segunda-feira, 20 de maio de 2013

"Conspiração" sobre autoria das obras de Shakespeare é tema de debate na Flip


Norte-americano James Shapiro, autor de "Quem Escreveu Shakespeare?", participa de mesa sobre obra do dramaturgo.

Marco Tomazzoni , iG São Paulo
02/07/2012


          Há séculos um zunzum anima o meio literário: William Shakespeare não seria o autor de suas peças. Como são poucos os registros existentes da vida do autor britânico, as lacunas alimentaram as dúvidas de como o filho de um fabricante de luvas no interior da Inglaterra no século 16, teoricamente capaz de apenas soletrar seu nome, se transformaria no maior dramaturgo da história.

          E são justamente os anos da formação intelectual de Shakespeare, entre o casamento com Anne Hathaway (sim, o mesmo nome da atriz) no começo da década de 1580, aos 18 anos, e sua reaparição em Londres, em meados de 1590, já como aspirante a escritor, que permanecem desconhecidos. O passar do tempo só serviu de adubo para que teorias cada vez mais curiosas criassem raízes no imaginário popular e configurassem o ambiente de um mistério dos mais instigantes, que inspirou recentemente, inclusive, o filme Anônimo.

          É esse panorama que o norte-americano James Shapiro analisa em "Quem Escreveu Shakespeare" (editora Nossa Cultura), que será lançado na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip 2012 , que acontece entre 4 e 8 de julho. Professor da Columbia University, Shapiro é um dos maiores estudiosos da obra de William Shakespeare, alvo de outro de seus livros, "1599: Um ano na vida de William Shakespeare" (editora Planeta).

          Cético em relação às ideias conspiratórias relacionadas ao bardo – há até o boato de que professores são pagos para esconder informações a respeito da suposta verdade sobre Shakespeare –, Shapiro mergulhou nesse mundo obscuro e voltou à tona com um dossiê investigatório completo: em seu livro, compila os principais candidatos à autoria das peças, desmascara pistas falsas deixadas pelo caminho e oferece ao leitor os fatos comprovados do caso. É essa, segundo ele, sua religião.

          Hoje em dia, os principais, digamos, "concorrentes" de Shakespeare são Edward de Vere, o conde de Oxford, e sir Francis Bacon. Há também Christopher Marlowe que, mesmo morto em 1604, antes da publicação de peças importantes como Macbeth e Rei Lear ainda é considerado no páreo – conforme seus defensores, o dramaturgo que inspirou Shakespeare teria simulado sua morte e continuado escrevendo anonimamente.

          Não é só isso. Correntes de pensamento paralelas atribuem a autoria à própria Elizabeth 1ª. Outras afirmam que o conde de Oxford e a rainha teriam tido um caso, ou que ela fosse mãe dele, ou as duas coisas – sim, há até incesto na família real na jogada.

          Confirmado na mesa "O mundo de Shakespeare", que divide com o também norte-americano Stephen Greenblatt, biógrafo do dramaturgo, na Flip, James Shapiro conversou com o iG a respeito da polêmica shakesperiana.

iG: Por que as pessoas são tão fascinadas por esse assunto? É porque lembra uma história de mistério?

James Shapiro: Meu livro acabou parecendo um história de detetive. Por que tantas pessoas inteligentes, inclusive Sigmund Freud, Henry James e Mark Twain, imaginaram que outra pessoa que não Shakespeare tenha escrito suas peças? E quais pistas jogam luz em quando e por que essa ideia apareceu? Faço meu melhor para seguir esse mistério até a década de 1850, e foi um livro excitante para se pesquisar. As razões que levaram as pessoas a duvidar da autoria de Shakespeare são complicadas, e variam de uma para outra. Mas no fundo, para muitas delas, foi o mistério de como o filho de um fabricante de luvas na Inglaterra rural pôde escrever peças tão impactantes.

iG: Por que alguém inventaria fatos sobre a vida de Shakespeare? Diversão, ciúme, alguma rivalidade?

James Shapiro: Tudo o que resta de Shakespeare são 37 peças, 154 sonetos e alguns poemas longos. Isso, e talvez pouco mais de 20 documentos que o mencionam, como seu testamento, registros de imóveis e de sua carreira profissional. Para um escritor elisabetano, é um bocado de coisas, mas não o suficiente para alguém tentando escrever uma biografia sobre ele. As pessoas forjavam informações para preencher o que estava faltando. Falo sobre isso em meu livro, como as informações falsas criadas por William Henry Ireland, que enganaram muita gente no século 18. Mas mais comum do que criar fatos é pegar aqueles que já temos e embelezá-los, ou ler os trabalhos de Shakespeare e imaginar, por exemplo, que ele morria de ciúmes ou não amava sua mulher porque os personagens de suas peças são assim. Você ficaria impressionado com o quanto essa abordagem é comum nas biografias de Shakespeare atualmente.

iG: A rainha Elizabeth 1ª e o rei Jaime 1º são os candidatos mais absurdos à autoria dos livros?

James Shapiro: Acho que o mais absurdo é Daniel Defoe (autor de "Robinson Crusoé"), que não era nem nascido quando Shakespeare morreu!

iG: Alguém já levou a sério o boato de que existe uma conspiração no mundo acadêmico para esconder a "verdade" sobre Shakespeare?

James Shapiro: Há quem afirme que os acadêmicos de Shakespeare têm tanto investido profissionalmente que conspiram ou são pagos para manter o segredo de que, na verdade, outra pessoa seria o autor. Posso assegurar que, se descobrisse qualquer evidência de que não foi Shakespeare quem escreveu Hamlet ou Romeu e Julieta, publicaria imediatamente e ficaria rico. Vivemos numa era em que as ideias conspiratórias são alimentadas pela internet, então a questão da autoria de Shakespeare lança luz não apenas nisso, mas também em nosso momento cultural.

iG: O senhor já escreveu que a fé de algumas pessoas na suposta fraude de Shakespeare é tão grande que elas não mudam de ideia nem mesmo diante de fatos. Em seu caso, o sentimento é oposto? Considera-se um verdadeiro crente na autenticidade de Shakespeare?

James Shapiro: Muitos dos debates sobre a autoria de Shakespeare utilizam linguagem teológica, o que denuncia que se trata mesmo de uma questão de fé para muitos céticos, não de fatos (por isso nenhum deles muda de ideia, nem mesmo quando confrontados com o que estudiosos consideram evidências indiscutíveis). Não sou crente em nada exceto em evidência documental. Passei boa parte de minha vida em arquivos tentando desenterrar o máximo delas possível, e o resto do tempo pensando em como explicá-las para outras pessoas, especialmente para curiosos fora do mundo acadêmico.

iG: O senhor tem uma teoria de como Shakespeare se tornou um autor extraordinário depois de seus "anos perdidos"?

James Shapiro: Outros têm; eu, não. E devo admitir que não passo muito tempo pensando em alguma que não posso possivelmente responder, já que não sabemos quase nada sobre os anos de formação de Shakespeare. Qualquer coisa que eu dissesse seria apenas uma projeção de meus próprios valores ou um reflexo da nossa cultura atual. Não estou certo, de qualquer maneira, se alguém conseguiria explicar o que provoca a genialidade – que é, no final das contas, o que estamos discutindo aqui.

iG: Há documentos suficientes para se escrever uma biografia adequada de Shakespeare? Ou boa parte dela continua sendo apenas ficção?

James Shapiro: Já declarei antes que não existem evidências suficientes que nos permitam escrever uma biografia completa sobre Shakespeare, do berço até o túmulo. Os anos perdidos de sua adolescência são um obstáculo; a falta de acesso a suas crenças religiosas e políticas, e até mesmo a sua vida amorosa, são outro. Dito isso, estou profundamente comprometido em escrever a respeito das partes da vida dele das quais sabemos um bocado. Por isso escrevi o livro 1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare (que levei 15 anos para pesquisar) e atualmente estou trabalhando em outro, 1606, o ano de Rei Lear. Mas esses livros são focados no que ele escreveu e o que aconteceu na época para influenciar suas peças e escolhas profissionais – não estou interessado em escrever ficção.

iG: O que o senhor espera de sua participação na Flip?

James Shapiro: Estou muito entusiasmado por visitar o Brasil pela primeira vez e me ver na companhia de tantos autores maravilhosos. Com relação à mesa sobre Shakespeare, Stephen Greenblatt é o melhor crítico vivo de sua obra e o estudioso da Renascença mais influente dos últimos 50 anos. Qualquer oportunidade de ver, conversar com ele e trocar ideias é sempre um prazer.
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A presente entrevista aconteceu há cerca de um ano. É possível que muitos parceiros do blog já a tenham lido, mas supondo que outros não, reproduzo-a aqui, por julgá-la muito interessante (LF).



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