segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

                               Oscar Wilde

                           "A alma do homem sob o socialismo"
                                             (fragmentos)


EMOÇÕES - as emoções do homem são despertadas mais rapidamente que sua inteligência, sendo bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a idéia.

SENHORES - os piores senhores eram os que se mostravam mais bondosos para com seus escravos, pois assim impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e compreendido pelos que o contemplavam.

CARIDADE - a caridade cria uma legião de pecados.

DESOBEDIÊNCIA - a desobediência é, aos olhos de qualquer estudioso da História, a virtude original do homem. É através da desobediêmcia que se faz o progresso, através da desobediência e da rebelião.

ESMOLAS - quanto a pedir esmolas, é mais seguro pedir do que tomar, mas é bem mais digno tomar do que pedir.

PERFEIÇÃO - a verdadeira perfeição do homem reside não no que o homem tem, mas no que o homem é. O que um homem realmente tem, é o que está nele. O que está fora dele deveria ser coisa sem importância.

ESTADO/INDIVÍDUO - o Estado deve fazer o que é útil. O indivíduo deve fazer o que é belo.

INOVAÇÃO - a única coisa de que o público não gosta é inovação. É extremamente avesso a qualquer tentativa de se ampliar o universo temático na criação, quando, no entanto, dessa constante ampliação depende em larga medida a vitalidade e o progresso da Arte.

ARTISTA - o verdadeiro artista é um homem que acredita absolutamente em si mesmo, porque é absolutamente ele mesmo.

MORBIDEZ - chamar um artista de mórbido porque trata do tema da morbidez é um disparate tão grande quanto chamar Shakespeare de louco porque escreveu Rei Lear.

PROGRESSO - antigamente, os homens tinham a roda de torturas. Hoje têm a Imprensa. Isto certamente é um progresso.

DÉSPOTAS - há três espécies de déspota. Há o que tiraniza o corpo. Há o que tiraniza a alma. Há o que tiraniza o corpo e a alma. O primeiro chama-se Príncipe. O segundo chama-se Papa. O terceiro chama-se Povo.

TEMPO - o passado é o que o homem não deveria ter sido. O presente é o que o homem não deve ser. O futuro é o que os artistas são.
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                            "ShakesParque":
                   os guarda-chuvas se abriram,
                   e abriram-se todos os corações

                                                                        Lionel Fischer

          Ontem estava programada a última exibição de "ShakesParque", que cumpriu belíssima temporada no Parque Lage. Faltando 15 minutos para o início do espetáculo, imprevistos pingos de chuva começaram a cair de um céu sinistro e logo se converteram numa espécie de pranto cheio de remorso. Todo o espaço ficou alagado e tudo levava a crer que a apresentação teria que ser cancelada.

          No entanto, e talvez porque a platéia se recusasse a ir embora, aos poucos a chuva foi se tornando menos intensa e o espetáculo começou. Muitos espectadores abriram seus guarda-chuvas, outros protegeram-se com colchonetes e alguns colocaram-se nas laterais da magnífica construção e permaneceram de pé.

          Passados uns poucos minutos, novamente o céu fez desabar sua invejosa cólera. Mas aí já era tarde: os que ali estavam, ali permaneceram. Pessoas de todas as idades, desde criancinhas de berço até idosos. Creio mesmo ter visto o fabuloso bardo passeando pelo espaço, incrédulo com a insistência de tanta gente em usufruir a beleza de seus textos e a interpretação dos atores, mesmo que em condições tão adversas.

          Finalmente, uma vez encerrado o espetáculo, grande parte do numeroso elenco jogou-se na piscina, ainda trajando os figurinos, enquanto a banda relembrava músicas do espetáculo criadas em cima de sonetos do maior dramaturgo da História!

          Foi uma verdadeira celebração, um encontro que jamais será esquecido por todos aqueles que o vivenciaram. Atores e espectadores irmanados pelo mesmo sentimento e pela mesma alegria, como se todos fizessem parte de uma mesma e única irmandade. Lágrimas e sorrisos se mesclavam, abraços e beijos eram trocados por pessoas que não se conheciam, numa sadia orgia de almas imprevistamente irmanadas.

           Quanto a mim, que choro até com "Malhação", naturalmente que carpi como uma lavadeira grega. E não apenas porque conheço quase todos os integrantes do projeto e deles me orgulhei por haverem decidido fazer o espetáculo, quando o mais natural seria que o tivessem cancelado: o fundamental, para mim, foi a inenarrável emoção de constatar que só o teatro é capaz de promover um encontro tão emocionado entre quem faz e quem assiste.

          Assim, só me resta desejar que, no próximo verão, "ShakesParque" volte a ser exibido, seja sob um céu ornamentado de estrelas, seja sob intempestivo temporal. Isso pouco importa. O essencial é que seja ratificada uma premissa cada vez mais desprezada: a de que todos nós, atores e espectadores, somos feito da mesma matéria: a matéria dos sonhos!

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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Eduardo Wotzik
ENTREVISTA

       Sucesso é bom e eu gosto

Corre a lenda de que ele, quando ainda era bem jovem e tinha a cabeça ornamentada por onduladas melenas – há muito desaparecidas - ao adentrar a praia de Ipanema esta literalmente “parava”. Será mesmo? E por que “pararia”? Ele se considera um bom jogador de vôlei (é possível), um mediano jogador de futsal (é provável) e um péssimo tenista (isso é irrefutável). Filho de pai polonês e mãe brasileira, cinco casamentos (um com o teatro e os outros com donzelas, naturalmente), pai de Maria Julia (16 anos, fruto de sua união com a atriz Flavia Guimarães) e de Gabriel (3 anos, nascido de sua união com Michele Fontaine, que ele pretende que seja eterna), ele não cultiva manias, não toma remédios para dormir e abandonou o cigarro. Mas o teatro, jamais. Com um invejável currículo como professor e encenador, possuidor de vasta coleção de prêmios, Eduardo Wotzik concedeu esta entrevista exclusiva ao Folha Zona Sul.  


Lionel Fischer – Na qualidade de editor da revista Cadernos de Teatro, publicação do Tablado, te encomendei em 1997 um artigo para a edição 150/1, deixando a teu encargo a escolha do tema. Pois bem: a matéria saiu publicada com o título “O teatro acabou”, de sua autoria. Você continua pensando da mesma forma?
Eduardo Wotzik – Continuo. Pensando que o Teatro recuou como preconizou Dulcina de Morais e que naquele momento tive a nítida impressão de que tinha recuado para sempre, e que era preciso gritar para ver se alguém ouvia. O teatro a que estava me referindo não era o teatro entretenimento, aquele somente vinculado ao sucesso financeiro, ao sucesso de público, que pretende dar ao povo o que ele quer, ser espelho medíocre da realidade, mas o teatro enquanto expressão artística, que exige que você melhore, te recondiciona, que pretende ser espelho e motivo de mudanças internas e externas importantes, esse teatro acabou mesmo naquele ano. E de lá para cá vivemos um luto de mais de dez anos, com algumas pequenas exceções, claro, de um Teatro bem comportado, sem pegada, politicamente correto, do agrado.
LF – Peter Brook, o maior encenador vivo, define o teatro como “a arte do encontro”. Você concorda?
EW – Concordo demais. E digo ainda: só no Teatro, hoje, podemos encontrar o ser humano em estado de sangria, o ser humano colocado em cima de uma lâmina de laboratório com um microscópio ou mesmo uma lente de aumento em cima nos ajudando a nos ver. O Teatro é sem dúvida a maior e melhor exposição da fauna humana que habita o planeta. Todos os dias podemos observar em suas salas uma fatia dessa sociedade que chamamos humanidade. Aliás, eu concordo muito com ele. Muitos anos já tinha fazendo teatro quando um jornalista me disse que eu deveria ler seus livros teóricos (e eu que tinha ficado uma semana em silêncio depois de ver seu filme Mahabarata) comprei seus livros e então foi mais um desses encontros que só o Teatro oferece. O cara pensava o Teatro de um jeito muito parecido com o meu. E ele me fez ser melhor, esse tal de Peter Brook.
LF – Você começou sua trajetória artística no Grupo Tapa, no qual permaneceu dez anos exercendo múltiplas funções. Fale um pouco sobre este período.
EW – Dez anos dentro do teatro. Produzindo, atuando, operando som, dirigindo, mas principalmente perguntando, perturbando, me metendo, por que isso, por que aquilo, eu tinha sede, muita sede e foi com aqueles atores, diretores e técnicos maravilhosamente talentosos que eu resolvi que ia aprender. Tem gente que entende “de” Teatro, tem gente que entende “do” Teatro. Eu tinha me resolvido pela segunda opção.
LF – Em 1982, quando ainda estava no Tapa, você criou o “Projeto Escola” e o “Festival de Teatro Brasileiro”. Em que consistiam o Projeto e o Festival? E ambos contavam com a participação de artistas do Tapa?
EW – Em 1982 o Grupo TAPA tinha um problema saudável: vários jovens entrando no grupo querendo fazer e sem espaço. Então criamos o que chamamos de “Projeto Escola” que consistia em levar às escolas particulares e públicas do Grande Rio espetáculos de autores brasileiros. Íamos no meu FIAT 147 com cenário e figurinos na mala, eu, Priscilla Rozenbaum, depois Denise Fraga, Marcelo Escorel, Tereza Frotta, depois Beth Berardo, Ernani Morais, Brian Penido, Susana Kruger, depois Renato Icarahy, Moacir Chaves, Orã Figueiredo, nossa... muita gente participou! Uma geração que aprendeu a fazer fazendo. Chegávamos nos espaços e cada dia era um lugar diferente – quadras de esporte, auditórios, pátios, teatros, - com um publico diferente – sempre lotado, gente acostumada ao teatro e muitos que estavam vendo teatro pela primeira vez. Era bom demais. E não era uma sessão que fazíamos, não. Muitas vezes duas e outras quatro - duas de manhã e duas à noite em supletivos. Fizemos também na Penitenciária de Bangu, na Escola de Formação de Oficiais, no Hospital Pedro II, enfim, fizemos. Depois de uns anos percebemos que estávamos formando um público que ficava esperando o teatro em casa, e então invertemos a situação e começamos a fazer os espetáculos no teatro e trazer as escolas para dentro das salas, e assim acostumar e formar o público a ir buscar o Teatro e o conhecimento divertido. Surgiu então o “Festival de Teatro Brasileiro”. Teve um momento que eu sabia o nome e telefone de cor de todos os professores e coordenadores da área de Português, Literatura e História das principais escolas do rio.
LF – Passados oito anos, em 1990, já não estando mais no Grupo Tapa, você fundou o Centro de Investigação Teatral, com sede na Casa de Cultura Laura Alvim. Ali você produziu espetáculos e manteve oficinas de pesquisa e formação de atores. Que importância teve para você essa experiência? Quanto tempo ela durou e por que terminou?
EW - Um dia o GRUPO TAPA embarcou para São Paulo em busca de novas aventuras e eu que já começava a dirigir; resolvi que queria ficar aqui e aos poucos me emancipar. Entrei na casa de Cultura Laura Alvim recém inaugurada, perguntei a um rapaz que estava na secretaria: quem dirige a casa? Ele me disse Stela Marinho. E eu: Ela está? Ele disse: vamos agendar. E eu mais que metido: quero falar com ela. Agora. Por favor, veja se ela pode me atender. E ela podia. E me atendeu, e imediatamente abriu as portas da Casa para mim, para meu projeto, e eu saí de lá nem acreditando, pulando pitocos, cantando, celebrando pela Viera Souto, socando o ar, feliz demais. Stela Marinho foi a primeira pessoa que me disse: Eduardo, eu acredito em você. No seu talento! E isso foi muito importante naquele momento de orfandade do TAPA e de indecisão na carreira. Devo muito a ela. Lá fiquei dez anos. Sou o diretor que mais ocupou aquele Teatro (“Javanês”, “João e Maria”, “Geração Trianon”, “Opereta”, “Bonitinha, mas ordinária”, “Tróia”, “Emily”, “Só in Cena”, “Um ensaio aberto”, “Millor”, “O interrogatório”, dentre outras). Fomos nós que construímos o camarim do Teatro, o armário de luz do palco, a bilheteria, a cortina do palco; juntos, eu e Stela abrimos ainda um curso para terceira idade e organizamos os cursos de Teatro da Casa. Um dia pedi a Stela que me deixasse usar o espaço onde hoje funciona um dos cinemas e que estava vazio e então ficava lá três vezes por semana durante seis horas diárias pesquisando e investigando a teatralidade com atores convidados. Desses encontros descobri o processo que muitas vezes uso para formação do instrumento do atores e que chamo “aspiração”. Esse protocolo de exercícios técnicos foi  usado em muitos espetáculos que fiz e são o principio que rege todo o meu trabalho de formação de atores. Eu saí de lá porque, por que mesmo que eu saí de lá? Eu saí de lá? Hoje sou parte de um Conselho de Cultura da Casa do qual muito me orgulho.
LF – Você participou de um total de 43 espetáculos, exercendo variadas funções. Mas sua trajetória é fundamentalmente marcada pela direção. Dentre todas as montagens que você dirigiu, quais você destacaria? E por quê?
EW – Sou pai de muitos filhos desse longo e único casamento que vem durando com o Teatro. E todos eles me são muito caros. Mas para não deixar a pergunta sem resposta, devo admitir que alguns tocaram mais fundo o silêncio do espectador e são filhos que se eu fosse refazer hoje, os faria iguaiszinhos. “Geração Trianon” eu faria igualzinho. “João e Maria” também. “Tróia”. “Bonitinha”. “Escola de Mulheres”. “Sonata Kreutzer”. “Um equilíbrio delicado”, “O homem que sabia javanês”, “O pássaro azul”, “Só in cena”, “O interrogatório”, e agora “Estilhaços”. Sou dos poucos diretores que podem dizer sem medo e com orgulho que tem pelo menos cinco espetáculos que marcaram ou mexeram de alguma maneira com a cena. E eu digo isso sem nenhuma pretensão, já que não tenho modéstia nem com as qualidades nem com meus defeitos.
LF – E quanto a eventuais fracassos, seja de público ou de crítica – ou ambos: foram muitos? Poderia citar alguns?
EW - Eu montei “Yerma” com a Clarice Niskier, Camilla Amado, Dedina Bernadelli, Clemente Viscaino, Henry Pagnoncelli, Bianca Ramoneda, Helio Eichbauer, Emiliano Ribeiro que eu não gostei do resultado. É que às vezes você pesquisa e não encontra, nem sempre a investigação resulta. E no caso da “Yerma” foi assim. E tinha tudo. Um puta elenco, dinheiro suficiente, Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, equipe técnica de primeira, inteligência à beça, condições as melhores, mas chegamos a um lugar que não comunicava. Ao mesmo tempo, esse espetáculo me deu o mais bonito prêmio de toda minha carreira quando, cinco anos depois, resolvi que iria remontar o fracasso em busca de novos resultados e dois dias depois todo o elenco estava na minha casa reunido e pronto para a luta. Tem coisas nessa profissão que não se esquece. Aliás, tem muitas coisas nessa profissão que não se esquece. Atitudes que valem a vida.
LF – E já que tocamos na crítica: ela é importante para quem faz teatro e para quem o assiste? Qual seria o papel ideal da crítica no teatro contemporâneo?
EW - A crítica (não os críticos) como é exercida hoje por apenas uma pessoa, em apenas um jornal, num formato pequeno, esquemático e banal, determinando se as pessoas devem ou não assistir àquele espetáculo, é a ultima reminiscência da ditadura no Brasil. E a tendência é ela acabar e espero seja rápido, que já há muito ela tem feito um mal irreparável ao teatro. Os críticos de Teatro tem de ter mais espaço em todas as mídias. Para poder discorrer mais sobre uma obra. Divulgar e estimular no público o pensamento cênico, olhar uma obra de arte, levantar a polêmica, energizar o leitor, dialogar sem medo com artistas e espectador. E só deveriam escrever sobre aquilo que gostaram, sobre aquilo que consideram valer uma observação, um pensamento a mais, uma obra que instigue, que acreditam interessante, que sirva ao próximo. Fora isso deixa quieto. Deixa o publico escolher, exercer e praticar a democracia cultural. Assim que eu acho.
LF – Você já dirigiu espetáculos com jovens iniciantes e outros com “medalhões”, como ocorreu, por exemplo, em “Um equilíbrio delicado”, de Edward Albee, que tinha no elenco Walmor Chagas, Tônia Carrero, Luis de Lima e Camilla Amado. O teu processo de ensaio é sempre o mesmo ou exige, digamos, algumas “adaptações” em função do elenco ou texto?
EW – Quem manda nos meus projetos, quem determina como vão ser os ensaios, o local do ensaio, o tempo de ensaio, o que se vai comer nos ensaios, qual o formato, enfim, todo o processo, é o conteúdo da obra em questão. Ele é que me dirige e a partir dele oriento os demais. Toda vez que me repito desconfio.
LF – Durante os ensaios de “Sonata Kreutzer”, monólogo interpretado por Luis Mello, houve um momento em que aconteceu algo de muito importante e que acabou determinando tanto a forma de atuar do ator como a linha do espetáculo. Poderia nos contar o que ocorreu?
EW – Tantas coisas aconteceram. Me lembro de que enquanto eu fazia a adaptação da peça, tinha uma revista chamada “Teatro na Europa” que ficava sempre assim do meu lado e que tinha na capa um homem, um ator fazendo nem sei que peça era. Ensaiamos meses e um dia olhando para Luis em cena, de figurino, já no ensaio geral, sem que jamais tenha sequer feito qualquer referência, percebi que ele estava igualzinho à foto que me acompanhou durante toda a adaptação. Outra história da “Sonata” é que quase levei a cenógrafa à loucura, quando queria porque queria um tom de preto no chão do palco. Ela já tinha dado umas quatro mãos de tinta, e não chegávamos ao preto que eu queria. Os funcionários do teatro de saco cheio, o cheiro de tinta cada vez mais insuportável, e eu dizendo que não era aquele preto que eu queria. “Mas preto é preto!” “Não”. “Então, vai ver que você quer branco”. “Não”. “Eu quero preto, mas é um preto que espelha”, e lá ia mais uma mão de outro preto. Outro tipo de tinta, e tempo pra secar, e lixa, e o ensaio atrasando, os dias passando, e tinta, e lixa, e tempo pra secar. Todos já desesperados, intoxicados, inclusive a produção que gastara mais do que previsto. Ela achava que o cenário não ia custar nada, visto que o plano de cenografia era simplesmente um chão pintado de preto, e um banquinho de piano ao centro. Até que chegamos finalmente ao preto que eu queria. A “Sonata Kreutzer” é uma adaptação do romance do Tolstoi, que contava a história de um homem que matara a esposa, porque se sentia traído pela mulher pianista, e seu partner que a acompanhava ao violino. O chão que eu tanto queria, só reparei mais tarde, quando tudo ficou pronto, era o preto da tampa de um piano de cauda, e fazia todo um sentido que eu na época apenas intuía. São esses os momentos mais difíceis para mim no processo de criação. Porque me torno um chato, um insistente, porque sei que não é aquilo que eu quero, e não sei explicar o que eu quero, e só há uma forma de chegar ao acerto, que é tentando, o que venhamos e convenhamos, é um processo totalmente fora de moda nesse mundo mediocremente prático e objetivo em que vivemos, além do que, chega a um momento de exaustão, que é preciso que todos, inclusive eu, confiem demais na minha intuição.
LF – Sempre sustentei, ao longo dos últimos 21 anos exercendo o ofício de crítico teatral, que este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. Você concorda?
EW – Tem toda a razão. Temos grandes intérpretes. Grandes fingidores. Mentirosos. Sonsos. Maus caráter. Grande atores. Mas a sociedade civil, invejosa, anda roubando nossas características, nossa função de condicionar, de ficcionar, de iludir, de representar.
LF – Você ganhou praticamente todos os prêmios como diretor, dentre eles o Mambembe, o MEC-INACEN, o Molière, o Ibeu e o Shell. Mas se tivesse que citar aquele que te deu maior alegria, qual seria? E por quê?
EW - A credibilidade é o meu maior prêmio. Toda vez que me senti honrado pelo crédito do alheio fiquei sorrindo um dia inteiro. Toda vez que consegui vencer - mesmo sendo honesto - me dei uma medalha de honra ao mérito.
LF – Entrou recentemente em cartaz o espetáculo “Estilhaços”, que adorei, como fica claro na crítica que consta desta edição.  Ao que me parece, você tinha guardadas cerca de 400 crônicas, depois as reduziu a 100 e finalmente chegou nas 45 que constituem a montagem. Pois bem: qual a importância de “Estilhaços” na sua trajetória? Este é o primeiro texto seu que você encena?
EW – “Estilhaços” é meu terceiro texto, talvez o mais autoral. Onde me exponho mais. O primeiro era sobre a notável Aracy de Almeida e chamava-se “No país de Araca”. O segundo eu me escondia sob quatro jovens atores que ensaiam, ensaiam, ensaiam, ensaiam... só ensaiam, não realizam nada, ficam lá ensaiando suas vidas.  Eu não sei ainda qual importância que “Estilhaços” terá na minha vida, ainda é muito cedo para avaliar, mas tenho que admitir que estou muito satisfeito. Feliz mesmo com os acertos do processo e grato demais a todos que me premiaram com sua fé. Que sucesso é bom e eu gosto. E tomara me acostume.
LF – E agora passemos ao delicado campo dos patrocínios, incentivos, captações etc. É possível se fazer teatro, hoje em dia, sem estar amparado por estatais, bancos ou órgãos federais, estaduais ou municipais ligados à Cultura? A bilheteria tem ainda alguma importância?
EW – Não. Não é possível. O teatro hoje não se faz possível. Se faz no impossível. Quer saber como é isso? Nem eu mesmo sei. Sei que tudo conspira contra. Para que você se sinta um  estranho, porque quer fazer arte num lugar onde ninguém se interessa por isso. Isso inclui a Presidente da República, a Ministra da Cultura, o Governador do Estado, a Secretária de Cultura, o Prefeito, a funcionária do teatro, ninguém tem interesse na arte, mas sim nos benefícios políticos que podem extrair dela. Tratam os artistas como se estivessem lhes fazendo um favor. Até a funcionária do teatro acha estranho sua presença lá. A verdade é que estão todos falidos. Se pensarmos que somos 0,23% do orçamento dá para imaginar a importância que a Cultura tem para essa gente. Então mesmo os que querem fazer alguma coisa ficam lá amarrados a uma máquina falida e miserável. É triste de ver. Essa gente deprimir.  E a maior parte dos financiamentos, prêmios e patrocínios compram o silencio da classe artística com uma quantia mínima, mas não dignificam nem valoram a importância que deveria ter a arte para um povo tão espiritualmente miserável.
LF – Se você fosse convidado a assumir a Ministério da Cultura. Você aceitaria? E caso aceitasse, que mudanças promoveria na política cultural do país?
EW – Antes de aceitar teria que me certificar de que a porcentagem destinada à cultura e à arte nesse país seria elevada em pelo menos dez vezes o valor de hoje. Senão eu me transformaria em mais um bonequinho engravatado que fica indo a jantares, encontros, protocolos, tendo que aprender diariamente a dizer não para tudo e todos que queiram realmente fazer algo de útil por esse país. E em pouco tempo me transformaria numa caricatura de mim mesmo, como vem acontecendo nos últimos anos. Não há política se não há verba.
LF – Em quase todos os países do Primeiro Mundo, um bom ator de teatro pode viver dignamente de seu trabalho no teatro. Aqui, no entanto, é obrigado a fazer televisão, comerciais, filmes, dar aulas etc., caso não queira morrer de fome. Haveria uma forma de mudar este quadro? Ser “ator de teatro”, afinal, é um ofício ou não passa de um passatempo ocasional?
EW – Eu vivo de Teatro. Sempre vivi. Como uma formiga trabalhando sem parar, sempre patrão de mim mesmo, funcionário dos meus sonhos. E um dia tem, no outro não, então tenho que estar sempre organizando os ganhos para viver e sustentar minha família. E tenho onde cair morto. Sempre tive a casa da minha mãe para me refugiar quando a fome apertava. E não recomendo a profissão a quem não tem condições mínimas de sobrevivência, que aí ela fica cruel demais. É claro que se assim mesmo, não tendo onde cair morto, você não conseguir fazer nada na vida que te interesse mais do que Teatro, então sofra mesmo que você merece. O orçamento para a cultura é de 0,23%.  Grave esse número. Você que faz. Você que pretende fazer. Você que está começando. O numero é 0,23%. É quanto eles acham que vale o seu serviço. E quando estiver trabalhando honestamente e mesmo assim faltar feijão para os seus lembre-se desse número. E por não ser nem um inteiro e sim quase um quarto de um, o artista tem de fazer mais quatro coisas ao mesmo tempo para tentar totalizar um. Um dia eu não vou poder andar na rua porque todo mundo vai querer se aproximar para dar palpite, se é melhor cortar tal cena, mexer em certa fala, tirar outro ator, porque todo mundo vai se achar um pouco diretor, todo mundo um dia já terá dirigido uma peça na escola, e se achará com direito de dar palpite. Seremos os brasileiros 150 milhões de diretores de teatro. E lá fora, torcida na porta, espectadores lotando teatros e as casas de cultura, e os centros culturais, e de lambuja os museus e galerias. Um dia vão se formar filas e mais filas para comprar ingresso, brotarão acalororadas discussões sobre Shakespeare, Tcheckov, Ibsen, se Marilia é melhor que Fernanda, se Bibi rouca vai poder estar em cena. Um dia todo aluno fará, desde que entra na escola, sua própria avaliação, depois dará notas a si mesmo, e mais adiante se diplomará e atestará sua capacidade para exercer a profissão que escolheu. Só ele pode e poderá dizer se já sabe a matéria, se aprendeu a lição, se está apto a passar de ano, se formar e exercer tal serviço. Um dia se instalará a lei de que todo servidor público será obrigado a tratar seus filhos e parentes em hospitais públicos e colocá-los obrigatoriamente para estudar em escolas do governo. E sonhos realizados, sonho que hei de vencer mesmo sendo honesto.
 LF – Quais seriam os requisitos básicos que uma pessoa deve possuir para um dia chegar a ser um bom profissional do palco?
EW – Primeiramente, talento. Que isso existe mesmo. E facilita. Que já que vai ralar melhor ralar naquilo que leva jeito. E gostar de se exibir. E ter muito medo de não ser amado. E subir no palco e se sentir em casa. Confortável. E quando sua mãe disser pela milésima vez: meu filho, pare de fazer drama, saiba que existe um lugar só para isso e vá para lá. Depois gostar da instabilidade. Não se importar com ela. Achar graça disso. E ter curiosidade para sempre se sentir jovem. E capacidade de distanciamento, de ser observador do entorno e de si mesmo. E gostar de estudar sempre, que o teatro evolui muito rápido e você não pode ficar para trás. E fazer muita aula, pra adquirir muita técnica vocal, corporal, e muita rodagem cênica, sempre com o melhor profissional de cada área. O ator tem que estar em cena. Fora de cena ninguém é ator. Ator no bar é à toa. E se manter espontâneo. E acima de tudo saber separar o seu ser pessoa do seu ser cênico. E não fazer nada do que eu digo e não seguir nada do que eu faço, e esquecer imediatamente tudo que foi dito acima. E amar.
LF – Você raramente atua nos espetáculos que dirige. É difícil exercer ao mesmo tempo as duas funções ou você não está com “essa bola toda” como ator?
EW – Acho dificílimo exercer as duas coisas ao mesmo tempo. E tenho uma inveja danada de quem consegue. Eu não consigo. Toda vez que fiz isso adoeci. Deu “tilt”. São lugares muito diferentes, olhares muito díspares, como se olhasse para fora e para dentro ao mesmo tempo, não dá, acaba priorizando um, e eu que sou muito perfeccionista e obsessivo fico devedor de mim mesmo, e quando dou por mim já estou um nó que só.
LF – Domingos Oliveira sustenta que, no fundo, todo diretor encena espetáculos para agradar aos amigos. É isso mesmo?
EW – Eu amo o Domingos. Um autor inegável. Meu melhor amigo. Deve ter razão. Que ele sempre tem razão, mas no meu caso não funciona assim. Não mesmo. Eu faço para “um outro”. Para um espectador que imagino ser muito inteligente, muito sensível, muito perspicaz, tenha pouquíssima paciência, uma capacidade elevada de observação, odeie teatro, e para quem tenho que me desdobrar para tirar da posição “deitado com os pés em cima da cadeira da frente”  e interessá-lo a ponto de acabar o espetáculo de pé com ânsia de subir no palco. Eu chego lá!
LF – E para terminar: corre uma lenda de que você, quando ainda era bem jovem e tinha a cabeça ornamentada por longas e onduladas melenas, quando chegava na praia de Ipanema esta literalmente “parava”. Se isto não é lenda e sim um fato, pode-se saber por quê a dita praia “parava”?
EW – Bem...
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O jornal Folha Zona Sul é uma publicação mensal, gratuita, e pode ser encontrado em livrarias como Travessa e Letras & Expressões, em faculdades e escolas de teatro. No Folha venho publicando uma média de quatro críticas por edição. (LF)

                               Curso em abril

Gostaria de informar aos queridos parceiros deste blog que, nas terças-feiras de abril (dias 05/12/19/26), estarei dando o curso

"Improvisação teatral: você sabe realmente o que é isso?"

no Studio Casa de Pedra (Centro de Educação e Arte do Movimento), que fica na Rua Major Rubens Vaz nº 436 - Gávea - Rio de Janeiro.

O curso custa R$ 150,00 (matrícula incluída) e os encontros se darão das 19h às 22h.

Mas antes, no dia 22 de março, no mesmo endereço e às 19h, teremos um encontro em que explicarei brevemente como se dará o curso e os alunos pagarão os mencionados R$ 150,00.

Alguns interessados estão optando por pagar antecipadamente, para garantir suas vagas, fazendo um depópsito em minha conta bancária - em seguida, eles escaneiam o recibo do depósito e me enviam por e-mail.

Durante esses quatro encontros trabalharei em cima de uma proposta que venho desenvolvendo há alguns anos com meus alunos do Tablado, e que consiste, basicamente, numa resposta imediata a estímulos propostos, a fim de evitar inúteis racionalizações. Depois, é claro, conversamos sobre o que foi feito. Os resultados têm sido surpreendentes.

Caso alguns de vocês estejam interessados, podem me escrever ou telefonar para obter maiores informações - e também com minha filha Julia Stockler, que será minha assistente.

lionelfischer54@hotmail.com
Tels: 2205 1546 /// 9136 9113

Julia Stocler: 8266 4647

Agradeço a atenção de todos,

Lionel Fischer

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Chopin & Sand: romance sem palavras"

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Paixão e música nos Correios


Lionel Fischer


Os espectadores mais familiarizados com a música clássica sabem que Frédéric Chopin foi o maior compositor no que concerne a obras pianísticas, tendo esgotado praticamente todas as possibilidades expressivas do instrumento. Da mesma forma, os ditos espectadores também sabem que o gênio polonês manteve, durante longo tempo, um tumultuado romance com a excêntrica escritora que assinava suas obras com o pseudônimo de George Sand.

Quanto aos não familiarizados, estes têm agora uma excelente oportunidade de entrar em contato não apenas com fragmentos de obras imortais de Frédéric Chopin, mas também com aspectos relevantes de sua vida, trajetória artística e da já mencionada relação com George Sand.

Em cartaz no Centro Cultural Correios, "Chopin & Sand: romance sem palavras" leva a assinatura de Walter Daguerre, estando a direção a cargo de Jacqueline Laurence. No elenco, Marcelo Nogueira dá vida ao compositor, cabendo a Françoise Forton encarnar a escritora. E dividindo a cena com ambos, a consagrada pianista clássica Linda Bustani.

Em respeito aos espectadores não familiarizados com o contexto, julgo procedente não revelá-lo, pois isso os privaria de imprevistas revelações que certamente haverão de causar uma mescla de espanto e encantamento. Mas posso, evidentemente, afirmar que o autor não se baseou apenas na correspondência trocada entre os dois artistas, ainda que ela esteja na origem do texto.

Walter Daguerre foi muito além: partindo da realidade, transcendeu-a criando dois "personagens" que, se por um lado correspondem ao que se sabe deles, por outro não deixam de exibir características ficcionais - afinal, cartas não são suficientes para retratar todas as nuances de uma convivência.

Portanto, considero da maior pertinência o presente texto, pois além de muito bem escrito tem ainda o valor suplementar de possibilitar, sobretudo ao público jovem, acesso à vida e trajetória artística de dois exepcionais criadores.

Com relação ao espetáculo, Jacqueline Laurence impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, ao explorar com a mesma eficiência e sensibilidade os múltiplos climas emocionais em jogo. E cabe ainda ressaltar não somente sua ótima atuação junto ao elenco, mas também a forma que encontrou para integrar Linda Bustani à montagem.

Na pele de Chopin, Marcelo Nogueira consegue materializar os principais aspectos de uma personalidade ao mesmo tempo forte e frágil, melancólica e eventualmente eufórica, assim como sua enorme carência afetiva, nostalgia da pátria e da família e, em larga medida, dependência daquela a quem amava. Cabe também destacar que Nogueira executa com eficiência alguns fragmentos de músicas do compositor. 

No tocante a Françoise Forton, acredito que a atriz exiba aqui a melhor performance de sua carreira no teatro. Sua composição de George Sand é simplesmente impecável, já que consegue valorizar tanto o autoritarismo, determinação e dureza de Sand quanto seu desmedido amor pelo compositor, por quem zelava com um carinho quase maternal, graças ao qual, ao que suponho, Chopin viveu mais tempo do que o previsto em função de sua tuberculose.

Chegamos, agora, a Linda Bustani. Pianista consagrada nacional e internacionalmente, ela executa com extrema emoção e impecável técnica vários fragmentos de célebres composições de Chopin. Mas o grande "achado" de sua participação reside na constante integração que se estabelece entre ela e Chopin - muitas vezes, Nogueira inicia uma música em "seu piano" e Linda, em outro, dá seqüência à mesma. O efeito é surpreendente e emocionante. E quando toca apenas para sublinhar um determinado clima emocional ou preencher uma passagem de tempo, aí mesmo é que todos os méritos desta mestra do piano afloram de forma a gerar na platéia uma emoção intensa e inesquecível.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo e arrebatado entusiasmo a direção musical de Roberto Duarte, a trilha sonora (escolha das músicas, evidentemente) de Alexandre Elias, a direção de movimento de Giselda Fernandes, a belíssima cenografia de Ronald Teixeira (também responsável pelos irretocáveis figurinos) e a expressiva iluminação de Renato Machado, que muito contribuem para tornar obrigatória uma imediata visita ao Centro Cultural Correios.

CHOPIN & SAND: ROMANCE SEM PALAVRAS - Texto de Walter Daguerre. Direção de Jacqueline Laurence. Com Marcelo Nogueira e Françoise Forton, que dividem a cena com a pianista Linda Bustani. Centro Cultural Correios. Quarta a domingo, 19h. 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Teatro/CRÍTICA

                       "Temporada de gripe"

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Texto incompreensível e enfadonho


Lionel Fischer


Fundada em Curitiba, em 1993, por Felipe Hirsch e Guilherme Weber, a Sutil Companhia de Teatro já levou à cena 30 espetáculos, firmando-se como uma das mais interessantes do país. Agora, ao atingir sua "maioridade", o grupo está em cartaz no Rio de Janeiro (Espaço Tom Jobim) com três espetáculos. Um já exibido aqui, em 2008: "Não sobre o amor". E os outros dois inéditos: "Thom Pain / Lady Grey" e "Temporada de gripe". A presente crítica refere-se ao último. 

"É uma peça sobre a paixão. A gripe é isso: estar apaixonado. Os doutores da peça tratam a paixão com distância: são profissionais. Além disso, o texto trata da desconstrução da criação de uma história de amor", afirma o diretor Felipe Hirsch no release que me foi enviado, constando ainda do referido release a informação de que "...no palco, dois narradores, Prólogo e Epílogo, contam, esclarecem, comentam e até confundem o romance entre um homem e uma mulher internados em um hospital psiquiátrico".

De autoria do norte-americano Will Eno, "Temporada de gripe" chega à cena com direção de Hirsch e elenco formado por Erica Migon, Guilherme Weber, Jorge Amil, Leandro Daniel Colombo, Leonardo Medeiros e Sara Antunes.

Antes de mais nada, permito-me discordar da comparação feita por Felipe Hirsch entre paixão e gripe - a menos que o talentosíssimo diretor esteja se referindo a uma gripe avassaladora, do tipo que nos atira na cama, provoca febre altíssima e intensa dor nos ossos. Não sendo assim, não estamos diante de paixão alguma - no máximo, uma leve e fugaz atração. Mas vamos ao texto.

Das informações prestadas, certamente é verdade que a peça é "comandada" por dois narradores, também autores, que se denominam Prólogo e Epílogo. E também é certo que a ação se dá num hospital psiquiátrico e que dois pacientes tentam esboçar uma história de amor. Quanto a tudo o mais, me senti como alguém que,  desavisado, tivesse entrado numa festa para a qual não foi convidado.

Sim, pois excetuando-se algumas frases e eventuais pensamentos,  não consegui apreender os conteúdos propostos pelo autor e tampouco estabelecer com os personagens um mínimo de identificação ou empatia. Se, como afirma Hirsch, uma das premissas básicas do espetáculo era a "desconstrução da criação de uma história de amor", para mim ela se deu de forma absoluta, ou seja, "descontruiu" toda e qualquer possibilidade de me envolver com o que ocorre em cena.

É evidente que poderia tecer inifinitas conjecturas, sair formulando  diversificadas hipóteses - afinal, escrevo sobre teatro há 22 anos e julgo possuir um mínimo de domínio sobre as palavras e também no que concerne ao fenômeno teatral. Mas estaria sendo falso e a parecer "inteligente", prefiro assumir minha ignorância. Para mim, "Temporada de gripe" é um texto incompreensível e enfadonho -  mas trata-se apenas de uma opinião e, como tal, sujeita a todos os enganos.

Quanto ao espetáculo, este é muito inferior a todos que assisti da Sutil Companhia de Teatro, que já levou à cena diversas montagens brilhantes e inesquecíveis, marcadas por soluções de altíssima criatividade e inquestionável originalidade. 

No tocante ao elenco, estão em cena excelentes profissionais, todos eles com vasta experiência e relevantes serviços prestados à nobre e dificílima arte de representar. Assim, em nada me surpreende que  exibam performances seguras e convincentes, ainda que apoiadas em personagens confusos e mal estruturados.

Na equipe técnica, Daniela Thomas assina uma cenografia asséptica e expressiva, a mesma expressividade presente na iluminação "gelada" de Beto Bruel. Verônica Julian responde por figurinos corretos.

TEMPORADA DE GRIPE - Texto de Will Eno. Direção de Felipe Hirsch. Com a Sutil Companhia de Teatro. Espaço Tom Jobim. Sábado e domingo, 21h.    

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Teatro/CRÍTICA

                         "Me salve, musical!"

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Deliciosa e desvairada comédia


Lionel Fischer


George Simas é um diretor de musicais, quase todos (senão todos) realizados a partir de idéias roubadas de outros autores/diretores. Em resumo, um plagiador. Sua esposa Alma Duran é uma atriz dramática cuja interpretação de "Medéia" a marcou de tal forma que nunca mais recebeu convites para representar. O casal está no Aeroporto Tom Jobim à espera de um vôo para Nova York, onde George, como de hábito, pretende assistir a musicais que possa plagiar, enquanto ela encara a viagem como uma possibilidade de "discutir a dor da relação".

No entanto, o aeroporto é fechado em função de uma inesperada e desconhecida epidemia, cujos sintomas não cabe aqui revelar, pois isto privaria o espectador de deliciosas e bizarras surpresas. E outras "vítimas" vão surgindo: uma aeromoça (ex-amante de George), um empresário latino, autor de um livro intitulado "Como influenciar as pessoas sem que elas percebam", um psicanalista apaixonado por Alma, uma garota dark e uma funcionária da Cia Aérea.

Eis, em resumo, o contexto de "Me salve musical!", mais recente produção da Zeppelin Cia. Pedro Brício assina o texto e a direção da montagem, em cartaz no Oi Futuro. No elenco, Gustavo Gasparani (George), Susana Ribeiro (Alma), Fernando Alves Pinto (Psicanalista), Isabel Cavalcanti (Aeromoça), Celso André (Empresário), Keli Freitas (Garota dark) e Juliana Medella (Funcionária da Cia. Aérea).

Segundo o autor e diretor Pedro Brício, o espetáculo "...é como um musical que fracassa, porque o caos interfere nos sonhos de felicidade. Porque os personagens não cantam e nem dançam muito bem, porque rompantes trágicos parecem invadir a cena e a trama é contaminada pelo absurdo. E é nesse fracasso que o espetáculo se constrói".

Tal avaliação está em total consonância com o que é exibido em cena. E a idéia da súbita contaminação de todos os personagens é realmente um achado, pois a seqüência de sintomas - que também não cabe aqui revelar - é comum a todos eles, valendo registrar o caráter deliciosamente bizarro do misterioso vírus, que produz efeitos que nada têm a ver com qualquer tipo de "doença".

Enfim...estamos diante de um texto engraçadíssimo, que mesmo priorizando o humor não deixa de abordar questões, digamos, mais sérias. Contendo ótimos personagens, diálogos fluentes e uma ação que a todo momento envereda por caminhos insuspeitados, "Me salve, musical!" recebeu ótima versão cênica de Pedro Brício.

Valendo-se de marcas tão diversificadas quanto criativas, explorando todo o potencial absurdo do texto, Brício constrói uma encenação que cativa o espectador desde o início. Mas tal mérito, evidentemente, em muito se deve à ótima atuação do diretor junto ao elenco.

Sem exceção, todos os intérpretes exibem performances maravilhosas, um irretocável tempo de comédia, uma contagiante alegria de estar em cena. Assim, seria injusto destacar algum desempenho individual, dada a coesão do conjunto. De qualquer forma, e partindo-se da premissa de que eventuais injustiças são inerentes à espécie humana, me permito explicitar meu enorme prazer em rever Susana Ribeiro, uma das melhores atrizes de sua geração e que deveria, para o bem do teatro carioca, com ele se comprometer a nunca mais deixar de fazer ao menos uma peça por ano.

Na equipe técnica, Rui Cortez responde por impecável direção de arte, sendo irretocáveis a iluminação de Tomás Ribas, a música original e direção musical de Lucas Marcier, Fabiano Krieger e Felipe Rocha (este último também responsável pelas canções) e a preparação corporal de Cristina Moura.

ME SALVE, MUSICAL!" - Texto e direção de Pedro Brício. Com Gustavo Gasparani, Susana Ribeiro, Fernando Alves Pinto, Isabel Cavalcanti, Celso André, Keli Freitas e Juliana Medella. Oi Futuro. Sexta a domingo, 19h30.
Teatro/CRÍTICA

                             "A Eva futura"

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Inquietante prenúncio no Sesi


Lionel Fischer


"Já é tarde da noite em Menlo Park quando o jovem Lorde Ewald, que anos antes havia salvo a vida de Thomas Edison aparece numa visita inesperada. Apaixonado por uma dama de grande beleza e pouca profundidade, Alicia Clairy, só restava a Ewald o suicídio, diante de tanto desgosto. Edison oferece a solução: construiria uma andróide, idêntica à musa por fora e recheada de sublimes pensamentos e elevados sentimentos".

Extraído do release que me foi enviado, o fragmento acima sintetiza o enredo de "A Eva futura", espetáculo baseado no romance homônimo de Villiers de L'isle Adam (1838-1889). Denise Bandeira assina a tradução, adaptação e direção da montagem, em cartaz no Teatro do Sesi. No elenco, Pedro Paulo Rangel, Larissa Maciel, Bruno Ferrari, José Antonio Meira, Louri Santos, Daniel Zubrinsky e Ana Velloso.

Dentre muitas abordagens possíveis, talvez a mais pertinente consista em encarar o texto como uma espécie de prenúncio do que a tecnologia haveria de representar muito tempo depois. Sim, pois atualmente a tecnologia nos domina, nos acena com promessas de "felicidade" que, muitas vezes, mal conseguem disfarçar seu conteúdo trágico.

No presente caso, estamos diante da possibilidade de se criar uma "mulher ideal", ainda que robótica. Mas será que estamos muito longe de presenciar tal fato? Ou será que em breve a tecnologia nos oferecerá alternativas mirabolantes para "humanizar" nossa progressiva e aparentemente irremediável desumanização? 

Assim, considero altamente pertinentes as questões levantadas pelo autor, em total sintonia com a contemporaneidade. E o espetáculo assinado por Denise Bandeira materializa na cena, de forma sóbria e eficiente, os principais conteúdos propostos por Villiers de L'isle Adam, cabendo ainda ressaltar seu ótimo trabalho junto ao elenco.

Na pele de Thomas Edison, Pedro Paulo Rangel exibe seu mais do que reconhecido talento, ainda que o personagem não permita grandes voos interpretativos. Larissa Maciel também convence plenamente em sua interpretação de Alicia Clairy, o mesmo aplicando-se a Bruno Ferrari (Lorde Ewald) e Ana Velloso como Evelyn Habal. Em participações bem menores, José Antonio Meira, Louri Santos e Daniel Zubrinsky exibem performances corretas.

Na equipe técnica, destacamos a belíssima cenografia de Helio Eichbauer, os apropriados figurinos de Rita Murtinho, a expressiva luz de Paulo César Medeiros e a trilha sonora de Denise Bandeira e André Surkamp, cabendo ainda mencionar a preciosa colaboração de Patricia Carvalho-Oliveira na preparação corporal e direção de movimento.

A EVA FUTURA - Texto de Villiers de L'isle Adam. Direção de Denise Bandeira. Com Pedro Paulo Rangel, Larissa Maciel, Bruno Ferrari, José Antonio Meira, Louri Santos, Daniel Zubrinsky e Ana Velloso. Teatro do Sesi. Quinta a domingo, 19h30.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

                           Fernando Pessoa

                                                                               Lionel Fischer

           Não sei se já confessei aos queridos parceiros deste modesto blog, mas padeço - desde sempre - de brutal insônia. E a tal ponto que não raro me vejo forçado a recorrer aos préstimos de remedinhos. Mas esta noite nem eles foram suficientes, tampouco as duas taças de vinho que sorvi sem a menor vontade.

          No entanto, lá pelas cinco me deitei e implorei a Morfeu que me acolhesse em seus braços. E concluo que minhas preces foram atendidas, pois apaguei durante uma hora. E por mais tempo permaneceria assim, não fosse a costumeira e espartana disciplina de um galináceo que vive nas matas em frente à minha casa e que às seis, faça chuva ou faça sol, se põe a cacarejar.

          Acordei, naturalmente, no exato instante em que o sol começava a triunfar sobre as estrelas. Mas no breve repouso sonhei com Fernando Pessoa: o grande poeta português me olhava, a uma certa distância, com um sorriso que me pareceu ao mesmo tempo desdenhoso e altivo. Como eu estava sentado em frente ao computador, fiz a seguinte dedução: o poeta estaria, através da forma já descrita, manifestando sua mágoa e sua indignação por até agora não constar do blog que criei.

          Tal conclusão, evidentemente, é completamente estapafúrdia e só cabe em sonhos, pois um gênio de tal magnitude jamais se ofenderia, ainda que do além, por não estar inserido neste modesto espaço de estudo e reflexão. Seja como for, e por levar sempre a sério os avisos do meu inconsciente, reparo agora essa imperdoável lacuna, postando um poema do imortal escritor e dois outros que criou valendo-se de dois de seus heterônimos.
Vamos a eles, ora pois pois...

                               Autopsicografia
                                             (Fernando Pessoa)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.


                       Poema em linha reta
                                       (Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco,
tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência
para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos
tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso
e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais
ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos
moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido
emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho
agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas
coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste
mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu
enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles
príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma
infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma
cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse
que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores
sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

                                Sem título
                                       (Alberto Caeiro)

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os
olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no
mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor,
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas
árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz
pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber o que não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e
pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a
escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida ele viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina).

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)

Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda hora.
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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

         Da futilidade de planejar o futuro
                       Sêneca saúda o amigo Lucílio

Cada dia, cada hora mostram-nos o pouco que valemos e qualquer outra importante situação relembra nossa fragilidade esquecida. Nós, que sonhávamos com a eternidade, somos obrigados a encarar a morte.

Perguntas o porquê dessa introdução? Vê bem, conheceste Cornélio Senecião, brilhante cavaleiro romano e homem honrado? Sendo de origem humilde, fez fortuna com esforço próprio e abriu um longo caminho de sucesso. Com certeza, para a ascensão social, são essas premissas que contam.

E, do mesmo modo, o dinheiro chega lentamente onde há pobreza e permanece enquanto dela provém. Da mesma forma, Senecião alcançou riqueza graças a duas qualidades indispensáveis nesse domínio: a arte de adquirir e a arte de conservar. Tanto uma coisa como outra era suficiente para torná-lo rico.

Esse homem, de uma extrema sobriedade e que administrava da mesma maneira a sua pessoa e fortuna, veio visitar-me pela manhã como de hábito. Passou todo o resto do dia e parte da noite à cabeceira de um amigo enfermo, condenado. Depois de haver jantado alegremente, foi acometido de uma crise aguda de angina e, a custo, sobreviveu até a madrugada. Assim, poucas horas após ter cumprido seu dever de um homem de bem, ele morreu.

Ele, que estava investindo na terra e nos mares, que entrou para a vida pública, que se aventurou em todos os tipos de negócio, estando em plena realização de suas atividades financeiras, foi repentinamente arrancado dessa vida. Que bobagem fazer planos para o futuro quando não sabemos nem do dia seguinte. Que tolice planejar grandes projetos para o futuro. 

Creia-me, tudo é incerto mesmo para os mais felizes. Ninguém deveria fazer promessas para o futuro. Mesmo o que já possuímos pode nos escapar e, nessa hora, que pensamos estar bem, um mal pode nos arrasar. O tempo transcorre segundo leis imutáveis, é certo, mas obscuras. E que me importam as certezas da natureza se eu permaneço na incerteza?

Longas navegações e tardios retornos à pátria ao final de aventuras em lugares estrangeiros, esses são nossos projetos. E o trabalho de soldado e seu esforço tardiamente remunerado, as promoções. Durante esse tempo, a morte está ao nosso lado, mas como não pensamos nela senão com relação ao outro, a idéia de nossa mortalidade, passo a passo a nós ensinada, não causa efeito senão enquanto dura a surpresa.

Há tolice maior do que ficar admirado de ver acontecer o que pode ocorrer a qualquer dia? Com certeza, há um limite já fixado para nós pelo destino, mas esse final nenhum de nós sabe enquanto está vivo ou quão próximo será. Preparemos nossa alma, então, como se esse fim estivesse nos atingindo. Não deixemos nada para mais tarde. Acertemos nossas contas com a vida dia após dia.

O defeito maior da vida é ela não ter nada de completo e acabado, e o fato de sempre deixarmos algo para depois. Aquele que sabe levar sua vida no dia-a-dia não precisa do tempo. Essa necessidade aparece, bem como o medo do futuro, da fome desse futuro que corrói a alma. Nada é pior do que se indagar a propósito do que está por vir: "Para onde isso vai me levar? Quanto tempo me resta e como será minha vida?" É isso que agita uma mente atemorizada.

Como fugir dessa inquietaçãop? Há apenas uma maneira: não deixando nossa vida na pendência de um futuro incerto, mas que se concentre nela mesma. Em verdade, só se concentram no futuro aqueles que estão insatisfeitos com o presente. Ao contrário, se eu estiver satisfeito com o que tenho, quando a mente souber que não existe diferença entre um dia, a alma visualizará, do alto, o conjunto dos dias e dos acontecimentos que estão por vir e apenas sorrirá. De que maneira a inconstância e a mudança do acaso podem perturbar aquele que permanece estável na instabilidade?

Portanto, meu caro Lucílio, trata de viver cada dia como se fosse uma vida inteira. O homem que está assim preparado, aquele que viveu cada dia de sua vida plenamente, está tranqüilo. Contudo, quem vive na esperança do amanhã deixa escapar o presente. Assim, se aproxima de um desejo insaciável acompanhado de um sentimento miserável que torna as coisas mais miseráveis, ou seja, o pavor da morte. Daí o vil desejo de Mecenas, que não recusa as enfermidades, aceita as deformações e ainda ser pregado na cruz, contanto que, através desses sofrimentos, possa continuar va viver:

Faz de mim um maneta,
Estropiado de uma perna, reumático
Coloca em minhas costas uma corcova
Faz cair meus dentes:
Enquanto me restar vida, está bem;
Mesmo na cruz, sobre a estaca, conserva a minha vida.

Isso, se acontecesse, seria o cúmulo da miséria e é esse o desejo dele! Acredita estar pedindo vida, mas apenas está prolongando um tormento. Já o consideraria bastante desprezível se desejasse viver até ser crucificado, mas ainda diz:

Podem me aleijar, desde que ainda me reste um sopro de vida em meu corpo mutilado e impotente. Deixa-me aleijado e disforme, mas permita que eu viva um pouco mais. Podes até me crucificar e colocar em uma estaca.

Vale a pena aumentar o sofrimento, ficar dependurado com os braços abertos, tudo isso para adiar o que o suplício tem de melhor, o seu fim? Vale a pena conservar a alma para extingui-la no sofrimento? Que se pode desejar a esse homem senão que obtenha a complacência dos deuses?

O que significa esse vergonhoso poema, digno de um covarde? Esse pacto de pavor e loucura? Essa maneira ignóbil de mendigar a vida? Como imaginar que, diante de tal homem, Virgílio tenha lido um dia este verso: "É um mal assim tão grande o fato de morrer?" Ele deseja os piores suplícios, os mais penosos sofrimentos, deseja ardentemente que se prolonguem, que continuem. O que pode ganhar com isso? Viver um pouco mais? Mas que tipo de vida é essa morte lenta?

Vê-se, então, um homem que prefere se afundar em suplícios, que prefere morrer membro a membro e exalar sua vida gota a gota a deixar escapar, de uma vez por todas, seu último suspiro? Vê-se um homem que deseja ser pregado na cruz, que quer ficar muito doente, deformado, sofrendo, com o peito e os ombros feridos, e que ainda quer um sopro de vida em meio a toda essa tortura? Penso que já teria muitos motivos para morrer mesmo antes de ir para a cruz.

Não digas, portanto, que a necessidade de morrer não seja um benefício da natureza. Muitos estão preparados para pactos ainda mais abjetos, até para trair um amigo a fim de conservar a vida, a deixar os filhos na prostituição para desfrutar de uma luz que é testemunha de tantos crimes. Deixemos, pois, de lado a paixão pela vida e saibamos que importa pouco quando sofreremos aquilo que nos está reservado. O que realmente importa é viver bem, e não viver muito. Muitas vezes, o melhor é que a vida não dure muito tempo.
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Extraído de Aprendendo a viver, L&PM POCKET. Tradução do latim por Lúcia Sá rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas.
                    O drama e a sociedade

                                                                              Martin Esslin


Muita coisa tem sido escrita nas últimas décadas a respeito de arte politicamente engajada e especialmente a respeito de teatro político, do drama como instrumento de mudanças sociais e políticas. E não pode haver dúvida de que o teatro - e o drama em sua conotação mais ampla, que se estende ao cinema e aos veículos eletrônicos de comunicação de massa - é uma poderosa arma política.

O uso que se faz do teatro nas sociedades totalitárias de todos os tipos é um fenômeno largamente notado e debatido em nosso tempo e, efetivamente, a relutância verificada no passado, e durante longo período, do governo britânico em subsidiar algo que se assemelhasse a um Teatro Nacional foi freqüentemente justificado com o argumento de que se o governo, a qualquer momento dado, estivesse pagando as contas, haveria o perigo de o drama vir a ser censurado, influenciado ou usado como instrumento de propaganda da linha política do partido que estivesse no poder.

A criação de uma entidade como o Conselho Das Artes na Grã-Bretanha, que serve como uma espécie de elo de ligação entre o governo e os teatros, teve sempre o objetivo de evitar exatamente esse tipo de perigo.

No entanto, estou convencido de que o poder do drama como instrumento de propaganda política direta é superestimado. Podemos dizer isto em outras palavras afirmando que todos aqueles que procuram um drama politicamente engajado para apoiar suas próprias causas superestimam o efeito de propaganda a curto prazo do teatro.

Por quê? Por causa da natureza peculiar do drama como instrumento de conhecimento, percepção, reflexão e compreensão da sociedade, de sua concretividade e do fato de o drama jamais chegar a fazer afirmações ostensivas, pelo fato de ser sempre, por sua própria natureza, uma experiência que traz em si mesma um mecanismo próprio de controle, suas próprias verificações.

Permitam-me explicar o que estou querendo dizer, delineando um caso hipotético. Durante o debate a respeito de algum problema fundamental, qual seja a abolição da pena de morte, um dramaturgo pode querer escrever uma obra forte contra o enforcamento. Ele poderá então criar uma história a respeito de um assassinato, na qual a vítima é tão culpada quanto o assassino: vamos admitir que uma pessoa que esteja sendo chantageada tenha matado o indivíduo que a atormenta em um momento de descontrole emocional.

O dramaturgo passará então a mostrar a agonia do condenado durante e após o julgamento etc. Ele ficará tentado, a fim de alcançar seu objetivo perfeitamente louvável, a fazer o caso pesar ao máximo contra a pena de morte e a favor do condenado. Se assim ele fizer, os que apóiam a pena de morte passarão por vilões horrendos, sedentos de punição e vingança.

Porém, ao ceder a essa tentação, o efeito alcançado pela peça que o autor escrever será muito diverso daquele que pretendia, já que seus personagens excessivamente malévolos parecerão falsos quando apresentados no palco, e a platéia não ficará persuadida da validade de sua argumentação.

É claro que se o dramaturgo em questão for realmente bom, ele não cederá à tentação; não será capaz de ceder a ela simplesmente porque um bom autor dramático ao escrever uma peça tem de vivenciar todos os sentimentos de cada um de seus personagens por dentro, por mais que desaprove suas posições e comportamento - como podemos ver no Ricardo III, de Shakespeare.

Desse modo, ele será forçado a mostrar que o juiz que baixa a sentença também sofre toda espécie de agonia em sua mente, será obrigado a presentar argumento em favor da punição de seu protagonista de maneira tão isenta e consistente quanto o argumento contra essa punição. É possível que seja forçado a nos mostrar o sofrimento da família da vítima do assassinato, as conseqüências que a não punição de um assassino poderá ter sobre assassinos potenciais, e assim por diante.

Se ele for um bom dramaturgo, ele ainda assim conseguirá apresentar sua posição contra a pena capital; porém não lhe será possível impedir que ao menos alguns membros da platéia vejam igualmente o reverso da medalha. Em última análise, o efeito irá depender não tanto da intenção manifesta do autor quanto da qualidade da peça como drama.

Se a peça for aceita pelo consenso do público como uma retratação convincente da situação, que sempre terá dois lados pelos quais poderá ser encarada, ela poderá ter um efeito profundo, porém a longo prazo, por permanecer na mente dos espectadores e gradativamente levá-los a compreender a complexidade da situação retratada. E tal efeito a longo prazo poderá ser bastante diverso do desejado em termos imediatos.

Não pode haver muita dúvida, por exemplo, de que ao escrever O mercador de Veneza, Shakespeare desejava que o personagem Shylock fosse considerado um usuário odioso, detestável. Mas pelo fato de Shakespeare ter sido o grande dramaturgo que foi, ele conseguiu colocar-se imaginativamente na mente do avarento judeu e apresentar suas motivações: por isso ele fez Shylock sofrer por causa do ódio e da injustiça com que eram tratados os judeus, dando-lhe algumas falas magníficas que nos tornam conscientes dessas motivações.

Como resultado disso, muitos espetáculos contemporâneos da peça provocam tanta simpatia para com a posição de Shylock quanto revolta contra a sua avareza. O que pode ter começado como propaganda anti-semita transformou-se em fonte de simpatia em relação a uma minoria racial. Tomemos outra peça de Shakespeare, Noite de reis.

O personagem de Malvolio é claramente concebido como um ataque à estreiteza dos pontos de vista e à hipocrisia dos puritanos. Mas quando chega a hora, o sofrimento do personagem - cuja desmoralização supostamente nos deveria alegrar - é concreto, convincente e comoventemente sentido por Malvolio (e claramente também pela imaginação do autor).

Conseqüentemente, em muitas apresentações dessa peça, tenho sentido grande pena e até mesmo considerável simpatia por aquela pobre e frustrada vítima de uma brincadeira de mau gosto, à qual Malvolio é submetido por pessoas arrogantes que julgam que por lhe serem socialmente superiores tinham o direito de fazer um inferior passar por qualquer tipo de indignidade que lhes aprouvesse, com o único intuito de dar boas gargalhadas.

Quanto mais completamente um dramaturgo imagina uma situação e os personagens que a vivem, mais perto a peça chegará da complexidade e ambivalência da vida real. Isso não quer dizer que uma peça, seja ela ou não ostensivamente política, não terá efeitos políticos. Na verdade, autores como Ibsen e Shaw fizeram grandes contribuições para o advento de mudanças sociais e por isso mesmo, em última instância, políticas.

Ibsen foi uma influência importantíssima na abertura dos debates a respeito da posição da mulher na sociedade e fez, ao que me parece, uma contribuição determinante para as mudanças que se iniciaraqm com o sufrágio feminino e que ainda continuam a processar-se hoje em dia com o rótulo de movimento de libertação da mulher.

Nora, em A casa de boneca, iniciou o debate sobre a posição da mulher no casamento vitoriano; a Sra. Alving, em Espectros, chamou a atenção para a diversidade de critérios de moralidade para homens e mulheres; e Hedda Gabler, em última análise, constitui um apelo no sentido de se permitir às mulheres desenvolverem sua criatividade.

A apresentação brilhante e divertida que Shaw faz de seus pontos de vista socialistas contribuiu consideravelmente para a ascensão de um pensamento de esquerda na Grã-Bretanha e em outros países, quer tratase ele de problemas sociais específicos como o dos pardieiros de Casas de viúvos, quer da prostituição em A profissão da senhora Warren, quer de idéias políticas em geral, como em Homem e superhomem.

No entanto, ao examinarmos tanto as peças de Ibsen quanto as de Shaw, notaremos quão surpreendentemente isentas - apesar de suas intenções políticas - elas são na apresentação de sua problemática: quantas vezes, em Major Bárbara, os argumentos em favor do mundo dos negócios são apresentados de maneira tão forte e atraente quanto os que o são contra ele; ou, até mesmo em Santa Joana, como nos surpreende a inteligência com que é defendido o ponto de vista da acusação durante o julgamento de Joana.

Bertolt Brecht, um dos dramaturgos de nosso tempo mais profunda e apaixonadamente engajados politicamente, sempre se recusou a tornar sua mensagem excessivamente explícita porque sabia, tanto instintiva quanto conscientemente, que o que importa é a proposição do problema ser feita de modo a compelir a platéia a pensar por si mesma, e não tentar enfiar-lhe alguma espécie de mensagem quase que a marteladas dentro da cabeça.

Em seu Galileu, a argumentação da Igreja Católica Romana em favor do cerceamento da pesquisa científica livre (posição que Brecht, pessoalmente, não só rejeitava como também abominava) é apresentada com tremenda força, inteligência e persuasão, simplesmente porque de outro modo a defesa da pesquisa científica livre teria sido enfraquecida porque pareceria menos inteligente, menos convincente do que realmente é.

Quando estava ensaiando a peça na Alemanha Oriental, pouco antes de sua morte, Brecht argumentou com tamanha paixão para conseguir com que seus atores propusessem corretamente o ponto de vista da Igreja com total e absoluta convicção, que repentinamente ele parou, deu um sorriso e comentou: "Parece que eu sou a única pessoa neste país que ainda argumenta em favor do Papa".
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Texto extraído - e aqui reduzido - do livro Uma anatomia do drama, Zahar Editores, tradução de Barbara Heliodora. O livro foi lançado no Brasil em 1978, tendo sido escrito em 1976, e constitiu leitura obrigatória para os amantes do teatro.