segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Sonhos para vestir"

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Poesia em movimento


Lionel Fischer


Sob o título "O movimento das palavras é agir", a autora e única atriz do espetáculo, Sara Antunes, escreveu o que se segue no programa distribuído ao público: "Noite cintilante favorável para sonhar. No limite do dia. Uma parede escrita de sonhos. Uma cronologia do coração que é indestrutível. Alguma coisa que adormece e alguma coisa que desperta. Sem saber se teatro, música ou artes plásticas, 'Sonhos para vestir' é antes um devaneio poético. Um tributo àqueles que sabem que imaginação faz criar o que se vê".

Como se sabe, é comum a um autor, ao falar de sua obra, exagerar suas virtudes ou minimizar seus defeitos, o que dá no mesmo. Aqui, no entanto, Sara Antunes não faz nem uma coisa nem outra; apenas tenta expressar, através de palavras impregnadas de poesia, o contexto básico de uma peça que, talvez, alguns poucos néscios não encararão com "teatro". Então, cabe recordar a maravilhosa definição do mesmo feita por Antonin Artaud: "Teatro é poesia em movimento".
E de fato é o que acontece no Espaço Sesc, que ora abriga esta montagem belíssima, dirigida por Vera Holtz.

Do parágrafo inicial, consta a expressão "devaneio poético". Mas isto não significa - atentai para este singelo detalhe, néscios e retrógrados de plantão - que não estejamos diante de um texto teatral. Ocorre, apenas, que ele obedece a uma estrutura cuja natureza em tudo se assemelha à dos sonhos, ou mais especificamente, à da memória. E esta não existe com o rigor que a ela em geral se atribui; pelo contrário: com o passar do tempo, toda memória sofre múltiplas interferências e assim, inevitavelmente, terminamos por recordar não exatamente aquilo que foi vivido, mas as sensações que optamos, conscientemente ou não, por conservar. Pensar o contrário, ao menos em minha opinião, equivale a sustentar que não nos esquecemos de uma flor porque era bela, quando talvez o essencial esteja em seu perfume.

E aqui, é o perfume que predomina. O perfume das palavras, das lembranças que as palavras evocam, dos desejos que fabricam, daí resultando uma permanente ânsia de viver a vida em sua plenitude, ou seja, conseguindo extrair beleza de objetos ou fatos aparentemente insignificantes, mas que adquirem transcendência graças à dimensão poética com que são encarados. Enfim...se é verdade que no princípio era o Verbo, este se faz aqui presente em múltiplas conjugações, restando a cada espectador perceber em que tempo está conjugando a sua vida e, se necessário for, ter a coragem de alterá-lo. Sempre.

No tocante ao espetáculo, Vera Holtz cria uma dinâmica cênica em total sintonia com o material dramatúrgico. Delicadas, imprevistas e criativas, suas marcações não se afiguram como impostas, mas como se fossem decorrentes de impulsos e desejos que só poderiam ser apreendidos da forma como foram materializados. E cabe ainda ressaltar que a atriz possui total liberdade para interagir com a platéia, que, por sinal, a cada noite contribui para conferir à narrativa novos e inesperados rumos.

Quanto à Sara Antunes, além de ter escrito um texto belíssimo, cabe ainda o mérito suplementar de ser uma atriz em nada parecida com tantas outras, ainda que excelentes. A sensação que tenho é a de que está em cena não para "distrair criaturas já de si tão mal atentas", como disse Louis Jouvet, mas para fazer dançar, nos olhos dos que a vêem e ouvem, a esperança. Esta é, sem dúvida, uma das muitas razões que fazem de Sara Antunes uma intérprete especialíssima, uma verdadeira dádiva para todos aqueles que, como sustenta Peter Brook, encaram o teatro como "a arte do encontro".

Na equipe técnica, é simplesmente deslumbrante o cenário-instalação de Analu Prestes, que me abstenho de descrever para facultar ao espectador a mesma surpresa e encantamento que me gerou. E o mesmo nível de excelência se faz presente na iluminação de Paulo César Medeiros, no figurino de Kabila Aruanda e na música (execução e composição original) de Daniel Valentini, profissionais que contribuem de forma decisiva para o incontestável êxito desta maravilhosa jornada teatral.

SONHOS PARA VESTIR - Texto e interpretação de Sara Antunes. Direção de Vera Holtz. Espaço Sesc. Quinta e domingo, 20h. Sexta e sábado, 21h30.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Histórias de amor líquido"

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Bela reflexão sobre o efêmero


Lionel Fischer


"São três histórias de amor líquido. Três histórias que Walter Daguerre criou inspirado pela obra de Zygmunt Bauman, sociólogo polonês com mais de cinqüenta livros publicados, a maioria abordando a falta de contornos definidos nas relações humanas, a existência líquida, o trabalho líquido, amizades líquidas, amores líquidos. Nesta aventura, vamos compartilhar a concepção de Bauman sobre o amor que não consegue ter vínculos sem se sentir aprisionado, essa impossibilidade de avaliar com maturidade um relacionamento, imaginando sempre que devemos estar perdendo alguma coisa melhor".

A este fragmento, extraído do programa e escrito por Paulo José, acrescento mais um, em que o encenador resume as três histórias: "'Rua sem saída', que abre o espetáculo, é a mais soturna das três. Dois seres que não dormem, um homem e uma mulher, se identificam pelo que têm em comum: a insônia. 'A corretora' cumpre uma importante função social como já o fizeram, em outras épocas, as cafetinas de luxo. 'A casa da ponte' é a mais familiar das histórias, debatendo-se os personagens num mundo que não aceita relações sólidas, uma sociedade hedonista na qual é moral aquilo que nos dá prazer".

Em cartaz no Teatro Poeira, "Histórias de amor líquido" chega à cena com direção de Paulo José e elenco formado por Ana Kutner (Graça/Sofia), Alcemar Vieira (Ricardo/Rudson/Marcus), Bel Kutner (Maritza/Teresa/Mãe), Márcio Vito (Zé Carlos/Antonio/Pai) e Natália Garcez (Michele/Raquel).

Embora Walter Gaguerre tenha tido a gentileza de me enviar o texto, não o li antes de assistir ao espetáculo, da mesma forma que não leio nenhum release ou programa, pois prefiro ignorar informações prévias para assim poder me colocar de forma inteiramente disponível e desarmada com relação ao texto e a montagem - quando se trata de uma obra por demais conhecida, é óbvio que seria ridículo fingir que não a conheço. Seja como for, tão logo o espetáculo começou, tive a intuição de que sofreria do início ao fim. E tal intuição se confirmou inteiramente, pois meu olhar sobre a cena está em total sintonia com a visão que o encenador tem do texto.

Realmente, vivemos em uma época em que as relações, quaisquer que sejam elas, têm como principal característica o efêmero, como se nada de mais sólido ou duradouro pudesse ser estabelecido. Em termos amorosos, por exemplo, se eu não encontro no real alguém que preencha minhas expectativas, posso tentar suprir esta carência no plano virtual, cuja amplitude de opções se afigura, ao menos aparentemente, como ilimitada. Aliás, em dado momento da montagem, um dos personagens diz exatamente isso: "Hoje em dia, só fica sozinho quem quer".

Mas a questão que se impõe não se resume a estar ou não estar com alguém, e sim na qualidade e intensidade do encontro, nas cumplicidades e parcerias que se estabelecem ou não, na capacidade de escutar sem emitir julgamentos apressados, na indispensável e irrestrita confiança, enfim, no desejo de escrever uma história a dois. Na ausência de tais premissas, ou se as julgamos irrealizáveis, aí realmente vale mais a pena vagar pela vida usufruindo efêmeros prazeres, mesmo sabendo que no dia seguinte acordaremos deprimidos - mas Rivotril existe para quê, não é mesmo?

Enfim...Walter Daguerre escreveu um texto belíssimo, em total sintonia com algumas das questões mais pertinentes da atualidade, valendo-se de ótimos personagens e de uma estrutura fragmentada que a mim, particularmente, só contribuiu para aumentar meu desconforto e desamparo - sim, pois quando imaginava que uma das histórias já estaria encerrada, eis que a mesma retorna, reabrindo, digamos, uma espécie de ferida que supunha já estar em processo de cicatrização.

Quanto ao espetáculo, Paulo José impõe à cena uma dinâmica em perfeita consonância com os conteúdos propostos pelo autor, valorizando-os ao máximo não apenas em função da ousadia, beleza e imprevisibilidade de suas marcações, mas também da ótima atuação que conseguiu extrair de todo o elenco. Neste quesito, aliás, já escrevi umas duzentas vezes, ao longos desses 21 anos de crítica teatral, o que torno a repetir agora: este país pode carecer de tudo, menos de excelentes intérpretes. E são excelentes os intérpretes que dão vida a este texto tão tocante e oportuno. E todos exibem performances irrepreensíveis nos vários papéis que interpretam, sendo, pois, injusto particularizar a atuação de alguém.

Mas a todos agradeço o privilégio de vê-los sobretudo numa noite em que a cidade, aterrorizada pela guerra civil em que está mergulhada, parecia resignada a conformar-se com tal quadro. Ao sair do teatro, em meio a ruas desertas, um único pensamento me ocorreu: se por acaso uma bala perdida me levar desta para melhor (ou para pior, depende do ponto de vista), deixarei este curioso planeta impregnado de lembranças de um espetáculo que dificilmente esquecerei.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a brilhante cenografia de Fernando Mello da Costa (talvez a melhor de sua bela carreira), a soturna e expressiva iluminação de Maneco Quinderé, os irretocáveis figurinos de Kika Lopes, os deslumbrantes vídeos de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca e a sensível direção musical de Lucas Marcier.

HISTÓRIAS DE AMOR LÍQUIDO - Texto de Walter Daguerre. Direção de Paulo José. Com Ana Kutner, Alcemar Vieira, Bel Kutner, Márcio Vito e Natália Garcez. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Teatro e violência

Dina Moscovici


Shakespeare alguma vez disse que a vida está fabricada com a matéria dos sonhos. A vida diária transcorre numa espécie de sonolência, ou ao menos numa zona crepuscular, onde seu sentido não nos fica bem claro, onde o destino do outro nos é longínqüo e próximo ao mesmo tempo. Presos ao instante e ao lugar, nosso viver de cada dia é habitado por figuras passageiras. Uma existência que parece afastada da história e de seus grandes dramas; de suas epopéias e de suas comédias.

Nossa existência cotidiana, fortuita como o instante ou o lugar, cujo material é descartável como as imagens crepusculares, se encontra no meio de uma voragem de certo modo comprometida com o curso objetivo de um processo histórico. A tenacidade do impacto nos provoca uma revelação. Arde, então, a matéria dos sonhos e sua chama nos aponta um mais além: o de uma vida coletiva. Um mais além que não é apenas o de um mundo supra-terreno, mas que mostra a mesma realidade terrena em outra dimensão.

E, por meio de uma amarga comprovação, somos levados a sair do conformismo diário para alcançar e compreender a evidência de que não estamos sós, de que nosso eu e nossa afetividade estão, de certo modo, inseridas dentro da história. Talvez, curvar-nos diante da revelação de uma presença, a de uma violência não sempre definível mas constatável. De uma violência que, no mais remoto do nosso passado, não foi a da luta do homem contra o homem, mas o forte impacto do meio natural. A sua resistência contra um ser que não queria mais ser animal e que tentava sua sobrevivência com um novo recurso: o da Cultura. Cultura que é, em si mesma, negação da natureza, rebeldia que age e violenta a natureza, atuando sobre ela, transformando-a, vergando-a e submetendo-a, já não aos desígnios dos deuses, mas ao desejo dos homens.

Violência primeira, violência primária. Pedra friccionada contra pedra, produzindo o fogo; árvore que deixa de ser árvore para servir como madeira. E assim, toda uma transfiguração, uma perpétua metamorfose de uma coisa em outra, revolução permanente de todos os materiais. No exato momento em que o homem fez uso da Cultura para afirmar-se como homem, ele a impregnou sempre de uma violência, que para sempre a deixou contaminada.

Violência que se foi exercendo gradativamente, etapa após etapa. Primeiro a dos elementos naturais, logo aquela dos homens contra os homens, fundando hierarquia de valores, de beleza e de amor. Violência desenfreada, iracunda, vinda, quem sabe, de que potências cósmicas, que impulsiona o homem a criar, a roubar à natureza, para impor seu desejo de domínio. E ele mesmo, o homem, guardar o seu segredo, em algum espaço recôndito, que dará lugar a inúmeras interpretações, sujeitas estas sempre a outras.

Para a psicanálise, por exemplo, o sujeito humano emergiria de uma rede de significações que lhe seria dada por um Outro, sujeitado que é ele ao Desejo de um outro e à Cultura que o envolve. É daí que ele iria se instalar, se inaugurar como sujeito em "outra cena", à qual não teria acesso - o Inconsciente -, cenário onde se formam e situam aprioristicamente suas matrizes básicas de significações. Apenas desse lugar, tal como um espectador, irá filtrar e perceber um real, criando, em última instância, a sua realidade. Que violência! O ser humano será um ser de interpretação, de certo modo, alheio a si mesmo.

Em um pretérito fantasmático, ficaria situado o leme que nortearia para sempre o seu percurso existencial, marcando suas escolhas e decidindo de seu prazer. Toda uma trama que determinará o seu drama pessoal, cujo núcleo trágico fundante radicará em sua condenação a uma incompletude essencial. Será um Eu, só viável a partir de um outro que, espelho inicial, o reconheça e nomeie. E aí, o sujeito criará matrizes significantes - representações -, determinantes de sua realidade psíquica, a única que, de fato, para ele existirá, já que o inconsciente comparece como o lugar produtor de representações.

Toda essa trama fundante levará o homem a tratar de adequar-se a uma realidade maior, onde as trocas se farão possíveis, por ser o sujeito humano, basicamente, um ser produtor e produto da Cultura, isto é, norteado por leis, inventadas por ele, no empenho de opor-se ao caos. Mas embora essas leis sejam convenções, portanto arbitrárias, faz-se mister um consenso em torno delas como fundamento para a perpetuação da Cultura. Este espaço maior de con-vivência estará sempre norteado por normas, sinalizadoras ou catalisadoras, que organizarão e viabilizarão uma troca ordenada, uma articulação fecunda. Normas estas, criação dos homens, já que no caos inicial inexiste qualquer possibilidade de vida que seja fruto de leis e organizações hierárquicas.

No caso do teatro, império da invenção, outras imposições, outros desafios. Transpor espaços diferentes, demarcadores simbólicos plenos de significação. Bastará nomear: este é o espaço do público, aquele o da criação. Cada nova palavra inaugura, violenta, revoluciona qualquer ordenação anterior. Ela tem presença, forma, peso, pode ser lei absoluta. Também no vazio do espaço cênico um ator aparece, talvez no silêncio, sem articular um único som. É presença, devir aberto a todas as possibilidades. O simples estar aí é criação de mundos. Ou uma luz, um simples feixe de luz sobre o espaço deserto, é já um personagem.

Se se resiste à angústia dessa simples presença de um nada, tão somente vibração de intensidades, aos poucos essa luz se fará cheia de interrogações, despertará nossas projeções imaginárias que irão refugiar-se nas trevas, nas sombras que se refugiam atrás de seu brilho. Luz e sombra, num jogo fantasmagórico. E aí, a pergunta essencial: onde se instala o fundamento? Que processo é esse que dará sentido a essa combinação aleatória de dados, ao menos aparentemente caóticos, que levará ao jogo da criação?

É apenas quando esse processo, quando esse jogo é aleatório, quando esse jogo é puro azar, isto é, passe a conter todas as probabilidades, mas nos surpreenda no seu resultado; frustre, de certo modo, todas as nossas expectativas, violente nossas esperanças de subjugar o futuro ao nosso desejo, que, talvez, nos tenhamos acercado daquilo que pensamos ser a criação. Assim, o processo criativo - em algum lugar, alguém o disse - não se faz de um possível antecipado à realização desse possível, mas sim de um virtual não dado, nunca passível de sê-lo, à atualização desse virtual. Tudo com num lance de dados, onde o resultado assombre e exceda o próprio jogador.

Quem sabe, que momentos esses privilegiados, quando desses momentos podemos recordar, em que o milagre se deu, aqueles em que o ator, de repente, tem um branco, esquece o seu texto, vacila e se deixa invadir pelo inesperado, pelo vazio que aparece diante dele como espaço aberto, onde entre a memória e o presente um abismo se apresenta e o absoluto emerge num sentido abissal. É um fora que penetra no território suposto conhecido, o não previsível que invalida e violenta todas as certezas. Estava tudo em ordem, a palavra que seguiria a outra palavra, já prevista. E agora, o caos, o balbuciar lento das palavras, arrastando as sílabas.

É a emoção que nasce nesse interlúdio, nesse momento suspenso no ar, que faz que o espectador, ele também, sinta que o mundo está sendo inventado naquele exato instante. Ator e espectador, heterônimos de si mesmos, máscaras sobre outras máscaras que deixarão transparecer um corpo intenso. Um corpo que, seguramente, abriga uma alma, que, como pensava Platão, antes de se ter encarnado no corpo, passeou na companhia dos deuses pela planície das idéias. Mas que seja um corpo belo, que esteja na via erótica.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 161/2000. Dina Moscovici é professora de Improvisação no Tablado.
Teatro/CRÍTICA



"A prostituta respeitosa"



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Libelo contra a segregação






Lionel Fischer


"Texto do consagrado autor francês, expoente do Existencialismo, 'A prostituta respeitosa' conta um caso de segregação racial nos Estados Unidos na década de 40. Lizzie é uma prostituta branca que deixa Nova York para tentar vida nova numa cidade do sul. Na viagem de trem testemunha o assassinato de um negro cometido por um branco, sobrinho do ilustre senador Clark. A partir daí, a família deste vai fazer de tudo para comprar seu falso testemunho".

Este fragmento, extraído do release que me foi enviado, sintetiza o tema central da peça, ora em exibição no Centro Cultural da Justiça Federal. Silvio Guindane assina a direção do espetáculo, que tem elenco formado por Anita Terrana, Nill Marcondes, Daniel Marinho, Antonio Estevan, Iran Malfitano e Sergio Fonta.

Escrita em 1946 e baseada num fato real, a peça retrata obviamente o horror de Sartre pela moral e ética americanas da época, mas também pode ser encarada em termos metafóricos - a prostituta Lizzie simbolizaria a França, inteiramente dividida, em termos ideológicos, entre os alemães e os aliados. Mas fiquemos com a obra em seu sentido mais imediato.

A prostituta Lizzie sabe que foi um branco o autor do crime e chega até mesmo, em alguns momentos, a abrigar o acusado negro em sua casa. E realmente tenta resistir a todos os subornos que lhe são oferecidos pela família do assassino. No entanto, seu encontro com o senador Clark - extremamente simpático, supostamente justo e na aparência ferrenho defensor da verdade, quando não passa de uma síntese perfeita de tudo aquilo que de mais abominável imperava na sociedade americana da época - acaba sendo decisivo para compactuar com a abjeção perpetrada por seu sobrinho, que assim escapa incólume ao crime que cometera. Cabe ainda registrar que, não encontrando o negro que procuravam, a elite branca acaba ateando fogo a um outro negro, tão inocente quanto o primeiro.

Verdadeiro libelo contra a segregação racial, "A prostituta respeitosa" também pode e deve ser entendida como uma obra que investe furiosamente contra todos os abusos cometidos por aqueles que detêm o monopólio do poder. Neste sentido, permanece autalíssima - ou será que alguém acredita que esta abjeta prática foi banida de nosso curioso ploaneta?

Com relação ao espetáculo, Silvio Guindane impõe à cena uma dinâmica correta, investindo no que a obra possui de mais essencial: o embate de idéias entre os personagens, e a conseqüente exposição de seus conflitos. Mas, ainda que louvável, sua intenção não chega a se materializar de forma totalmente satisfatória e isto em função da atuação de parte do elenco, que obviamente contou com seu aval.

Na pele da protagonista, Anita Terrana se entrega totalmente à personagem, isto é inquestionável, mas o faz quase sempre valendo-se de um tom de voz excessivamente alto, beirando a histeria, assim como de um ritmo por demais acelerado, o que contribui para minimizar o grave dilema que vive. Não quero dizer que devesse assumir uma postura interiorizada, intelectual, pois isso fugiria à personalidade da personagem. Mas acredito que um grau menor de sofreguidão contribuiria para ressaltar bem mais o dilema da protagonista.

Em contrapartida, Sergio Fonta exibe um ótimo trabalho na pele do senador Clark, conseguindo explicitar suas principais e nocivas características, já mencionadas acima. Daniel Marinho também apresenta ótima performance na pele do sobrinho do senador, um indivíduo totalmente adepto da moral e ética vigentes mas que, ao mesmo tempo, nutre pela prostituta uma atração que contraria por completo os valores que defende. Vivendo o personagem negro, Nill Marcondes trabalha bem o medo do personagem, mas acredito que também poderia valorizar mais sua revolta, sua indignação com a perseguição de que está sendo vítima. Antonio Estevan e Iran Malfitano exibem atuações pouco expressivas.

Na equipe técnica, destaco a ótima tradução de Miroel da Silveira. João Gomes assina uma cenografia que atende a todas as necessidades da montagem, sendo corretos os figurinos de Marcelo Marques, a mesma correção presente na iluminação de...de quem mesmo? No programa consta o seguinte: Design de Luz (João Gomes); Iluminador (Arthur). Afinal, quem responde pela luz? À primeira vista, João Gomes. Mas então o sr. Arthur teria que ser nomeado "operador de luz" e não "iluminador". E aproveito a ocasião para manifestar minha sorridente repulsa por estas recentes denominações, que atualmente constam de quase todos os programas: design de luz, design de som, design de movimento etc. Será que chegaremos a um ponto em que o ator, por exemplo, deixará de interpretar um personagem e o "desenhará"?

A PROSTITUTA RESPEITOSA - Texto de Jean-Paul Sartre. Direção de Silvio Guindane. Com Anita Terrana, Nill Marcondes, Daniel Marinho, Antonio Estevan, Iran Malfitano e Sergio Fonta. Centro Cultural da Justiça Federal. Quarta e quinta, 19h.





terça-feira, 23 de novembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XXIII


Eu não sabia por que o chamara, nem muito menos para onde me dirigia com tanta determinação. Intuíra, apenas, que precisava sacudí-lo do torpor em que ele mergulhara e me pareceu que um verbo de movimento, associado ao movimento propriamente dito, deveria causar algum impacto. E foi o que aconteceu: não me virei para trás uma única vez, mas sentia monsenhor nos meus calcanhares. Anacleto também resolveu participar da expedição e se colocou ao meu lado, como um ajudante de ordens e de vez em quando me lançava olhares curiosos, que fingi não notar. Assim distribuídos, caminhamos cerca de um quilômetro em campo descoberto e depois uns trezentos metros dentro de um bosque. Neste ponto resolvi interromper a marcha, pois a vegetação se tornara tão densa que prosseguir significava correr o risco de nunca mais encontrar o caminho de volta. É claro que fiz segredo dessa inquietação, pois ela destruiria de um só golpe a imagem de líder que precisava impor. Com o maior cinismo, comecei a olhar as árvores à nossa volta como se, além de reconhecê-las, soubesse o que fazer com elas.

Durante uns quinze minutos consegui desempenhar meu papel com razoável eficiência: arranquei algumas folhas e as cheirei; balancei os galhos mais baixos das árvores adjacentes como se testasse sua resistência; cheguei até mesmo a arrancar um pedaço da casca de uma gigantesca árvore e o pus na boca, engolindo involuntariamente um par de formigas. Enfim, rendi o mais que pude a insólita situação para a qual não conseguia encontrar nenhum desfecho convincente. Quando já estava a ponto de tornar pública a minha fraude, Anacleto, que acompanhara atentamente minha representação, levantou-se e caminhou até uma árvore que eu não incluíra no meu teatrinho. Lá chegando, cheirou-a por um momento e em seguida encharcou sua base com sua urina abundante e fétida. Depois se afastou alguns passos, refestelou-se na relva e adormeceu profundamente.

Sendo inesgotável a capacidade do formidável hirco de compreender tanto minhas palavras como meus silêncios, era evidente que ele não urinara naquele momento e exatamente ali a troco de nada. Por consegüinte, naquela árvore deveria estar a nossa salvação. E foi com esse pensamento positivo que iniciei uma perigosíssima escalada. Nunca tivera a menor habilidade para esse tipo de proeza e que eu me lembre, só havia subido até então no arbusto de onde assistira ao funeral de Ambrosina. Mas era tamanha a minha confiança em Anacleto que fui me afastando do solo, sem pensar que a qualquer momento poderia sofrer uma queda fatal.

Aliás, para ser absolutamente franco, não pensava em coisa alguma a não ser em subir, sempre e cada vez mais. Só comecei a ficar meio angustiado quando me dei conta de que em breve não haveria mais o que escalar e teria que iniciar o caminho de volta, envergonhado e de mãos abanando. Mas mesmo assim continuei subindo, como se algo situado no topo dessa árvore me atraísse irresistivelmente, embora eu não conseguisse mais enxergar um palmo à minha frente, tal a quantidade de folhas que me rodeava.

De repente, ao procurar firmar a mão direita num galho que eu nem via, entrei em contato com uma superfície espetante e volumosa, que me lembrou um abacaxi. Sabia, naturalmente, que abacaxi não nasce em árvore, mas fiquei radiante assim mesmo, pois essa massa incógnita representava uma esperança concreta. Firmando-me então o mais que pude, comecei a sacudir o galho para ver se a fruta (já não tinha a menor dúvida de que se tratava de uma fruta) despencava. Mas a desgraçada resistia a todos os solavancos, parecendo firmemente decidida a permanecer onde estava.

Quando, depois de infrutíferas tentativas, me convenci de que com apenas uma mão não obteria êxito, esqueci toda a cautela e enroscando ambas as pernas num galho que havia mais acima, agarrei aquele que a fruta relutava em abandonar e o agitei com o resto de energia que ainda possuía. Para minha felicidade, depois de uns poucos segundos o colosso se desprendeu e inflingindo à pobre árvore machucados em toda a sua extensão, acabou se estatelando no solo. No solo...ou na cabeça de monsenhor?

Fiquei na dúvida, pois além de ter tido a impressão de ouvir um grito abafado, o prelado não respondeu aos apelos que passei a lhe fazer para saber se estava tudo bem. Com o coração descompassado, pois temia ter cometido um crime involuntário, iniciei a descida tentando me preparar psicologicamente para o horripilante quadro que poderia estar à minha espera: monsenhor, o crânio esmigalhado por essa estranha mistura de abacaxi com jaca, estendido ao lado de Anacleto, que provavelmente ainda dormia!?

Felizmente, nada disso aconteceu. Quer dizer, só aconteceu em termos, pois Anacleto continuava de fato adormecido, mas em contrapartida monsenhor não sofrera nada. E se não respondera aos meus apelos é porque se entregava avidamente à tarefa de devorar um naco da portentosa fruta.

- Puxa, monsenhor...podia ao menos ter me respondido!? Quase morri imaginando que essa coisa pudesse ter caído na sua cabeça!

Mas o prelado não me deu a mínima. Continuou triturando o precioso manjar que lha caíra dos céus sem sequer se dignar a agradecer com um gesto, um simples olhar ou discreto meneio de cabeça a minha indômita bravura. Ofendi-me, evidentemente, mas como a fome superava minha indignação, resolvi atacar uma atraente porção da salvadora fruta e deixar para mais tarde uma seríssima conversa sobre a ingratidão humana.

Quando regressamos à granja já era noite fechada e só conseguimos atingí-la graças a Anacleto, que nos serviu de guia. Não fosse ele e certamente teríamos sido forçados a pernoitar na selva, à mercê dos lobos que, em numerosos bandos, atacavam todos os seres que ousavam perambular por seus domínios - mais uma vez o formidável hirco me salvara a vida. Essa conversa sobre os lobos nós a tivemos por volta das dez da noite, enquanto devorávamos os restos da magnífica fruta. É curioso, mas nenhum de nós sugeriu que guardássemos pelo menos alguns pedaços para o dia seguinte. Seria o lógico, já que não havia a menor garantia de que irmã Geovana nos mandasse provisões. Ainda assim, só não comemos as cascas porque as mesmas, além de duríssimas, espetavam.

Tempos mais tarde, pensando sobre este fato, cheguei à conclusão de que nossa atitude, aparentemente irresponsável, na verdade era a única possível. Todo aquele que vive uma situação extrema não consegue traçar um plano de ação que transcenda suas carências imediatas, visto que a partir de um certo momento o futuro deixa de existir enquanto perspectiva real. Por isso, toda oportunidade que surge passa a ser encarada como a última. E esse mecanismo se aplica tanto àquele que, como eu, arrancara a fruta de uma árvore para não morrer de fome quanto a um outro que, durante uma batalha, arranca os olhos de seu inimigo para evitar que ele arranque os seus. A única diferença entre as duas ações é que na primeira o herói permanece anônimo; na segunda, às vezes é condecorado.

Monsenhor Flávio e eu permanecemos à mesa até quase meia-noite, trocando banalidades digestivas e arrotando sem parar - nossa sorte é que a bendita fruta alojada em nosso ventre não resolveu fermentar, pois aí aquela casa teria se convertido numa verdadeira câmara de gás. Só nos levantamos quando as blasfêmias arrotais se tornaram mais esparsas. Mas não nos deitamos imediatamente. Resolvemos dar um passeio pelo pátio a fim de completar a digestão. A granja, naturalmente, estava toda iluminada, e pela primeira vez prestei uma real atenção a ela.

Embora pequena e simples, não deixava de ser encantadora. Serviria de morada tanto a um camponês e sua família quanto a alguém que, cansado dos tumultos desta vida, buscasse simplesmente um pouco de paz. Era isolada da cidade o suficiente para impedir o assédio constante dos chatos, mas não a reconfortante presença dos amigos. Possuía uma vista deslumbrante e o clima era agradável. O único senão era a ausência de um riacho de águas cristalinas, no qual se pudesse nadar nas noites de verão. Afora esse pequeno detalhe, podia ser considerada um paraíso.

Quando contornávamos o velho galpão e nos dirigíamos para a casa, lembrei que àquela hora a eleição já deveria estar terminada. Teria irmã Geovana se saído vitoriosa? Provavelmente sim. Mas qual teria sido a reação das derrotadas? Conformaram-se? Criaram tumultos? Ameaçaram minha amada? Solicitado a se manifestar, monsenhor Flávio emitiu a seguinte opinião:

- Para mim, irmã Geovana ganhou a eleição. Outro resultado seria inconcebível.

- Mas o senhor não me parece nem um pouco tranquilo. Por quê?

Monsenhor permaneceu calado alguns instantes. Só me respondeu quando já estávamos na varanda e eu a ponto de repetir a pergunta.

- Eu acho que o resultado desse pleito é em si menos importante do que a necessidade que se teve de realizálo, percebe?

- Mais ou menos...- retruquei, já intuindo que monsenhor me geraria angústia.

- Veja bem: mesmo que irmã Geovana seja mantida como superiora, não resta a menor dúvida de que se trata de uma vitória apenas relativa. Se as calúnias que lhe foram feitas não tivessem abalado seu prestígio, a ninguém ocorreria pôr em discussão sua liderança. Eu sei que a idéia da eleição partiu da própria irmã Geovana, mas se tudo continuasse como antes ela teria sido prontamente rejeitada, porque pareceria absurda. No entanto, não o foi. Isso significa o quê? Que a antiga e irrestrita confiança deixou de existir. Portanto, é bem possível que numa próxima ocasião as forças retrógradas obtenham o triunfo, pois com toda a certeza saberão tirar proveito da cisão que provocaram.

- E não há nada que se possa fazer para impedir isso?

- Creio que irmã Geovana, por temperamento, não conseguirá jamais pôr em prática as medidas necessárias. Para enfrentar aquela corcunda e suas asseclas ela teria que agir como Jesus com os vendilhões do templo: expulsá-las a chibatadas! Mas ela faria isso?

- Ela eu não sei ...- respondi, inflamado. - Mas eu posso fazê-lo!

- Desculpe, mas você não tem nada a ver com isso. Esse problema pertence exclusivamente a ela.

- Tudo que diz respeito à minha amada eu encaro como coisa minha!

- Isso é machismo, meu caro. Ela não é propriedade sua para que você se intrometa em seus assuntos.

- Eu não quis dizer isso.

- Tive essa impressão. Em todo caso, é bom que você se convença de uma coisa: se pretende mesmo conquistar irmã Geovana, jamais incorra no erro de tentar pensar por ela, sentir por ela e muito menos agir por ela. Nunca, entendeu? Eu sei o que estou dizendo!

- Tudo bem, monsenhor. Não precisa bater com o pé, eu já entendi.

- Tomara.

Monsenhor, evidentemente, estava com a razão. Irmã Geovana tinha que encontrar sozinha a solução para os seus problemas. O fato de me introduzir no convento e sair chicoteando freiras não resolveria nada. Ao contrário, poria tudo a perder. Mas era difícil para mim saber que tantas coisas a ameaçavam e ainda assim permanecer, digamos, como mero espectador de um drama que me tocava tão de perto.

Enquanto tecia essas conjecturas, monsenhor permaneceu me olhando fixamente, parecendo pronto a intervir caso meu semblante passasse a expressar algo que não resignação. Devo tê-lo satisfeito, pois de repente ele se aproximou e disse:

- Eu sei que é duro, mas você precisa ser forte. É tudo que tem a fazer.

- E se acontecer alguma coisa com ela?

- O quê, por exemplo?

- Não sei...se lhe baterem ou trancafiarem?

- Irmã Geovana sabe se defender.

- Semibreve pode mandar envenená-la!?

- Escuta, Gabriel...- falou monsenhor, agarrando-me pelos ombros com firmeza. - Se você seguir essa linha de raciocínio vai concluir que a corcunda, ao menos em tese, pode tentar o diabo contra irmã Geovana; envenená-la, enforcá-la, esfaqueá-la e assim por diante. Mas você acredita que ela possa tomar uma iniciativa desse gênero?

- E por que não tomaria?

- Porque ela não é uma idiota. Sabe que isso seria a sua ruína.

- Ela já se sente arruinada, monsenhor. Para essa víbora o poder é tudo que interessa.

- Muitos almejam o poder, mas pouquíssimos a ponto de em seu nome perpetrar um crime.

- Ela é uma dessas "poquíssimas", tenho certeza.

- Mas baseado em que você faz uma afirmativa dessa natureza?

- Baseado no que eu vi, monsenhor. Esse monstro quis arrancar meu pau!?

- Você está delirando, meu amigo. Não é possível que...

- Ah, não? Então o senhor pergunta a irmã Geovana. Ela conhece a história.

- Mas que interesse essa anciã entrevada e corcunda poderia ter no seu...enfim...

- O que ela faria com ele eu não sei, monsenhor. Mas que ela tentou o senhor pode ter certeza. E quem é capaz de arrancar o membro de um jovem a sangue-frio, é capaz de qualquer coisa!

O prelado ficou me olhando um longo tempo. A princípio pensei que ele ficara impressionado com a revelação que lhe fizera, mas logo comecei a achar que apenas se calara para evitar que meu arrebatamente atingisse um grau paroxístico. Contudo, não disse nada. Já estava suficientemente inquieto para iniciar uma nova polêmica. Quando por fim renunciou ao seu mutismo e propôs que nos deitássemos, alegando que as tensões daquele dia nos impediriam de conversar de forma profícua, não coloquei nenhuma objeção a essa idéia. Desejei-lhe boa noite e fui para o meu quarto. Ao passar pela sala vi que Anacleto dormia descaradamente no divã, barriga para cima, pernas abertas e levemente arqueadas, a boca escancarada. E ainda por cima roncava. Parecia ul sultão, o formidável hirco...

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Teatro/CRÍTICA

"Neura!"

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Entre tapas e beijos


Lionel Fischer


Antes de começar esta crítica, faço questão de declarar que Rita Fischer e Bruno Linhares são meus filhos.

Tudo começou no ano passado, no Festival Internacional de Humor Oi Futuro. Com "Isso expõe as pessoas", Rita Fischer levou o prêmio de Melhor Esquete. A partir daí, foi criando novas cenas para os dois personagens, recém casados, e cuja relação é pautada pelo comportamento totalmente histérico, paranóico e instável de Matilde, que aos poucos vai levando à loucura seu marido Carlos Alberto. Mas como ambos, ao menos em alguns momentos, conseguem rir do caos cotidiano, continuam juntos, ainda que alternando tapas e beijos. Eis, em resumo, o contexto de "Neura!", em cartaz no Teatro II do Sesc Tijuca. Beto Brown assina a direção do espetáculo, que tem elenco formado por Rita Fischer e Fabio Florentino.

Abordando diversificados temas, dentre eles o medo de envelhecer, a suposta monotonia do casamento, o perigo iminente de contrair todas as doenças possíveis e imaginárias, a necessidade de buscar alternativas para apimentar a relação sexual (tudo isso, naturalmente, fruto da mente desvairada de Matilde), a peça exibe cenas muito engraçadas, mas que em alguns casos poderiam ser ainda mais eficazes se um pouco reduzidas. Mesmo assim, a platéia embarca alegremente nesta tresloucada jornada, identificando-se tanto com a protagonista como com seu parceiro, um homem cuja aparentemente inesgotável paciência só é encerrada perto do final, quando ele dá um verdadeiro ataque ao fazer uma irrepreensível "radiografia" do caráter neurótico e operístico de sua mulher.

Com relação ao espetáculo, Beto Brown teve a sagacidade de perceber que o fundamental não repousaria na criação de marcas mirabolantes (ainda que muitas sejam hilárias), mas sim em permitir o máximo de liberdade aos intérpretes, incluindo a possibilidade de improvisar e se relacionar com os espectadores. E esta é a principal razão para a empatia que se estabelece entre palco e platéia, sem a qual a presente montagem não funcionaria.

Na pele de Matilde, Rita Fischer exibe presença, carisma e um ótimo tempo de comédia, cabendo também ressaltar seu excelente trabalho corporal. E o mesmo se aplica a Fabio Florentino, que mesmo fazendo um personagem que serve de "escada" para a protagonista, com ela estabelece uma contracena de igual para igual, também evidenciando grande naturalidade e delicioso senso de humor.

Na equipe técnica, Ana Machado assina uma cenografia simples e despojada, mas que atende a todas as necessidades da montagem, com Patrícia Muniz respondendo por figurinos em total sintonia com o caráter e condição social dos personagens. Luis Carlos Nem ilumina a cena de forma correta, cabendo a Bruno Linhares uma trilha sonora que contribui para reforçar os múltiplos climas emocionais em jogo.

NEURA! - Texto de Rita Fischer. Com Rita Fischer e Fabio Florentino. Direção de Beto Brown. Teatro II do Sesc Tijuca. Sexta, sábado e domingo, 19h.


sábado, 20 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"O teatro da grande marionete"

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Paixões e impossibilidades


Lionel Fischer


Com 15 anos de atividade, esta me parece ser a primeira incursão da premiada Cia. de Teatro Artesanal no gênero adulto - caso esta informação esteja incorreta, espero que me perdoem. E a escolha do grupo recaiu numa trama centrada a partir do desejo do vampiro Ulpir de "tentar resgatar sua dimensão humana ao se apaixonar pela jovem Aurora". Ocorre, porém, que o jovem Louis, pretenso candidato à mão da referida moça, acaba tendo que confrontar-se com o dito vampiro, o que acaba conduzindo a um trágico desfecho.

Eis, em resumo, o enredo de "O teatro da grande marionete", em cartaz no Teatro Municipal do Jockey. Gustavo Bicalho assina o texto e a direção, estando o elenco formado por Diogo Fujimura (vampiro Ulpir), Virgínia Martins (Aurora), André Millions (Louis), Marise Nogueira (Violeta, esposa de Oscar), André Pimentel (Oscar, dono do teatro em que se desenrola parte da trama), Marcos Guilhon (Max, sócio de Oscar) e Oscar Fabião (Pierre, um adolescente).

Como todos sabemos, o mito do vampiro já gerou inúmeras obras - literárias, teatrais e cinematográficas - e seu fascínio permanece inalterado. No presente caso, estamos diante de uma peça que mescla um duplo desejo: o do amor e o da imortalidade, mas em função da trama esta conjunção de interesses torna-se inviável.

Estruturado na forma de recordações do jovem Louis, o texto exibe algumas qualidades, sendo a principal as reflexões que o autor faz a respeito das paixões. Em contrapartida, algumas cenas se estendem em demasia, retardando a ação e, de uma certa maneira, conferindo à obra um caráter excessivamente literário. Acredito que, se bastante enxugado, o texto teria um alcance muito maior.

Com relação ao espetáculo, Gustavo Bicalho impõe à cena uma dinâmica em sintonia com seu texto, e isso equivale a dizer que, de uma maneira geral, não consegue driblar o já mencionado caráter literário da obra. Curiosamente, a melhor cena da montagem é justamente aquela que dispensa as palavras, quando dois pares realizam uma espécie de dança feita de entregas e recusas.

Quanto ao elenco, o trabalho dos jovens intérpretes pode ser considerado correto, mas acredito que todos poderiam render bem mais se o texto desse mais prioridade à ação, ao invés de apoiar-se tanto em embates verbais, mais adequados ao gênero literário.

Na equipe técnica, Jorginho de Carvalho assina uma iluminação muito expressiva, contribuindo decisivamente para enfatizar os múltiplos climas emocionais em jogo. Karlla de Luca responde por cenário e adereços em perfeita consonância com o contexto, sendo de excelente nível a direção sonora (o que vem a ser isto, exatamente?) de Daniel Belquer e a música original de Alexandre Bräutigan.

O TEATRO DA GRANDE MARIONETE - Texto e direção de Gustavo Bicalho. Com a Cia de Teatro Artesanal. Teatro do Jockey. Sexta, sábado e domingo, 21h.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XXII


Durante três dias, desde a partida de minha amada até a noite de domingo, monsenhor não me deixou sozinho um só instante, temeroso de que minha ansiedade me levasse a tomar uma atitude tresloucada. E embora muitas vezes me transtornassem, seus cuidados de enfermeira se revelaram úteis, pois em várias ocasiões estive a ponto de rumar para o convento. Quando me batia essa compulsão, ele adotava uma postura trágica e se colocava diante da porta, declarando que por ela eu só passaria se o arrancasse dali à força. Se estávamos no pátio, repetia o mesmo procedimento, só que diante da porteira. É óbvio que se eu decidisse mesmo assaltar o convento não haveria de ser o diminuto prelado que me impediria. Em todo caso, seu arrebatamento arrefecia o meu e a razão me voltava.

Mas na maior parte do tempo me comportei de forma a não lhe causar grandes transtornos. Passeávamos pela granja, sentávamo-nos na varanda para conversar e cuidávamos da casa. No entanto, os dias pareciam não ter fim. Por mais que monsenhor procurasse esticar nossos passeios, as conversas ou a faxina, por volta das cinco da tarde nada mais nos restava a não ser esperar que o sono nos levasse ao leito. E era justamente durante este período de ociosidade forçada que minha ansiedade atingia seu mais alto grau.

A noite também contribuía para abalar ainda mais meu precário equilíbrio, pois não há problema que não se acentue com a sua chegada. Consciente disso, tão logo o dia começava a declinar, monsenhor iniciava uma longa peregrinação pela casa, acendendo uma a uma todas as luzes. Por último, acendia as do pátio. Da primeira vez que ele fez isso, pensei que pudesse estar havendo algum problema no sistema elétrico. Mas logo fui informado de que o artifício visava atenuar os efeitos da noite num organismo debilitado - no caso, o meu.

A partir de sábado, outro fator veio se juntar à ausência de irmã Geovana para abalar ainda mais meu estado de espírito: a falta de comida. Como o amigo leitor há de estar lembrado, as provisões haviam sido calculadas para durar uma semana, ou seja, até segunda-feira - desde que consumidas por uma única pessoa. Com a presença de monsenhor Flávio, o consumo aumentara, gerando prematura escassez. Assim, urgia traçar um plano que nos permitisse escapar aos tormentos da fome. Disse isso ao prelado, que prontamente se dispôs a colocar todos os seus neurônios a serviço desta nobilíssima causa.

Nossa primeira idéia foi arrombar novamente uma residência ou o famoso botequim de vidro. Mas desistimos dela, não tanto por uma questão ética, mas por pura precaução, pois a essa altura os alimentos já deveriam estar estragados. Descartada essa primeira hipótese, partimos para uma segunda, uma terceira e assim fomos indo. No entanto, à medida que íam se sucedendo, elas se tornavam cada vez mais delirantes, a ponto de monsenhor sugerir, com a cara mais lavada deste mundo, que ralássemos um pedaço da casca de uma determinada árvore a fim de produzir uma sopa que, segundo ele, constava do cardápio de uma tribo indígena - cujo nome não foi capaz de lembrar - que se tornara célebre justamente por sua incrível capacidade de converter a natureza em alimento...

Ao meio-dia interrompemos nossas especulações, visto que nossa fome aumentava na mesma proporção em que nos revelávamos incapazes de satisfazê-la. Completamente órfãos, passamos a concentrar todas as nossas esperanças em irmã Geovana, que a par de seus graves problemas haveria de encontrar uma forma de fazer chegar até nós, segunda-feira, uma nova remessa de alimentos. Até lá, tentaríamos suportar esse jejum forçado da melhor maneira possível, evitando sobretudo qualquer assunto que pudesse, ainda que vagamente, ter alguma relação com comida.

Foi um fim-de-semana insuportável, sobretudo para mim, que precisava combater duas carências. Mas, ao mesmo tempo, ele não deixou de ter alguns momentos engraçados, como aquele em que monsenhor Flávio me pediu que o ouvisse em confissão. À meia-noite de domingo, o resoluto prelado, que até então se comportara de maneira exemplar, foi acometido de uma inesperada crise de fraqueza e cismou que morreria antes do amanhecer. Ainda tentei convencê-lo do contrário, mas meus argumentos se revelaram impotentes e acabei acatando seu pedido. Seguindo suas recomendações, sentei-me na poltrona e me comprometi a não me virar para ele enquanto durasse sua confissão. Monsenhor então se ajoelhou à minha esquerda e apoiou suas mãozinhas no braço da poltrona. Cenário armado, atores em seus lugares, iniciou-se o espetáculo.

Se tivéssemos à nossa frente uma platéia, certamente teríamos sido vaiados em cena aberta. Primeiro, pela fragilidade do protagonista; e depois pela peça em si. Se assistir a um monólogo já não é tarefa a que todos se dispõem com facilidade, escutar um canastrão falar 45 minutos sobre um mesmo assunto se torna um martírio só comparável ao de Jó. E foi exatamente isso que monsenhor fez: masturbou-se todo esse tempo com aquela história do cemitério, sem conseguir em nenhum momento estabelecer um mínimo de empatia e cumplicidade, pois optando por analisar a situação ao invés de sofrer seus efeitos, parecia muito mais empenhado em se defender do que propriamente em pedir perdão. Aparentava força, quando deveria parecer desesperado. Falava alto, quando sussurrar se impunha. Em suma, faltava-lhe direção e um texto melhor. Conseqüentemente, nossa representação foi um fiasco - se Deus se dispôs a escutá-lo, das duas uma: ou dormiu durante a performance de monsenhor ou condenou-o a ir para o inferno.

Segunda-feira nos levantamos com o dia e ambos animadíssimos. Nossa confiança em irmã Geovana era tamanha que até chegamos a debochar de nosso martírio. Tudo passava a ser uma questão de horas. Mais cedo ou mais tarde uma emissária de minha amada - era pouco provável que viesse ela mesma em pessoa - surgiria com o precioso carregamento, afastando, por pelo menos mais uma semana, a possibilidade de uma morte inglória. Às duas da tarde, no entanto, nossa confiança já não era a mesma. Além do receio, agora bastante fundado, o tempo também contribuía para aumentar nossa inquietação, pois o agrupamento de imensas nuvens negras sugeria a iminência de uma tempestade. Se isso ocorresse, os caminhos se tornariam impraticáveis e então, adeus comida.

Às três horas monsenhor propôs que nos ajoelhássemos no centro do pátio e rezássemos um terço completo, para ver se o Senhor se sensibilizava com a nossa causa. Retruquei que achava pouco provável que Ele se dignasse a nos ajudar, depois de seu canhestro monólogo travestido de confissão.

- Não se esqueça, Gabriel, de que é infinita a misericórdia do Senhor!

- E sua paciência...será igualmente infinita?

Nesse momento, o céu rugiu de forma aterradora, e tanto monsenhor como eu tivemos a impressão de que o Senhor respondia à pergunta que eu havia feito. Desvairado, o prelado prostou-se de joelhos, abriu os braços e bradou:

- Oh Senhor, Deus de misericórdia! Por que me falais de forma tão brutal, tão rude, logo a mim que jamais deixei de reverenciar Vosso nome e que fiz de Vossa causa a razão de minha existência? Sei que ontem Vos atormentei com meu longo solilóquio, mas seria essa falta assim tão grave para que façais desabar sobre nós essa terrível tempestade? Tempestade essa que nos privará de alimento e que talvez decrete nossa morte? Se for esse o Vosso desejo, Oh Senhor, faço-vos um último pedido: poupai ao menos este jovem, cuja natural insensatez é compensada por uma igualmente natural bondade e cujo coração está impregnado do mais puro amor! Permiti que ele e irmã Geovana possam ser felizes, pois o lugar dela, bem o sabeis, não é onde se encontra e sim ao lado deste por quem neste momento imploro. Concedei-me ao menos isso e tudo aceitarei com resignação!

Isto dizendo, monsenhor começou a carpir, com uma abundância lacrimal digna de uma profissional da Grécia antiga. Como suas palavras haviam me tocado profundamente - refíro-me às últimas - ajoelhei-me ao seu lado e a ele me abracei, procurando não apenas demonstrar meu reconhecimento, mas também suavisar os tremores que lhe agitavam a frágil ossatura. E assim permanecemos por um razoável tempo, durante o qual o Senhor, possivelmente comovido, começou a expulsar dali as tenebrosas nuvens. Quando finalmente reabrimos os olhos, para nosso total pasmo já o sol se insinuava por entre algumas brechas que o vento produzira na outrora impenetrável massa. Quinze minutos depois, ninguém poderia acreditar que, pouco antes, o céu estivera a ponto de inflingir à Terra os mais inconcebíveis castigos.

Teríamos, sem dúvida, rendido ao Senhor as mais justas homenagens, não tivesse Anacleto irrompido no pátio em desabalada carreira, como se fugisse de um açougueiro. O formidável hirco estava transtornado e por pouco não me deu uma chifrada quando me lancei ao seu pescoço para, como de hábito, manifestar afeto e arrependimento - no caso, pela injustiça que cometera com ele no episódio da dispensa. Mas Anacleto, recusando todas as carícias e todas as desculpas, foi e voltou até a porteira por três vezes. E teria ido uma quarta se eu não resolvesse finalmente verificar o que se passava. Acompanhado de monsenhor Flávio, abandonei a granja e caminhei cerca de cem passos atrás de Anacleto, que a todo momento se virava para se certificar de que o seguíamos. De repente, quase tivemos uma síncope: um grupo de irmãs cavalgava em nossa direção pela mesma trilha que ora percorríamos!

- O que significa isso? - perguntou, atônito, o prelado.

- Como é que eu vou saber, monsenhor? Certamente não se trata da nossa comida!?

Foi aí que Anacleto, pouco afeito a discussões estéreis, partiu em disparada para a granja. E se nós o acompanhamos de imediato isso se deveu ao enérgico puxão que dei em monsenhor, que parecia disposto a permanecer onde estávamos até se certificar de que a única atitude sensata era voltar para a granja e nela nos refugiarmos, tendo o cuidado de trancar todas as portas e janelas, assim como de ocultar qualquer vestígio que denunciasse nossa presença alí. E foi o que fizemos. O término da operação-disfarce, realizada em ritmo alucinante, coincidiu com a chegada das irmãs.

Assim que atingiram a porteira elas se imobilizaram, como uma tropa que avaliasse as condições da fortaleza que pretendiam assaltar. Eram em número de vinte aquelas que à distância devassavam nosso refúgio. Vigiando-as através das frestas de uma das janelas, torcia desesperadamente para que se convencessem de que não havia alí nada que pudesse lhes interessar. Infelizmente, a que parecia ser a líder ordenou que abrissem a porteira e todas invadiram o pátio. Em seguida, começaram a rodear a casa, sempre em silêncio, como um comando de elite. Nesse momento, monsenhor, que também vigiava pela janela situada no lado oposto da sala, abandonou-a e veio sorrateiramente até onde eu estava e me sussurrou algo que me deixou abismado:

- Elas estão atrás de você!?

- O que? - perguntei, elevando sem querer a voz.

- Fale baixo, seu cretino! - sibilou monsenhor. - Quer que nos descubram?

- Eu não entendi, monsenhor. Será que dá para repetir?

- Eu disse que elas estão atrás de você.

- Mas como? Só irmã Geovana e umas poucas de sua inteira confiança sabem que eu estou aqui!?

- Existe mais alguém que sabe.

- O senhor!?

- Eu...e a velha Ecúria!

Antes que eu tivesse tempo de considerar aquela revelação, a líder, dando um grito estridente, ordenou que arrombassem a porta. Monsenhor levou as mãos à cabeça, como se estivesse com enxaqueca e desmaiou no sofá. Anacleto, dando mostras de inusitada coragem, colocou-se diante da porta e para ela apontou seu pontudo chifre, parecendo disposto a repelir o assalto. Quando a mim, tranquei-me no banheiro e tive uma bruta diarréia. Como se vê, nossas defesas ficaram restritas à estóica figura de Anacleto, que mesmo não tendo nada a perder com a invasão da casa, se manteve firme em seu posto, enquanto monsenhor dormia e eu me limitava a responder aos golpes assestados contra a nossa porta ou com sonoros peidos ou com a emissão de esguichos de matéria putrefata. De repente, uma voz que não era da líder se fez ouvir:

- Irmã Filomena, estamos perdendo tempo. É evidente que ele não está aqui. Ninguém conseguiria viver nessa pocilga. Além disso, convém não esquecer que esta propriedade pertence, de uma certa maneira, a irmã Geovana. Acho que já fizemos muito em vir até aqui. Pôr a porta abaixo pode nos trazer complicações desnecessárias.

Jamais cheguei a saber o nome desta santa criatura ou conhecer-lhe os traços, mas em compensação a ela fiquei grato pelo resto de meus dias. Influenciada por suas palavras, a comandante Filomena ordenou rispidamente que parassem de golpear a porta e em seguida levantou o cerco. Meus esfíncteres, que o pavor afrouxara, tornaram-se novamente ríjos e abandonei o vaso com a mesma presteza que um condenado abanbdonaria o patíbulo se seu crime, no último segundo, fosse perdoado.

Uma vez na sala, atirei-me ao pescoço de Anacleto e lhe dei, exatamente, 39 beijos no focinho, ao mesmo tempo em que lhe jurava amor eterno. Mas o bode, demonstrando exemplar coerência, manteve-se impassível, os olhos semi-cerrados, mastigando um pequeno tufo de sua asquerosa barba. Como já o conhecia e aos seus mecanismos de defesa, não esperei que ele retribuísse minhas carícias ou demonstrasse ter ficado feliz com elas, e fui acordar monsenhor Flávio, que me pareceu ter encolhido com o susto. Já conhecendo a dificuldade do prelado de libertar-se dos braços de Morfeu e não desejando perder tempo, pois tínhamos muito o que conversar, tapei-lhe a boca e as narinas, como se pretendesse assassiná-lo. Em poucos segundos monsenhor começou a requebrar como uma passista e quando permiti que de novo respirasse, ele se pôs de pé num salto.

- Estamos salvos, monsenhor! Filomena se retirou com suas asseclas!

- Quem se retirou? E de onde?

- As freiras! Desistiram de arrombar a porta e foram embora! Não está lembrado?

Monsenhor levou quase um minuto para recolocar as idéias em ordem. O medo, além de lhe ter paralisado o físico, obstruíra também sua memória. Durante esse minuto, que minha ansiedade converteu em horas, ajudei-o como pude:

- Estávamos ali, na janela, quando foi ordenado o assalto.

- E depois?

- Depois o senhor saiu cambaleando pela sala e desmaiou no sofá, deixando a mim e a Anacleto a incumbência de defender a casa.

- Eu desmaiei no sofá?

- É incrível, mas é verdade.

- E você, o que fez? - perguntou, após breve reflexão.

- Eu me mantive ali, diante da porta, pronto a sacrificar a própria vida se alguma daquelas loucas resolvesse arrastá-lo daqui como um condenado.

Monsenhor fez uma cara de quem não estava acreditando nem um pouco em minha versão dos fatos. Mas como não se lembrava de nada resolveu não polemizar. Em todo caso, não se furtou à seguinte observação:

- Admirável atitude, a sua. Jamais a esquecerei. São raras as pessoas que se dispõem a arriscar a própria vida em defesa de uma outra que não está ameaçada...

Simulando não ter percebido o duplo sentido de suas palavras, emendei:

- Já que o senhor tocou neste ponto, monsenhor...me perdôe se mudo de assunto...gostaria que me explicasse melhor essa história da velha Ecúria. O senhor se lembra de tê-la mencionado, não?

- Sim, agora me lembro.

- Mas ela não sabe que estamos aqui. E mesmo que soubesse, de que forma poderia ter se comunicado com o convento? E para quê?

- Calma, vamos por partes. Em primeiro lugar, ela deve saber que estamos aqui. No dia em que raptamos sua réplica é possível que tenha nos seguido. Como essa granja é a única das redondezas, ela deve ter deduzido que nela nos refugiamos.

- Até aí, tudo bem. Mas por que avisar as freiras?

- Ela e a antiga superiora são muito amigas. Com certeza quis prestar-lhe um favor.

- Mas isso implica que ela esteja a par da situação no convento!?

- E você tem alguma dúvida quanto a isso?

Fiquei apalermado, sem saber o que responder. Jamais me ocorrera suspeitar de uma tal aliança. Monsenhor, no entanto, esclareceu-me em poucas palavras que ela sempre existira; que Ecúria, durante toda a sua vida, funcionara como uma espécie de espiã da entrevada criatura, passando-lhe informações sobre tudo que acontecia na cidade.

- O senhor pode provar o que está dizendo?

- Não. Mas creio que isso não muda nada. O que importa é que a casa foi cercada. E se foi cercada é porque houve uma denúncia. E se houve uma denúncia ela só pode ter partido da velha Ecúria.

O raciocínio parecia inquestionável. Contudo, para mim ainda restava uma dúvida.

- E como foi que a velha Ecúria fez chegar até aquela medonha a informação de que estávamos ou poderíamos estar aqui?

- Como sempre fez: sem sair de casa. Você acha que alguma vez ela foi até o convento?

A situação ganhava um novo perfil, de razoável complexidade. O fato da bruxa e da Quasímoda se comunicarem telepaticamente não me impressionou tanto quanto a trama propriamente dita. Jamais assistira a um filme ou uma peça em que forças terroríficas se conjuminassem com fins políticos. E era isso que estava acontecendo. Se conseguisse demonstrar que irmã Geovana me alojara na granja, Semibreve ganharia a eleição. Carente de méritos, ocuparia novamente o cargo às custas de um novo e ainda mais retumbante escândalo.

- Semibreve deve estar desesperada...- murmurei para mim mesmo.

- Quem?

- A antiga superiora. É assim que a chamo, por razões que por ora não vale a pena detalhar. Provavelmente ela está perdendo a eleição e tentou a última cartada. A vida é realmente extraordinária, não acha, monsenhor?

- Acho. Mas não sei o que você quer dizer com isso.

- Refiro-me a esta porta: quem haveria de supor que sua resistência poderia definir um pleito?

- É verdade...- assentiu monsenhor, sorrindo. - Ninguém...

E se aproximou da mesma, embevecido, dando a impressão de que proferiria algumas palavras em sua homenagem, como o personagem de Tchecov que exaltava a própria estante. Mas monsenhor se limitou a acariciá-la e em seguida a avaliar os danos que ela sofrera durante o assalto.

- As dobradiças ficaram um pouco danificadas, mas creio que ainda consigam suportar um outro assédio.

- Nós a consertaremos, monsenhor. Assim que tivermos nos alimentado.

Ainda tentei refazer a frase, mas o olhar alucinado de monsenhor embotou minha criatividade. Eu tocara sem querer no ponto nevrálgico e justamente quando deveria mencionar tudo, menos comida. Afinal, o dia declinava e nossas chances de que irmã Geovana nos enviasse provisaões eram praticamente nulas. É claro que poderíamos suportar essa situação de total abstinência por mais um dia ou dois, mas o problema é que nossas defesas haviam se enfraquecido, pois acreditáramos que comeríamos de qualquer maneira nessa segunda-feira. Impunha-se, portanto, um novo e sobre-humano esforço, já que agora não havia mais nenhum prazo, um limite em função do qual pudéssemos armar algum esquema psicológico para combater o pânico.

Procurando escapar do semblante esgazeado de monsenhor, que começava a me incomodar seriamente, assumi um ar descontraído e comecei a reabrir a casa, a fim de pelo menos arejar um pouco o ambiente, já que não poderia fazer o mesmo com nossas cabeças. Enquanto executava essa tarefa, que procurei render ao máximo, fui me conscientizando de que seria forçado a desempenhar o papel de líder, pois o estado do caríssimo prelado era bem pior do que o meu. Isso sem dúvida me assustava, visto que por temperamento sempre me fora muito mais fácil discutir a idéia de alguém do que levar adiante uma própria. No entantro, nossa situação era crítica: ou eu a conduzia com habilidade e firmeza ou então a qualquer momento monsenhor se desestruturaria, me desestruturando junto. Como eu não queria me entregar antes de atingir o limite de minhas forças, passei da teoria à prática e bradei, num tom de voz em tudo semelhante ao de alguém acostumado a dar ordens, e fundamentalmente, em vê-las obedecidas:

- Vamos, monsenhor! - e dando-lhe as costas, parti resoluto.

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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Hair"

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Oportuna remontagem de um clássico


Lionel Fischer


"Em plena Guerra do Vietnã, o mundo experimentava as dores e as delícias da época: o amor livre, o rock psicodélico, a filosofia oriental, a descoberta de drogas como o LSD e o estilo de vida dos hippies. Por outro lado, assistia ao primeiro conflito internacional televisionado e se indignava com os horrores da segregação racial e sexual. Neste verdadeiro caldeirão de acontecimentos, 'Hair' estreava em um pequeno teatro off-Broadway, em 1967. Não precisou de muito tempo para se tornar um fenômeno, migrar para o circuito principal e se propagar em dezenas de montagens ao redor do planeta".

Extraído do release que me foi enviado, este fragmento contextualiza o momento histórico que produziu um marco no gênero musical, já exibido aqui no início dos anos 70. Tendo como foco os integrantes de uma "tribo de hippies" de Nova York, a peça nos mostra não apenas um estilo de vida, mas também um grave conflito, a partir do momento em que um dos integrantes do grupo, Claude (Hugo Bonemer) é convocado para a Guerra do Vietnã, sendo tal convocação contestada principalmente por seu amigo Berger (Igor Rickli), líder da tribo. Completando o quarteto de protagonistas, temos a grávida Jeanie (Letícia Colin) e a idealista Sheila (Carol Puntel).

Contando com libreto e letras de Gerome Ragni e James Rado e música de Galt MacDermot, "Hair" volta aos palcos cariocas com versão de Claudio Botelho, direção de Charles Möeller e elenco formado (além dos já citados) por Marcelo Octavio (Woof), Reynaldo Machado (Hud), Tatih Köhler (Crissy), Karin Hils (Dionne), Danilo Timm (Margareth Mead/Tribo), Fernando Rocha (Pai de Claude/Tribo), Conrado Helt (Hubert/Tribo) e Bruna Guerin (Mãe de Claude/Tribo). No complemento do elenco, Aline Wirley, César Mello, Cássia Raquel, Ditto Leite, Emerson Espindola, Esdras de Lucia, Felipe Magga, Jana Amorim, Janaína Lince, Julia Gorman, Kotoe Karasawa, Luana Zenun, Lu Bollina, Marcelo Pies, Mariana Gallindo, Pedro Caetano, Renan Mattos e Sergio Dalcin.

Em face do que já foi dito, é evidente que o impacto causado por "Hair" na época de seu lançamento é muito maior que o de hoje, posto que a peça retratava e questionava um momento específico por todos vivido. No entanto, há paralelos possíveis que legitimam a montagem: as guerras estão por toda a parte, as questões sexuais ganharam nova dimensão, a intolerância no lidar com divergências parece acirrar-se cada vez mais e assim por diante - e não nos esqueçamos do problema relativo à discriminalização das drogas, essencial para que a sociedade deixe de considerar criminosos aqueles que as consomem.

Isto posto, cabe ressaltar que, embora simples enquanto escrita, "Hair" mantém sua potência criativa e renovadora sobretudo através das belíssimas canções de Galt MacDermot, que em muito valorizam as letras de Gerome Ragni e James Rado. E no presente caso, cumpre destacar a versão feita por Claudio Botelho, que, num certo sentido, praticamente deu uma nova roupagem ao texto. A mesma eficiência se faz presente na direção de Charles Möeller, que imprimiu à cena um vigor e uma alegria verdadeiramente contagiantes, assim como conseguiu valorizar ao máximo as passagens em que o drama predomina.

Com relação ao numeroso elenco, e em que pese o fato de que alguns intérpretes têm maiores oportunidades, o que me parece mais justo ressaltar é a força do conjunto, a apaixonada capacidade de entrega de todos os integrantes desta "tribo" e sua competência nas partes cantadas e dançadas, que contagiam totalmente a platéia durante todo o espetáculo.

Na equipe técnica, Marcelo Castro assina impecável direção musical, o mesmo aplicando-se à coreografia de Alonso Barros, à cenografia de Rogério Falcão, aos figurinos de Marcelo Pies e à iluminação de Paulo César Medeiros, que contribuem de forma decisiva para o sucesso desta mais do que oportuna remontagem de uma obra tão marcante quanto "Hair".

HAIR - Libreto e Letras de Gerome Ragni e James Rado. Música de Galt MacDermot. Versão brasileira de Claudio Botelho. Direção de Charles Möeller. Com grande elenco. Teatro Oi Casa Grande. Quinta e sexta, 21h; sábado, 18 e 21h30; domingo, 19h.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"A história do homem que ouve Mozart e da moça do lado que escuta o homem"

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Inquietação e desconforto


Lionel Fischer


Assim que a platéia entra no espaço cênico da sede da Cia. dos Atores, depara-se com um quadro desolador: bolsões de água se acumulam sobre um chão de tábuas em péssimo estado de conservação; uma antiga cama de molas, desprovida de colchão; bonecas com e sem cabeça espalhadas, algumas delas sobre uma pequena mesa, junto à qual se encontra uma mulher cuja função parece ser a de consertá-las; um homem, de aspecto um tanto andrajoso, vaga perdido murmurando frases desconexas, agarrado a uma vitrola; penduradas por fios, garrafas de plástico, contendo um líquido que sugere ser água.

Como não tinha a menor idéia do que se seguiria, minha imaginação me remeteu à atmosfera de alguns romances russos, em especial "Crime e castigo", de Dostoievski, em parte pela ambientação (mesmo levando-se em conta as diferenças entre o quarto de Raskolnikov e o do personagem em questão), em parte pela figura do homem, em visível processo de deteriorização mental. E também acho que fiz essa associação pelo fato, já mencionado, das muitas bonecas desprovidas de cabeça, sendo que no romance o protagonista mata a machadadas sua senhoria, sendo o primeiro golpe desferido na fronte da mesma.

Enfim...foram essas as minhas primeiras impressões sobre "A história do homem que ouve Mozart e da moça do lado que escuta o homem", de autoria de Francis Ivanovich - teria o autor ascendência russa?. Dirigida por Luiz Antônio Rocha, a montagem chega à cena com elenco formado por Adriana Zattar e Roberto Birindelli.

"Embalados por uma tempestade que cresce sobre a cidade, um professor de literatura, perseguido pelo passado, chega a uma hospedaria e não se dá conta que no quarto vizinho habita a 'Moça do Lado'. Vizinhos invisíveis. Ela, mergulhada num universo próprio, conserta bonecas para concretizar um desejo de reparação e aliviar uma dor sentenciada, concentrando todos os esforços para conter as inúmeras goteiras e infiltrações que assolam sua vida. Ambos solitários, à beira do abismo, esquecidos de si, não percebem que o imprevisível faz-se necessário e quando tudo parece infindável, eis que surge uma fresta de luz".

Extraída do release que me foi enviado, esta sinopse certamente traduz as intenções do autor. No entanto, me vejo na obrigação de confessar que não identifiquei muitas delas, ao menos de forma tão detalhada. O que o texto me permitiu foi entrar em contato não como uma narrativa que deveria apreender literalmente, mas muito mais com, digamos, a desoladora imagem de dois seres que, ao que suponho, da vida só conheceram seu lado mais amargo. O professor de literatura vem perdendo alunos, encontra-se praticamente na miséria e sua paixão por Mozart o leva a se relacionar com um maestro imaginário. Quanto à mulher, esta se relaciona com as bonecas não como uma profissional que exercesse o ofício de consertá-las, mas como se as mesmas fossem metáforas de uma mente também em nítido processo de esfacelamento.

Com o acima exposto, pretendo apenas enfatizar que tudo se resume a conjecturas, e imagino que, assim como eu, os espectadores farão as suas, não necessariamente sequer parecidas com as minhas. Seja como for, o que importa ressaltar é que o presente texto, mesmo que de difícil apreensão, me colocou em um estado de permanente inquietação e desconforto. E para mim foi o suficiente para deixar o teatro com a certeza de ter assistido a algo de inquestionável seriedade.

Quanto ao espetáculo, o diretor Luiz Antônio Rocha impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o contexto proposto pelo autor. Suas marcações são imprevisíveis e sempre muito expressivas, cabendo também ressaltar sua coragem de tentar extrair significados através de longos silêncios e passagens totalmente desprovidas de luz.

No que diz respeito ao elenco, tanto Adriana Zattar como Roberto Birindelli exibem performances irrfetocáveis, afora notável capacidade de entrega a personagens que vivem no limiar da loucura mas que, ainda assim, lutam desesperadamente para escapar a um destino que parece irremediavelmente traçado.

Na equipe técnica, Luiz Antônio Rocha assina cenário e figurinos totalmente condizentes com a dilacerante realidade proposta pelo autor, cabendo ainda destacar a sombria e claustrofóbica iluminação de Antonio Mendel e o trabalho de preparação corporal realizado por Roberto Birindelli.

A HISTÓRIA DO HOMEM ... - Texto de Francis Ivanovich. Direção de Luiz Antônio Rocha. Com Adriana Zattar e Roberto Birindelli. Uma realização da Espaço Cênico e Cia. Panapaná de Teatro. Sede da Cia. dos Atores. Sábado e domingo, 20h. Segunda, 20h30.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Mente Mentira"

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Virulentos embates familiares



Lionel Fischer


"A peça conta, com humor ácido e força trágica, a história de duas famílias afetadas pela drástica separação de seus filhos Jake (Malvino Salvador) e Beth (Fernanda Machado). Beth, jovem e bonita atriz iniciante, desperta no marido uma crescente suspeita de infidelidade e os dois, depois de sucessivas e violentas brigas, chegam a uma situação limite quando Jake, cego de ciúmes, bate na esposa deixando-a desacordada e chegando a acreditar que está morta. Marcados pela traumática separação, cada um volta à 'proteção da casa paterna', o que só contribui para afastá-los cada vez mais da realidade. Beth volta a viver sob os cuidados de um pai egocêntrico e autoritário, Baylor (Zécarlos Machado), uma mãe submissa, Meg (Roza Grobman) e um irmão temperamental, Mike (Marcos Martins). Jake, por sua vez, regressa aos braços de sua mãe Lorraine (Malu valle), que vive presa às lembranças do passado; Sally (Keli Freitas), uma irmã infantilizada e excluída; e Frankie (Augusto Zacchi), o irmão sensato mas que, no fundo, parece guardar um desejo velado pela cunhada Beth".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado pela assessoria de imprensa do espetáculo, apresenta um resumo do enredo de "Mente mentira", por muitos considerada a melhor peça do consagrado dramaturgo norte-americano Sam Shepard. Em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, o texto chega à cena com tradução de Maurício Arruda de Mendonça e direção de Paulo de Moraes.

Como não li toda a obra de Shepard, não posso assegurar ser esta sua melhor peça. No entanto, não resta dúvida de que se trata de um texto de grande qualidade, que aborda temas inerentes a todos nós, tais como ciúme, inveja, autoritarismo, desejos proibidos ou não, mágoas e frustrações etc., expressos através de personagens bem construídos e de uma trama cuja virulência, humor corrosivo e alternância de foco - os conflitos das duas famílias - prendem a atenção do espectador durante todo o espetáculo.

No que concerne à montagem, Paulo de Moraes impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com os conteúdos propostos pelo autor. Ainda assim, acredito que tanto a virulência do texto, como seu corrosivo humor, não precisariam necessariamente ser expressos num registro quase sempre tão exacerbado, o que inviabiliza maiores contrastes. Não estou sugerindo, evidentemente, que o encenador deveria "suavizar" os múltiplos embates, apenas que os mesmos não perderiam sua contundência se trabalhados numa escala expressiva mais ampla.

Com relação ao elenco, os excelentes profissionais que estão em cena conseguem valorizar, com vigor e sensibilidade, os difíceis personagens que interpretam. Mas ainda assim torna-se impossível não destacar as irrepreensíveis participações de Zécarlos Machado, Roza Grobman, Malu Valle e Augusto Zacchi, que, em minha opinião, extraem o máximo dos papéis que encarnam.

Na equipe técnica, a mesma eficiência se faz presente nas contribuições de todos os envolvidos no projeto - Maneco Quinderé (iluminação), Rita Murtinho (figurinos), Ricco Viana (música original), Paulo de Moraes e Carla Berri (cenografia), Maurício Arruda de Mendonça (tradução e dramaturgia), Patrícia Selonk (preparação corporal) e Simone Mazzer (preparação vocal).

MENTE MENTIRA - Texto de Sam Shepard. Direção de Paulo de Moraes. Com Malvino Salvador, Fernanda Machado, Zécarlos Machado, Malu Valle, Roza Gorbman, Keli Freitas, Marcos Martins e Augusto Sacchi. Casa de Cultura Laura Alvim. Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 19h.
Teatro/CRÍTICA

"Senhora dos afogados"

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Tensão e perplexidade no cais


Lionel Fischer


Tratados já foram escritos sobre a obra de Nelson Rodrigues, atacando-a ou defendendo-a. Mas talvez não sejam muitos os leitores/espectadores que tenham tido a oportunidade de saber o que pensava nosso maior dramaturgo a respeito de seus admiradores ou detratores - em especial, dos últimos. Então, julguei oportuno reproduzir aqui o fragmento de um artigo ("Teatro Desagradável") escrito por Nelson Rodrigues, em 1949, publicado na primeira edição da revista Dionysos. Vamos a ele:

"Peçam tudo, menos que eu renuncie às atrocidades habituais dos meus dramas. Considero legítimo unir elementos atrozes, fétidos, hediondos ou o que seja, numa composição estética. Qualquer um pode, traqüilamente, extrair poesia de coisas aparentemente contra-indicadas. Isso é tão óbvio, que me envergonho de repeti-lo. E continuarei trabalhando com monstros. Digo monstros, no sentido de que superam ou violam a moral prática e cotidiana. Quando escrevo para teatro, as coisas atrozes e não atrozes não me assustam. Escolho meus personagens com a maior calma e jamais os condeno. Quando se trata de operar dramaticamente, não vejo em que o bom seja melhor que o mau. Passo a sentir os tarados como seres maravilhosamente teatrais. E no mesmo plano de validade dramática, os loucos varridos, os bêbados, os criminosos de todos os matizes, os epiléticos, os santos, os futuros suicidas. A loucura daria imagens plásticas e inesquecíveis, visões sombrias e deslumbrantes para uma transposição teatral! Certa vez, o sr. Carlos Drummond de Andrade falou em 'obras-primas fulgurantes...e podres'. Infelizmente, minhas peças não são obras-primas. Se o fossem, teriam direito de ser podres".

Isto posto, passemos à avaliação de uma das peças de Nelson mais contestadas, "Senhora dos afogados", ora em cartaz no Restaurante Albamar. Produzida pela Cia. Teatral do Movimento, a obra chega à cena com direção de Ana Kfouri e elenco formado por Anna Abbott (Moema), Cris Larin (D. Eduarda), Fabiano Fernandes (Paulo), Renato Carrera (Misael), Renato Livera (Noivo), Suzana Saldanha (Avó e Dona), André Frazzi (Sabiá), André Marinho (Vendedor de Pentes), Aline Bernardi, Flavia dos Prazeres, Julia Bernat, Paula Alexander e Vanessa Soares (Mulheres do Cais), João Pedro Orban, Letícia Braga e Maurício Lima (Vizinhos), Camila Maia, Christiane Ayune, Gleice Uchoa, Lian Tai, Luciana Veloso, Mayara Travassos, Nina Adlin, Paula Loffler, Rebeca Dourado, Sitha Coulibaly, Thaísa Violante e Thalita Vaz (Coro Mulheres do Cais), que dividem a cena com os músicos Raquel Coutinho, Samantha Rennó e Joana Bergman - Raquel Karro faz participação especial em vídeo, na pele da Prostituta Morta.

Como dito no parágrafo incial, muitos tratados já foram escritos sobre a obra de Nelson Rodrigues, e por profissionais de incontestável gabarito, como Helio Pellegrino, Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski etc. Portanto, ao menos em termos teóricos, julgo pouco provável que tenha algo acrescentar às conjecturas e especulações feitas pelos referidos mestres e por outros tantos que deixei de citar. Assim, tomei a decisão de, ao escrever esta crítica, tentar esquecer tudo que já li sobre esta peça, numa tentativa de com ela me relacionar como se a estivesse conhecendo agora.

Abstendo-me de resumir seu enredo, posto que o mesmo me parece por demais conhecido, deparei-me com um contexto sombrio e trágico, estruturado em torno de uma família que os "idiotas da objetividade", como dizia Nelson, considerarão implausível. Não compartilho, evidentemente, desta opinião. Mas ainda que compartilhasse, teria que possuir um QI de ameba para não levar em conta que a família em questão poderia não estar inserida num contexto "real". Ou seja: mais do que personagens, estes se materializam na cena como símbolos de toda uma série de neuroses, obsessões, repulsas, impulsos reprimidos e raramente materializados, enfim, de múltiplas e diversificadas manifestações de nosso inconsciente. E como todos pertencemos à espécie humana, tudo que é relativo ao humano nos é inerente. Para o bem ou para o mal. Negar esta premissa básica equivale a condenar o mar pela inconstância de suas marés. E se porventura os personagens às vezes se assemelham a espectros que realizam orgias sobre a campa das próprias sepulturas, cabe a cada espectador não rejeitá-los como se fossem aberrações de uma mente doentia, mas tentar perceber seu próprio espectro e, conseqüentemente, suas próprias aberrações - ou será que alguém cultiva a ilusão de deter o monopólio de todas as virtudes?

Quanto ao espetáculo, este é sem dúvida o melhor já realizado por Ana Kfouri. Impondo à cena uma dinâmica austera e hierática, mas ao mesmo tempo passional e arrebatada, a encenadora consegue transmitir todos os conteúdos propostos pelo autor, obrigando o espectador a permanecer em um estado de permanente tensão e perplexidade. Valendo-se de marcas imprevistas e criativas, explorando com total propriedade os dois espaços em que se desenrola a ação, Ana Kfouri exibe ainda o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações de todo o elenco, tanto no que diz respeito ao texto articulado quanto ao universo gestual. E por ter obtido um resultado final em que a unidade impera, julgo inoportuno destacar qualquer desempenho individual, mas a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo.

Na equipe técnica, são igualmente irretocáveis a cenografia de André Sanches, os figurinos de Luiza Carneiro da Cunha, a iluminação de Renato Machado, a direção musical, composição e arranjos de Raquel Coutinho, a preparação vocal de Sonia Dumont e o vídeo de Eduardo Chamon, cabendo ainda citar a criação audiovisual de Renato Liverta e Yuri Fortuny e a programação visual de Buenavila.

SENHORA DOS AFOGADOS - Texto de Nelson Rodrigues. Com a Cia. Teatral do Movimento. Restaurante Albamar. Domingo a terça, 19h30.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Conversando com mamãe"

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Amor, humor e humanidade


Lionel Fischer


Sempre que escuto alguém dizer que uma peça é excelente porque partiu de uma ótima idéia, invariavelmente me recordo daquela que é considerada a melhor dentre todas já escritas: "Hamlet", de Shakespeare. Reduzida à sua essência, a obra gira em torno de um príncipe que, logo no início do texto, é informado pelo fantasma de seu pai que fora assassinado pelo irmão, que logo em seguida se casou com a viúva, obviamente cúmplice da macabra trama. Uma vez feita esta revelação, o jovem príncipe passa cinco atos imerso em dúvidas, até finalmente consumar a vingança prometida ao pai. Pois bem: trata-se de uma idéia genial? Em absoluto. O que converte o texto em uma inigualável obra-prima é a forma como Shakespeare expandiu a idéia inicial, os fantásticos personagens que criou, as reflexões que empreendeu, a avassaladora ação que impõe à narrativa - dentre muitas outras virtudes. Ou seja: uma idéia inicial que nada tem de extraordinária pode gerar uma obra-prima, da mesma forma que uma idéia brilhante pode resultar em um produto final bisonho.

Tais considerações foram feitas para explicitar minha crença absoluta de que um texto como "Conversando com mamãe", cujo tema já foi explorado infinitas vezes e nada propõe de novo em termos formais, ainda assim pode tocar profundamente o coração do espectador, e certamente levá-lo a reavaliar muitos aspectos de suas relações familiares. Em cartaz no Centro Cultural Correios, "Conversando com mamãe", de autoria do cineasta argentino Santiago Carlos Oves, chega à cena com versão teatral do catalão Jordi Galceran, direção de Susana Garcia e elenco formado por Beatriz Segall e Herson Capri.

Em termos de enredo, este pode ser assim resumido: um homem de 50 anos, atualmente desempregado e vivendo um casamento fracassado, vai até o apartamento da mãe, uma senhora de 82 anos, com o objetivo de convencê-la de que o imóvel (de sua propriedade e de sua esposa) precisa ser vendido para quitar dívidas, o que implica que a mãe tenha de deixá-lo. A partir daí, no entanto, o autor desenvolve uma narrativa em que a venda ou não do imóvel passa a um plano secundário, e o que prevalece é um progressivo processo de inesperadas revelações de ambas as partes, algumas impregnadas de humor, outras de melancolia. Mas todas elas contribuem para estreitar os laços afetivos entre os dois personagens, assim como para ampliar o pouco conhecimento que tinham um do outro.

Bem escrito, contendo ótimos personagens, pleno de delicadeza, humor e humanidade, "Conversando com mamãe" chega à cena com ótima direção de Susana Garcia, que sabiamente investiu no que realmente importa: a relação entre os personagens. Isto significa que reduziu a movimentação ao estritamente necessário, investindo muito mais no potencial expressivo de eventuais e constrangedores silêncios, na dificuldade dos personagens de se colocarem com absoluta franqueza, no humor que brota inesperadamente em função de imprevistas cumplicidades, enfim, explorou ao máximo os conteúdos propostos pelo autor. Mas é claro que tal êxito também se deve, e muito, à sua capacidade de extrair atuações irretocáveis dos dois intérpretes.

Estão em cena dois profissionais de reconhecido talento e vastíssima experiência. Mas isso, por si só, não garantiria o sucesso da montagem. O que me parece fundamental é a química entre Herson Capri e Beatriz Segall, a evidente cumplidade entre ambos, a capacidade de se entregar totalmente às emoções em causa, de viver profundamente todos os sentimentos inerentes ao contexto, sendo tais atributos os maiores responsáveis pela total adesão do público ao espetáculo, que o assiste alternando muitos risos e furtivas lágrimas - com relação a estas últimas, me vejo obrigado a confessar que, em muitas passagens, só não chorei em voz alta como uma carpideira grega por temor de incomodar aos que me circundavam, mas não foram poucas as ocasiões em que lamentei o fato de jamais ter um lenço como acessório...

Com relação à equipe técnica, são maravilhosas e decisivas as contribuições de todos os profissionais envolvidos neste sensível e mais do que oportuno projeto - Kalma Murtinho (figurinos), Marcos Flaksman (cenografia), Paulo César Medeiros (iluminação), Alexandre Elias (trilha sonora original) e Pedro Freire (tradução)

CONVERSANDO COM MAMÃE - Texto de Santiago Carlos Oves. Versão teatral de Jordi Galceran. Direção de Susana Garcia. Com Beatriz Segall e Herson Capri. Centro Cultural Correios. Quinta a domingo, 19h.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XXI


A ausência de monsenhor Flávio deveria me agradar, já que me permitia ficar a sós com minha amada. Mas paradoxalmente me encheu de inquietação. Parado à frente de irmã Geovana, eu não sabia que atitude tomar. Convidá-la novamente a se sentar me parecia ridículo, mas ao mesmo tempo não ousava lhe propor que fôssemos para o quarto. Não havendo vitrola na casa, não poderíamos sequer dançar. Foi então que, subitamente, percebi que os olhos de minha amada emitiam o mesmo e estranho brilho que tanto me impressionara uma hora atrás. Comecei a suar frio. Minhas pernas fraquejavam e eu pressenti que se não tomasse uma atitude, qualquer que fosse ela, acabaria desmaiando. Se isso acontecesse, não me restaria outra alternativa a não ser a de me suicidar tão logo recobrasse os sentidos. Mas eu não tinha o menor interesse em renunciar à vida, justo no momento em que ela começava a me interessar. Felizmente, irmã Geovana tomou a iniciativa.

- Você já bebeu todo aquele vinho que eu mandei?

- Não, claro que não. Por quê? (Que pergunta, meu Deus!?)

- Você poderia ir buscá-lo....

Mas eu estava tão idiotizado que ela teve que colocar um adendo em sua proposta.

- Ou prefere que eu vá?

Só então me dei conta de que agia como se tivesse 12 anos.

- Imagina! Eu volto num segundo!

E abandonei a sala. Chegando na cozinha, comecei a procurar uma jarra, pois não me pareceu de bom tom regressar com um garrafão bojudo. Enquanto me ocupava vasculhando os armários, minhas pernas foram pouco a pouco parando de tremer e minha respiração se normalizando. Quando finalmente encontrei o que procurava, me senti tão à vontade que comecei a ssoviar. E foi assoviando que enchi a jarra, peguei os copos e coloquei harmoniosamente esses objetos numa bandeja, que tive o cuidado de forrar com um paninho branco - se alguém me visse nesse momento julgaria que eu era o tipo de homem habituado a receber donzelas em sua casa, tal o meu desembaraço. Mas o pior é que eu próprio era o primeiro a acreditar nisso, agindo como se nada mais pudesse abalar a segurança que supostamente se apossara de mim.

Quando, no entanto, peguei a bandeja e caminhei três passos, percebi que se desse mais um ela me cairia das mãos. Os copos deram início a uma rumba tão frenética que por um momento acreditei que haviam adquirido vida própria. Apavorado, tentei de todas as formas dominar o histérico tremor, mas parecia que eu havia contraído o "mal de Parkinson". Em poucos segundos, a animação dos "bailarinos" se tornou tão contagiante que até a barriguda jarra insinuou uma singular coreografia. Julguei-me então perdido: não conseguiria nem mesmo retornar até a pia, situada a menos de dois metros de onde eu estava. Entretanto, alguma coisa me disse que eu deveria ao menos tentar, que era mais digno fracassar indo ao encontro da mulher amada do que ficar plantado no centro de uma cozinha. E foi o que fiz.

Como uma cascavel tomada de súbito furor, saí chacoalhando sem me preocupar com coisa alguma que não atingir a sala, onde me aguardava a mulher que eu tanto amava e diante de quem eu poderia, se fosse o caso, deixar que tudo despencasse, pois ao invés de me julgar um idiota, ela haveria de valorizar meu nervosismo, prova inconteste do imenso amor que lhe devotava. Assim, acabei atingindo meu objetivo. Mas, para minha surpresa, irmã Geovana não estava mais na sala. Ante o impacto de sua inesperada ausência, meus tremores desapareceram de imediato.

Não podia acreditar que ela tivesse ido embora, enquanto eu me debatia na cozinha tentando dominar o efeito que tinha ela como causa. Não, uma tal atitude revelaria uma natureza abjeta e cruel, que não se encaixava em tudo que já percebera em sua pessoa. Entretanto, essas considerações não impediram que meus olhos se enchessem de lágrimas. Mas a depressão que ameaçava se instalar em mim foi logo substituída por um desejo cego de quebrar toda aquela casa, de reduzir a escombros aquele refúgio onde supus que viveria um momento inesquecível. Erguendo então a bandeja acima da cabeça, como um exímio garçon, já me preparava para iniciar minhas atividades predatórias quando ouvi um som que me pareceu em tudo semelhante ao relincho de um cavalo.

A princípio pensei tratar-se de um delírio auditivo, mas como ele se repetiu, depositei a bandeja na mesa e corri até a varanda. Lá chegando, minha esperança renasceu, pois avistei o corcel de minha amada que, talvez ressentido com sua prolongada ausência, apelava para que ela retornasse. Ah, amigo leitor! Nunca a visão de um eqüino me deixou tão exultante e fossem outras as circunstâncias, eu teria lhe dado ao menos 30 beijos. Mas eu tinha toda a pressa do mundo, já que não nutria mais a menor dúvida quando ao paradeiro de irmã Geovana!

Dessa vez, a bandeja não me tremeu nas mãos. Caminhei para o quarto com uma tranqüilidade que chegou a me surpreender. E nele entrei sem a menor ansiedade. Mas irmã Geovana resolvera brincar com meus nervos...Na mesinha de cabeceira, junto às flores, ardiam duas velas. Nas cadeiras em que supus que iríamos nos sentar, ela depositara suas vestes. E na cama que não me atrevi a imaginar que nos deitaríamos, ela se refugiara...

Imediatamente me lembrei de nosso primeiro encontro, quando a defini como alguém que "não era deste mundo". E estava certo: não era admissível que uma simples mortal reunisse tanta beleza e espiritualidade. E não me refiro apenas ao rosto que, emoldurado por negros cabelos, parecia ainda mais diáfano do que de costume. Não, cada parte do seu corpo exibia a mesma pureza e sensação de eternidade.

Não sei por quanto tempo permaneci contemplando-a extasiado, como também ignoro o que sentiu irmã Geovana ao ver-se devassada com tanta meticulosiodade. Tudo que posso garantir é que se a morte, sempre tão presente em minha fantasia, me tivesse levado nesse momento eu não a censuraria, pois me teria concedido, como a Moisés, o privilégio de ao menos ver a Terra Prometida! Mas como a morte se absteve de copiar a atitude simbólico-pedagógica do Senhor, irmã Geovana e eu pudemos celebrar de forma inesquecível aquela oportunidade única.

Até então, sempre considerara as pessoas que íam para a cama comigo mais como corpos - cujos anseios me sentia obrigado a saciar - do que propriamente como seres humanos, que poderiam estar buscando algum tipo de interação comigo. Essa postura, fruto possivelmente de uma brutal dificuldade de me entregar a alguém, me transformava numa espécie de máquina extremamente hábil, que conseguia detectar as necessidades puramente físicas de minhas parceiras e em seguida satisfazê-las. Com irmã Geovana, no entanto, nada disso aconteceu. Em todos os meus gestos havia um sentimento, jamais uma finalidade. As palavras que pronunciei evidenciaram sempre a existência de uma emoção, não de uma tática. O amor, ao impedir que aflorassem as obsessões de sempre, resgatou minha própria humanidade. E o amante que apenas atuava cedeu lugar ao homem que sentia.

Às quatro e meia monsenhor Flávio deu três pancadinhas na porta e anunciou, com voz de camareira de hotel chique, que dentro de meia-hora se faria dia. Irmã Geovana e eu, embriagados de felicidade e inteiramente alheios aos problemas desse mundo, demoramos um certo tempo para compreender o sentido daquele apelo. Aliás, só nos demos conta de que era preciso abandonar o leito quando monsenhor renovou suas pancadinhas, agora em número de quatro, e anunciou que faltavam apenas 25 minutos para amanhecer. Então nos levantamos e começamos a nos vestir. Quando abrimos a porta, monsenhor já estava prestes a dar seqüência aos seus chamados.

- Já sei, monsenhor...- disse irmã Geovana, sorrindo. - Faltam apenas 25 minutos para o dia clarear...

- Dezenove, para sermos mais precisos... - retrucou o prelado, após rápida consulta ao seu reloginho de bolso.

Tomamos juntos o café da manhã, mas se trocamos duas ou três palavras foi muito. Estávamos tristes com a iminente separação e também apreensivos, pois a possibilidade de que descobrissem que minha amada se ausentara não era nem um pouco remota. Ela poderia, é bem verdade, alegar que resolvera passear ou simplesmente não dar satisfação alguma. Mas esse fato seria usado contra ela, sobretudo porque nunca acontecera antes, ao menos de madrugada. Hipóteses seriam formuladas, todas elas desfavoráveis à minha deusa e a oposição se fortaleceria. É evidente que eu desejava que irmã Geovana fosse embora comigo, mas não queria de modo algum vê-la escorraçada de um lugar ao qual dedicara dez anos de sua vida e ajudara a transformar. Por isso torcia para que a situação no convento se normalizasse, pois só assim ela poderia fazer sua opção livremente, sem nada a pressioná-la.

Quando estávamos quase termiando a refeição, monsenhor se levantou e foi buscar o cavalo. Não precisaria, evidentemente, ter feito isso. Mas quis ser delicado deixando-nos sozinhos para trocarmos nossas últimas palavras. No entanto, nenhum de nós conseguiu articular coisa alguma: limitamo-nos a permanecer de mãos dadas até o momento em que o belo corcel soltou um espantoso relincho, como a sugerir que era chegada a hora de nos separarmos. Caminhamos então até o pátio como se nos dirigíssimos ao patíbulo. Enquanto eu ajudava irmã Geovana a montar, monsenhor Flávio, que fungava visivelmente, se afastou alguns passos. Mas nem assim conseguimos nos dizer nada. Ela ainda tentou sorrir, mas como não nascera atriz, fracassou de forma lamentável. Então optou por mandar um beijo e começou a se afastar. Quando estava prestes a perdê-la de vista, me veio o grito inesperado:

- Eu te amo!

- Eu também! - respondeu minha deusa, sem se voltar.

Tomado então de um sentimento de paixão incontrolável, iniciei uma desabalada corrida em sua direção. Mas irmã Geovana, certamente para evitar o prolongamento de uma dor inútil, atiçou sua montada e em rápidos galopes desapareceu.

Acho que teria ficado imóvel a manhã inteira no mesmo lugar onde interrompi meu sprint. Mas monsenhor enganchou seu braço no meu e me arrastou para um passeio pela granja. Tentei protestar, mas o prelado se fez de surdo e começou um longo solilóquio que tinha como tema as vantagens de se ser otimista. Ainda consegui lhe dizer que atearia fogo ao convento se alguma daquelas possessas ousasse maltratar minha amada, mas sua lábia acabou me convencendo de que tudo acabaria dando certo. Quando regressamos à casa, estava de excelente humor, como um singelo Cândido oportunamente confortado por seu inestimável Pangloss.

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