segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Sonhos para vestir"

...................................
Poesia em movimento


Lionel Fischer


Sob o título "O movimento das palavras é agir", a autora e única atriz do espetáculo, Sara Antunes, escreveu o que se segue no programa distribuído ao público: "Noite cintilante favorável para sonhar. No limite do dia. Uma parede escrita de sonhos. Uma cronologia do coração que é indestrutível. Alguma coisa que adormece e alguma coisa que desperta. Sem saber se teatro, música ou artes plásticas, 'Sonhos para vestir' é antes um devaneio poético. Um tributo àqueles que sabem que imaginação faz criar o que se vê".

Como se sabe, é comum a um autor, ao falar de sua obra, exagerar suas virtudes ou minimizar seus defeitos, o que dá no mesmo. Aqui, no entanto, Sara Antunes não faz nem uma coisa nem outra; apenas tenta expressar, através de palavras impregnadas de poesia, o contexto básico de uma peça que, talvez, alguns poucos néscios não encararão com "teatro". Então, cabe recordar a maravilhosa definição do mesmo feita por Antonin Artaud: "Teatro é poesia em movimento".
E de fato é o que acontece no Espaço Sesc, que ora abriga esta montagem belíssima, dirigida por Vera Holtz.

Do parágrafo inicial, consta a expressão "devaneio poético". Mas isto não significa - atentai para este singelo detalhe, néscios e retrógrados de plantão - que não estejamos diante de um texto teatral. Ocorre, apenas, que ele obedece a uma estrutura cuja natureza em tudo se assemelha à dos sonhos, ou mais especificamente, à da memória. E esta não existe com o rigor que a ela em geral se atribui; pelo contrário: com o passar do tempo, toda memória sofre múltiplas interferências e assim, inevitavelmente, terminamos por recordar não exatamente aquilo que foi vivido, mas as sensações que optamos, conscientemente ou não, por conservar. Pensar o contrário, ao menos em minha opinião, equivale a sustentar que não nos esquecemos de uma flor porque era bela, quando talvez o essencial esteja em seu perfume.

E aqui, é o perfume que predomina. O perfume das palavras, das lembranças que as palavras evocam, dos desejos que fabricam, daí resultando uma permanente ânsia de viver a vida em sua plenitude, ou seja, conseguindo extrair beleza de objetos ou fatos aparentemente insignificantes, mas que adquirem transcendência graças à dimensão poética com que são encarados. Enfim...se é verdade que no princípio era o Verbo, este se faz aqui presente em múltiplas conjugações, restando a cada espectador perceber em que tempo está conjugando a sua vida e, se necessário for, ter a coragem de alterá-lo. Sempre.

No tocante ao espetáculo, Vera Holtz cria uma dinâmica cênica em total sintonia com o material dramatúrgico. Delicadas, imprevistas e criativas, suas marcações não se afiguram como impostas, mas como se fossem decorrentes de impulsos e desejos que só poderiam ser apreendidos da forma como foram materializados. E cabe ainda ressaltar que a atriz possui total liberdade para interagir com a platéia, que, por sinal, a cada noite contribui para conferir à narrativa novos e inesperados rumos.

Quanto à Sara Antunes, além de ter escrito um texto belíssimo, cabe ainda o mérito suplementar de ser uma atriz em nada parecida com tantas outras, ainda que excelentes. A sensação que tenho é a de que está em cena não para "distrair criaturas já de si tão mal atentas", como disse Louis Jouvet, mas para fazer dançar, nos olhos dos que a vêem e ouvem, a esperança. Esta é, sem dúvida, uma das muitas razões que fazem de Sara Antunes uma intérprete especialíssima, uma verdadeira dádiva para todos aqueles que, como sustenta Peter Brook, encaram o teatro como "a arte do encontro".

Na equipe técnica, é simplesmente deslumbrante o cenário-instalação de Analu Prestes, que me abstenho de descrever para facultar ao espectador a mesma surpresa e encantamento que me gerou. E o mesmo nível de excelência se faz presente na iluminação de Paulo César Medeiros, no figurino de Kabila Aruanda e na música (execução e composição original) de Daniel Valentini, profissionais que contribuem de forma decisiva para o incontestável êxito desta maravilhosa jornada teatral.

SONHOS PARA VESTIR - Texto e interpretação de Sara Antunes. Direção de Vera Holtz. Espaço Sesc. Quinta e domingo, 20h. Sexta e sábado, 21h30.

Nenhum comentário:

Postar um comentário