminação de Marcelo Andrade, a trilha sonora original de Sérgio Ricardo e a direção de movimento de Carla Tausz, cabendo ainda destacar a fluente tradução de Francisco Carneiro da Cunha.

GRITO D' ALMA - Texto de Tennessee Williams. Direção de Diogo Salles. Com Glauce Guima e Marcelo Pio. Centro Cultural Solar de Botafogo. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h. Última semana.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"A tecelã"

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Cumplicidade e encantamento 


Lionel Fischer


"O espetáculo é inspirado em alguns mitos que envolvem a tecelagem. A tecelã tem o poder de transformar seus desejos em realidade e, através do ato criativo, vencer a solidão de seus dias". Extraído do release que me foi enviado, este texto nos mostra o caráter, digamos, mágico e lúdico de uma atividade ancestral. Cumpre apenas acrescentar que, no presente caso, a tecelã busca não apenas converter em realidade alguns de seus desejos, mas  fundamentalmente o maior deles: criar aquele que seria seu companheiro ideal.

Eis, em resumo, o enredo de "A tecelã", em cartaz até domingo no Teatro do Jockey. Produzida pela Cia. Caixa do Elefante Teatro de Bonecos (fundada em Porto Alegre, em 1991), a montagem chega à cena com direção e dramaturgia de Paulo Balardim, estando o elenco formado por Carolina Garcia (que faz a protagonista), Viviana Schames e Valquíria Cardoso.

Mesclando ilusionismo e teatro de animação, "A tecelã" exibe todas as virtudes de um grupo que é considerado, com inteira justiça, como um dos mais importantes da América Latina, já tendo participado de inúmeros festivais internacionais. Mas o que me parece essencial é ressaltar não tanto o perfeito domínio das técnicas utilizadas, e sim a capacidade do grupo de nos converter numa espécie de cúmplices do que acontece em cena. 

Ao invés de assumir a clássica postura de quem assiste a um espetáculo, ao menos no meu caso me vi quase que inserido nele, já que a montagem me estimulou, o tempo todo, a priorizar o lúdico em detrimento do racional. Em nenhum momento fiquei interessado em saber como coisas e pessoas, como que por encanto, surgem e desaparecem do palco, mas sim em torcer para que a protagonista finalmente conseguisse não apenas materializar seu parceiro, mas que com ele pudesse iniciar uma trajetória feliz. 

E quando, ao final do espetáculo, tudo sugere que aquilo que assistimos ficou restrito à imaginação da protagonista, isto para mim foi irrelevante, posto que o essencial fora perfeitamente apreendido. Ou seja: o homem pode sofrer diversas perdas, padecer de múltiplas carências, mas se renunciar à sua capacidade de sonhar, aí sim estará completamente perdido. 

Impondo à cena marcas tão diversificadas como imprevistas, sempre impregnadas de grande expressividade, o diretor Paulo Balardim exibe o mérito suplementar de haver extraído uma atuação maravilhosa da protagonista Carolina Garcia. Atriz dotada de amplos recursos, Carolina consegue materializar todos os anseios, dúvidas e esperanças da tecelã, para tanto valendo-se de um trabalho corporal sem dúvida virtuosístico, mas sempre atrelado aos conteúdos em jogo. E a mesma eficiência aplica-se aos trabalhos de Viviana Schames e Valquíria Cardoso, ainda que os mesmos, dada a natureza do espetáculo, não possam ser rigorosamente particularizados.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta montagem inesquecível - Paulo Balardim (cenografia), Nico Nicolaiewsky (reponsável pela direção musical e belíssima trilha sonora original), Margarida Rache e Rita Spier (figurinos), Bathista Freire e Daniel Fetter (iluminação) e o próprio grupo, pela construção dos lindos bonecos.

A TECELÃ - Direção e dramaturgia de Paulo Balardim. Com a Cia. Caixa do Elefante Teatro de Bonecos. Teatro do Jockey. Sexta, sábado e domingo, 20h.      

quinta-feira, 21 de julho de 2011

DANIEL HERZ, HENRIQUE TAVARES E MOACIR CHAVES no CRA – CENTRO DE RECICLAGEM DE ATORES – no Teatro Maria Clara Machado
 Está funcionando desde março no Teatro Maria Clara Machado – Planetário, o Centro de Reciclagem de Atores, voltado para a reciclagem e o treinamento continuado de atores profissionais.  De AGOSTO A OUTUBRO o projeto oferecerá o seguinte workshop:
 RECICLAGEM DE ATORES, com aulas/treinamento para atores profissionais todas as SEGUNDAS das 19h às 22h, no teatro.
 O treinamento é estruturado em módulos bimestrais, com 3 diretores/professores por módulo e conta com uma noite aberta para os  atores mostrarem trabalhos – esquetes, performances, solos - a produtores de elenco e profissionais da área. Além disso, o curso oferece informações, contatos e dicas semanais sobre o mercado de trabalho através do nosso Mural Virtual e conta com uma mini-biblioteca gratuita de livros da área para os atores se reciclarem. 
 PROGRAMAÇÃO DA RECICLAGEM DE AGOSTO A OUTUBRO:
           De 22 de AGOSTO a 05 de SETEMBRO: aulas com o diretor DANIEL HERZ
           De 12 A 26 de SETEMBRO: aulas com o diretor HENRIQUE TAVARES
           De 03 a 17 de OUTUBRO: aulas com o diretor MOACIR CHAVES  
           Dia 24 de OUTUBRO: ensaio Noite Aberta do Centro de Reciclagem de Atores
           Dia 31 de OUTUBRO: Noite Aberta do Centro de Reciclagem de Atores
   
 O preenchimento das vagas será realizado via seleção de currículo. Para participar os atores devem possuir registro profissional.  O valor total da Reciclagem será de 500 reais à vista ou duas parcelas de 280 reais. Interessados em participar devem enviar currículo para reciclagemdeatores@gmail.com colocando no assunto: RECICLAGEM.
  Mais informações: 9666-9954 ou reciclagemdeatores@gmail.com
 SOBRE OS MINISTRANTES DESSE BIMESTRE NO CENTRO DE RECICLAGEM DE ATORES:
 DANIEL HERZ
Ator, professor e diretor de teatro, é diretor artístico dos Atores de Laura desde 1992 e do Teatro Miguel Falabella. Atuou em diversas produções teatrais entre as quais: “Nossa Senhora das Flores”, adaptação para a cena do romance de Jean Genet (1987) e “O jovem Törless”, adaptação do romance de Robert Musil, encenada no CCBB em 1996. Destacou-se como encenador nas últimas duas décadas, tendo recebido prêmios de melhor direção pelos espetáculos “Romeu e Isolda” (1996), “Decote” (1997), “A flauta mágica” (2000), “As artimanhas de Scapino” (2002). Em 2000 encenou no CCBB “Esplêndidos”, peça rejeitada por Jean Genet, que até então só havia sido montada na França e na Inglaterra. É responsável igualmente pela direção de “Zastrozzi”, de George Walker, que compartilhou com o protagonista Selton Mello (2002), “Otelo da Mangueira”, de Gustavo Gasparani (2006) e “Tom e Vinicius – o musical”, de Daniela Pereira e Eucanaã Ferraz, em cartaz no Rio de Janeiro em 2009. Em 2010 dirigiu O Barbeiro de Ervilha, adaptação de Vanessa Dantas da ópera O Barbeiro de Sevilha de  Gioacchino Rossini, para teatro infantil.  Atualmente está em cartaz no com a peça da Cia Atores de Laura, Adultério.
HENRIQUE TAVARES
Henrique Tavares nasceu no Rio de Janeiro, em 1969, e é hoje um dos mais atuantes autores e diretores cariocas. A qualidade de seu trabalho é reconhecida pelo público e pela crítica especializada. Entre seus textos mais recentes estão: “Epheitos Kolaterais - Novas Metamorfoses" (2010); “Cidade Vampira” (2005), em parceria com o escritor Fausto Fawcett; “Cine Teatro Drive-in” (2004), “Telecatch” (2002), indicado ao Prêmio Shell – Categoria Especial, além do aclamado Barbara não lhe Adora” (2000). Também dirigiu os seguintes espetáculos: “Açaí e Dedos” (2010) e “A Arte de Escutar” (2008) de Carla Faour, indicado ao Prêmio Shell 2008 de Melhor Texto; “Inquieto Coração” (2008), de Eduardo Rieche, baseado na obra de Santo Agostinho e “A Força do Destino” (2006), de Nélida Piñon, eleito pelo jornal O Globo como “Um dos Dez Melhores Espetáculos do Ano”.
Formado em Artes Cênicas pela CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), Rio de Janeiro, Henrique estreou no teatro como autor em 1993, com o texto “De Como Tudo Quase Deu Errado”. No mesmo ano, o espetáculo foi indicado ao Prêmio Mambembe nas categorias de Melhor Diretor e Melhor Atriz. Participou como autor convidado do curso de dramaturgia ministrada pela Royal Court Theatre no Brasil. Também foi aluno dos autores Bosco Brasil, João Bethencourt, Lauro César Muniz, Miguel Falabella, de Judith Malina (The Living Theatre), do dramaturgo chileno Marco Antonio de La Parra e do espanhol José Sanches Sinisterra.
Em parceria com o cineasta Douro Moura, escreveu o roteiro do curta-metragem “Mamãe Tá Na Geladeira”, premiado em 2005 nos Festivais de Cinema de Miami e Belém. Foi professor do grupo “Nós do Morro” e já ministrou aulas de dramaturgia e interpretação no SESC, na CAL, na UniverCidade e na SBAT. Atualmente, Henrique é autor da Rede Globo de Televisão, participa do coletivo de dramaturgos Drama Diário www.dramadiario.com e é roteirista da série “Vampiro Carioca” do Canal Brasil.
MOACIR CHAVES
MOACIR CHAVES é diretor de teatro e ator. Formado em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio), instituição em que concluiu seu mestrado e onde é professor do Departamento de Direção Teatral. Começou sua carreira profissional no Grupo Tapa. Como diretor e autor tem vários espetáculos reconhecidos pelo público e pela crítica, dentre eles: Esperando Godot, de Samuel Beckett, com Denise Fraga e Rogério Cardoso; Fausto, de Goethe, com Gabriel Braga Nunes e Fernando Eiras; Sermão da Quarta-Feira de Cinza, do Padre Antônio Vieira, com Pedro Paulo Rangel (Prêmios Shell, Molière e Mambembe de Melhor Ator). Em 1999, seu trabalho autoral Bugiaria lhe rendeu os Prêmios Governador do Estado Melhor Direção e Melhor Espetáculo. Participou em 2002 do Fórum para Jovens Profissionais de Teatro, dentro da programação do Festival Theatertreffen, em Berlim. Suas montagens mais recentes foram: Macbeth, O Jardim das Cerejeiras, A Invenção de Morel, The Cachorro Manco Show, Por Um Fio, Uma História de Pouco Amor, Ecos da Inquisição.

SOBRE O CENTRO DE RECICLAGEM DE ATORES:
O Centro de Reciclagem de Atores começou a funcionar em maio de 2010 com a missão de treinar, reciclar e manter aquecidos atores profissionais que estão exercendo seu ofício em diversas frentes, como cinema, TV e teatro.
Em seu primeiro ano de funcionamento o CRA reuniu cerca de 200 atores profissionais, que tiveram encontros/aulas com cerca de 30 professores diferentes, gerando trocas artísticas e movimentando a classe.  Entre os ministrantes do Centro de Reciclagem, sempre grandes profissionais como Domingos de Oliveira, Amir Haddad, Daniel Herz, Christiane Jatahy, Marcio Libar, Hamilton Vaz Pereira, Jefferson Miranda, Ivan Sugahara, entre outros.
 Coordenando o CRA, a Diretora Geral do coletivo artístico Clube da Cena e uma das Diretoras Artísticas do Teatro Maria Clara Machado – Planetário,  Cristina Fagundes.
Mais informações: 9666-9954 ou reciclagemdeatores@gmail.com


quarta-feira, 20 de julho de 2011

Franz Kafka

O problema da solidão

Leandro Konder


          Kafka foi um inadaptado, um desenraizado, em permanente busca de enraizamento. Ele próprio se definiu como um ser "sem antepassados, sem mulher, sem posteridade, com um violento desejo de possuir antepassados, vida conjugal e posteridade" (Diário, 21 de janeiro de 1922).

          A solidão o atormentou ao longo de praticamente toda a sua vida. Desde bem jovem, ele luta ao mesmo tempo para se ligar a outrem, para se integrar em uma comunidade humana, e, por outro lado, para manter a sua liberdade individual, a sua autonomia pessoal. Em carta a Oscar Pollak, a 10 de janeiro de 1904, Kafka já escrevia: "Se alguém me estende uma mão franca, isso me faz um grande bem, mas se essa mão me prende o braço, isso já é penoso e intolerável para mim".

          Por momentos, a solidão lhe parece o preço que ele deve pagar para preservar a sua personalidade, a sua individualidade. Cioso da sua independência, ele repele a possibilidade de suportar a anexação do seu "eu" a um rebanho qualquer, a uma comunidade do tipo dos formigueiros, na qual o ser coletivo absorve os seres individuais. Nessas ocasiões, ele chega a considerar a solidão um estado que deve ser buscado, ele chega a ansiar por um aprofundamento da solidão.

          Mas nem toda comunidade é formigueiro. Nem a verdadeira comunidade implica em sacrifício da personalidade. Pelo contrário: desde a juventude, ele ouve uma voz que lhe diz nada farás sem os outros. (Carta a Pollak, 6 de setembro de 1903). A idéia de uma liberdade individual que exista fora do círculo das relações humanas é uma idéia que só lhe vem à cabeça por breves momentos, sem, no entanto, chegar de fato a convencê-lo.

           E, quando se observa com maior rigor, Kafka encontra dentro dele mesmo, encravada em sua subjetividade isolada, a presença do social, a dimensão coletiva do humano: "A unidade humana, que todo homem, mesmo o mais social e mais flexível, põe em dúvida de tempos em tempos (ainda que apenas afetivamente) revela-se também, por outro lado, a todo homem - ou parece revelar-se - na harmonia total que pode sempre ser encontrada entre o desenvolvimento do conjunto da humanidade e o desenvolvimento do indivíduo. Mesmo nos sentimentos mais fechados do indivíduo". (Diário, 4-12-1913).

          Vimos na capítulo 12 que Kafka foi levado a encarar a sua fragilidade como uma característica essencial e insuperável da sua natureza. Com a solidão, entretanto, não se dá o mesmo: ele nunca chega a se convencer inteiramente de que é um predestinado para a solidão.

          A solidão é o seu "castigo", o mal contra o qual ele não se cansa de protestar, o mal que a sua obra denuncia com maior vigor, o mal com que não é possível nos conformarmos. A solidão é a praga que Kafka soube representar como ninguém.

          É a tragédia de Gregor Samsa reduzido à condição de inseto repugnante, no meio da família, em A Metamorfose.

           É a tragédia do Artista da Fome, que era obrigado a jejuar porque não tinha em comum com os outros homens nem sequer a possibilidade de comer algum alimento capaz de lhe agradar ao paladar.

          É a tragédia de Georg Bendemann, em A Condenação, que se vê separado por um equívoco a um só tempo do pai e do seu melhor amigo.

          É a tragédia do pobre animal aterrorizado que construiu A Toca, meteu-se dentro dela, mas não encontrou um mínimo de segurança que lhe possibilitasse continuar vivendo.

          Há uma representação da tragédia da solidão, em especial, que vale a pena recordar aqui: é a de um pequeno conto de Kafka intitulado Um Animal Híbrido. O narrador começa a história dizendo que herdou de seu pai um animal que é metade gato metade cordeiro. Trata-se, obviamente, de um bicho que não tem igual neste mundo.

          As crianças levam gatos para vê-lo e, em determinada ocasião, levam também um cordeiro; durante tais visitas, porém, não se produzem cenas de reconhecimento. Quando é posto para brincar com os gatos, o animal híbrido foge deles; quando é posto para brincar com os cordeiros, ataca-os. Vive em absurda solidão, bebendo humildemente o seu leite.

           Um dia, o narrador, deprimido com a situação do animal, coloca-o no colo e fica a olhá-lo longamente. Surpreende algumas lágrimas no pelo do bicho ("Seriam dele? Seriam minhas?"). E conclui a sua meditação com uma sombria pergunta: "A faca do carniceiro não seria, talvez, uma libertação para este animal?"

          Kafka não poderia ter representado de maneira tão imaginosa e tão sugestiva o drama da solidão se não o conhecesse tão de perto, se não o tivesse vivido pessoalmente e se não reagisse com todas as suas forças contra a desumana condição do homem solitário que lhe foi imposta desde o princípio da sua vida.

          Mas Kafka poderia ter conhecido bem o drama da solidão, poderia tê-lo representado de maneira sugestiva e nem por isso a sua obra teria a imensa importância artística que hoje lhe reconhecemos, caso a solidão fosse um problema sentido apenas por um ser exepcional ou por um pequeno grupo de seres exepcionais. O que fez com que a abordagem do problema da solidão na obra de Kafka tivesse a ampla repercussão que teve foi o fato da solidão ter se tornado, no nosso século, um problema social.

          A sociedade em que vivemos tornou-se uma fábrica de solitários: o espírito competitivo e a busca do lucro particular lançam os indivíduos uns contra os outros e tornam cada vez mais difícil a prática do espontâneo amor ao próximo, preconizada por Cristo.

           Os patrões temem os seus emporegados, encaram-nos como "inimigos pagos", exatamemnte como ocorria com o pai de Kafka. Os empregados vêem nos patrões os "inimigos pagadores", tal como Kafka supôs que seu pai devesse ser considerado.

          Por outro lado, cada proprietário enxerga no seu vizinho um competidor que pode arruiná-lo, uma ameaça à segurança da sua propriedade (Cf. o conto de Kafka O Vizinho, em que um comerciante vive preocupado com a possibilidade do colega da sala ao lado lhe tomar os fregueses e levá-lo à falência).

          E, pelo menos nos países em que há desemprego, cada operário pode ser levado a ver no colega mais próximo o sujeito que pode lhe roubar a vaga, isto é, um competidor no mercado de trabalho.

          Através do controle dos meios de publicidade e através do controle do ensino, a ideologia dominante ensina todos a recitarem o catecismo do comodismo individualista, procura transformar as criaturas em monstros de egoísmo. Basta ver algumas frases típicas: "Quem gosta de mim sou eu", "Cada um por si e Deus por todos", "Eu quero é sombra e água fresca", etc.

          O resultado desse bombardeamento da solidariedade humana é que, no seio do próprio povo, a confusão desune as pessoas, isola umas das outras. Kafka chegou a observar o fenômeno e comentou com Janouch: "O povo, na Bíblia, é um conjunto de indivíduos unidos por uma lei comum. Hoje, as massas se afastam de semelhante unidade e tendem à desagregação, por carecerem de comunidade interior".

           Um acontecimento acontecido há poucos anos e fartamente noticiado pelos jornais mostra até que ponto se tornou generalizada, na sociedade contemporânea, a situação de solidão, que Kafka viveu e retratou como um drama no início deste século.

          O fato foi o seguinte: às oito e meia da noite, numa grande cidade dos Estados Unidos, a jovem Catherine Genovese, de vinte anos de idade, foi agarrada por um louco, na porta de sua casa. O louco segurou a moça pelo braço, sacou de uma faca e começou a matá-la. Vibrou-lhe inúmeros golpes. Durante cerca de uma hora e meia, Catherine Genovese gritou por socorro, enquanto o louco a apunhalava. Durante cerca de uma hora e meia, várias dezenas de pessoas ouviram os gritos da moça e não se moveram do lugar onde se achavam, porque - conforme disseram mais tarde à polícia - não queriam se "meter em confusão". Catherine morreu. O louco assassino foi internado no manicômio judiciário. Os vizinhos de Catherine continuam soltos, gozando de "sombra e água fresca".
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Capítulo extraído de Kafka - vida e obra, José Álvaro Editor / Paz e Terra, 5ª edição, 1974.
"Lugar de viado"

Lionel Fischer


          Embora todos os queridos parceiros deste blog saibam que este é um espaço basicamente dedicado ao estudo do teatro, um fato estarrecedor, que nada tem a ver com a arte teatral, me obriga a comentá-lo - estarrecedor, sem dúvida, sobretudo porque está assumindo proporções catastróficas.

          Muitos jornais de hoje noticiaram a bárbara agressão cometida por um grupo de rapazes, todos na faixa dos 20 anos, contra o que supunham ser um casal gay. Transcrevo, a seguir, parte da matéria publicada hoje, 20/07/2011, no jornal O Globo, assinada por Flávio Freire:

          "Confundidos com homossexuais, o vendedor autônomo João Garrido, de 42 anos, e o filho dele, de 18, foram violentamente agredidos enquanto se divertiam numa feira de exposição em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, na madrugada da última sexta-feira. Pai e filho estavam abraçados quando um grupo de pelo menos sete rapazes - todos aparentando cerca de 20 anos - abordou os dois perguntando se eles eram gays. Garrido disse que não, e os agressores foram embora. Menos de dez minutos depois, foram surpreendidos com ataques pelas costas. Garrido teve parte da orelha direita arrancada".

           Cumpre registrar que, enquanto estavam sendo agredidos, pai e filho ouviam dos rapazes:

           "Aquele não era lugar de viado".

          Episódios como este já aconteceram inúmeras vezes, continuam acontecendo e, provavelmente, tendem a aumentar. Segundo levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, ONG que há 30 anos defende os direitos dos homossexuais, de 2007 a 2010 foram assassinados 260 homossexuais no Brasil (este dado consta da matéria assinada por Freire). Mas eu me permito supor que este número seja muito mais elevado, pois certamente muitos crimes perpetrados contra gays não devem estar incluídos nesta categoriaIsto posto, vamos a uma breve reflexão. 

          Imaginemos que eu seja um homem feio, sem nenhum atrativo físico, e passe por mim um homem lindo, forte, caminhar seguro, aspecto sedutor etc. Pois bem: ao constatar nossas diferenças, posso nutrir, por este homem, um sentimento de inveja, já que ele reúne uma série de predicados dos quais careço. Portanto, é o que nos difere que me incomoda.

          Quando, porém, nos deparamos com ataques de pitboys a homossexuais, dois aspectos ficam evidentes. O primeiro: os atacantes estão sempre em vantagem numérica, o que por si só já constitui abominável covardia. Mas é o segundo ponto o que mais
me intriga: se os tais pitboys se consideram legítimos representantes da masculinidade, ao se depararem com gays poderiam, no máximo, encará-los com desprezo - no caso de serem apenas completamente boçais - ou nutrirem um sentimento de compaixão - aí seriam menos boçais, ainda que sua eventual compaixão não seja suficiente para camuflar sua intolerância. Mas, em ambos os casos, nada fariam contra aqueles que se comportam de forma diferente.

          Mas é aí que me parece estar o X da questão: o que incomoda, e gera incontrolável fúria, não é a diferença, mas a SEMELHANÇA. Mesmo não sendo psicólogo, psicanalista, psiquiatra ou algo no gênero, não tenho a menor dúvida de que violências desta natureza nada mais fazem do que evidenciar a homossexualidade latente dos agressores - seja nesta ou em qualquer outra situação, é certamente mais fácil punir o outro do que admitir que esse outro e eu possamos ter muito mais coisas em comum do que possa supor minha precária e vã filosofia.

          Infelizmente, como todos sabemos, desde que o mundo existe todas as chamadas "minorias" vem sendo implacavelmente perseguidas - judeus, ciganos, homossexuais etc. Fato curioso, sem dúvida, pois as minorias, dada a sua condição de minorias, não deveriam gerar nenhuma inquietação maior, posto que, ao menos em princípio, não teriam como enfrentar os que efetivamente detêm o poder. Ou será que teriam? 

          Costuma-se dizer que todo o mal deve ser cortado pela raiz. No presente caso, os homossexuais seriam o mal, uma espécie de germe que, não sendo logo eliminado, poderia se multiplicar, gerar uma espécie de epidemia capaz de contaminar toda a sociedade, supostamente detentora do monopólio de todas as virtudes.

          Trata-se, naturalmente, de execrável falácia. Em primeiro lugar, porque nossa sociedade nada tem de virtuosa; e depois, e fundamentalmente, porque opções afetivas não podem estar sujeitas a nenhum tipo de regulamentação. Se eu não tenho o direito de ser gay ou lésbica, também não teria direito de optar por uma crença religiosa em detrimento de outras; não poderia aderir a uma corrente política contrária à da maioria; não poderia usar sandálias havaianas se o gosto dominante prega o uso de sapatos; teria que ter curtos os cabelos se o normal é tê-los longos. E assim ad infinitum...

           Portanto, ao lavrar este breve protesto, faço absoluta questão de me solidarizar com todos aqueles que, cientes de sua singularidade, não temem em exercê-la. Seja no campo sexual ou em qualquer outro. E aproveito para desejar a todos aqueles que sofrem maus tratos - em qualquer campo, torno a insistir - que não se acomodem no papel de vítimas, que lutem com todos os meios de que dispõem (e outros que possam ser criados) para tornar, cada vez mais claro, que o que deve ser cortado é a raiz do mal. No caso, a intolerância, esse flagelo que parece fadado a se perpetuar, mas que certamente pode ser banido, desde que cada um de nós, antes de atirar a primeira pedra, tenha consciência de que, se o fizermos, a próxima pode vir em nossa direção.
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segunda-feira, 18 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Todos os cachorros são azuis"

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A lucidez da loucura


Lionel Fischer


Rodrigo Souza Leão era jornalista, escritor e poeta. Era também esquizofrênico, tendo falecido ainda muito jovem, em 2009, aos 43 anos. E o presente espetáculo é uma adaptação teatral de seu romance homônimo, de cunho autobiográfico, no qual o autor relata parte de sua trajetória, incluindo internações em instituições psiquiátricas e a fundação de uma nova religião.

Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea), "Todos os cachorros são azuis" chega à cena com direção de Michel Bercovitch, dramaturgia de Flávio Pardal, Michel Bercovitch e Ramon Mello (com colaboração de Manoela Sawitzki) e elenco formado por Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal, Natasha Corbelino e Ramon Mello.

Um dos aspectos mais interessantes do presente espetáculo reside no fato de que o autor era esquizofrênico. Ou seja: escreveu de "dentro para fora" e não o inverso, como fez Nicolai Gógol em "O diário de um louco". Não padecendo da dita patologia, o escritor russo podia olhá-la à distância, refletir sobre ela com, digamos, uma certa tranquilidade. E por ser um dramaturgo maravilhoso, foi capaz de produzir uma obra comovente e dilacerante sobre alguém que, pouco a pouco, vai perdendo o contato com a realidade e mergulhando em um universo impregnado de delírios.

No entanto, aqui se dá algo muito diverso. Rodrigo falou de si mesmo, era seu próprio delírio, mas mesmo assim jamais deixa de exibir espantosa lucidez quando aborda temas como internações, medicamentos, amor, família, sexo e solidão, dentre outros. E se seu discurso não obedece, como não poderia obedecer, à lógica a que estamos acostumados, nem por isso seus fragmentados pensamentos deixam de nos atingir de forma dolorosa e comovente, e às vezes não isentas de surpreendente humor.

Trata-se, sem a menor dúvida, de um texto transbordante de humanidade, cuja ótima adaptação teatral possibilitou um espetáculo de forte impacto. Impondo à cena uma dinâmica em total sintonia com a escrita que lhe deu origem, Michel Bercovitch  consegue materializar, através de marcas expressivas e criativas, os principais conteúdos propostos pelo autor, que certamente haveria de aprovar a transposição cênica de seu romance.  

Com relação ao elenco, que, em quase toda a montagem, interpreta o autor, todos se entregam de forma visceral à nada fácil tarefa de dar vida a um esquizofrênico, sem apelar para abomináveis chavões, tais como olhares esgazeados, atitudes corporais desconexas, gritos lancinantes etc. Ou seja: encontraram uma chave interpretativa isenta de exageros e que por isso nos atinge com tanta contundência. Fazer um louco não me parece muito difícil. Já viver um louco...  

Na equipe técnica, Rui Cortez responde por excelente direção de arte - imagino que levem sua assinatura tanto os adequados e neutros figurinos como a cenografia, composta de grades móveis que, dependendo do momento, possuem duas funções indissociáveis: a criação de múltiplas ambientações em sintonia com os  pensamentos do autor.

Cabe também destacar a direção de movimento de Paula Maracajá, a preparação vocal de Marly Brito, as expressivas contribuições de Tomas Ribas (iluminação) e Rafael Rocha (direção musical), e a belíssima programação visual criada por Filipe Carvalho.

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS - Texto de Rodrigo Souza Leão. Direção de Michel Bercovitch. Com Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal, Natasha Corbelino e Ramon Mello. Teatro Maria Clara Machado. Sábado às 21h. Domingo, 20h.

domingo, 17 de julho de 2011

OFICINA DE DRAMATURGIA COM RENATA MIZRAHI
Uma oficina prática que visa estimular a escrita dramatúrgica através de cenas curtas pautadas por temas contemporâneos, em diferentes gêneros. A ideia é, a cada aula, discutir os textos produzidos pelos alunos, incentivando a reflexão sobre a estrutura clássica (início, auge e solução do conflito), motivação da personagem e a importância de diálogos criativos. Ao final da oficina, cada aluno escolherá uma de suas cenas produzida em aula para fazer uma leitura dramatizada aberta ao público

Início: 03 de Agosto
Término: 28 de Setembro
Dia da Semana: Quartas
Horário: 10:30 às 13:00h
Taxa de Matrícula R$ 20,00 - inclusive bolsistas
Mensalidade: R$ 180,00
Período de inscrições para pedido de bolsa até 28 de Julho, informações no e-mail:
casadagavea@terra.com.br
 
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Renata Mizrahi é formada em Interpretação na UNIRIO. Dramaturga, trabalhou como roteirista da Conspiração Filmes, professora de dramaturgia. Ganhou o Prêmio Zilka Salaberry 2010 de melhor texto pelo espetáculo Joaquim e as Estrelas. Com esse texto também foi finalista do concurso nacional de dramaturgia do Cepetin Ana Maria Machado 2009. Escreve para o site Drama Diário. Junto com mais nove autores, lançou o livro Cena Impressa. Entre seus principais trabalhos encontram-se as peças Os Sapos, Nada que eu disser será suficiente até que o sol se ponha, Um Dia Anita (com Julia Spadaccini), Rua dos Sonhadores e Lar… (com Fernando Caruso e Cesar amorim) – 3 peças que fizeram parte do projeto Ocupação Casa da Gávea, entre outras. Ganhou o prêmio de Melhor Texto com os esquetes Joaquim e as Estrelas (versão curta da peça) e melhor esquete por O Encontro, ambos do Festival Tápias de Teatro. Também foi indicada a melhor texto pelos esquetes The End – também na versão curta metragem, Caixinha de Fósforos e Remendar o café para ver se o eclipse mofou por dentro. Fez adaptações das peças Memórias de um rato, Uma Peça sem Nome e Uma Janela em Copacabana. É autora do blog Ao Tempo Palavras.
Entre em contato! Escreva pra gente!
 
 
 

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Por que te vas

Hoy en mi ventana brilla el sol
Y el corazón
Se pone triste contemplando la ciudad
Por que te vas

Como cada noche desperté
Pensando en ti
Y en mi reloj todas las horas vi pasar
Por que te vas

Todas las promesas de mi amor se irán contigo
Me olvidarás, me olvidarás
Junto a esa cama lloraré igual que un niño
Por que te vas, por que te vas

Bajo la penumbra del farol
Se dormirán
Todas las cosas que quedaron por decir
Se dormirán
Junto a las manillas del reloj
Despertarán
Todas las horas que quedaron por vivir
Esperarán

Todas las promesas de mi amor se irán contigo
Me olvidarás, me olvidarás
Junto a esa cama lloraré igual que un ninõ
Por que te vas, por que te vas (x2)

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Hoje, ao entrar num táxi, fui surpreendido com a educada pergunta do motorista se eu me importava de ouvir música. É claro que disse que não. Então ele colocou um CD com canções de filmes e justamente a primeira foi a música-tema do maravilhoso filme de Carlos Saura, "Cria Cuervos", de 1975: "Por que te vas".

Fiquei tão emocionado que, ao término da música, perguntei ao motorista se ele se importaria de repetí-la. Ele me lançou um olhar que até agora não consigo definir, mas atendeu meu pedido.

Chegando em casa, agora há pouco, sentei e escrevi a letra. É claro que, sendo metade brasileiro, metade uruguaio, teria a obrigação de não cometer erros ortográficos. Só que não escrevo em espanhol há séculos. Então, cogitei em ir no google, no you tube, ou sei lá como se chama esse endereço mágico que, segundo dizem, tira todas as nossas dúvidas. No entanto, fiquei com vergonha de lançar mão desse expediente, em função de minha origem.

Assim sendo, a letra acima é de "minha autoria". Caso contenha erros, peço a todos que me perdoem. Ao mesmo tempo, sugiro a todos que não assistiram ao filme que o aluguem na locadora mais próxima. Duvido que alguém se arrependa. Quanto à música, é lindíssima e a letra é uma das mais dilacerantes já escritas sobre uma separação.

Teatro/CRÍTICA

"Turbilhão"

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Montagem imperdível no Ginástico


Lionel Fischer


Já escrevi, em diversas ocasiões, que considero Domingos Oliveira o autor nacional que mais entende de amor - aí incluindo-se, naturalmente, as paixões, em suas infinitas variantes. Pois bem: aqui o tema está de novo presente. Desiludida com suas relações afetivas, uma psicanalista resolve dar um tempo e canaliza todas as suas energias para o trabalho. Ocorre, porém, que tal resguardo já dura três anos e então, inesperadamente, ela recebe a visita de seu pai, já falecido! E o fantasma a encoraja, de forma veemente, a renunciar a uma castidade que considera quase imoral. 

A partir daí, a psicanalista baixa a guarda e se apaixona. Não por um homem, mas por dois. Um bem jovem, o outro mais velho. Após um tempo em que este curioso triângulo a satisfaz, chega o momento em que ela se vê obrigada a fazer uma opção. Fica com o mais jovem? Fica com o mais velho? Ou renuncia a ambos?

Eis, em resumo, a trama principal de "Turbilhão", peça escrita e dirigida por Domingos Oliveira, que acaba de estrear no Teatro Sesc Ginástico. No elenco, Luana Piovani, Jonas Bloch, Pedro Furtado, Duaia Assumpção, Fernando Gomes, José Roberto Oliveira, Moisés Bittencourt. Estes são os intérpretes do palco. Intérpretes do palco...como assim? Existem outros? E onde atuam?

Sim, existem outros, que integram a equipe do cinema - mais adiante esclareço melhor do que se trata. São eles: Camilla Amado, Tatiana Muniz, Luiz Machado, Cecília Lage e as crianças Bernardo Maia, Diogo Ariel, Gabriel Alexandre, Jorge Alessandro, Juca Peres e Yuri Sousa Conceição. E temos também a participação de Paulo José, que faz as narrações em off.    

Como dito no parágrafo acima, cabe uma explicação no tocante às duas equipes de atores que integram o espetáculo. Isto se deve à forma concebida por Domingos Oliveira para materializar "Turbilhão". Aqui, teatro e cinema convivem - ou se confrontam - o tempo todo. Personagens contracenam no palco, personagens contracenam na tela, personagens do palco e da tela interagem e, muitas vezes, os personagens da tela invadem o palco, sem a menor cerimônia.

Ou seja: desprezando totalmente o realismo, Domingos cria uma nova linguagem, que, não podendo ser encaixada em nenhuma outra, afigura-se como uma mescla de poderosíssima fantasia com, digamos, uma total disponibilidade para permitir o aflorar dos mais variados impulsos do inconsciente.  

Com isto quero dizer o seguinte: quando, por exemplo, a psicanalista conversa com seu falecido pai, eu, enquanto espectador de teatro, assistindo a uma peça de teatro, posso achar perfeitamente natural que alguém converse com um fantasma, ao invés de supor que esteja tendo um surto. Por que não?

Ao que me consta, quando Hamlet se encontra com o fantasma do pai, ninguém acredita que tenha enlouquecido. E se acredita, então também deveria acreditar que os amigos que o avisam da presença do espectro teriam igualmente surtado...

E para encerrar este tópico: em "Valsa nº 6", Nelson Rodrigues faz de uma menina morta sua protagonista. E quando indagado sobre a validade de tal expediente, respondeu : "Coloquei uma morta em cena porque não vejo obrigação para que uma personagem seja viva. Para o efeito dramático, essa premissa não quer dizer nada".
Continuemos, portanto.

Já mencionei a trama principal, que vem mesclada a outras tantas. Mas aqui me vejo diante de um impasse: se por um lado gostaria de  explicitar mais o enredo, por outro me acossa a certeza de que, se o fizer, estarei privando a platéia de inesperadas e deliciosas surpresas. Sendo assim, opto pelo silêncio, me permitindo no máximo dizer que a peça comporta mais um fantasma, um burguês atormentado com sua agenda, um funcionário indeciso, um corruptor, uma cantora decadente - personagens do palco - e outros tantos que atuam na tela.

Com relação ao texto, este é sem dúvida um dos melhores já escritos por Domingos Oliveira - que contou com a colaboração de Tatiana Muniz tanto na escrita quanto na concepção do espetáculo. Divertida, comovente, profundamente sábia em seu olhar sobre múltiplas contradições humanas, contendo ótimos personagens e diálogos impecáveis, "Turbilhão" reúne todas as condições para se tornar um dos eventos teatrais mais marcantes da atual temporada.

Quanto ao espetáculo, já deve ter ficado implícito que adorei a inédita e corajosa proposta de Domingos Oliveira, posto que impõe à cena uma dinâmica que, dentre seus muitos méritos, talvez o maior resida no convite que faz ao espectador para sonhar junto, para libertar sua imaginação e fantasia de estéries racionalizações ou conceitos acadêmicos de irritante anacronismo.

No teatro, tudo é possível. Desde que, naturalmente, seja teatro, o espaço sagrado onde, há três mil anos, o homem discute suas questões essenciais. E aqui estamos diante de muitas questões essenciais, trabalhadas de forma brilhante por um artista de exceção. 

No que diz respeito ao elenco, torno a repetir o que já disse tantas vezes: este país pode carecer de tudo, menos de ótimos intérpretes.
E todos que participam desta deliciosa e inusitada empreitada teatral/cinematográfica exibem desempenhos absolutamente convincentes, tanto nas passagens mais dramáticas como naquelas em que o humor predomina. Assim, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo, e aproveito para pedir aos sempre caprichosos deuses do teatro que facultem longa e vitoriosa trajetória para este inesquecível "Turbilhão".

Na equipe técnica, ocorre o mesmo, merecendo todos os aplausos as participações de Fernando Mello da Costa (cenografia), Elisa Faulhaber (figurinos), Cadu Fávero (iluminação), Bruno Ribeiro (vídeos), Paulo José (narração), Tatiana Muniz (colaboração no roteiro cinematográfico), Wladimir Pinheiro (pianista), Gui Campos e André Miranda (direção de fotografia), Pedro Moreira (som direto), Marcelo Pedrazzi (montagem) e Bernardo Gebara (edição de som).

TURBILHÃO - Texto e direção de Domingos Oliveira. Com Luana Piovani, Jonas Bloch, Pedro Furtado, Duaia Assumpção, Fernando Gomes, José Roberto Oliveira, Moisés Bittencourt e muitos, muitos outros intérpretes. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a domingo, 19h.