quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Um teatro em transformação
                                                                    
                                                                                                                      Alvaro de Sá


            “(...) O teatro atual não passa de rotina e convenção. Quando sobe o pano e esses grandes sacerdotes da sagrada arte iluminados pela luz artificial imitam entre três paredes como as pessoas bebem, comem, amam, caminham, envergam seus casacos; quando dessas cenas vulgares tentam arrancar uma moral - uma moral ao alcance de todos, superficial, destinada ao uso doméstico; quando apresentam em mil variantes sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo - então eu fujo”. Ao colocar essas palavras na boca de Treplev em A gaivota, Tchecov pareceu ter sintetizado as opiniões dos grandes artistas que transformaram radicalmente o teatro europeu no século XIX.
        
Uma das questões que mais nos chamam a atenção ao observarmos esse momento histórico é a constante busca da renovação, baseada principalmente na discussão sobre a verdade e a natureza. Desde 1827 Victor Hugo já havia escrito no seu Prefácio a Cromwell que “O teatro é um ponto de ótica. Tudo o que existe no mundo, na História, na vida, no homem, tudo pode aí refletir-se”. E ao delimitar a essência do drama romântico, afirma: “A natureza, pois! A natureza e a verdade”. 

Busca
        
Um teatro que deve refletir a natureza e a verdade singular do homem, das sociedades. Um teatro que a partir do século XIX busca a verdade singular contra a verdade geral, fugindo da rotina e do convencional. Não é em vão que muitos estudiosos afirmam que as bases do realismo e do naturalismo já estariam contidas na prática teatral do romantismo.

Somada a essa busca da verdade e da natureza, também devemos ponderar que o advento da sociedade capitalista deve ser levada em consideração para entendermos as transformações ocorridas nos palcos europeus. A base do sistema capitalista está centrada na acumulação do capital. Essa acumulação está centrada na produção em série. Por trás dessa produção em série se esconde a aceleração do tempo. A aceleração do tempo só foi possível graças à introdução no processo industrial de uma série de máquinas e engenhos técnico-científicos. O tempo se acelera e passa a valer dinheiro.
        
Todas essas máquinas que aceleraram o tempo foram desenvolvidas a partir de um método de pesquisa científico: o método de pesquisa experimental. Essa metodologia científica foi amplamente utilizada por todos os grandes artistas europeus a partir da segunda metade do século XIX. Emile Zola, no seu livro O romance experimental e o naturalismo no teatro - escrito em 1880 - comenta essa influência: “Um dia, imaginou um cientista, antes de concluir, querer experimentar. Abandonou as pretensas verdades adquiridas, retornou às causas primeiras, ao estudo dos corpos, à observação dos fatos. Como a criança que vai à escola, consentiu em fazer-se humilde, em soletrar a natureza, antes de lê-la corretamente. Era uma revolução”.
        
Cidadela
        
Mas Zola se refere ao teatro da sua época nesses termos: “O teatro sempre foi a última cidadela da convenção”. E ao afirmar a modernidade das pesquisas do naturalismo teatral, comenta: “O naturalismo é o retorno à natureza e ao homem. Eis, portanto, as duas fórmulas em presença: a fórmula naturalista, que faz do teatro o estudo e a pintura da vida; e a fórmula convencional, que dele faz um puro divertimento de espírito”. Sob esse aspecto, podemos notar que a busca da verdade e da natureza no teatro, visto como estudo e pintura da vida, norteou as pesquisas dos primeiros grandes encenadores teatrais do século XIX e do início do século XX.
        
Dentro desse panorama teatral que se transforma velozmente e absorve o método de pesquisa experimental herdado dos cientistas, devemos levar em consideração o trabalho pioneiro da companhia alemã dos Meiningers. A cia. foi criada em 1870 pelo duque Jorge II de Saxe-Meiningen, e dentre as premissas básicas da criação dos espetáculos, se destacava a busca de um ensemble artístico. Jorge II enxergava uma representação teatral como um quadro em que todos os elementos deviam  funcionar harmoniosamente. Todos os detalhes eram estudados milimetricamente, desde a interpretação mais subjetiva dos personagens, até a cenografia, figurinos e adereços que materializavam no palco o momento histórico onde a trama se desenrolava. Enfim, uma representação calcada em um realismo histórico.
        
Impacto
        
O impacto das representações da companhia foi imenso em toda a Europa devido a uma turnê realizada em 1885 por 10 países e 18 cidades européias. Tanto Antoine (considerado o primeiro encenador moderno) quanto Stanislavski declararam que foram influenciados pela estética dos Meiningers.
        
No ano de 1887 - portanto dois anos após a viagem da cia. pela Europa - um fato relevante para a história do teatro europeu ocorre em Paris. Antoine inaugura o Théâtre Libre, um teatro que segundo ele devia se libertar de todas as rotinas e convenções ultrapassadas de interpretação. Um palco que se transformou em um quadro concreto e físico, no qual os personagens são produtos do meio social em que vivem. Um teatro laboratório em que se experimentavam os mais diversos modos de se fazer o “estudo e a pintura da vida”.
        
Modernidade
        
O pesquisador Francês Jean-Jacques Roubine comenta na Linguagem da encenação teatral essa modernidade: “Se Antoine é moderno na sua concepção e na sua prática do teatro, ele não o é tanto por adotar como referência a verdade de um modelo que trataria de captar e reproduzir (...); o aspecto moderno de Antoine reside sobretudo na sua denúncia de todas as convenções forjadas e depois usadas - como se usa uma roupa - por gerações de atores formados dentro de uma retórica do palco”.
        
O encenador inaugura uma nova época para o teatro ocidental com suas pesquisas em torno da busca de um palco transformado em um espaço concreto, físico, com objetos reais, tridimensionais, que obrigam os atores a representar de outra maneira. No entanto, Antoine se referia ao palco francês da seguinte forma: “Entre os muitos defeitos do teatro francês existe um que me parece ser o mais grave e o mais sério: a falta absoluta de um conjunto no espetáculo. Nenhum teatro parisiense apresenta uma harmonia no conjunto e na interpretação da obra. Dois ou três ‘grandes’ atores ou atrizes carregam seu prestígio em prol da obra, e os demais atores existem unicamente para ajudá-los, tapar os buracos ou dar as réplicas”. Mas Roubine também se refere à estética do Théatre Libre assim: “A obra de Antoine talvez corresponda, no teatro, à concretização do sonho do capitalismo industrial: a conquista do mundo real. Conquista científica, conquista colonial, conquista estética...”

Influência
        
Se a influência dos Meiningers foi decisiva para Antoine, o mesmo podemos observar em relação a Stanislavski. Ele comenta as apresentações que viu da cia. no seu livro Minha vida na arte: “Veio dar representações em Moscou a célebre companhia do duque de Meiningen, cujo diretor era Chronek. Trazia-nos eles uma nova forma de mise-en-scène que abrangia a exatidão histórica, movimentos de multidões, ótima representação de espetáculo, disciplina impecável. Era, em suma, um admirável conjunto artístico, organizado com a máxima perfeição. Não faltei a nenhuma das representações. Ia ao teatro não só para ver, como para estudar”.
        
Parece que a influência dos Meiningers realmente se desdobrou em vários aspectos que marcaram a estética do Teatro de Arte de Moscou desde a sua inauguração. Stanislavski faz o seguinte comentário acerca da companhia alemã: “O que eu mais apreciava , nos Meiningers, era a encenação, que tão bem revelava o sentido profundo das obras. Jamais me esquecerei dos favores que lhes devo”. Sob esse ponto de vista, podemos compreender a visão de Stanislavski sobre a cena russa: “Olho com pessimismo o teatro desse fim de século, onde as tradições do passado, degenerando em rotina, se reduzem a mera habilidade técnica (...) O teatro anda nas mãos de empresários de cafés- cantantes ou de simples burocratas. Nessas condições, como contar com a renovação da arte teatral?”
        
Protesto
        
Parece que esse questionamento sobre a renovação da cena teatral russa impeliu Stanislavski a se unir a Dantchenko e criar o Teatro de Arte de Moscou, buscando assim protestar “contra a forma de se atuar no palco, contra a teatralidade e o pathos afetado, a declamação e a representação exageradas, o sistema de estrelato que arruinava o conjunto, contra o modo como as peças eram escritas, contra a insignificância dos repertórios. A fim de rejuvenescer a arte, declaramos guerra contra todos os convencionalismos do teatro: no desempenho, direção, cenário, figurinos, entendimento das peças”.
        
Sob essa ótica o Teatro de Arte de Moscou abriu as suas portas em outubro de 1898. A peça de estréia foi o Tzar Fiodor, de Leon Tolstoi, encenada dentro dos princípios do realismo histórico. O historiador Jacó Guinsburg definiu essa estética realista da seguinte forma no seu livro Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou: “Era uma linguagem cênica que procurava presentificar de pronto o universo-objeto, ou sua sugestão, por encantação plástica projetada como real (...) A verdade histórica foi levada à entonação, à dicção e a maquiagem obedeceu ao ditame da naturalidade, lei suprema da encenação Stanislavskiana”.
        
Consagração
        
A estréia do Tzar Fiodor foi muito bem acolhida pelo público e pela crítica, mas a apresentação da peça A gaivota, de Tchecov, em dezembro de 1898 - fechando a primeira temporada do TAM - consagrou definitivamente Stanislavski e Dantchenko. Stanislavski escreveu: “Não me lembro como representamos. O primeiro ato terminou. Houve um silêncio sepulcral. Uma das atrizes desmaiou no palco. Eu mesmo mal me agüentava em pé de desespero. De repente se ouviu um fragor na sala. As cortinas se abriram, e depois se fecharam de novo, mostrando ao público a nossa imobilidade assombrada e pasma”.
        
Se as lembranças da estréia de A gaivota mesclam pavor e assombro, o que viria a seguir mostraria aos participantes do Teatro de Arte de Moscou que eles haviam iniciado uma nova fase para o teatro russo. Em janeiro de 1899 saía uma crítica no periódico Novoie Vremia, que afirmava: “A gaivota não pode deixar de divisar um futuro melhor não só para o Teatro de Arte de Moscou, mas para todo o palco russo”. Uma análise profética que bem soube compreender o divisor de águas que se estabeleceu a partir do momento em que a obra  foi encenada, segundo as pesquisas realizadas por Stanislavski, no sentido de quebrar toda a rotina e as convenções ultrapassadas no teatro. Não só a cena russa se modificou, mas todo o teatro europeu se transformou a partir do final do século XIX.

Talento
        
O ator que representou o personagem Treplev na primeira montagem da peça se chamava Vsevolod Meyerhold. Segundo Dantchenko, ele era um dos jovens atores de maior talento daquela época. Posteriormente ele abandona o TAM e funda a sua própria companhia, questionando o realismo histórico das montagens de Stanislavski.  Meyerhold também é considerado um dos encenadores modernos de extrema importância na história do teatro europeu.
        
Se as palavras de Treplev sintetizaram as idéias dos grandes artistas que renovaram os caminhos do teatro no século XX , as palavras de Meyerhold parecem sintetizar a postura desses grandes criadores da era da encenação: “A vida de todo artista autêntico é sempre a de um homem constantemente dilacerado pela insatisfação de si mesmo. Somente os amadores estão sempre satisfeitos e não se atormentam. O profissional está sempre cheio de exigências. Ignora a auto-suficiência. A vida de um artista tem a alegria de um só dia, quando ele coloca a última pincelada na tela, e tem a dor de muitos outros dias, quando percebe seus erros”.
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Artigo publicado na revista Cadernos de Teatro nº 166. Álvaro de Sá é professor de Estética dos Encenadores na CAL

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