A relação ator-público na improvisação como espetáculo
Mariana Muniz
No século XX, com a profusão de processos de criação cênica que privilegiaram o diálogo entre as funções artísticas de um espetáculo, a improvisação reconquistou seu espaço tornando-se ferramenta fundamental na construção da cena contemporânea. Os processos de criação coletiva e/ou colaborativos têm na improvisação o lugar de experimentação, um laboratório onde se testam os caminhos a seguir.
Quando falamos do ensino do teatro como conteúdo específico no ensino regulamentar é fácil associá-lo à prática da improvisação nos jogos teatrais propostos por Spolin. A improvisação, neste caso, seria a via de entrada e aprofundamento na linguagem teatral tanto em sua experimentação como jogador/ator, quanto em sua fruição e reflexão como público. Para Spolin a essência do fazer teatral se concentra na relação entre ator e platéia.
“Quando se compreende o papel da platéia o ator adquire liberdade e relaxamento completo. (...) Quando a platéia é entendida como sendo uma parte orgânica da experiência teatral, o aluno-ator ganha um sentido de responsabilidade para com ela que não tem nenhuma tensão nervosa. A quarta parede desaparece, e o observador solitário torna-se parte do jogo, parte da experiência e é bem recebido!”1
Há outra vertente do trabalho de improvisação que, à comparação das citadas anteriormente, é pouco conhecida no Brasil: a improvisação como espetáculo. Este conceito se remete às formas teatrais nas quais os atores criam em presença do público uma dramaturgia do instante. Este tipo de improvisação tem como principal referente histórico a Commedia dell´arte, ainda que muitos autores questionem sua existência neste período. Segundo Marinis:
“Em definitivo, o único nível do espetáculo desta arte que não estava completamente fixado era aquele relativo à superfície verbal, sobre a qual os comediantes exerciam seu domínio por completo: no entanto, tampouco este tecido verbal, ainda que bem composto (ou seja, reunido) de maneira improvisada, era realmente improvisado, no sentido de ser inventado no momento de sua execução, já que derivava de uma enorme literatura sobre os distintos papéis.”2
O questionamento proposto por Marinis nos permite redimensionar o próprio conceito de improvisação. Se pensarmos a improvisação como “técnica do ator que interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e 'inventado' no calor da ação.”3, segundo Pavis, realmente o termo não se aplicaria confortavelmente ao grau de preparação exigido pelos cômicos dell´arte. Entretanto, o próprio Pavis amplia esta definição:
“Há muitos graus na improvisação: a invenção a partir de um canevas conhecido e muito preciso (assim, na Commedia dell`arte), o jogo dramático a partir de um tema ou de uma senha, a invenção gestual e verbal total sem modelo na expressão corporal, a desconstrução verbal e a pesquisa de uma nova “linguagem física” (ARTAUD)”
Sendo assim, estabeleceríamos um diálogo intenso entre improvisação e preparação prévia, ou seja, a improvisação derivaria de um grau de aperfeiçoamento técnico do ator advindo de um treinamento específico. Aceitaríamos a hipótese de que, na Commedia dell´arte, a improvisação se aproximou mais de um jogo de variações do que da invenção espontânea de textos ou partituras corporais.
No entanto, se pensamos que este jogo de variações se encontra fortemente determinado pelo público, espaço cênico e
estruturas dramatúrgicas, podemos admitir que a improvisação na Commedia dell´arte foi uma prática constante, ainda que tenhamos que desmistificar todo o romantismo ao qual está comumente associada. Segundo Dario Fo, “a partir de seqüências como essa (refere-se a um canevas) é possível fazer no mínimo dez variações deslocando os tempos e progressão. E os cômicos eram realmente mestres nesses gêneros de montagens.”4
Após o século XVIII, a prática da improvisação cai no ostracismo sendo relegada aos jogos em sociedade, ao circo, ao cabaré e ao teatro de feira. No final do século XIX, encontramos duas referências fundamentais à retomada da improvisação como espetáculo na contemporaneidade: J.L. Moreno, com a criação do Teatro da Espontaneidade e J. Copeau com seu projeto, jamais realizado, da Nova Comédia Improvisada.
Sem entrar em detalhes, devido à extensão desta comunicação, e minimizando as diferenças entre estas duas propostas, podemos afirmar que ambas recuperam o papel do ator como criador de uma dramaturgia efêmera compartilhada e influenciada pelo público. Assim, o ator sairia de sua condição de intérprete de palavras alheias e enfrentaria o desafio, em cumplicidade com o público, da criação instantânea. Este caminho será aprofundado pelas vanguardas históricas (principalmente pelo surrealismo) com a escrita automática, e outros procedimentos, que pretenderam que o fazer artístico não experimentasse uma diferença temporal entre criação e fruição.
Com o advento das experiências do happening, a improvisação diante de um público retoma um lugar entre as variedades de práticas teatrais na contemporaneidade. Entretanto, a procura de uma construção dramatúrgica improvisada da cena teatral, com a existência de um conflito e de uma possível unidade de ação, só adquire força nas experimentações de Keith Johnstone frente a seu grupo The Machine nos anos sessenta na Inglaterra. Esta prática se consistiu do desafio de criar histórias e encená-las diante de um público a partir de premissas técnicas e sem a presença de elementos verbais ou corporais pré-estabelecidos e acabou por desenvolver uma técnica de improvisação que é referência fundamental aos improvisadores de hoje.
A partir desta experiência com o The Machine, Johnstone criou o Theatre Sports, uma forma híbrida entre teatro e esporte que consiste na separação dos atores em times e na realização de histórias frente ao público a partir de desafios que um time lança ao seu adversário. A boa ou má execução do desafio é determinada pelo juiz a partir das premissas técnicas desenvolvidas por Johnstone.
O Theatre Sports começa a ser praticado em vários países no ocidente e finalmente chega ao Canadá onde passará por uma grande reformulação que dará origem, nos anos setenta, ao Match de Improvisação, jogo de improvisação no qual dois times se enfrentam através de regras específicas arbitradas por um juiz e cujo resultado final quem decide é o público através de votação. O Match de Improvisação ganha projeção internacional e, juntamente com ele, vão surgindo vários outros formatos de espetáculos improvisados esportivos, ou seja, centrados na competição. O mais recente deles é o Catch de Impro, criado nos anos 2000, que consiste na competição entre vários jogadores individuais. Cada jogador tem seu objetivo e um personagem-tipo bem característico. Eles devem, juntos, realizar um espetáculo de 1 hora de duração e vence o jogador que o público considerar que alcançou seu objetivo.
Com a grande profusão de espetáculos improvisados nas ultimas três décadas e com o caloroso recebimento que o público costuma conceder-lhes, entramos no âmago da nossa questão: a improvisação permitiria um contato mais direto com o público por estabelecer uma relação de cumplicidade e transformá-lo em co-criador da cena teatral?
Peter Brook, descrevendo sua viagem à África5, diz que, ao se tratar com um público tão novo e desconhecido como o africano, não há como contar com elementos prévios, o abismo cultural é grande demais para tentar se assegurar através de estruturas pré-concebidas. Portanto, para ele, a improvisação foi a única escolha possível. Estamos falando de um grau de improvisação mais arriscado do que o atribuído à Commedia dell´arte, pois, supostamente, se trataria de improvisar a partir do nada. Digo supostamente, pois, a partir da leitura do relato da experiência de Brook e de minha experiência como improvisadora e como público de espetáculos de improvisação em vários países, pude observar que sempre há um “algo” do qual partir em uma improvisação. Este “algo” reside em três focos principais e essenciais ao fazer teatral: o ator, o público e o espaço. Os estímulos nos quais começamos a fundamentar nossa improvisação, supostamente a partir do “nada”, se encontram em um destes focos e cabe aos improvisadores serem capazes de escutá-los e desenvolvê-los.
Esta capacidade de escuta e de manejo dos estímulos depende da destreza técnica do improvisador, o que mais uma vez aproxima a improvisação do rigor e do preparo. O ator deve ser capaz de entrar em um estado de cumplicidade absoluta com o público e com o espaço, fazendo-os partícipes da criação teatral. No caso da sua relação com o público, se o ator o convida a ser seu cúmplice, conquista sua confiança e pode arriscar, errar, fracassar quantas vezes forem necessárias.
O público, no teatro improvisado, principalmente em formas mais populares como o mamulengo, é praticamente o dono da história, dando sugestões, títulos e possíveis caminhos pelos quais os atores podem seguir. No Teatro Fórum de Boal, por exemplo, a participação do público vai ao extremo da diluição dos papéis entre ator e espectador, criando o “espectator” que pode interferir diretamente na cena, substituindo o ator e mostrando como ele considera que a dramaturgia deve ser construída.
Nos espetáculos de improvisação aqui descritos anteriormente, o público vota, decide qual é o time de jogadores que melhor realizou cada improvisação, determinando o resultado final de cada jogo. Talvez esta “chamada à cumplicidade” seja o grande atrativo de um público que quer ser envolvido no processo de criação artística e sair do lugar de mero receptor de uma mensagem programada e repetida a cada espetáculo. Hans-Gorg Gadamer centra no juízo do receptor o parâmetro para o estabelecimento de conceitos como originalidade, identidade e qualidade da obra artística. Segundo o filósofo:
“(...) uma improvisação ao órgão que seja boa adquirirá por si mesma uma identidade indiscutível, ainda que não se repita nunca mais, essa identidade se refletirá no juízo do ouvinte. É ele quem diz se foi boa ou não, e caso seja boa, o ouvinte a qualificará de criação original.”6
Pensando nestes termos, talvez o púbico contemporâneo, ou boa parte dele, esteja disposto a abrir mão do acabamento dramatúrgico de uma cena ou de sua perfeita execução, admitindo a precariedade de uma dramaturgia criada no instante em consonância com os atores. Essa atitude de co-criador da ficção teatral, podendo alterar o curso da ação realizada no palco, pode levá-lo, como afirma Boal em seu Teatro do Oprimido, a assumir um lugar de cidadão ativo na sociedade e não mero espectador dos acontecimentos que determinam sua vida social.
BIBLIOGRAFIA:
BROOK, P. Más allá del espacio vacío. Barcelona: Alba Editorial, 2003.
FO, D. Manual Mínimo do ator. São Paulo: Ed. Senac, 2004.
GADAMER, Hans-Gorg. Acotaciones hermenéuticas. Madrid: Editorial Trotta, 2002
SPOLIN, v. A improvisação para o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.
PAVIS, P. Dicionário de teatro.São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.
MARINIS, M. Compreender el teatro: lineamientos de una nueva teatrologia. Buenos Aires: Ed. Galerna, 1993.
MUNIZ, M. La improvisación como espectáculo principales experiencias y técnicas aplicadas a la formación del actor-improvisador.Tesis doctoral inédita. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, Janeiro de 2005.
NOTAS:
1 SPOLIN, v. A improvisação para o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. Pg. 11-2
2 MARINIS, M. Compreender el teatro: lineamientos de una nueva teatrologia. Buenos Aires: Ed. Galerna, 1993.
(tradução do espanhol feita pela autora). Pg. 128.
3 PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. Pg. 205.
4 FO, D. Manual Mínimo do ator. São Paulo: Ed. Sena, 2004. Pg. 18.
5 BROOK, P. Más allá del espacio vacío. Barcelona: Alba Editorial, 2003.
6 GADAMER, Hans-Gorg. Acotaciones hermenéuticas. Madrid: Editorial Trotta, 2002. Pg. 195
Mariana Muniz é Diretora teatral; Professora da Graduação em Teatro e da Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG. Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Horto - Rua Pitangui, 3613 - Bairro Horto - Belo Horizonte - MG
Tel: 31 3481.5580 - portalprimeirosinal@gmail.com
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quarta-feira, 29 de maio de 2013
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