Abalo no Teatro Brasileiro
por Ana Lúcia Vasconcelos
em 13/05/2012
Quando ofereci minhas matérias para o Floriano Martins, e ele aceitou e ainda ficou super empolgado com a possibilidade de ter alguém escrevendo sobre teatro, tema que, segundo ele, os leitores da revista virtual Agulha reclamavam há tempos sugeriu – além dos artigos propostos por mim e depois do que lera sobre minha carreira nos meus blogs – um ensaio reportagem, enfim um artigo sobre o encenador argentino Victor Garcia com quem eu trabalhara na peça Cemitério de Automóveis do espanhol Fernando Arrabal, produção de Ruth Escobar nos longínquos anos de 1968/1969. Aliás, me disse que pretendia realizar isso há tempos já que o Victor fora um que artista que fez um sucesso explosivo em determinado período da história do teatro brasileiro e que as novas gerações pouco ou nada conheciam, já que morrera muito jovem.
Argumentei que convivera pouco ou pouquíssimo com o Victor, aliás, para falar a verdade só tinha conversado com ele uma vez e narrei a cena, que em seguida vou contar para vocês, porque entrara para fazer Cemitério quando o espetáculo já estava em cartaz há um ano ou quase isso, e nem fora dirigida por ele, mas pela atriz Assunta Perez que justamente substituí fazendo os dois personagens que ela fazia: a Mãe e a Avó. Isso apesar de eu ter, à altura, gloriosos 25 anos e estar no início da minha carreira de atriz em São Paulo, mas e por causa do sucesso que obtivera com meu desempenho em Electra de Sófocles, produção do Grupo Rotunda que eu ajudara a criar em Campinas, sob direção de Tereza Aguiar, que me valeu o Prêmio Revelação de Atriz de 1968, concedido pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte de São Paulo) e indicação para o Molière, que nós brincávamos dizendo que era o Oscar do teatro brasileiro. Aqui não é autoelogio, apenas uma reportagem. Estou apenas explicando os convites que me vinham.
Não levei o Molière, mas em compensação o Cemitério de Automóveis, voltando, portanto ao Victor Garcia, levou vários prêmios daquele ano: Melhor Direção da temporada da APCA-Associação Paulista de Críticos Teatrais, e Prêmio Governador do Estado de Melhor Espetáculo. Enfim era o sucesso total e absoluto, estava na crista da onda do teatro paulistano e brasileiro já que gente do Brasil inteiro baixava lá no Teatro Treze de Maio – duas oficinas mecânicas agora transformadas pela equipe de engenheiros e cenógrafos da Ruth Escobar num cemitério de automóveis, com vários planos e rampas ligando esses diferentes locais onde às vezes aconteciam cenas simultâneas e vista pelo público que ficava ao redor dos tablados em vários planos, e carros naturalmente, muitos, todos devidamente trabalhados para serem manuseados como parte integrante do cenário e da trama. O espetáculo estreou no final de outubro de 1968 e ficou em cartaz um ano e dois meses tendo sido remontado no Rio de Janeiro em 1970.
Atuando perigosamente
Até hoje lembrando minha primeira entrada em cena fico arrepiada – ainda bem que naquele tempo eu tinha muitas polegadas a menos, para dizer a verdade era super magra, de outra forma não seria possível, porque vocês imaginem isso. Eu, no caso – antes tinha sido a Assunta Perez e depois que saí outra atriz – vestida com uma túnica de couro, e com um coturno de 12 centímetros de altura descendo correndo por uma rampa que a partir de um momento virava uma passarela, mas que não era nada refrescante porque era feita de ripas, separadas entre si e que exigia dos atores – ator sofre – que corresse na ponta dos pés. Na ponta dos pés, portanto, de coturno! E na sequência da cena já em terra firme, quero dizer num tablado plano, sem rampas, graças a Deus, havia um determinado momento que eu caía no chão e continuava a cena
Aliás, em Electra havia também uma cena em que eu me jogava no chão só que sem túnica de couro e sem coturno. Digamos que para tudo isso há uma técnica para a gente se jogar no chão e não se machucar, o que significa que nesta cena eu tinha uma maneira especial de me jogar que, aliás, não era nada. Levantar era mais complicado, mas com muito ensaio também ficava simples. Aliás, Assunta Perez quando me ensaiou a primeira vez disse: “Mas está ótimo, você vai fazer isso – as duas personagens – com um pé nas costas.” Esclareço que com um pé nas costas nunca fiz, já que com os dois era essa complicação que acabei de narrar.
Digamos então que o Cemitério de Automóveis era um espetáculo de alta periculosidade porque esta era uma cena – havia outras – ah esqueci – eu também me jogava a certa altura – fazendo a Mãe, no capô de um carro, numa cena desesperada. Pensando bem agora, imaginei que de repente o pessoal me viu fazendo Electra e pensou: bom, essa se joga bem no chão – vamos chamá-la para substituir a Assunta que vai para a Rússia. Bem, brincadeiras a parte, o fato é que não apenas eu fazia cenas arriscadas, mas todos ou quase todos os atores viviam neste perigo todo. Para exemplificar vou contar mais um lance antes de passar para o Victor propriamente dito. Havia uma cena em que um ator (O Necrófilo) sempre correndo lógico, por essas rampas acima descritas, carregava uma mulher nua (A Morta), aliás, vestida, ou enlaçada por uma cobra. Pois numa certa noite a cobra mordeu o palato do ator – porque, naturalmente correndo, ia de boca aberta – imagino nunca reparei nos detalhes e daí que foi aquela correria pelos bastidores e o corpulento rapaz terminou no pronto socorro.
Mas saindo do palco e indo para a coxia, eu vou contar agora aquela cena que prometi la em cima – minha única e inesquecível conversa com o Victor Garcia. Mas primeiro esclareço que quando entrei para fazer o espetáculo ele já levara todos os prêmios, ou seja, eu não tive nada com isso, mas imagino também que me convidaram porque achavam que eu dava conta do recado, já que entrar numa peça premiada é também de suma responsabilidade. E eu estava consciente dela. Assim, acho que na minha segunda ou terceira apresentação tive uma surpresa agradável. Eu ficava no camarim cerca de quarenta minutos antes de entrar em cena pela primeira vez e ficava maquiada e sozinha porque todas as outras atrizes já estavam no palco, esperando a camareira que vinha me ajudar a colocar a túnica, tudo cronometrado, porque eu tinha que subir umas escadas para começar a tal cena. Bem, eis que entra então o Victor Garcia que era uma figura super simpática, devia ter o que – 1.55 de altura, algo tímido e sentou-se na ponta do banco onde eu estava.
Nos cumprimentamos e eu gelei porque estava ali o grande (pequeno) ou o pequeno grande Victor Garcia que a Ruth trouxera de Paris e que estava arrebentando no teatro brasileiro - e me disse a seguinte frase: “Eu estava ontem aqui (eu nem imaginara) e te vi atuando.Você é uma grande atriz trágica, eu diria que tem que trabalhar apenas um certo rictus que tem na boca, precisaria ver isso, mas no mais…..” bem ai eu já fiquei paralisada. E falei: “Ah você achou isso é?” E fiquei olhando para ele com uma cara de boba e ele olhando para mim. Ficamos assim uns momentos e depois ele se despediu e se foi. Fiquei depois bastante decepcionada comigo mesma, imaginando que talvez o Victor tivesse pensado que se eu era como ele disse uma grande atriz trágica, em compensação não falava, na verdade o imaginei pensando que eu devia ser uma boba. Eu era apenas uma tímida e pelo que vi, ele também. Ainda que isso possa parecer autoelogio não passa de uma mera reportagem-já que o outro personagem da história não está aqui para confirmar, e não houve testemunhas para a cena descrita, eu sou a única que sobrou para contá-la.
Na sequência ele dirigiu outro sucesso arrasador que foi O Balcão de Jean Genet também produzido pela Ruth Escobar que praticamente demoliu seu teatro para construir o cenário, que era um imenso cone de cinco metros de altura, uma forma espiralada que levou toneladas de ferro e consumiu uma boa soma de dinheiro e onde os atores representavam e o publico ficava. Novamente aqui, todos os atores viviam perigosamente e o espetáculo arrebatava todos os prêmios fazendo sucesso, desta vez, internacional. Lembro-me de ter circulado pelo teatro durante a montagem do Balcão, juntamente com outros atores e visto alguns ensaios, e naturalmente depois, ter visto o espetáculo que era de fato uma experiência fascinante, inusitada, única. Na época sabíamos que tudo era inovador, mas não tínhamos consciência de quanto era. As criticas não eram apenas favoráveis – o espetáculo tomava em cheio os críticos mais importantes do país, abalava as estruturas do teatro nacional.
Anos depois, o Victor voltou ao Brasil com Yerma de Federico Garcia Lorca, protagonizado por uma grande atriz espanhola, como parte de um Festival Internacional de Teatro organizado pela mesma Ruth Escobar. O cenário era um grande útero. Infelizmente não vi este espetáculo, mas soube que era deslumbrante. Depois disso, só tive do Victor uma noticia trágica-que ele morrera como um indigente em Paris e quem havia providencido o enterro fora a Ruth. Fiquei bastante abalada.
Tudo isso para dizer que minhas impressões sobre o Victor, eram poucas, mas boas, e dele eu tinha uma imagem de uma pessoa simples, nada estrela, silenciosa. Eis que tive mais luzes sobre esta figura que passou pelo Brasil de forma meteórica, mas marcante e que tive o prazer de conhecer, quando comecei a pesquisar para esta matéria e localizei o Newton Souza que escreveu um livro-o único estudo aprofundado escrito até o momento sobre o encenador, e que foi originalmente sua tese de mestrado: Roda, A engrenagem e a Moeda – a Vanguarda e Espaço Cênico no Teatro de Victor Garcia, no Brasil - Fundação Editora da UNESP (Praça da Sé, 108, São Paulo) e pude confirmar minhas impressões e completa-las. Victor Garcia foi uma pessoa singular, rico, abdicou da sua condição para viver da arte, e morrer pobre.
Opção pelo despojamento
Filho de uma abastada família, dona de vastas extensões de terras, Victor nasceu em Tucumán (Argentina) e cresceu ao lado da mãe, nove tias e quatro irmãs sob vigilância severa do pai. Seus parentes católicos e conservadores queriam vê-lo engenheiro agrônomo para continuar a tradição familiar. Mas ele não queria isso e sem que a família soubesse começou a freqüentar aulas de escultura e pintura. No entanto ao terminar o ensino médio cede em parte a vontade dos pais e entra para a faculdade de Medicina, mas como gostasse muito mais das artes dramáticas e dança contemporânea que também freqüentava secretamente, abandona o curso depois de quatro anos, desvincula-se da família e assume uma atitude de andarilho. Seu objetivo era a Europa, mas para chegar lá fez uma breve escala no Brasil onde criou uma fábrica de jeans e couro: foi com a renda adquirida neste trabalho que embarcou de navio para a França onde apresentou um projeto de pesquisa na Universidade Internacional de Teatro onde conviveu com estudantes de trinta paises diferentes. Em parceria com Jean-Marie Seraud montou o espetáculo inaugural do Teatro do Museu do Louvre: Ubu-Rei de Alfred Jarry, espetáculo multi mídia com seis horas de duração que utilizava várias artes: televisão, cinema, musica e dança com o qual ou ganhou o primeiro lugar no Concurso de Jovens Companhias. Dai em diante Victor Garcia começa a circular pela Europa encenando peças em Milão, Bruxelas e Belgrado (Newton de Souza via cf, Saochella -1972 p.49-60), sempre atuando no teatro experimental.
Segundo os pesquisadores da obra do encenador argentino seus primeiros trabalhos “eram desprovidos de um sistema ou método”, mas a verdade é que ele, premido pela falta de recursos-tempo e dinheiro para os ensaios se dava melhor trabalhando com atores jovens e inexperientes. A pobreza-interessante relembrar que ele era de família abastada – o levava a produzir espetáculos de grande efemeridade o que, aliás, ressaltam os estudiosos, não o desagradava. “Umas poucas apresentações lhe bastavam e tampouco preparava os atores através da exaustão dos ensaios repetitivos”. Sua intenção era excitar o ator, para que ele ‘saltasse a arena’, partindo logo para realizar outra ‘ das vinte idéias que lhe vinham à cabeça simultaneamente ”.
Outra característica notável no trabalho de Victor Garcia em Paris era o desprezo pela palavra ou pelo texto, e isso se devia mais e principalmente pelo desconhecimento quase que absoluto da língua francesa e formação multicultural dos seus elencos. Assim, quer dizer, com essas condições precárias Victor montou Cemitério de Automóveis, coletânea de textos do espanhol Fernando Arrabal (1932) em junho de 1966 para ser apresentado no Teatro de Dijon. Foi remontada em 1968 no Theâtre des Arts em Paris. Ruth Escobar viu a peça e ela que acabara de montar no Brasil com grande repercussão e sucesso Roda Viva de Chico Buarque de Holanda ficou encantada com a ousadia do argentino e ato contínuo o convida para remontá-la no Brasil. Pronto começava então uma relação de Ruth Escobar com Victor Garcia – “relação de amor e ódio” segundo ela, que duraria até o fim de 1974.
Arrabal e Garcia – junção explosiva
Na capa do programa de O Cemitério de Automóveis vemos uma cena chocante e bela: um homem deitado de costas sobre o tanque de uma motocicleta e com os braços abertos sobre o guidão, amparado por uma mulher risonha, numa clara e irônica alusão a imagem de Cristo na cruz. “A máquina, o veiculo, o símbolo de uma era, a era industrial”, diz Newton de Souza, “servindo de suporte para o sacrifício arcaico do Mártir.”
Mas esta era a intenção do autor Fernando Arrabal, à época com 37 anos, dramaturgo espanhol que vivia em Paris e tinha aquela altura mais de trinta peças escritas além de vários livros publicados, considerado o mais estranho escritor dos cinco continentes e que falava de si mesmo: “se eu fosse normal não seria normal”. Considerado “pontífice máximo” do Teatro Pânico, fundara a escola que nascera em Paris no famoso Café de la Paix em 1960 e que já produzira espetáculos que a revista francesa Realités definia como “festas extravagantes e primitivas, a meio caminho entre a maravilha e o horror”-um teatro obsessivo, violento, erótico e por vezes macabro e também de uma ternura quase infantil.
Sendo representado nos cinco continentes, os discípulos de Arrabal diziam, com um toque de megalomania, que combinava à perfeição com a atitude pânica: “sobre o teatro do mestre como sobre o império espanhol de Carlos V o sol nunca se põe”. Fernando Arrabal era descrito no texto do programa como sucessor do teatro do absurdo e sua obra, “um ritual teatral” que unia “humor e poesia, pânico e amor” e um homem profundamente marcado pela Guerra Civil que assolou a Espanha entre 1936 e 1939 e que Picasso imortalizaria em Guernica. E foi com certeza nesta linha de pensamento que concebeu a peça Cemitério de Automóveis: “uma transposição voluntariamente ingênua do mistério da Paixão” segundo Newton Souza. “Emanou (uma brincadeira com o nome Emanuel-(Deus conosco) toca pistão para entreter os pobres, que moram em automóveis abandonados, como em palácios. Ele é também ladrão e assassino, rouba os ricos e mata gente que o aborrece. Denunciado á policia por seu companheiro Tope é crucificado numa bicicleta.”
O Cemitério segundo Victor Garcia
Acontece que o espetáculo Cemitério de Automóveis, criação de Victor Garcia não era apenas a peça do dramaturgo espanhol, mas uma composição de quatro peças de Arrabal cujo tema era a Guerra Civil Espanhola: O primeiro ato constava de Oração e Cemitério de Automóveis (1ª. parte) e Os dois carrascos. O segundo ato era composto de: Cemitério de Automóveis (2ª. Parte) e A primeira comunhão. Em A Oração um homem e uma mulher (Fídio e Libe) dialogavam em torno do cadáver de uma criança que eles haviam assassinado. Refletem na verdade sobre a necessidade de serem bons. Cemitério de Automóveis como já foi dito é uma reinvenção da paixão de Cristo por Emanou e se passava num “hotel, bordel e cidade” nos quais os habitantes adotavam “maneiras de grandes senhores, hóspedes de hotel de luxo” Emanou acabava preso por um homem e uma mulher que atravessavam a cena e que se exercitavam em bater um no outro, e que a certa altura da encenação viravam policiais.
Os dois Carrascos era um “melodrama autobiográfico” cujos personagens simbólicos representavam algumas peças do jogo político fascista: Conceição, a mãe representando valores tradicionais: Família, Pátria, Moral Cristã que denunciara o marido à policia fascista e seus dois filhos: Benito que a apoiava e Mauricio que se rebelava, mas, no entanto era submisso, representando, portanto o povo espanhol humilhado. Finalmente na Primeira Comunhão a Avó dava conselhos a Uma Menina paramentada como comungante sobre os valores tradicionais, sobre o comportamento dela como mulher na sociedade, uma mulher casada que devia se submeter em tudo ao marido.
Portanto tínhamos uma junção que resultaria explosiva: um autor considerado difícil, e um encenador hiper criativo: Victor Garcia que assim apresentava o dramaturgo e sua concepção do espetáculo: “Arrabal é antifranquista, tem um irmão militar que trabalha na Aeronáutica da Espanha e o pai, desaparecido na Guerra Civil Espanhola, teria sido denunciado pela própria mãe. Desse desencontro, com metade da família voltada para uma posição política e a metade para outra, nasceu a revolta de Arrabal que a introduz em suas obras teatrais. O Cemitério de Automóveis retrata as misérias existenciais, morais e psicológicas de pessoas-notadamente as de nível social mais baixo- que vivem nos automóveis abandonados-da Europa e sobretudo dos Estados Unidos, como se fossem suas próprias residências.Os automóveis abandonados tem duplo sentido, pois na realidade as pessoas vivem, procriam , dormem, amam e odeiam dentro dos carros, mas têm também, um sentido vago, pois o teatro de Fernando Arrabal não é realista, mas abstrato.
Quando Victor Garcia expos seu projeto para esta encenação no Brasil ele falava em “teatro total”: uma encenação que envolveria três palcos simultâneos, onde os espectadores sentados sobre poltronas giratórias, poderiam se mover de um lado para o outro para acompanhar as três cenas, ou seja, ele queria repetir em São Paulo a proposta realizada em Paris. Vejamos como o diretor argentino descrevia o que queria para o espetáculo: “O cenário será formado com carcaças de autos: neles, como numa favela, vegetam várias famílias” e considerava que para tal bastariam duas salas. Victor era modesto, coisa que Ruth Escobar não era.
Ruth não optou por duas salas- ela reformou duas oficinas mecânicas na Rua Treze de Maio, no bairro da Bela Vista em São Paulo e com a ajuda de uma equipe de engenheiros montou um verdadeiro cemitério de automóveis com uma bela soma de dinheiro, coisa em torno de cem mil cruzeiros novos e um enorme elenco de 27 atores. E promoveu uma revolução no cenário teatral paulistano e brasileiro com O Cemitério de Automóveis que, programado para estrear em agosto de 1968 só foi aberto ao publico em fins de outubro daquele ano e já anunciado como “o mais difícil espetáculo até hoje montado no Brasil” (Diário de São Paulo, 21 de setembro de 1968).
Daí que o jornalista Olney Kruse vai dizer em artigo para o jornal Folha de São Paulo (26 de agosto de 1968): “No Cemitério de Automóveis não há argumento preciso, os personagens são cafajestes místicos, preocupados em destruir o elemento humano mais próximo de sua maldade.”
Novo conceito de espaço cênico
Estava criado um novo teatro em São Paulo: o Treze de Maio. “Não existia sala de espera,” descreve Newton de Souza, com mais detalhes que a minha descrição do mesmo cenário. “Assim ao ultrapassar a bilheteria, transpondo apenas um pequeno biombo, o espectador se encontrava no interior do espaço cênico, aparentemente não havendo delimitação entre as áreas de público e de representação. Logo na entrada da sala havia quatro carcaças de automóveis anos 50, suspensas no ar, presas ao madeiramento do telhado por correntes e ganchos de guindaste. As aludidas carcaças eram dispostas com aparente displicência acima da altura da cabeça dos espectadores e no centro da largura da sala. Como o teto não possuía revestimento, as instalações elétricas, os refletores e as telhas sobre madeiras sujas e mal pintadas ficavam expostas. Logo abaixo do conjunto de carcaças, um praticável inclinado de madeira com cerca de 6 metros de comprimento, partia do chão atingindo 90 centímetros de largura no centro do recinto. Esse praticável se unia a um palco, posicionado perpendicularmente medindo 6x 4 metros. A área do publico era composta por dois conjuntos de cadeiras giratórias de plástico rígido, ao redor do conjunto palco praticável ou em cadeiras fixas, posicionadas junto da parede esquerda do galpão e voltadas para o centro, ao nível do chão ou num nível superior, formando uma espécie de balcão”.
“Á frente das cadeiras superiores havia uma passarela cerca de dois metros e meio acima do solo, sustentada por colunas com intervalos regulares. Essa passarela com largura de dois metros cobria o perímetro da sala, com exceção da parede do fundo, ponto em que um praticável declinava até o chão. As paredes laterais estavam revestidas com chapas metálicas e por todos os lados eram vistas peças de funilaria amontoadas. A área total, ocupada pelo espaço cênico, media apenas 10x 30 metros o que intensificava ‘o entulhamento’. Os pontos de vista dos espectadores seriam diferentes dependendo da posição que ocupassem nesse ambiente em que estavam imersos”. As cenas se desenvolviam alternada ou simultaneamente ao longo do praticável inclinado e sobre o palco central; em meio e abaixo das carcaças próximas a entrada e sobre o mezanino. Os objetos que compunham o ambiente não eram totalmente fixos, de forma que alguns elementos eram movimentados pelos contra-regras ou pelos próprios atores, sem recursos eletromecânicos.
Complicada a explicação não? Pois o cenógrafo Wladimir Pereira Cardoso a época marido da empresária Ruth Escobar fala do espaço de forma mais simples, mais compreensível ainda que de fato tudo fosse bastante complexo. “Tivemos que inventar um tipo de palco que rompesse com todos os modelos conhecidos. As cenas se desenvolvem numa plataforma central a qual os atores chegam por uma rampa, e também uma passarela elevada que contorna toda a sala, junto as paredes. A representação portanto envolve o publico por todos os lados e em vários planos simultâneos.Sobre a passarela circulará até uma motocicleta , o que nos obrigou a usar materiais resistentes e caros.” Com tanta despesa, um dos atores observou que seria preciso “faturar alto”.Mas parece que a idéia de ganhar dinheiro não é mal vista pelos aficionados do teatro do pânico e mesmo segundo o próprio Arrabal que tem entre um dos objetivos da sua escola “o conforto na liberdade.”
No entanto esta não era a posição de Victor Garcia 33 anos a época, que como vimos já abdicara de sua fortuna para viver em Paris sobrevivendo de teatro. Definido por jornalistas como “baixo, nervoso, longos cabelos encaracolados, vestido exóticamente-calça justa, colete florido e casaco de pele – sendo que aparece de vez em quando com uma margarida atrás da orelha e um colar de contas brancas do qual pende um macaquinho no lugar do medalhão”, Victor não ambicionava riquesa com esta arte. Dizia que estudara tudo que era possível se estudar, mas sempre fora o ultimo aluno. “Todas as coisas que aprendi trato de esquecer rapidamente”. Cursou quatro anos de medicina, viajou muito, mas terminou indo para o teatro – sua verdadeira vocação. Mas contraditoriamente e bem ao gosto dos apóstolos do teatro pânico para quem a maneira de ser era: confusão, humor, terror, o acaso e a euforia e para quem era possível se afirmar duas idéias contraditórias ao mesmo tempo-o bem e o mau, o feio e o bonito, a construção e a destruição ou não afirmar coisa alguma – ele, que ainda que não se colocasse como adepto dessa escola, considerava que o publico e os atores estavam mortos, que o teatro estava morto. “Não podemos salvar o teatro fazendo teatro.” Daí que, muito contraditório, destinava seus espetáculos “justamente as pessoas que não vão ao teatro.” No entanto essa afirmação pânica de duas idéias contraditórias também, “não devia ser tomada ao pé da letra.”
Newton de Souza anota que “um espetáculo com tais características se destacava claramente do padrão vigente, bastando lembrar que a grande maioria dos espetáculos teatrais ainda hoje, se realiza frontalmente, sendo, portanto compreensível que o simples abandono dessa relação tradicional fosse um estimulo à curiosidade do público”. E lembrava que neste ano de 1968, pelo menos na cidade de São Paulo a hegemonia da frontalidade: os atores representavam de frente para a platéia já havia sido pelo menos “aranhada” pelas propostas do Teatro de Arena e Teatro Oficina que vão desenvolver projetos iniciados em 1951 na Escola de Arte Dramática de São Paulo com espaços cênicos desenvolvidos pelo arquiteto Joaquim Guedes para o Oficina formado por duas platéias paralelas e convergentes com a área de representação no centro.E ainda o espaço de Roda Viva, que marcou uma mudança importante não só na proposta cênica mas foi um espetáculo altamente agressivo no sentido de provocar a platéia naqueles anos de chumbo que vivíamos desde 1964 com o Golpe Militar.
Isso para dizer que a proposta de Victor Garcia em Cemitério de Automóveis apresentava particularidades não encontráveis em outras companhias profissionais. Não se tratava aqui apenas de um novo tipo de palco, mas de um novo conceito de espaço cênico, na medida em que o ambiente original – uma oficina mecânica fora preservado em suas características fundamentais para atender as exigências da montagem. Neste sentido Newton de Souza anota que o espetáculo “era a primeira experiência registrada no Brasil, onde o espectador era envolvido pelo ambiente sugerido pela encenação nos moldes daquilo que em artes plásticas se pretende com a instalação”.
Criticas discordantes
As críticas eram em geral positivas, mas havia discordâncias sendo que um dos mais entusiastas era Sábato Magaldi que usava em seu texto de 16 de outubro de 1968, para o Jornal da Tarde, termos como: “delírio da imaginação”, “ ritual artaudiano”, “apelo aos sentidos em mostra mediúnica de horror cósmico” já que “ a mais profunda irrisão se ordena numa plasticidade de beleza invulgar, e referia-se ao Victor Garcia como um “encenador sacerdote”. Quanto ao texto dizia: “as quatro peças enfeixadas sob o nome da ultima, têm a sua unidade própria, numa organização intima que se basta. Não será exagero afirmar que a disposição cênica nova que lhes deu Victor Garcia fundindo-as e interpondo-as entre os dois atos originais de Cemitério o ato dos Dois Carrascos, e deslocando o seu desfecho para o fim da Primeira Comunhão talvez obscureça um pouco o sentido já bastante hermético dos textos, mas atinge uma expressão muito mais violenta e compacta do universo de Arrabal. Mas Sábato não deixava de constatar um grau de hermetismo no espetáculo que parecia que tinha uma vontade de opor a essa cerimônia pânica “…” um mundo de clareza e lógica e daí que o resultado, ele constatava – proibia um juízo de desempenho em termos rotineiros o que legitimava qualquer possível incompreensão”.
Já a crítica Regina Helena (16 de outubro de 1968 no jornal A Gazeta, SP) não fazia concessões e declarava seu desconforto com a liberdade do encenador, alegando que Victor Garcia havia montado “um espetáculo pirotécnico, barulhento, em ritmo completamente maluco, ensurdecedor, que deixava o publico desnorteado e sem fôlego para prestar atenção ao texto, sugerindo que em alguns momentos o diretor tenha decidido mesmo fazer sensacionalismo não resistindo à tentação de espantar os burgueses.” Enfim ela acusava os produtores e diretor de não terem feito qualquer esforço para esclarecer o publico que não se tratava de uma única peça e completava dizendo: “Arrabal já é um autor difícil. As verdades que ele diz precisam ser procuradas dentro do texto. É preciso pensar sobre suas peças. No meio de todo o seu absurdo, há um misticismo coerente, há uma linha de pensamento, de raciocínio, que jamais poderá ser encontrada pelo público que for ver O Cemitério de Automóveis”.
A verdade é que o espetáculo gerou polêmica entre os críticos que com menores ou maiores restrições salientavam a autonomia da encenação em relação ao texto. Assim Paulo Mendonça, do jornal Folha de São Paulo (3 de novembro de 1968) que já julgara legitimo o procedimento de Victor Garcia voltou a escrever e se apoiou em Décio de Almeida Prado em defesa da montagem que já tinha se referido “ao deslocamento do teatro de texto para um segundo plano, com a presente predominância do teatro-espetáculo”. Isso para concluir que afinal a encenação tinha mesmo “uma tendência para atingir o espectador mais pelos sentidos do que pela inteligência e acentuava a semelhança com experiências que buscam recuperar “os valores primitivos da atividade dramática, como nas festas e nos rituais religiosos.”
Enfim os críticos João Apolinário (12 de outubro de 1968, Última Hora, RJ) e Carlos Alberto Christo (22 de outubro de 1968, Folha da Tarde, SP) fizeram referencia a Meyerhold ainda que houvesse certa unanimidade entre eles em considerar que pelo aspecto ritualístico da encenação o espetáculo de Victor Garcia se filiasse mesmo a Artaud. Nesta linha ia a pesquisadora francesa Odette Aslan, que em estudo sobre Cemitério de Automóveis (Le cemitière des voitures-Jacquot, J. (Org.) Lês voies de la création théatrale , 1970, p. 332) ter aventado a hipótese de que este vinculo tivesse sido estabelecido por precaução já que o próprio Victor Garcia alegara que qualquer influencia com o criador o Teatro da Crueldade seria improvável já que ele conhecera muito tarde as propostas de Artaud. Suas referencias dizia, “eram mais o folclore indígena e a cultura brasileira”. Aslan vai alertar que a referencia a Artaud admitia ambigüidades já que considerava possível encontrar em Cemitério de Automóveis traços de Stanislavsky e de Brecht. Enfim, a verdade é que o espetáculo revolucionário de Victor Garcia suscitava a critica que se desdobrava para enquadrá-lo em alguma corrente, movimento, tendência do teatro universal.
Newton de Souza acredita ser possível aceitar algumas semelhanças entre as proposições de Artaud, mas Cemitério de Automóveis em hipótese alguma levava à radicalidade do encenador francês no tocante a sua recusa total à arte como entretenimento. Para ele Cemitério de Automóveis “podia, talvez, em sua montagem parisiense ter tido ligações com Artaud, mas nesta montagem brasileira “era uma produção comercial da produtora na qual Victor Garcia propunha um trabalho de ordem estética, atribuição completamente afastada do Teatro da Crueldade”. O sentido quase sagrado pretendido pelo teatro e a possibilidade de produzir na platéia algo semelhante ao que faz o ‘ encantador de serpentes’, exigia um envolvimento orgânico e particular com a arte”.
Já Victor Garcia segundo ele mesmo dissera “criava arquiteturas” e ainda detestava ensaiar – era Silvio Zilber, ator e assistente de direção que fazia as répetitions (ensaios em francês). Enfim para Newton as raízes de Cemitério de Automóveis podem ser mais bem entendidas se comparadas a uma manifestação que se dinamizava no final dos anos 60 e que de alguma maneira guardava certas correspondências com Artaud: o happening. “Os happeners, como são conhecidos os realizadores deste evento, renunciam totalmente ao texto escrito e operam sobre o publico uma espécie de terrorismo sensorial e nervoso através de jatos violentos de luzes espasmódicas, ruídos ensurdecedores, objetos que são atirados, em geral sujos sobre a platéia”.
De qualquer forma aqui também é uma tentativa de interpretação porque em Cemitério de Automóveis ninguém jogava nada na platéia, mas Newton de Souza explica esta possível aproximação do espetáculo com este movimento teatral pelo fato de esta manifestação ter sido uma das propostas do teatro pânico de que Arrabal fazia parte.Mas ele vai lembrar também que o happening não podia ser ensaiado ou repetido não podia ser totalmente premeditado, ou seja era uma espécie de comunhão coletiva e possuía um caráter efêmero. E daí que ele mesmo diz que o que distanciava a versão paulistana de Cemitério de Automóveis da proposição original do happening é justamente a abolição da efemeridade: se foi apresentado poucas vezes em Paris e se esta era uma característica dos espetáculos de Victor Garcia lá-daí sua indisposição com as repetições – queria sempre uma coisa nova- na versão paulistana ele acredita que pode se encontrar o tema social metaforizado numa dimensão trágica.
O Balcão de Jean Genet “Garcia”
Depois de Cemitério e seu sucesso Ruth Escobar e Victor Garcia resolveram montar alguma coisa maior, mais grandiosa – O Balcão de Jean Genet onde novamente o encenador argentino vai dar sua marca: partir da arquitetura para conceber seus espetáculos, fazendo do espaço cênico, como constata Newton de Souza, “o principal alicerce de sua criação teatral.” E O Balcão pela grandiosidade e complexidade mecânicas empregadas vai merecer o reconhecimento de Denis Bablet (Les révolutions scéniques du XXo. Siècle, Paris: Société Internacionale d´Art, 1975) como a única produção brasileira a figura entre as denominadas Revoluções Cênicas do século XX.
As críticas agora eram deslumbradas. O critico, professor e autor de teatro Sábato Magaldi escrevia em critica publicada no Jornal da Tarde (31 de dezembro de 1969): “Só no Brasil – que, felizmente, está aberto para o imprevisível e a criatividade – seria possível realizar a montagem de O Balcão, agora oferecida no Teatro Ruth Escobar. As rigorosas leis do profissionalismo nunca permitiriam esse esbanjamento de imaginação fora da realidade, e a tarefa amadora é forçosamente mais modesta, sem recursos para animar o universo encantado da obra de Genet e do encenador Victor Garcia. Anotemos sem retórica: estamos vivendo uma experiência teatral única no mundo, em que ao menos a curiosidade deveria provocar filas para a entrada nessa casa de ilusões.”
“Assim como o bordel de Mme. Irma apresenta todos os prestígios da fascinação e da fantasia para os seus clientes, a majestosa e poética estrutura metálica do cenário de Wladimir Pereira Cardoso instala os espectadores como voyeurs desse jogo ilusório, tornados participantes de um ritual de frustrações e de sonhos que nos desnudam as nomenclaturas míticas da humanidade. O brilho falso da pompa, que permite a pobres mortais se converta em bispo, juiz e general, na casa de ilusões acionada por mecanismos cenográficos, materializa-se em quase brinquedo na maquinaria engenhosa e sedutora exposta ao público. Magnífica e evanescente casa de ilusões para as personagens e para nós, voyeurs.
No entanto apesar deste inicio deslumbrado, ele aponta problemas do espetáculo: riquesa ainda irresolvida de duas linguagens que juntas, ultrapassam a capacidade receptiva das pessoas-a verbal de Genet e a visual de Garcia. Anota que preso ao tempo da maquinaria faustosa, o encenador foi obrigado a sacrificar diálogos belíssimos o que dificultava para o espectador, acompanhar o desenvolvimento do texto. “Para a cerimônia de Victor Garcia talvez fosse recomendável um autor menos inspirado, que não concebesse a peça como único estandarte da palavra. A contradição se encontra no fato de que ou Genet precisaria reescrever o texto para integrá-lo melhor na concepção de Victor Garcia ou o encenador deveria humildemente expor o dramaturgo, para a literatura não parecer às vezes um ornamento demasiado.”
Mas de qualquer forma fazia o elogio dos atores, que depois de terem ensaiado durante seis meses, foram obrigados a parar e buscar outras formas de sobrevivência para retornarem ao espetáculo e cita o time escolhido de atores brasileiros: Raul Cortez, Sérgio Mamberti, Dionizio Azevedo, Célia Helena, Thelma Reston, Neide Duque, Vera Lúcia Buono, Carlos Augusto Strazzer, Paulo César Pereio, Jonas Mello. E termina afirmando que “pelas vicissitudes de seu preparo e pela coragem épica da empresária Ruth Escobar, pelo resultado artístico alcançado com criação de beleza pura e austera, O Balcão marca a história do nosso teatro e faz de nós espectadores prosaicos, beneficiários de um raro privilégio”.
Sergio Viotti em sua critica publicada no jornal O Estado de São Paulo (18 e 20 de janeiro de 1970) reconhecia: “É difícil comentar o fantástico sem fugir ao equilíbrio racional e metódico que acompanha o habitual. Nesta montagem de O Balcão de Genet, que agrediu São Paulo com impacto muito mais impressionante do que as tempestades de janeiro, tudo é tão magnífico, de tal qualidade de beleza visual, de uma vibração sensual tão densa e sufocante, de um ardor de imaginação desenfreada tal que se irmana aos excessos de visões místicas indecifráveis e à loucura que não teme a matéria, a forma, o som ou a palavra.”
Continuava dizendo que um convite era feito aos espectadores: penetrar numa escultura no interior da qual os atores representam suspensos no ar e onde todos ficaremos desconfortáveis, mas “fascinadamente mesmerizados às bordas de um abismo, sentados ao longo de um espiral que sobe contornando as paredes internas de um funil de negros fios de ferro. O espaço cenográfico é o mesmo espaço da arquitetura teatral: o teatro é o próprio cenário, apenas protegido do ar livre pela casca das paredes externas do prédio.Quem conheceu o Teatro Ruth Escobar não o conhecerá mais, pois deixou de existir.em seu lugar ergue-se O Balcão, a Casa de Ilusões de Mme. Irma”.
“Dentro da maravilhosa estrutura fixa de Wladimir Pereira- (um trabalho de inventiva e paciência orientais) processa –se um jogo de formas móveis que baixam do alto para serem içadas, variando constantemente a área espacial: outras deslizam verticalmente sobre os eixos de sustentação nas faces internas da estrutura; em determinado ponto, parte desta se abre, como um portal de duas folhas, pesado de espectadores que se movem também, e nos comunicamos com o que foi o fundo da platéia em degraus do transformado teatro, agora o caminho que leva da prisão da Casa de Ilusões de Mme Irma (que se recusa a chamá-la de bordel) à prisão do vasto mundo onde os revolucionários lutam.”
Diferenças e semelhanças – Agilidade e coragem
Comparando as duas montagens do diretor argentino no Brasil, Sergio Viotti constata que enquanto no primeiro – O Cemitério de Automóveis, o problema espacial e o ritmo haviam sido resolvidos horizontalmente, aqui neste O Balcão ele fora organizado verticalmente, mas sempre com um ritmo próprio liturgicamente solene. “Através da imaginação e riquesa de meios de expressão (o gesto significante, os rituais assombrosos, a coreografia das máquinas) O Balcão vai deixando entrever sua profundidade: ilusão e realidade se confundem, devoram-se e a conquista do real nas bases da ilusão aprisiona da mesma forma. O resultado em termos de envolvimento é tão grandioso que qualquer comentário sobre alterações no texto de Genet torna-se vão e sem propósito. É muito raro ver-se um diretor que vá além do texto que trabalhe sobre ele com a fúria de um selvagem fascinado pelo rito sangrento que inventou (do qual não pode mais se libertar; que tem de levar até o fim) e que assim fazendo, recrie este mesmo texto em um plano anterior à criação do próprio autor. Garcia não encenou o texto de Genet: foi as suas origens e trouxe a luz o essencial, sobre alicerces de criação paralela.Não é dado a todos os diretores idêntico privilégio sem castrar o autor distante.Em sua ousadia, Victor Garcia nos mostrou uma grandeza que a peça não teria se fosse montada no acanhamento de um cenário(como sugerido pelo autor) ou nas linhas realistas da primeira montagem no Arts de Londres, em 1957 onde a obediência sabia a inconfortável Grand Guignol.”
Viotti salientava ainda que o duelo entre o corpo humano e a máquina é incessante. “Ela o ergue, abaixa, suspende, balança, recurva, sorve-(há instantes em que os corpos parecem estar sendo sugados pela fossa da luz prateadamente infernal) e ascende (como na inesquecível cena final em que o Homem Liberto emerge dos infernos e sobe, em gloriosa ascensão, crucificado no espaço, com um sorriso no rosto e um laivo de eternidade no olhar fulgurante) enquanto outros, emergindo da concavidade luminosa no fundo do cenário-visão de um fosso sistino, não de um teto-sobem pela armação afunilada, eles também galgando e atingindo a uma liberdade à qual o Homem tem direito, evocando uma gravura dantesca de Gustave Doret em movimento. Por vezes, esta luta (carne versus máquina) torna-se quase intolerável, como na longa cena de Irma e Carmem.”
Para Sergio Viotti o resultado final tinha uma unidade de interpretação de grande densidade: “Raul Cortez (com um arrojo e grandeza), Célia Helena (voz-lágrima cheia de tristeza humanissima), Sérgio Mamberti (um furor cheio de espantos), Dionizio Azevedo (com um vigor angustiado), Ruth Escobar, (a rigidez e o propósito das Grandes Donas de Balcões e Tronos), Jonas Mello (a brutalidade sensual indiferentemente macha), Paulo César Pereio (autoridade perdida), Nilda Maria (arfante procura de várias liberdades) e Carlos Augusto Strazzer (que tem como pede Genet, um rosto assez triste et assez farouche)-todos unidos dão uma contribuição vital ao espetáculo.”
“Escravos de daquela estrutura medonhamente maravilhosa, de um realismo fantástico além da imaginação, de gravuristas sombrios, os atores, parte de uma única imagem total executam feitos de uma ousadia física que já se torna coragem.” Anote-se aqui que enquanto em Cemitério de Automóveis os críticos falavam em agilidade dos atores, em O Balcão eles já usavam o termo coragem. De fato era preciso muita coragem para este espetáculo onde, apesar de todos os cuidados tomados pela equipe de cenógrafos liderados por Wladimir Pereira Cardoso, por um pouco o ator Rofran Fernandes (falecido) perde a vida. Segundo conta o pesquisador Newton de Souza, um dia Rofran ao sair do elevador onde ocorriam as cenas dentro do cone, mal colocara o pé na plataforma fixa teve uma surpresa-o elevador despencou. Inda bem que ninguém morre antes da hora.
Mas Sergio Viotti conjectura que provavelmente aqui no Brasil, a exemplo do que ocorrera como outras encenações desta peça, Genet talvez tivesse se amargurado, já que não aprovara as propostas de diretores como Peter Zadek em 1957, em Londres, Mathurins em Paris em 1960, a do Circle in the Square em Nova York, a de Berlim entre outras que ignorou, já que Victor Garcia não respeitou também o seu texto. “Trabalhou sobre ele, recriou, cortou falas e personagens ”…. “mas afinal tudo isso um diretor total pode fazer sendo que esta lição nos deixou Meyerhold, que já torcia e retorcia textos sacrossantos. E quem lucra com isso? O teatro.” É verdade que Victor Garcia fez isso – interferiu loucamente no texto de Genet, mas com o aval do autor francês que a empresária Ruth Escobar trouxe para o Brasil à época, e o diretor argentino conta como isso aconteceu no programa do espetáculo, que vale ser citado na integra .
“Depois de analisar demoradamente com Genet, a montagem de O Balcão ele me disse: ‘Se for preciso Victor, traia-me’. Eu tinha autorização para cortar, introduzir falas de outras peças e de romances no espetáculo. Mas no momento de realizá-lo, senti que bastava o texto original de Genet. Aliás, interessava-me sua essência, porque sua forma permanece antiga, presa as convenções do palco italiano. O balcão, sob certo aspecto, lembra Pirandello. Hoje Genet sabe que se assiste ao fim da literatura teatral, e que a expressão dramática passa por uma metamorfose não por uma crise.”
O outro lado da moeda – Victor vítima da engrenagem
Agora voltando aos inícios deste texto, quando contei para o Newton que o Victor não me dirigiu – quem me ensaiou foi a Assunta Perez, ele disse: “Mas ele não dirigiu ninguém! Evidente ele deu as coordenadas do espetáculo e passou a bola para o Silvio Silber, porque ele não gostava das repeticiones, portanto las repeticiones quem fazia era o Silvio”. E quanto àquela cena ocorrida comigo e das minhas supostas deduções a posteriori do que ele poderia ter imaginado-que eu era uma grande atriz trágica, mas uma boba, afinal eu tinha 25 anos e estava começando, mas já fazendo sucesso, mas tudo era muito novo e estranho, para minha surpresa ele me disse: “Não, ele foi envolvido numa onda, era o gênio, e afinal só tinha 31 anos e devia estar naquele momento tão deslumbrado quanto você, porque com o Victor aconteceu que de repente caiu num mundo de glamour e na verdade era um cara simples. Era um menino…”.
“Na verdade” ele continua, “o Victor foi transformado num mito que ele não preparou, ele foi moldado principalmente aqui no Brasil, porque lá fora ele era um grande criador, importante como muitos outros. Mas aqui no Brasil ele era o gênio tanto que para os críticos faltou instrumental de análise: as análises criticas dos seus espetáculos eram muito precárias porque mesmo não entendendo nada os críticos achavam tudo maravilhoso.” Por tudo que estudou sobre ele, Newton considera que Victor Garcia não fosse uma pessoa que tivesse a convicção e a certeza de todos os elementos que estavam permitindo este sucesso suas idéias, especialmente as colocadas no Cemitério de Automóveis tinham tudo para serem censuradas considerando que vivíamos sob a ditadura militar iniciada pelo Golpe de 1964, como por exemplo, a critica ao fascismo, os ataques dele a Igreja Católica.
Então o paradoxo é este: ele falando de coisas, abordando temas perigosos para a época e sendo aclamado como um gênio da vanguarda nacional enquanto outros diretores eram censurados e até presos ou obrigados a sair do país como foi o caso de Augusto Boal só para citar um exemplo entre outros como policiais invadindo teatros e prendendo atores, diretores e até de repente querendo localizar aquele tal de Sófocles ou o Shakespeare – onde eles estavam que eles prenderiam. Seria cômico se não tivesse sido trágico. Por isso ele considera que uma das cenas mais inteligentes do Cemitério de Automóveis a da Primeira Comunhão em que há um jogo de contradições incrível-a idéia de como uma mulher deve ser para servir o marido. “Naquele momento isso era extremamente forte porque ele justamente vai criar a idéia da libido que está enrustido, do desejo em torno da degradação da menina que vai mudando diante do publico.”
Esta sacada do Victor Garcia é genial segundo o Newton porque é um convite ao não conservadorismo o que faz com que Cemitério seja mais coeso que o Balcão. “O gigantismo de O Balcão envereda por dois universos e ai que eu falo da roda, a engrenagem e a moeda, porque na verdade é o Brecht que diz isso (o encenador alemão Bertolt Brecht) quando ele se refere à relação da ópera tradicional e a função da ópera no contexto mais critico na sociedade alemã entre guerras) que fala disso. O produtor, o artista muitas vezes se insere num mecanismo de produção no qual ele acredita dominar o processo, ele acredita dominar a máquina. Na verdade ele fica sendo uma peça nesta engrenagem. E isso aconteceu com Victor Garcia – ele não entendia, não teve a visão do todo e ele não foi a engrenagem, ele foi convidado, ele foi tendo prazer, ele foi instigado, estimulado a entrar no processo. Como estava dando resultados ele estava envolvido de tal maneira que não conseguiu se desvencilhar. E o Brasil oferecia condições que ele não encontraria em outros lugares.”
“E de qualquer forma era o Wladimir Pereira Cardoso que solucionava as idéias, o sonho, o delírio todo-lógico a criação era do Victor, mas era ele que pegava no pesado. Ele ficava a noite toda trabalhando, soldando junto com os técnicos”. Por mais chocante que possa parecer para quem não apenas viu os seus espetáculos, mas participou de um deles, Victor Garcia na verdade, não fez um trabalho de vanguarda no sentido da palavra, ou seja, se formos entender vanguarda como busca de alternativas para os modelos capitalistas de produção. Estudando a concepção de espaço cênico do diretor nessas montagens, Newton vai constatar que os espetáculos de Victor Garcia, embora tenham marcado época, eram desprovidos dos elementos contestadores ou revolucionários inerentes às vanguardas. Ele argumenta que essa denominação só seria correta se o diretor buscasse, de fato, formas alternativas de criação e de disseminação da obra – o que não para ele não ocorreu.
Segundo Newton, Victor Garcia “teria alcançado grande impacto formal pela engenhosidade e pelo aspecto monumental de suas encenações, mas seu caráter vanguardista seria reduzido, pois as soluções pelas quais buscou criar impacto sobre a platéia continuaram seguindo os interesses capitalistas em relação ao produto artístico” E embora as montagens de Garcia realizadas no Brasil, tenham causado impacto no público pelo uso do espaço cênico e pela nudez, não poderiam ser consideradas efetivamente de vanguarda, pois ele sempre produziu seus trabalhos dentro das normas capitalistas, procurando, com esses recursos, disputar espaço no competitivo mercado do entretenimento. Bem, fora isso, ele prova na sua tese que na verdade aquela dita vanguarda não era na verdade vanguarda no sentido da palavra. “Foi oportunismo da Ruth em aproveitar o momento histórico de contestação, etc., mas afinal foi considerado como vanguarda e teve repercussão internacional.”
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Ana Lúcia Vasconcelos é atriz, jornalista, escritora e tradutora, licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp, e acaba de preparar um livro ainda inédito sobre Hilda Hilst que o MUSA RARA publica em partes. E-mail: analuvasconcelos@globo.com
sexta-feira, 3 de maio de 2013
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