quarta-feira, 29 de maio de 2013

A relação ator-público na improvisação como espetáculo


Mariana Muniz


          No século XX, com a profusão de processos de criação cênica que privilegiaram o diálogo entre as funções artísticas de um espetáculo, a improvisação reconquistou seu espaço tornando-se ferramenta fundamental na construção da cena contemporânea. Os processos de criação coletiva e/ou colaborativos têm na improvisação o lugar de experimentação, um laboratório onde se testam os caminhos a seguir.

          Quando falamos do ensino do teatro como conteúdo específico no ensino regulamentar é fácil associá-lo à prática da improvisação nos jogos teatrais propostos por Spolin. A improvisação, neste caso, seria a via de entrada e aprofundamento na linguagem teatral tanto em sua experimentação como jogador/ator, quanto em sua fruição e reflexão como público. Para Spolin a essência do fazer teatral se concentra na relação entre ator e platéia.

          “Quando se compreende o papel da platéia o ator adquire liberdade e relaxamento completo. (...) Quando a platéia é entendida como sendo uma parte orgânica da experiência teatral, o aluno-ator ganha um sentido de responsabilidade para com ela que não tem nenhuma tensão nervosa. A quarta parede desaparece, e o observador solitário torna-se parte do jogo, parte da experiência e é bem recebido!”1

          Há outra vertente do trabalho de improvisação que, à comparação das citadas anteriormente, é pouco conhecida no Brasil: a improvisação como espetáculo. Este conceito se remete às formas teatrais nas quais os atores criam em presença do público uma dramaturgia do instante. Este tipo de improvisação tem como principal referente histórico a Commedia dell´arte, ainda que muitos autores questionem sua existência neste período. Segundo Marinis:

          “Em definitivo, o único nível do espetáculo desta arte que não estava completamente fixado era aquele relativo à superfície verbal, sobre a qual os comediantes exerciam seu domínio por completo: no entanto, tampouco este tecido verbal, ainda que bem composto (ou seja, reunido) de maneira improvisada, era realmente improvisado, no sentido de ser inventado no momento de sua execução, já que derivava de uma enorme literatura sobre os distintos papéis.”2

          O questionamento proposto por Marinis nos permite redimensionar o próprio conceito de improvisação. Se pensarmos a improvisação como “técnica do ator que interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e 'inventado' no calor da ação.”3, segundo Pavis, realmente o termo não se aplicaria confortavelmente ao grau de preparação exigido pelos cômicos dell´arte. Entretanto, o próprio Pavis amplia esta definição:

          “Há muitos graus na improvisação: a invenção a partir de um canevas conhecido e muito preciso (assim, na Commedia dell`arte), o jogo dramático a partir de um tema ou de uma senha, a invenção gestual e verbal total sem modelo na expressão corporal, a desconstrução verbal e a pesquisa de uma nova “linguagem física” (ARTAUD)”

          Sendo assim, estabeleceríamos um diálogo intenso entre improvisação e preparação prévia, ou seja, a improvisação derivaria de um grau de aperfeiçoamento técnico do ator advindo de um treinamento específico. Aceitaríamos a hipótese de que, na Commedia dell´arte, a improvisação se aproximou mais de um jogo de variações do que da invenção espontânea de textos ou partituras corporais.

No entanto, se pensamos que este jogo de variações se encontra fortemente determinado pelo público, espaço cênico e
estruturas dramatúrgicas, podemos admitir que a improvisação na Commedia dell´arte foi uma prática constante, ainda que tenhamos que desmistificar todo o romantismo ao qual está comumente associada. Segundo Dario Fo, “a partir de seqüências como essa (refere-se a um canevas) é possível fazer no mínimo dez variações deslocando os tempos e progressão. E os cômicos eram realmente mestres nesses gêneros de montagens.”4

           Após o século XVIII, a prática da improvisação cai no ostracismo sendo relegada aos jogos em sociedade, ao circo, ao cabaré e ao teatro de feira. No final do século XIX, encontramos duas referências fundamentais à retomada da improvisação como espetáculo na contemporaneidade: J.L. Moreno, com a criação do Teatro da Espontaneidade e J. Copeau com seu projeto, jamais realizado, da Nova Comédia Improvisada.

Sem entrar em detalhes, devido à extensão desta comunicação, e minimizando as diferenças entre estas duas propostas, podemos afirmar que ambas recuperam o papel do ator como criador de uma dramaturgia efêmera compartilhada e influenciada pelo público. Assim, o ator sairia de sua condição de intérprete de palavras alheias e enfrentaria o desafio, em cumplicidade com o público, da criação instantânea. Este caminho será aprofundado pelas vanguardas históricas (principalmente pelo surrealismo) com a escrita automática, e outros procedimentos, que pretenderam que o fazer artístico não experimentasse uma diferença temporal entre criação e fruição.

           Com o advento das experiências do happening, a improvisação diante de um público retoma um lugar entre as variedades de práticas teatrais na contemporaneidade. Entretanto, a procura de uma construção dramatúrgica improvisada da cena teatral, com a existência de um conflito e de uma possível unidade de ação, só adquire força nas experimentações de Keith Johnstone frente a seu grupo The Machine nos anos sessenta na Inglaterra. Esta prática se consistiu do desafio de criar histórias e encená-las diante de um público a partir de premissas técnicas e sem a presença de elementos verbais ou corporais pré-estabelecidos e acabou por desenvolver uma técnica de improvisação que é referência fundamental aos improvisadores de hoje.

          A partir desta experiência com o The Machine, Johnstone criou o Theatre Sports, uma forma híbrida entre teatro e esporte que consiste na separação dos atores em times e na realização de histórias frente ao público a partir de desafios que um time lança ao seu adversário. A boa ou má execução do desafio é determinada pelo juiz a partir das premissas técnicas desenvolvidas por Johnstone.

          O Theatre Sports começa a ser praticado em vários países no ocidente e finalmente chega ao Canadá onde passará por uma grande reformulação que dará origem, nos anos setenta, ao Match de Improvisação, jogo de improvisação no qual dois times se enfrentam através de regras específicas arbitradas por um juiz e cujo resultado final quem decide é o público através de votação. O Match de Improvisação ganha projeção internacional e, juntamente com ele, vão surgindo vários outros formatos de espetáculos improvisados esportivos, ou seja, centrados na competição. O mais recente deles é o Catch de Impro, criado nos anos 2000, que consiste na competição entre vários jogadores individuais. Cada jogador tem seu objetivo e um personagem-tipo bem característico. Eles devem, juntos, realizar um espetáculo de 1 hora de duração e vence o jogador que o público considerar que alcançou seu objetivo.

          Com a grande profusão de espetáculos improvisados nas ultimas três décadas e com o caloroso recebimento que o público costuma conceder-lhes, entramos no âmago da nossa questão: a improvisação permitiria um contato mais direto com o público por estabelecer uma relação de cumplicidade e transformá-lo em co-criador da cena teatral?

           Peter Brook, descrevendo sua viagem à África5, diz que, ao se tratar com um público tão novo e desconhecido como o africano, não há como contar com elementos prévios, o abismo cultural é grande demais para tentar se assegurar através de estruturas pré-concebidas. Portanto, para ele, a improvisação foi a única escolha possível. Estamos falando de um grau de improvisação mais arriscado do que o atribuído à Commedia dell´arte, pois, supostamente, se trataria de improvisar a partir do nada. Digo supostamente, pois, a partir da leitura do relato da experiência de Brook e de minha experiência como improvisadora e como público de espetáculos de improvisação em vários países, pude observar que sempre há um “algo” do qual partir em uma improvisação. Este “algo” reside em três focos principais e essenciais ao fazer teatral: o ator, o público e o espaço. Os estímulos nos quais começamos a fundamentar nossa improvisação, supostamente a partir do “nada”, se encontram em um destes focos e cabe aos improvisadores serem capazes de escutá-los e desenvolvê-los.

          Esta capacidade de escuta e de manejo dos estímulos depende da destreza técnica do improvisador, o que mais uma vez aproxima a improvisação do rigor e do preparo. O ator deve ser capaz de entrar em um estado de cumplicidade absoluta com o público e com o espaço, fazendo-os partícipes da criação teatral. No caso da sua relação com o público, se o ator o convida a ser seu cúmplice, conquista sua confiança e pode arriscar, errar, fracassar quantas vezes forem necessárias.

          O público, no teatro improvisado, principalmente em formas mais populares como o mamulengo, é praticamente o dono da história, dando sugestões, títulos e possíveis caminhos pelos quais os atores podem seguir. No Teatro Fórum de Boal, por exemplo, a participação do público vai ao extremo da diluição dos papéis entre ator e espectador, criando o “espectator” que pode interferir diretamente na cena, substituindo o ator e mostrando como ele considera que a dramaturgia deve ser construída.

          Nos espetáculos de improvisação aqui descritos anteriormente, o público vota, decide qual é o time de jogadores que melhor realizou cada improvisação, determinando o resultado final de cada jogo. Talvez esta “chamada à cumplicidade” seja o grande atrativo de um público que quer ser envolvido no processo de criação artística e sair do lugar de mero receptor de uma mensagem programada e repetida a cada espetáculo. Hans-Gorg Gadamer centra no juízo do receptor o parâmetro para o estabelecimento de conceitos como originalidade, identidade e qualidade da obra artística. Segundo o filósofo:

          “(...) uma improvisação ao órgão que seja boa adquirirá por si mesma uma identidade indiscutível, ainda que não se repita nunca mais, essa identidade se refletirá no juízo do ouvinte. É ele quem diz se foi boa ou não, e caso seja boa, o ouvinte a qualificará de criação original.”6

          Pensando nestes termos, talvez o púbico contemporâneo, ou boa parte dele, esteja disposto a abrir mão do acabamento dramatúrgico de uma cena ou de sua perfeita execução, admitindo a precariedade de uma dramaturgia criada no instante em consonância com os atores. Essa atitude de co-criador da ficção teatral, podendo alterar o curso da ação realizada no palco, pode levá-lo, como afirma Boal em seu Teatro do Oprimido, a assumir um lugar de cidadão ativo na sociedade e não mero espectador dos acontecimentos que determinam sua vida social.

BIBLIOGRAFIA:

BROOK, P. Más allá del espacio vacío. Barcelona: Alba Editorial, 2003.

FO, D. Manual Mínimo do ator. São Paulo: Ed. Senac, 2004.

GADAMER, Hans-Gorg. Acotaciones hermenéuticas. Madrid: Editorial Trotta, 2002

SPOLIN, v. A improvisação para o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.

PAVIS, P. Dicionário de teatro.São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.

MARINIS, M. Compreender el teatro: lineamientos de una nueva teatrologia. Buenos Aires: Ed. Galerna, 1993.

MUNIZ, M. La improvisación como espectáculo principales experiencias y técnicas aplicadas a la formación del actor-improvisador.Tesis doctoral inédita. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, Janeiro de 2005.

NOTAS:

1 SPOLIN, v. A improvisação para o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. Pg. 11-2

2 MARINIS, M. Compreender el teatro: lineamientos de una nueva teatrologia. Buenos Aires: Ed. Galerna, 1993.

(tradução do espanhol feita pela autora). Pg. 128.

3 PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. Pg. 205.

4 FO, D. Manual Mínimo do ator. São Paulo: Ed. Sena, 2004. Pg. 18.

5 BROOK, P. Más allá del espacio vacío. Barcelona: Alba Editorial, 2003.

6 GADAMER, Hans-Gorg. Acotaciones hermenéuticas. Madrid: Editorial Trotta, 2002. Pg. 195

Mariana Muniz é Diretora teatral; Professora da Graduação em Teatro e da Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG. Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Horto - Rua Pitangui, 3613 - Bairro Horto - Belo Horizonte - MG

Tel: 31 3481.5580 - portalprimeirosinal@gmail.com

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terça-feira, 28 de maio de 2013

VOLTAIRE
(1694-1778)

"O repouso é uma boa coisa mas o tédio é seu irmão."

"Acontece com os livros o mesmo que com os homens, um pequeno grupo, desempenha um grande papel."

"A originalidade não é mais do que uma imitação criteriosa."

"Todo o homem é culpado do bem que não fez."

"Existirá alguém tão esperto que aprenda pela experiência dos outros ?"

"Uma discussão prolongada significa que ambas as partes estão erradas."

"É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente."

"Sufoca-se o espírito da criança com conhecimentos inúteis."

"Se queres conversar comigo, define primeiro os termos que usas."

"Nem sempre podemos agradar, mas podemos falar sempre agradavelmente."

"Aquilo a que chamamos acaso não é, não pode deixar de ser, senão a causa ignorada de um efeito conhecido."

"O homem nasceu para a ação, tal como o fogo tende para cima e a pedra para baixo."

"Não será uma vergonha que os fanáticos sejam zelosos e que os sábios se desmazelem ?"

"Todas as riquezas do mundo não valem um bom amigo."

"O ouvido é o caminho do coração."

"Não é o amor que se deveria pintar de olhos vendados, mas sim o amor-próprio."

"O desespero ganha muitas vezes batalhas."

"Não prestamos para nada se só formos bons para nós próprios."

"Um dia tudo será excelente, eis a nossa esperança; hoje tudo corre pelo melhor, eis a nossa ilusão."

"O interesse que tenho em acreditar numa coisa não é prova da existência dessa coisa."

"O maior problema e o único que nos deve preocupar é vivermos felizes."

"Que grande peso é um nome demasiado famoso."

"As grandes coisas são muitas vezes mais fáceis do que aquilo que se pensa."

"Ensina-se os homens a serem honestos; sem isso, poucos chegariam a sê-lo."

"Mais vale arriscarmo-nos a salvar um culpado do que a condenar um inocente."

"Os leitores servem-se dos livros como os cidadãos dos homens. Não vivemos com todos os nossos contemporâneos, escolhemos alguns amigos."

"Se um livro é mau, nada o pode desculpar; sendo bom, nem todos os reis o conseguem esmagar."

"Aproximo-me suavemente do momento em que os filósofos e os imbecis têm o mesmo destino."

"A natureza faz troça dos indivíduos. Desde que a grande máquina do universo vá girando, os ínfimos seres que a habitam não lhe interessam para nada!"

"Quem pretende destruir as paixões, em vez de as regular, quer fingir-se inocente."

"As paixões são os ventos que enfunam as velas dos barcos, elas fazem-nos naufragar, por vezes, mas sem elas, eles não poderiam singrar."

"Nunca deveis utilizar uma palavra nova, a não ser que ela tenha estas três qualidades: ser necessária, inteligível e sonora."

"Se o homem fosse perfeito, seria Deus."

"Não devemos avisar as pessoas do perigo que correm, salvo depois de ele ter passado."

"(...) esse monstro enorme a que se chama público, e que tem tantos ouvidos e tantas línguas, mas ao qual faltam os olhos."

"Feliz daquele que desfruta agradavelmente da sociedade! Mais feliz é quem não faz caso dela e a evita!"

"Deve-se consideração aos vivos; aos mortos apenas se deve a verdade."

"Gozai a vossa bela saúde; só é jovem quem passa bem."

"Confesso que o gênero humano não é tão mau como certas pessoas o apregoam na esperança de o governar."

"Todos os homens têm o seu instinto; e o instinto do homem, fortalecido pela razão, leva-o à sociedade, como à comida e à bebida."

"A espécie humana é a única que sabe que tem de morrer."

"O mais feliz passa por ser o maior, e o público atribui muitas vezes ao mérito todos os êxitos da sorte."

"Não é que o suicídio seja sempre uma loucura. (...) Mas, em geral, não é num acesso de razão que nos matamos."

"A superstição põe o mundo em chamas, a filosofia apaga-as."

"O segredo de aborrecer é dizer tudo."
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sexta-feira, 24 de maio de 2013

OFICINAS E CURSOS - MAIO/JUNHO 2013


À DISTÂNCIA

Curso de Lei Rouanet - da elaboração do projeto a captação de recursos

Carga horária: 9 horas/aula, disponível por um mês.

Investimento: R$300,00 (trezentos reais).

PRÓXIMA TURMA: a partir de 04 de junho

PRESENCIAIS - Rio de Janeiro

Oficina de Produção CULTURAL

Quartas das 18h às 20h

Carga horária: 40 horas/aula. 5 meses.

Investimento: R$300,00 (trezentos reais) mensal.

PRÓXIMA TURMA: início 05 de junho

Curso de Lei Rouanet - da elaboração do projeto a captação de recursos

Segunda, terça e quarta das 18h às 21h

Carga horária: 9 horas/aula - 3 aulas

Investimento: R$450,00 (quatrocentos e cinquenta reais).

PRÓXIMA TURMA: dias 27, 28 e 29 de maio

Prestação de Contas - PRESENCIAL

Terça das 18h às 21h

Carga horária: 3 horas/aula – 1 aula

Investimento: R$200,00 (duzentos reais).

PRÓXIMA TURMA: dias 04 de junho.

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Coordenação Graça Gomes - Especialista em Educação a Distância e graduada em Sistemas de Informação. Produtora cultural desde 1978, atua nos segmentos de teatro, dança, música, circo, artes visuais, edição de livros, bibliotecas e oficinas. Parecerista da Lei Rouanet em 2010, 2011 e 2012. Professora da pós-graduação “MBA em Dança” da Faculdade Inspirar em Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre desde 2011. Professora, desde 2006, em cursos de extensão, presenciais e à distância, em diversas cidades brasileiras. Treinamento coorporativo para empresas como FIRJAN, SESI/RJ, FINEP/RJ e FAMES/ES. Coordena o projeto Praça da Leitura desde 2002. Realizou projetos com artistas como Deborah Colker, Jorge Fernando, Bia Lessa, José Wilker, Ney Matogrosso, Zélia Duncan, Beth Carvalho, Joãozinho Trinta e Zelito Vianna, entre outros.

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Inscrições e informações no site www.alternativacultura.com.br

Contato: cursos@alternativacultura.com.br - 21 2556-0339 ou 21 8806-4312

Local das aulas:

Instituto Cultural Austregésilo de Athayde

Rua Cosme Velho, 599 - Cosme Velho - Rio de Janeiro
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quinta-feira, 23 de maio de 2013

Teatro/CRÍTICA

"Prazer"

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Belíssimo encontro de almas


Lionel Fischer



Dizem os sábios que todos os caminhos levam a Roma. Não sei se isso é verdade, pois a única vez que lá estive fui de avião. E também ignoro as aparentemente infinitas possibilidades de se chegar à capital italiana. Mas no que diz respeito ao teatro, a partir de meados do século passado vários caminhos vem sendo experimentados nos processos de ensaio. Um deles foi a chamada "criação coletiva", muito produtiva em alguns casos mas que não prescindia da figura do diretor, que era quem tomava as decisões capitais.

No caso da Cia. Luna Lunera, de Belo Horizonte, criada em 2001, a partir de 2003 o grupo adotou uma forma de trabalho criada por Antônio Araújo (Teatro da Vertigem, de São Paulo), que visa basicamente, como consta do ótimo release que me foi enviado pela assessora de imprensa Bianca Senna, "horizontalizar as relações na criação do espetáculo. Desta forma, os pilares direção-atuação-dramaturgia trabalham juntos na sala de ensaio, sem texto dramático prévio".

E foi o que ocorreu com a presente montagem, estruturada a partir de um fragmento do livro "Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector. Mas além de aplicar o, digamos, método criado por Antônio Araújo, a Cia. Luna Lunera também contou com a colaboração de Jô Bilac (orientação dramatúrgica), Éder Santos (videoartista), Roberta Carreri (atriz do Odin Teatret) e Mário Nascimento (bailarino e coreógrafo). 

Em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, "Prazer" tem concepção e dramaturgia da Cia. Luna Lunera e atuação e codireção de Claudio Dias (Camilo), Isabela Paes (Isadora), Marcelo Souza e Silva (Marcos) e Odilon Esteves (Ozório). Zé Walter Albinati também assina a codireção da montagem.

Como não li o original, desconheço o fragmento que deu origem ao espetáculo. Mas isso não me parece relevante, pois o que o grupo nos apresenta não necessita de uma referência explícita. Estamos diante de quatro amigos que, independentemente de possuírem personalidades diferentes e diferenciadas histórias pessoais, têm um objetivo comum: uma permanente busca de alegria e felicidade.

Mas, como todos sabemos, alegria e felicidade não são alvos tão fáceis de serem atingidos. Da mesma forma que é impossível levar um barco sem temporais, seria pueril acreditar numa existência destituída de medos, inseguranças, frustrações, desencontros e toda uma série de percalços inerentes ao ato de viver. Mas se acreditamos que a vida, em última instância, pode e deve ser uma dádiva, então é possível que consigamos ao menos nos aproximar das principais metas pretendidas. 

No caso de "Prazer", é evidente que existem personagens, cuja essência deve constar do já mencionado fragmento. Mas tenho a impressão de que os atores devem ter inserido muitas de suas características pessoais. Ao longo de toda a montagem, fui sendo cada vez mais tomado pela sensação de que ficção e realidade se mesclavam, tal a capacidade de entrega, absoluta sinceridade com que eram expostos os conflitos, a visceral contracena estabelecida. Posso estar enganado, naturalmente, mas saí do teatro plenamente convicto de que o que mais me cativou transcende a criatividade e expressividade do espetáculo, sem dúvida inegáveis.

O  essencial, ao menos para mim, foi constatar o desprezo pelas relações epidérmicas, e uma permanente busca por um encontro de almas, algo cada vez mais raro numa época como a nossa, em que  os avanços tecnológicos, teoricamente destinados a aproximar as pessoas, nada mais fazem do que conduzi-las sutilmente à mais absoluta solidão.

Com relação à equipe técnica, considero irrepreensíveis os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna e imperdível empreitada teatral - além dos colaboradores já mencionados, cabe destacar as participações de Mário Nascimento (preparação corporal), Ed Andrade (concepção ceonográfica), Marney Heitmann (figurinos) e Felipe Cosse e Juliano Coelho (Iluminação). Quanto à "participação afetiva" de Cláudia Corrêa, não sei exatamente como se deu. Sei apenas que afetos são sempre benvindos e indispensáveis.

PRAZER - Concepção e dramaturgia da Cia. Luna Lunera. Atuação e codireção de Cláudio Dias, Isabela Paes, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.   

      

  



quarta-feira, 22 de maio de 2013

Teatro/CRÍTICA

"Favela"

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A imperiosa necessidade de escolhas



Lionel Fischer



"Favela conta histórias de moradores comuns de uma comunidade. A senhora aposentada que passa o dia na janela observando a vida alheia; o pastor de uma igreja preocupado que sua única filha se misture com os outros jovens da favela; o casal que vive brigando e fazendo as pazes; a mãe solteira de vários filhos; o malandro mulherengo que não se entende com a mãe evangélica e, protagonizando a história, dois jovens primos que fazem escolhas opostas na vida: um entra para a faculdade de engenharia e outro para o tráfico de drogas. O grande mote do espetáculo é: a vida é feita de escolhas. O que você quer da vida? Que escolhas você fez? Onde elas te levaram? Que escolhas você fará?"

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima contextualiza o espaço onde transcorre a ação, explicita algumas das muitas relações que nele se estabelecem e, fundamentalmente, torna clara sua principal premissa: a questão das escolhas que fazemos. Apresentada pela primeira vez na FITA (Festa Internacional de Teatro de Angra dos Reis) no ano passado, a montagem cumpriu posterior temporada no Fashion Mall e agora está em cartaz no Teatro do Leblon (Sala Fernanda Montenegro).


Com texto assinado por Rômulo Rodrigues e direção a cargo de Márcio Vieira (também idealizador do projeto), "Favela" tem elenco formado por João Augusto Mathias, Rafael Zolly, Walace Fortunato, Helena Giffonni, Dja Marthins, Ana Berttines, Cinthia Andrade, Felipe Frazão, Michel Gomes, Rafael Julu, Carla Cristina, Kawane Weza, Gisele Castro, Claudia Leopoldo, Gabriel Chadan, Leandro Santana, Natalio Maria, Nilson Melo, Cridemar Aquino, Renata Tavares e Dilene Prado.

Como se sabe, o processo de pacificação das favelas vem contribuindo decisivamente para impedir que seus moradores continuem reféns do tráfico, ainda que este não tenha sido banido totalmente. Mas o que me parece fundamental destacar é que qualquer favela, dominada ou não pelo tráfico, é habitada por pessoas com as mesmas aspirações à felicidade do que aquelas nascidas em locais mais privilegiados. A diferença, cruel e perversa, reside no tocante às oportunidades de se construir um futuro digno - quem nasce numa favela tem que batalhar por sua vida infinitamente mais do alguém que tem muito mais acesso à cultura, que se veste e se alimenta melhor etc.

No entanto, a vida não é, não pode ser um jogo de cartas marcadas, onde todos os destinos já estariam previamente traçados. Mesmo enfrentando, como já foi dito, condições de vida não raro completamente adversas, ainda assim os moradores de comunidades carentes podem lutar - e estão lutando - para construir uma trajetória plena de realizações, e a realidade atual nos mostra que isto vem acontecendo em escala cada vez maior.

Com relação ao texto de Rômulo Rodrigues, parece-me que sua intenção não foi a de criar uma narrativa no sentido tradicional do termo, mas sim nos oferecer uma espécie de radiografia do dia a dia de uma comunidade carente, exibindo alguns conflitos ou momentos de alegria, revelando sonhos e frustrações etc. Neste sentido, a peça cumpre totalmente a premissa que lhe deu origem. Mas acredito que, se tivesse optado por um número menor de personagens, as questões fundamentais do texto poderiam ter sido mais aprofundadas. Ainda assim, Rômulo Rodrigues consegue criar alguns bons papéis e diálogos que prendem a atenção do espectador - mas sugiro que, em sua próxima empreitada teatral, enxugue o mais possível o texto e só escreva personagens que realmente contribuam para o desenvolvimento da ação.

No tocante ao espetáculo, este exibe passagens muito expressivas, tanto nas mais divertidas quanto naquelas em que a dramaticidade predomina. Mas há momentos um tanto "sujos", em termos de marcação, que poderiam ser melhor trabalhados - em algumas cenas de conjunto, por exemplo, alguns atores não são vistos ou então estão quase todos colocados num dos extremos do palco, assim causando uma sensação de desequilíbrio. 

Quanto ao numeroso elenco, seria literalmente impossível avaliar todas as atuações e até mesmo injusto, pois há papéis bem mais significativos do que outros e também diversificados graus de experiência. Assim, faço a opção de destacar a força do conjunto, a alegria que todos exibem de estar em cena, a coletiva capacidade de entrega. Caso permaneçam juntos, com o tempo algumas questões técnicas haverão de ser solucionadas e então todos estarão plenamente capacitados a exibir seus dotes interpretativos. 

Na equipe técnica, Derô Martin assina uma cenografia despojada, mas que atende às necessidades da montagem, sendo excelentes os figurinos de Caio Braga. Djalma Amaral responde por uma iluminação correta, a mesma correção presente na direção musical de Márcio Eduardo. Cabe ainda citar as importantes contribuições de Sueli Guerra (direção de corpo) e Pedro Lima (preparação vocal).

FAVELA - Texto de Rômulo Rodrigues. Direção de Márcio Vieira. Com grande elenco. Teatro do Leblon. Terça e quarta, 21h.

  



  

segunda-feira, 20 de maio de 2013


O ATOR NO TEATRO DE SOMBRAS - NA CHINA

Valmor Beltrame


Introdução


           O Teatro de Sombras é manifestação artística muito popular em diversas regiões do continente asiático. Para historiadores como Meher Contractor (1982), tudo iniciou na Índia, já para Max von Boehn (1972), o berço dessa tradição é a China. Cada um dos historiadores apresenta dados, silhuetas antigas, que datam de 2.500 anos e 3.000 anos atrás, que pertencem ao acervo de museus tentando comprovar que naquele período o teatro de sombras já era praticado nos dois países. Tamara V. Fielding (2002) afirma que na ilha de Java o teatro de sombras era popular há mil anos atrás. Estudos também confirmam a existência desta arte na Tailândia e Taiwan. Na Grécia e no norte africano, especialmente na África mediterrânea, existem amplos registros da existência do teatro de sombras, chegando finalmente a Europa ocidental a partir do século XVIII. A discussão sobre a geografia onde o teatro de sombras começou a ser praticado e ainda hoje se mantêm como expressão viva é importante na medida em que possibilita compreender as relações, conexões e diferenças existentes nas distintas formas como é realizado em cada região. No entanto, o objetivo deste estudo é compreender como se dá o trabalho do ator no teatro de sombras no Oriente.

           O Teatro de Sombras na China

 O Teatro de Sombras e o Teatro de Marionetes da China estão intimamente ligados ao teatro cantado de atores. Representam só um repertório e obedecem ao mesmo calendário. São realizados mais freqüentemente por apenas um manipulador, mas também são encontradas companhias formadas por muitos atores-animadores. Os marionetistas solistas são chamados de Mestres, porque guardam um pouco do prestígio que envolve os mágicos e outros artistas populares. Antigamente eram atores itinerantes que iam de cidade em cidade para a festa no templo local. Hoje, na maioria das cidades residem artistas que circulam pelas vilas próximas. Vale destacar dois aspectos interessantes do teatro de sombras na China: o princípio de recreação que estimula o contato com um mundo mágico e o aspecto educativo do mesmo.

           A lenda que conta o nascimento do teatro de sombras na China pode revelar aspectos interessantes para compreender a estética desta arte.

          O Imperador Wu Ti, da dinastia dos Han, teve o desgosto de perder sua dançarina predileta. Havia vinte anos que ele governava com sabedoria e juízo o Império Celeste e seu reinado era dos mais gloriosos de todos os tempos. Mas Wu Ti era muito supersticioso e acreditava nas artes mágicas. Quando a dançarina morreu, ele, no seu desespero, voltou-se para o mágico da corte, exigindo que fizesse voltar a linda defunta, do país das sombras. Ameaçado de pena de morte, o mágico não perdeu a cabeça... Numa pele de peixe, cuidadosamente preparada para torná-la macia e transparente, recortou a silhueta da dançarina, tão linda e graciosa como ela fora. Numa varanda do palácio imperial, mandou esticar uma cortina branca em frente a um campo aberto. Com o Imperador e a corte reunida na varanda, e à luz do sol que se filtrava através da cortina, ele fez evoluir à sombra da dançarina, ao som de uma flauta e todos ficaram alucinados com a semelhança. (Obry, SD:20)

          Alguns elementos contidos na lenda remetem a reflexões e permitem considerações como: quando diz "recortou a silhueta da dançarina tão linda e graciosa como ela fora" dá a referência da imagem real, da imagem cotidiana para a produção das silhuetas deste teatro. O "mágico marionetista" reproduziu a imagem da dançarina da forma mais fiel possível. A impressão é de que não ousou incluir qualquer detalhe que não reproduzisse a imagem da amada do Imperador. Isso se confirma quando fala da manipulação: "fez evoluir à sombra da dançarina... e todos ficaram alucinados com a semelhança." Ou seja, no teatro de sombras chinês, os movimentos da animação da personagem são selecionados para reproduzir os movimentos humanos no seu cotidiano. A expressão "semelhança" remete tanto a esta referência sobre o real como pode ter a conotação de "verdade", de convencimento, de movimento verossímil capaz de tornar crível que a imagem projetada era mesmo a da dançarina predileta do Imperador.

          É interessante perceber que certas referências do cotidiano são mais perceptíveis e presentes no teatro de sombras chinês do que noutras expressões do teatro de sombras do sudeste asiático, principalmente quando comparadas à Índia e Java. Isso se evidencia quando se tem como referência o teatro de sombras contemporâneo chinês. Segundo o marionetista e professor Qi Yongheng, da província de Habei - China, em curso ministrado na França em 1982 no Instituto Internacional da Marionete, o teatro do seu país se caracteriza por:

- dramaturgia cujos temas são a vida cotidiana, acontecimentos do dia a dia capazes de reforçar valores como amizade, solidariedade, respeito à autoridade, à natureza.

- o marionetista é valorizado por sua capacidade e destreza na manipulação das silhuetas, tornando-se virtuoso na medida em que reproduzir movimentos capazes de se assemelharem ao dos animais e seres humanos representados.

- As silhuetas, tanto em seus movimentos quanto nos seus traços de confecção são criadas partindo da observação do real, ou seja, obedecem proporcionalidades entre tamanho do corpo e membros.

- A partir de 1966, com a Revolução Cultural, passam a abandonar muitos dos recursos comumente utilizados no espetáculo adaptando-os a esta situação. Novos tipos de varas de manipulação e lâmpadas foram providenciadas, alterando a estética dos espetáculos. Os marionetistas solicitaram ao governo a produção de varas de acrílico para substituir as varas de bambu, freqüentemente utilizadas na manipulação das silhuetas. Estas novas varas garantiram a impossibilidade do público desvendar os mecanismos de articulação das silhuetas.

- Também passaram a usar lâmpada fluorescente, às vezes denominadas lâmpadas frias, abandonando as outras formas de iluminação. Estas lâmpadas exigem que a silhueta permaneça colada à tela para que aconteça a sua adequada projeção. Refletem exatamente o desenho, a forma da silhueta recortada. Os efeitos de deformação poética da imagem (ampliação e diminuição da imagem produzindo imagens fantásticas e irreais, deformadas, não acontecem quando esses recursos são utilizados). Com este tipo de lâmpadas as imagens mostradas ao público através da tela são exatamente as antecipadamente desenhadas e recortadas pelos marionetistas.

           No entanto, seria equivocado dizer que se trata de um teatro naturalista ou realista. É um teatro altamente estilizado, com movimentos e gestos cuidadosamente controlados, com figurinos e cores portando significados específicos. O teatro de sombras chinês é estilização, simbologia e inventividade. Não é realismo, mas economia de meios. O trabalho vocal do narrador, as distintas modulações da voz afastam o espetáculo da estética naturalista. Usam o seguinte princípio: para dizer algo de forma figurada não recorrem à forma abstrata. Mesclam, dosam, uma ação cotidiana com um som estilizado. Essa mistura torna essa arte distinta.


O Ator no Teatro de Sombras Chinês

          Tradicionalmente iniciava seu aprendizado aos 4 anos de idade, aprendendo com o pai ou membro da família. Era a formação por tradição, e o aprendizado se dava observando o trabalho do pai e obedecendo a execução de rigorosos exercícios para dominar a manipulação. O pai, ou parente, o Mestre ia desvendando os segredos da profissão ao aprendiz, até atingir maturidade para iniciar seu trabalho independente. Os princípios mais importantes a perseguir nesta etapa da formação eram: dominar a dramaturgia; aprender a confeccionar as marionetes; ser exímio manipulador. Para isso necessitava de longo período de aprendizagem, exigindo a realização de exercícios físicos diários, sobretudo dos dedos, pulsos e braços, mesmo não trabalhando diretamente no espetáculo.

          Um dos grandes desafios é manipular as silhuetas nas cenas de combate onde os guerreiros aparecem montados em cavalos totalmente articulados. É preciso habilidade para manipular 15 varetas e fios, simultaneamente, de forma sincronizada produzindo gestos e ações que impressionam pela beleza e veracidade. Em meados dos anos de 1970, com a criação das academias, o ensino não está restrito ao aprendizado na relação pai e filho. Hoje, crianças com tenra idade vão para a escola de marionetes e lá aprendem esta arte com reconhecidos professores.

Referências Bibliográficas:

BALBIR, Nicole. Les Marionnettes en Inde.In.: Les Marionnettes. Paris: Bordas, 1982.

BERNARD, Annie. Les Marionnettes Indonésiennes. In.: Les Marionnettes. Paris: Bordas, 1982.

BOEHN Max von. Puppets & Automata. New York: Dover Publications, 1972.

COLEMAN, Isabel y BRIAN , Rosamund, Teatro de Sombras Chinescas. París: Editorial Bouret, 1974.

BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. Rio de Janeiro: Funarte, 1987.

CHESNAIS, Jacques. Históire Générale des Marionnettes. Paris: Éditions D'aujourd'hui, 1980.

CONTRACTOR, Meher. O Teatro de Sombras na Índia. Mimeografado. 1982.

GUINSBURG, Jacó. Da cena em Cena. In.: Revista Urdimento. N.1 Florianópolis, 1997.

MARIONNETTES, spécial Théâtres d'Ombres. Revista da UNIMA França. N.77. Paris, setembro de 1982.

NICOLAS, Michéle. Karagoz: le théâtre d'ombres turc. Paris: Bordas, 1982.

OBRY, Olga. O Teatro na Escola. São Paulo: Melhoramentos, s.d..

PAVIS, Patrice. L'analyse des Spectacles; théâtre, mime,danse, danse-théâtre,cinéma. Paris: Nathan, 1996.

PIMPANEAU, Jacques. Les marionnettes en Chine. In.: Les Marionnettes, Paris: Bordas, 1982.

PRONKO, Leonard C.. Teatro: Leste & Oeste. São Paulo: Perspectiva, 1986.

VATSYAYAN, Kapila. Les Marionnettes Indiennes: tradition et renouveau. In: PUCK n.7 La Marionnette et les Autres Arts. Charleville-Mézières: Institut International de la Marionnette, 1994.
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Valmor Beltrame - Nini. Doutor em teatro e professor da UDESC







"Conspiração" sobre autoria das obras de Shakespeare é tema de debate na Flip


Norte-americano James Shapiro, autor de "Quem Escreveu Shakespeare?", participa de mesa sobre obra do dramaturgo.

Marco Tomazzoni , iG São Paulo
02/07/2012


          Há séculos um zunzum anima o meio literário: William Shakespeare não seria o autor de suas peças. Como são poucos os registros existentes da vida do autor britânico, as lacunas alimentaram as dúvidas de como o filho de um fabricante de luvas no interior da Inglaterra no século 16, teoricamente capaz de apenas soletrar seu nome, se transformaria no maior dramaturgo da história.

          E são justamente os anos da formação intelectual de Shakespeare, entre o casamento com Anne Hathaway (sim, o mesmo nome da atriz) no começo da década de 1580, aos 18 anos, e sua reaparição em Londres, em meados de 1590, já como aspirante a escritor, que permanecem desconhecidos. O passar do tempo só serviu de adubo para que teorias cada vez mais curiosas criassem raízes no imaginário popular e configurassem o ambiente de um mistério dos mais instigantes, que inspirou recentemente, inclusive, o filme Anônimo.

          É esse panorama que o norte-americano James Shapiro analisa em "Quem Escreveu Shakespeare" (editora Nossa Cultura), que será lançado na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip 2012 , que acontece entre 4 e 8 de julho. Professor da Columbia University, Shapiro é um dos maiores estudiosos da obra de William Shakespeare, alvo de outro de seus livros, "1599: Um ano na vida de William Shakespeare" (editora Planeta).

          Cético em relação às ideias conspiratórias relacionadas ao bardo – há até o boato de que professores são pagos para esconder informações a respeito da suposta verdade sobre Shakespeare –, Shapiro mergulhou nesse mundo obscuro e voltou à tona com um dossiê investigatório completo: em seu livro, compila os principais candidatos à autoria das peças, desmascara pistas falsas deixadas pelo caminho e oferece ao leitor os fatos comprovados do caso. É essa, segundo ele, sua religião.

          Hoje em dia, os principais, digamos, "concorrentes" de Shakespeare são Edward de Vere, o conde de Oxford, e sir Francis Bacon. Há também Christopher Marlowe que, mesmo morto em 1604, antes da publicação de peças importantes como Macbeth e Rei Lear ainda é considerado no páreo – conforme seus defensores, o dramaturgo que inspirou Shakespeare teria simulado sua morte e continuado escrevendo anonimamente.

          Não é só isso. Correntes de pensamento paralelas atribuem a autoria à própria Elizabeth 1ª. Outras afirmam que o conde de Oxford e a rainha teriam tido um caso, ou que ela fosse mãe dele, ou as duas coisas – sim, há até incesto na família real na jogada.

          Confirmado na mesa "O mundo de Shakespeare", que divide com o também norte-americano Stephen Greenblatt, biógrafo do dramaturgo, na Flip, James Shapiro conversou com o iG a respeito da polêmica shakesperiana.

iG: Por que as pessoas são tão fascinadas por esse assunto? É porque lembra uma história de mistério?

James Shapiro: Meu livro acabou parecendo um história de detetive. Por que tantas pessoas inteligentes, inclusive Sigmund Freud, Henry James e Mark Twain, imaginaram que outra pessoa que não Shakespeare tenha escrito suas peças? E quais pistas jogam luz em quando e por que essa ideia apareceu? Faço meu melhor para seguir esse mistério até a década de 1850, e foi um livro excitante para se pesquisar. As razões que levaram as pessoas a duvidar da autoria de Shakespeare são complicadas, e variam de uma para outra. Mas no fundo, para muitas delas, foi o mistério de como o filho de um fabricante de luvas na Inglaterra rural pôde escrever peças tão impactantes.

iG: Por que alguém inventaria fatos sobre a vida de Shakespeare? Diversão, ciúme, alguma rivalidade?

James Shapiro: Tudo o que resta de Shakespeare são 37 peças, 154 sonetos e alguns poemas longos. Isso, e talvez pouco mais de 20 documentos que o mencionam, como seu testamento, registros de imóveis e de sua carreira profissional. Para um escritor elisabetano, é um bocado de coisas, mas não o suficiente para alguém tentando escrever uma biografia sobre ele. As pessoas forjavam informações para preencher o que estava faltando. Falo sobre isso em meu livro, como as informações falsas criadas por William Henry Ireland, que enganaram muita gente no século 18. Mas mais comum do que criar fatos é pegar aqueles que já temos e embelezá-los, ou ler os trabalhos de Shakespeare e imaginar, por exemplo, que ele morria de ciúmes ou não amava sua mulher porque os personagens de suas peças são assim. Você ficaria impressionado com o quanto essa abordagem é comum nas biografias de Shakespeare atualmente.

iG: A rainha Elizabeth 1ª e o rei Jaime 1º são os candidatos mais absurdos à autoria dos livros?

James Shapiro: Acho que o mais absurdo é Daniel Defoe (autor de "Robinson Crusoé"), que não era nem nascido quando Shakespeare morreu!

iG: Alguém já levou a sério o boato de que existe uma conspiração no mundo acadêmico para esconder a "verdade" sobre Shakespeare?

James Shapiro: Há quem afirme que os acadêmicos de Shakespeare têm tanto investido profissionalmente que conspiram ou são pagos para manter o segredo de que, na verdade, outra pessoa seria o autor. Posso assegurar que, se descobrisse qualquer evidência de que não foi Shakespeare quem escreveu Hamlet ou Romeu e Julieta, publicaria imediatamente e ficaria rico. Vivemos numa era em que as ideias conspiratórias são alimentadas pela internet, então a questão da autoria de Shakespeare lança luz não apenas nisso, mas também em nosso momento cultural.

iG: O senhor já escreveu que a fé de algumas pessoas na suposta fraude de Shakespeare é tão grande que elas não mudam de ideia nem mesmo diante de fatos. Em seu caso, o sentimento é oposto? Considera-se um verdadeiro crente na autenticidade de Shakespeare?

James Shapiro: Muitos dos debates sobre a autoria de Shakespeare utilizam linguagem teológica, o que denuncia que se trata mesmo de uma questão de fé para muitos céticos, não de fatos (por isso nenhum deles muda de ideia, nem mesmo quando confrontados com o que estudiosos consideram evidências indiscutíveis). Não sou crente em nada exceto em evidência documental. Passei boa parte de minha vida em arquivos tentando desenterrar o máximo delas possível, e o resto do tempo pensando em como explicá-las para outras pessoas, especialmente para curiosos fora do mundo acadêmico.

iG: O senhor tem uma teoria de como Shakespeare se tornou um autor extraordinário depois de seus "anos perdidos"?

James Shapiro: Outros têm; eu, não. E devo admitir que não passo muito tempo pensando em alguma que não posso possivelmente responder, já que não sabemos quase nada sobre os anos de formação de Shakespeare. Qualquer coisa que eu dissesse seria apenas uma projeção de meus próprios valores ou um reflexo da nossa cultura atual. Não estou certo, de qualquer maneira, se alguém conseguiria explicar o que provoca a genialidade – que é, no final das contas, o que estamos discutindo aqui.

iG: Há documentos suficientes para se escrever uma biografia adequada de Shakespeare? Ou boa parte dela continua sendo apenas ficção?

James Shapiro: Já declarei antes que não existem evidências suficientes que nos permitam escrever uma biografia completa sobre Shakespeare, do berço até o túmulo. Os anos perdidos de sua adolescência são um obstáculo; a falta de acesso a suas crenças religiosas e políticas, e até mesmo a sua vida amorosa, são outro. Dito isso, estou profundamente comprometido em escrever a respeito das partes da vida dele das quais sabemos um bocado. Por isso escrevi o livro 1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare (que levei 15 anos para pesquisar) e atualmente estou trabalhando em outro, 1606, o ano de Rei Lear. Mas esses livros são focados no que ele escreveu e o que aconteceu na época para influenciar suas peças e escolhas profissionais – não estou interessado em escrever ficção.

iG: O que o senhor espera de sua participação na Flip?

James Shapiro: Estou muito entusiasmado por visitar o Brasil pela primeira vez e me ver na companhia de tantos autores maravilhosos. Com relação à mesa sobre Shakespeare, Stephen Greenblatt é o melhor crítico vivo de sua obra e o estudioso da Renascença mais influente dos últimos 50 anos. Qualquer oportunidade de ver, conversar com ele e trocar ideias é sempre um prazer.
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A presente entrevista aconteceu há cerca de um ano. É possível que muitos parceiros do blog já a tenham lido, mas supondo que outros não, reproduzo-a aqui, por julgá-la muito interessante (LF).



Friedrich Schiller


por Ana Lucia Santana


          Johann Christoph Friedrich Von Schiller, um dos maiores literatos alemães do século XVIII, ao lado de Goethe, nasceu no dia 10 de novembro de 1759, em Marbach am Neckar, província na qual passa seus primeiros quatro anos de existência. Este grande poeta, dramaturgo, filósofo e historiador era filho do cirurgião militar Johann Kaspar Schiller, integrante do exército de Württemberg, e de Elisabeth Dorothea Kodweis, filha do proprietário de uma taberna.

          Por força do ofício militar, o pai de Schiller se transfere constantemente de residência, porém os estágios nas cidades de Lorch e Ludwigsburg deram ao garoto a oportunidade de conquistar uma educação bem regulamentada. Já aos cinco anos ele dá início ao aprendizado da língua latina, sob a supervisão do pastor Ulrich Moser. Embora destinado ao estudo da Teologia, ele foi obrigado pelo Duque de Württemberg a seguir a carreira militar, mesmo contra sua vontade. Conseguiu escapar do curso de Direito e, com a transferência da escola para Stuttgart, no ano de 1775, ele foi estudar Medicina.

          Esta experiência direta com as atitudes ditatoriais dos militares e a inspiração do filósofo Rousseau, somada à influência dos poetas que integravam o Sturm und Drang, acirraram sua indignação com o Estado opressor. O poeta canaliza seu sentimento revoltoso através da criação da peça Die Räuber (Os assaltantes), sua obra pioneira, escrita de 1777 a 1778, quando ainda era um estudante. Este trabalho foi financiado pelo próprio Schiller, conquistando sucesso imediato. Este drama é reconhecido até hoje como uma das peças fundamentais da dramaturgia alemã deste período. Este é o primeiro resultado de suas leituras de Plutarco, Klopstock, Shakespeare, Lessing, Goethe, entre outros.

          Schiller se graduou em 1780, sofrendo então nova frustração ao ser encaminhado para atuar em um corpo de tropas estacionado em Stuttgart. Um ano depois ele lança Os Bandoleiros, obra apresentada em 1782 no Teatro de Mannheim. O êxito é tal que anima o poeta a desertar do regimento, com destino indeterminado, para se devotar unicamente à Literatura, depois de permanecer preso por quinze dias após deixar a cidade para assistir à representação de seu novo trabalho, além de ser coibido de produzir outras peças.

          Neste mesmo ano ele lança, também com renda pessoal, A Conjura de Fiesco, embora não tenha com ela muitos lucros. No ano de 1783 ele convence o empresário von Dalberg a ler sua mais recente produção, Intriga e Amor, obtendo assim um cargo como poeta do Teatro de Mannheim. Infelizmente, porém, ele adoece e não consegue executar as cláusulas do contrato estabelecido, criar três peças anuais. Neste momento, pressionado pelas dificuldades econômicas, ele revela seus dissabores aos futuros amigos Gottfried Körner e Ferdinando Huber e suas noivas, conquistando sua confiança e seu auxílio, incluindo hospedagem em Leipzig e, posteriormente, em Dresden. Neste período, de 1785 a 1787, o poeta elabora Don Carlos.

          Ao se mudar para Weimar, em 1787, Schiller conhece Goethe, bem como sua futura mulher, Charlotte von Lengefeld, que lhe concede dois meninos e duas meninas. Ele continua a espelhar em sua obra a crítica ao autoritarismo e a uma sociedade que castra toda atitude individual. Um ano mais tarde o poeta, por indicação de Goethe, assume a posição de professor de Filosofia e História da Universidade de Iena, período em que ele consegue escapar da miséria e estabiliza sua situação financeira. Ele decide então se casar com Charlotte, mas neste mesmo momento, em 1790, sua saúde se deteriora, não mais se restabelecendo completamente até sua morte, em 1805, de broncopneumonia, agravada pela presença de uma peritonite e de uma pleurite. Nos anos que se seguem, ele se devota ao ensino universitário, aos estudos filosóficos e estéticos.

          Com a divulgação de sua enfermidade, ele obtém um auxílio do Príncipe de Augustenburg, o que lhe possibilitou a produção de As Cartas Sobre Educação Estética, Sobre Graça e Dignidade, entre outros trabalhos. Sua amizade com Goethe se intensifica em 1794; dois anos depois ele inicia a obra Wallestein, ao mesmo tempo em que os dois lançam conjuntamente Xênias. Em 1799, Schiller fixa residência em Weimar e cria grande parte de seus trabalhos: Maria Stuart, em 1800; A Donzela de Orleans, em 1801; A Noiva de Messina, em 1803; Guilherme Tell, em 1804.

          Desgastado pela intensa produção de sua obra, ele tem uma crise mais intensa de saúde e morre em Weimar, no dia nove de maio de 1805.
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quinta-feira, 16 de maio de 2013

AGULHA HISPÂNICA

REVISTA DE CULTURA
01

Uma conversa com Octavio Paz
Betty Milan
Entrevista

           Poeta e ensaísta, Octavio Paz foi Prêmio Nobel de Literatura em 1990. Nasceu no México em 1914 e passou a infância nos Estados Unidos com a família. De volta ao México, formou-se em Direito e fez especialização em Literatura. Lutou na Espanha, em 1937, ao lado dos republicanos, mas nunca abraçou o comunismo. De 1946 a 1951, viveu em Paris, onde se ligou a André Breton e freqentou o grupo surrealista, no qual encontrou o poeta Benjamin Peret, que viveu no Brasil e no México e foi seu tradutor para o francês. Além de escritor e tradutor, Octavio Paz foi diplomata. Demitiu-se do cargo de embaixador de seu país na Índia em protesto contra o massacre da Praça das Três Culturas (Tlatelolco, 1968), no qual morreram mais de cem estudantes mexicanos. Comentando sua morte em 1998, o escritor peruano Mario Vargas Llosa o qualificou como “a consciência viva de sua era”. É conhecido no Brasil, sobretudo, por seus ensaios, como O arco e a lira, Signos em rotação, O labirinto da solidão entre outros.

          À jornalista que perguntou a Octavio Paz se ele acaso não temia ficar colado à imagem que a notoriedade lhe dava, ele respondeu: “Não acredito nessas consagrações. A única consagração é um leitor capaz de dialogar com a gente. Não, eu não penso que esteja impressionado com os meus sucessos. A vida inteira as minhas opiniões foram minoritárias”.

          Precisamente por querer o diálogo ou o encontro, ele lançou um ensaio sobre o amor, A dupla chama, que não cessa de reenviar o leitor à sua própria experiência e de fazê-lo considerar, através desta, as diferentes ideias do texto.

          Escrito para nos convencer do caráter historicamente subversivo do amor, que, contrariando a tradição ocidental, enobreceu o corpo, o livro é um ensaio de poeta. Por isso mesmo, a chama que ele acende não vai se apagar. “O amor é uma flor sangrenta e é também um talismã: a vulnerabilidade dos amantes os protege”, escreve Octavio Paz. E quem poderá se esquecer do que ele diz da pessoa amada: “Terra a descobrir e casa natal”.

          Tendo em vista A dupla chama, fui ter com Paz no Hotel Lutetia onde, apesar da minha oposição inicial, ele deu a entrevista num salão repleto. As idas e vindas das pessoas em momento algum o molestaram, e eu, que temia não compreender o seu espanhol, logo fiquei à vontade. Só quando eu não ouvia ou não entendia, Octavio Paz passava do espanhol para o francês, a língua em que eu lhe fazia as perguntas, não por ele desconhecer o português, mas por conhecer menos o português do que o francês, a segunda língua dos escritores latino-americanos da sua geração.

          Depois da entrevista, Paz me convidou para tomar um café. Contou-me, durante a conversa, que foi tradutor de Fernando Pessoa e falou com admiração de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.[1]. [BM]

BM O senhor diz na introdução ao livro A dupla chama que, antes de escrevê-lo, hesitou muito, mas não teve como não escrever este livro sobre o amor e fez isso com um “desespero alegre”. Que relação o senhor estabelece entre a escrita e o amor?

OP Há uma relação íntima quando se trata de certo tipo de escrita – a escrita literária, a poesia ou o romance. Há muitas formas de escrever. Quando a gente quer expressar algo de muito profundo, escreve um poema ou um romance, procura assim objetivar a paixão. Em geral, a escrita nasce de uma vocação, a gente está condenada a escrever sobre certos temas. Você, que é escritora, sabe disso. Acontece a mesma coisa no amor, que começa com uma atração involuntária – a que a gente está destinada – e depois se converte, através do livre-arbítrio, numa forma de liberdade.

BM O senhor utilizou a palavra condenada. Em que medida existe um livre-arbítrio?

OP Trata-se de uma questão tão antiga quanto a filosofia. Não há resposta e as respostas que eu encontrei me parecem igualmente insatisfatórias. Há uma eterna relação entre a palavra “destino” e a palavra “liberdade”. Os gregos viram isso muito bem. Para que o destino se realize, é necessário que ele conte com a cumplicidade dos homens. Para que Édipo [2] cumpra o seu trágico destino, ele tem que escolher voluntariamente, sem saber o que está fazendo, claro. Quero dizer que em cada ato humano há uma dose de determinismo, mas este não pode se realizar sem a liberdade, que, por sua vez, necessita do destino para se realizar. Podemos dizer que, se a liberdade é uma condição da necessidade, o inverso também é verdadeiro. Não há como considerar separadamente a palavra destino e a palavra liberdade. Os dois termos estão perpetuamente em luta; e um não vive sem o outro.

BM Agora que o senhor já escreveu o livro com um “desespero alegre”, talvez seja possível me dizer por que escolheu o amor como tema.

OP Eu o escrevi com um “desespero alegre” porque o escrevi no final da minha vida. Mas o que importa é que eu o escrevi. Por que o fiz? Desde que comecei, quisera ser, quisera ter sido… a gente até começa a falar no passado… bem, quisera ter sido poeta. Os meus melhores poemas foram de amor. Às vezes foram poemas eróticos. O tema do amor é uma das minhas obsessões, um dos eixos em torno dos quais girou a minha vida pessoal e também a minha vida intelectual.

BM Sim, mas por que o senhor escreveu um ensaio?

OP Porque queria explicar o amor para mim mesmo. Quando comecei a escrever poemas, eu me disse que precisava escrever algum ensaio para justificar o ato aparentemente absurdo de escrever poemas. O mesmo ocorreu com o amor.

BM O senhor afirma que Platão [3] teria ficado escandalizado com o que nós chamamos amor. Seria possível comentar essa frase?

OP Para Platão, o amor não tinha o sentido que damos a ele e que surgiu na Idade Média com a poesia provençal. O amor, para Platão, era o erotismo, a ação de Eros, o deus da luz e da escuridão, o mensageiro, a força atuante. Platão concebia o amor como um desejo de beleza que terminava na contemplação das ideias eternas. Ademais, o amor não se dirigia a uma mulher, e sim aos efebos. O amor de que falamos, e que hoje pode ser homossexual, nasceu como uma paixão heterossexual. Nele existe um gosto pelo sofrimento, pela tragédia – como em Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta [4] –, que teria escandalizado Platão. O amor também escandalizou os cristãos, pelo fato de se colocar numa criatura humana o que é próprio da divindade. Lope de Vega [5] diz que, no amor, a gente busca o eterno no que é perecível. O amor é uma blasfêmia para a Igreja; ele é subversivo diante da filosofia e da religião.

BM O senhor diz que o amor é uma aposta extravagante na liberdade, pois o livre-arbítrio transforma uma atração involuntária entre duas pessoas em união voluntária. Isso é bastante claro quando pensamos em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta. Mas o romance História de O [6] não é uma aposta extravagante na servidão?

OP A questão é muito interessante. Mas O decide, porque ama René, que deseja se deixar escravizar. Os estoicos pensavam que só se pode afirmar a liberdade dentro dos limites do destino. Epicteto [7] dizia que o escravo tem a liberdade, pelo menos no seu interior, de dizer não. O mesmo ocorre com O, que é uma mulher livre e se vale da liberdade para se converter numa escrava.

BM Cabe perguntar se O teria podido dizer que não queria ser escrava ou, em outras palavras, se ela teria tido a possibilidade subjetiva de escolher a posição de quem não é escrava.

OP Sim, poderia ter recusado o amor. Falei algumas vezes com Paulhan sobre isso. No meu livro sobre Sade [8], eu desenvolvo a ideia. O livro se chama Um mais além erótico: Sade, e também acaba de sair pela Gallimard. Contém um poema e dois ensaios. A parte final trata da História de O. Creio que O escolhe a servidão porque está apaixonada. Todos os apaixonados, no fundo, seguem O, na medida em que todos aceitam a servidão. Na poesia provençal, que codificou o amor, se diz que o apaixonado é um vassalo e a amada é uma senhora. Mas o apaixonado decidiu se converter em vassalo, por estar apaixonado, ele não nasceu escravo. A origem de O se encontra na poesia provençal. Se O fosse somente masoquista, ela seguiria suas inclinações eróticas e ponto final, mas ela está apaixonada…

BM O senhor não acha que o amor implicaria uma revisão completa da noção de escolha?

OP Sim, porém o amor lança luz sobre a relação entre necessidade e liberdade, sobre o livre-arbítrio, o grande tema do teatro espanhol.

BM O amor move o sol e as estrelas, mas não se dissocia do ódio e pode se tornar mortífero. Por que o senhor só fala do amor como um bem?

OP Mencionam com freqência o caráter mortífero do amor. Possivelmente, eu falo dele, sobretudo como um bem por reação contra essa predileção do século XX, predileção pelos lados negros do amor. Trata-se também de uma reação contra a exaltação do Marquês de Sade… Mas eu penso que o ódio é inseparável do amor.

BM Existe mesmo o conceito de hainamoration, em Lacan [9].

OP O quê?

BM Hainamoration, um neologismo que junta o ódio (haine) e o amor (amour).

OP Os psicólogos dizem de modo mais ou menos pedante o que os poetas dizem de forma simples. Catulo [10] diz num poema famoso: “Amo e odeio ao mesmo tempo/ Por que?/ Não sei,/ mas eu disso padeço”. É magnífico, em quatro versos, diz o que os psicólogos e os psicanalistas precisam de mil páginas para dizer.

BM (Risos) O senhor diz, no seu livro, que o amor é incompatível com a infidelidade. Isso significaria que a revolução erótica deste século [11] não mudou em nada a noção tradicional de infidelidade?

OP A revolução erótica nos trouxe uma ideia mais limpa do corpo… O amor não existe sem a liberdade feminina. Por isso, desde sempre, os grandes períodos do amor coincidiram com a liberdade da mulher ou com a sua rebelião. Afinal de contas, Isolda se rebelou, Julieta também…

BM Voltando à questão anterior, eu lhe pergunto se um simples encontro erótico é um ato de infidelidade.

OP Sim, em geral sim, porque o amor está fundado na união do corpo e do espírito. No passado, havia o problema da paternidade. Hoje, a infidelidade é menos grave, porque não interfere na procriação, mas o amor parte da decisão de que “iremos juntos até o final”.

BM Será mesmo que a revolução erótica não implica que possa haver fidelidade do espírito e liberdade do corpo?

OP Parece complicado. As experiências dos que tentaram esse tipo de amizade amorosa não deram certo. É muito difícil evitar o sofrimento do companheiro. A infidelidade, em si mesma, poderia não ser grave, mas fere profundamente o outro. Isso, todos nós sabemos pela experiência.

BM Os autores árabes celebram os amores castos. Qual a diferença entre a erótica árabe e a platônica?

OP A ideia da castidade é uma ideia muito antiga. No Oriente, nasce da ideia de que toda descarga sexual implica perda de vida. É preciso ser casto para conseguir mais vida. A castidade é uma receita de imortalidade. No taoísmo e na ioga [12], a castidade existe para que o sujeito tenha mais controle sobre si mesmo. No caso de Platão, a castidade está ligada ao dualismo do corpo e da alma e à necessidade de salvar esta última. Cada ato sexual, para ele, é uma queda no mundo informe da matéria. Nós amamos uma forma; porém, no momento em que a abraçamos, ela se dissolve. Isso, para mim, é maravilhoso, porque é um contato com o universo.

BM O senhor escreve que a maior defesa contra a Aids é o amor, por implicar a fidelidade. A sua posição é a do papa.

OP Possivelmente. Mas D. H. Lawrence [13] já dizia que o papa sabia mais de sexo e erotismo do que os tratados todos.

BM Segundo o seu livro, o último grande movimento estético do século XX teria sido o surrealismo, e o movimento beat [14] foi uma derivação daquele. Seria possível explicar isso?

OP Toda a doutrina da beat generation parte da espontaneidade da escrita, que é uma ideia dos surrealistas.

BM Obrigada pela entrevista.

OP Você quer tomar um café?

BM Aceito.


NOTAS


1. Do português Fernando Pessoa (1888-1935), considerado um dos maiores poetas da lusofonia, Octavio Paz traduziu Antología, lançado em 1984. Figura inaugural do modernismo em Portugal, Pessoa é ele mesmo e seus heterônimos – os principais sendo Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, que são personagens ficcionais com vida, obra e estilo próprios. Já os poemas do mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e do pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968) – ambos modernistas – aparecem no volume Versiones y diversiones, livro de 1974, que recebeu forma definitiva em 2001, no projeto de edição da obra completa de Paz, da Editorial Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores de Barcelona. Esse título inclui agora todas as traduções feitas pelo autor mexicano.

2. Édipo é personagem central da peça Édipo rei, de Sófocles (496 a.C.-406 a.C.), que foi considerada por Aristóteles o exemplo máximo da tragédia. Ele procura decifrar o assassinato de seu pai, Laio, governante de Tebas. Para seu horror, ele descobrirá ter matado o pai e se casado com a mãe, Jocasta. A dor o leva a arrancar os próprios olhos.

3. Ateniense de estirpe nobre, Platão (428 a.C.-347 a.C.) foi discípulo de Sócrates (470 a.C.-399 a.C.). Depois da morte do mestre, fundou a Academia, onde foi professor de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). Sobre o amor, escreveu O banquete, em sua tradicional forma de diálogos, no qual aborda as manifestações e o significado do amor sensual. O tema volta a ser tratado em outros de seus diálogos, como Lísias e Fedro.

4. Tristão e Isolda e Romeu e Julieta poderiam ser chamadas de tragédias do amor proibido. A primeira foi celebrizada modernamente na ópera homônima de Richard Wagner (1813-1883). A lenda, de origem celta, remonta ao século IX e, a partir do século XIII, foi incorporada ao ciclo do Rei Artur e a Távola Redonda. Na história, Isolda é prometida em casamento ao príncipe Marke, que manda seu sobrinho, o cavaleiro Tristão, buscá-la na terra dela. A caminho, os dois bebem uma poção mágica e se rendem ao amor impossível. Segundo os especialistas em literatura trovadoresca e medieval, Romeu e Julieta, o drama eternizado por William Shakespeare (1564-1616), inspira-se na história de Tristão e Isolda, que foi tema de muitos poemas na Europa medieval. O amor dos dois, bloqueado pela inimizade entre suas respectivas famílias, acaba na morte dos amantes.

5. Lope de Vega (1562-1630), poeta e dramaturgo espanhol formado pelos jesuítas, foi secretário de poderosos da Igreja e da Coroa, emergindo como autor de sucesso em 1598. Tendo perdido a mulher e um filho, entrou em crise e resolveu ordenar-se. Foi nomeado para o tribunal da Inquisição. A adoção do hábito religioso não o impediu de casar-se várias vezes nem de ter numerosas amantes e de protagonizar situações escandalosas em Madri, onde viveu e apresentou a maioria de sua obra numerosíssima – segundo os estudiosos, com mais de 400 comédias, dramas épicos, volumes de poesia, inclusive o famoso Amarílis, em homenagem à amante morta.

6. História de O, relançado no Brasil em 2005, é obra de Anne Desclos (1907-1998), nome real da escritora e editora francesa DominiquebAury, que o assinou com o pseudônimo de Pauline Réage. Foi criado para provar a seu amante – o escritor Jean Paulhan (1884-1968), com quem ela trabalhava na Nouvelle Revue Française – que a literatura erótica não é exclusividade do homem. História de O é um romance sadomasoquista que escandalizou os franceses em 1954, ao ser lançado, e não demorou a ganhar o mundo. Em 1975, virou filme, dirigido por Just Jaeckin e estrelado por Corinne Cléry.

7. O filósofo grego Epicteto (55-135) viveu a maior parte de sua vida em Roma como escravo de um ex-escravo do imperador Nero. Foi seu senhor que lhe permitiu estudar com um filósofo da escola estoica, Musonius Rufus, e depois lecionar na cidade, já como liberto. Ele voltou para a Grécia e continuou a ensinar quando o imperador Diocleniano expulsou todos os filósofos de Roma, no ano de 94. Para os estoicos, que introduziram na ética a noção de responsabilidade, a virtude é o único bem – e, conseqentemente, o vício é o único mal. A virtude é identificada com a razão, ao passo que os afetos correspondem ao lado patológico da realidade humana. Seus escritos assumem a forma de máximas morais, com as quais pregava a reforma dos homens, propondo a austeridade e o desprendimento como o caminho para a felicidade, a realização pessoal e a tranqilidade de espírito.

8. Jean Paulhan (1884-1968), professor, crítico, editor e escritor francês. Estudou psicologia e desde cedo se envolveu com o editorial de revistas – de filosofia, de ciências sociais e de literatura, como Les Temps Modernes, de Sartre, e a Nouvelle Revue Française, na qual foi secretário e editor (1925-1940) e diretor de 1953 até sua morte. Pertenceu à Resistência Francesa e teve papel determinante em defesa da publicação das obras dos escritores colaboracionistas, que, tendo afinado com os nazistas durante a ocupação, eram bloqueados pelos editores no pós-guerra. Foi eleito para a Academia Francesa em 1963. Foi também um estudioso da literatura erótica e autor, em 1951, do ensaio Le Marquis de Sade et sa complice ou Les revanches de la pudeur (“O Marquês de Sade e seu cúmplice ou As revanches do pudor”). Paulhan foi ainda o inspirador do romance Histoire d’O. Ver Nota 6. O livro de Octavio Paz mencionado, Um mais além erótico: Sade, foi publicado no Brasil em 1999.

9. Jacques Lacan (1901-1988) nasceu em Paris e se formou em medicina, especializando-se em psiquiatria antes de se tornar o psicanalista mais polêmico do século XX, desenvolvendo sua teoria e sua clínica em nome de um retorno a Freud. Para ele, o ser humano só se constitui como sujeito através da palavra e a estrutura do inconsciente é a da linguagem. Ao “Penso, logo existo” de Descartes, Lacan opôs um “Digo, logo existo”. A obra de Jacques Lacan e de grande parte de seus alunos vem sendo traduzida e publicada pela editora Jorge Zahar e pela Companhia de Freud, ambas do Rio de Janeiro.

10. Caio Valério Catulo (provavelmente 84.a.C-54 a.C.), pequeno nobre da província de Verona, foi um modernizador da poesia em Roma, onde viveu, trabalhando sobretudo com poemas líricos, curtos, dedicados a temas como o amor ou os pássaros e denominados “carmes” (do latim carmen, carminis, que quer dizer “poesia”). O erotismo é forte componente de seus versos. Nos anos 1930, Catulli carmina, os poemas eróticos de Catulo, foram transformados em cantata pelo compositor Carl Orff (1895-1982), formando um tríptico ao lado de Carmina Burana e Triunfos de Afrodite.

11. A expressão revolução erótica deste século faz referência aos novos comportamentos afetivos e sexuais decorrentes da eliminação ou abrandamento da repressão sexual, sobretudo na segunda metade do século XX, com o advento da pílula anticoncepcional, libertando a mulher do tabu da virgindade e do risco da gravidez involuntária. Além de afetar profundamente o relacionamento entre homens e mulheres, em decorrência das lutas por maior abertura comportamental e por novos direitos, encetadas pelo movimento feminista, a sociedade assistiu também aos movimentos de homossexuais e transgêneros por liberdade e igualdade de direitos.

12. Os adeptos do taoísmo, uma antiga religião chinesa, crêem que o tao (caminho) é a origem do universo e o criador de todos os seres. Pela prática da austeridade e do respeito a todas as criações e criaturas da natureza, o homem pode tornar-se imortal e converter-se em um ser celeste. Já a ioga é prática de origem indiana, que visa promover a união entre o ser humano e sua essência, mediante o equilíbrio de corpo e mente. Em ambas as linhas espirituais, assim como em várias crenças orientais, a castidade é vista como economia de energia.

13. David Herbert ou D. H. Lawrence (1885-1930), escritor britânico, aborda temas controversos, sobretudo de caráter sexual e relações destrutivas, tendo produzido em todos os gêneros literários – novelas, contos, poemas, peças de teatro, livros de viagens, traduções, livros sobre arte, crítica literária e correspondência. Entre suas obras mais conhecidas estão O amante de Lady Chatterley, que foi proibido e circulou clandestinamente na Inglaterra, Mulheres apaixonadas, Filhos e amantes e A serpente emplumada.

14. O surrealismo, considerado a última das vanguardas artísticas da Europa, propõe a libertação do criador em relação às normas e regras do pensamento racional, optando pela exploração do inconsciente e do subconsciente, como acaso, sonhos, alucinações, delírio e humor. Para tanto, trabalha com o automatismo como método (sem controle racional nem antes nem durante ou depois da criação) e, nas artes visuais, adota novas mídias, como colagem, foto-montagem, assemblage etc. São muitos e grandes os nomes que se ligaram ao surrealismo desde o Manifesto Surrealista, lançado pelo escritor francês André Breton em 1924. Nas artes visuais, Paul Klee, Joan Miró, Salvador Dalí, Marc Chagall, o cineasta Luis Buñuel, entre outros, enquanto na literatura comparecem Tristan Tzara, Paul Éluard, Louis Aragon, Guillaume Apollinaire. Quanto ao movimento beat, surgiu nos Estados Unidos nos anos 1950 como protesto contra o estilo de vida vazio e consumista do pós-guerra. O livro de Jack Kerouac On the road, traduzido no Brasil como Pé na estrada, é dado como seu ponto inicial. Allen Ginsberg, William Burroughs, Lawrence Ferlinghetti são alguns dos escritores do movimento, que foi intensamente ligado à música – inclusive à música oriental, que iria depois inspirar os Beatles e compor o universo da geração “paz e amor”, representada pelos hippies.

Betty Milan (Brasil, 1944). Romancista, ensaísta e dramaturga. Colaborou nos principais jornais brasileiros e atualmente é colunista da revista Veja. Sua bibliografia inclui títulos como O papagaio e o doutor (1991), Paris não acaba nunca (1996), e Fale com ela (2007). Entrevista realizada em 19/06/1994, publicada na Folha de S. Paulo, figura no livro A força da palavra (Editora Record, 1996). Contato: bettymilan@free.fr. Página
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