Teatro e violência
Dina Moscovici
Shakespeare alguma vez disse que a vida está fabricada com a matéria dos sonhos. A vida diária transcorre numa espécie de sonolência, ou ao menos numa zona crepuscular, onde seu sentido não nos fica bem claro, onde o destino do outro nos é longínqüo e próximo ao mesmo tempo. Presos ao instante e ao lugar, nosso viver de cada dia é habitado por figuras passageiras. Uma existência que parece afastada da história e de seus grandes dramas; de suas epopéias e de suas comédias.
Nossa existência cotidiana, fortuita como o instante ou o lugar, cujo material é descartável como as imagens crepusculares, se encontra no meio de uma voragem de certo modo comprometida com o curso objetivo de um processo histórico. A tenacidade do impacto nos provoca uma revelação. Arde, então, a matéria dos sonhos e sua chama nos aponta um mais além: o de uma vida coletiva. Um mais além que não é apenas o de um mundo supra-terreno, mas que mostra a mesma realidade terrena em outra dimensão.
E, por meio de uma amarga comprovação, somos levados a sair do conformismo diário para alcançar e compreender a evidência de que não estamos sós, de que nosso eu e nossa afetividade estão, de certo modo, inseridas dentro da história. Talvez, curvar-nos diante da revelação de uma presença, a de uma violência não sempre definível mas constatável. De uma violência que, no mais remoto do nosso passado, não foi a da luta do homem contra o homem, mas o forte impacto do meio natural. A sua resistência contra um ser que não queria mais ser animal e que tentava sua sobrevivência com um novo recurso: o da Cultura. Cultura que é, em si mesma, negação da natureza, rebeldia que age e violenta a natureza, atuando sobre ela, transformando-a, vergando-a e submetendo-a, já não aos desígnios dos deuses, mas ao desejo dos homens.
Violência primeira, violência primária. Pedra friccionada contra pedra, produzindo o fogo; árvore que deixa de ser árvore para servir como madeira. E assim, toda uma transfiguração, uma perpétua metamorfose de uma coisa em outra, revolução permanente de todos os materiais. No exato momento em que o homem fez uso da Cultura para afirmar-se como homem, ele a impregnou sempre de uma violência, que para sempre a deixou contaminada.
Violência que se foi exercendo gradativamente, etapa após etapa. Primeiro a dos elementos naturais, logo aquela dos homens contra os homens, fundando hierarquia de valores, de beleza e de amor. Violência desenfreada, iracunda, vinda, quem sabe, de que potências cósmicas, que impulsiona o homem a criar, a roubar à natureza, para impor seu desejo de domínio. E ele mesmo, o homem, guardar o seu segredo, em algum espaço recôndito, que dará lugar a inúmeras interpretações, sujeitas estas sempre a outras.
Para a psicanálise, por exemplo, o sujeito humano emergiria de uma rede de significações que lhe seria dada por um Outro, sujeitado que é ele ao Desejo de um outro e à Cultura que o envolve. É daí que ele iria se instalar, se inaugurar como sujeito em "outra cena", à qual não teria acesso - o Inconsciente -, cenário onde se formam e situam aprioristicamente suas matrizes básicas de significações. Apenas desse lugar, tal como um espectador, irá filtrar e perceber um real, criando, em última instância, a sua realidade. Que violência! O ser humano será um ser de interpretação, de certo modo, alheio a si mesmo.
Em um pretérito fantasmático, ficaria situado o leme que nortearia para sempre o seu percurso existencial, marcando suas escolhas e decidindo de seu prazer. Toda uma trama que determinará o seu drama pessoal, cujo núcleo trágico fundante radicará em sua condenação a uma incompletude essencial. Será um Eu, só viável a partir de um outro que, espelho inicial, o reconheça e nomeie. E aí, o sujeito criará matrizes significantes - representações -, determinantes de sua realidade psíquica, a única que, de fato, para ele existirá, já que o inconsciente comparece como o lugar produtor de representações.
Toda essa trama fundante levará o homem a tratar de adequar-se a uma realidade maior, onde as trocas se farão possíveis, por ser o sujeito humano, basicamente, um ser produtor e produto da Cultura, isto é, norteado por leis, inventadas por ele, no empenho de opor-se ao caos. Mas embora essas leis sejam convenções, portanto arbitrárias, faz-se mister um consenso em torno delas como fundamento para a perpetuação da Cultura. Este espaço maior de con-vivência estará sempre norteado por normas, sinalizadoras ou catalisadoras, que organizarão e viabilizarão uma troca ordenada, uma articulação fecunda. Normas estas, criação dos homens, já que no caos inicial inexiste qualquer possibilidade de vida que seja fruto de leis e organizações hierárquicas.
No caso do teatro, império da invenção, outras imposições, outros desafios. Transpor espaços diferentes, demarcadores simbólicos plenos de significação. Bastará nomear: este é o espaço do público, aquele o da criação. Cada nova palavra inaugura, violenta, revoluciona qualquer ordenação anterior. Ela tem presença, forma, peso, pode ser lei absoluta. Também no vazio do espaço cênico um ator aparece, talvez no silêncio, sem articular um único som. É presença, devir aberto a todas as possibilidades. O simples estar aí é criação de mundos. Ou uma luz, um simples feixe de luz sobre o espaço deserto, é já um personagem.
Se se resiste à angústia dessa simples presença de um nada, tão somente vibração de intensidades, aos poucos essa luz se fará cheia de interrogações, despertará nossas projeções imaginárias que irão refugiar-se nas trevas, nas sombras que se refugiam atrás de seu brilho. Luz e sombra, num jogo fantasmagórico. E aí, a pergunta essencial: onde se instala o fundamento? Que processo é esse que dará sentido a essa combinação aleatória de dados, ao menos aparentemente caóticos, que levará ao jogo da criação?
É apenas quando esse processo, quando esse jogo é aleatório, quando esse jogo é puro azar, isto é, passe a conter todas as probabilidades, mas nos surpreenda no seu resultado; frustre, de certo modo, todas as nossas expectativas, violente nossas esperanças de subjugar o futuro ao nosso desejo, que, talvez, nos tenhamos acercado daquilo que pensamos ser a criação. Assim, o processo criativo - em algum lugar, alguém o disse - não se faz de um possível antecipado à realização desse possível, mas sim de um virtual não dado, nunca passível de sê-lo, à atualização desse virtual. Tudo com num lance de dados, onde o resultado assombre e exceda o próprio jogador.
Quem sabe, que momentos esses privilegiados, quando desses momentos podemos recordar, em que o milagre se deu, aqueles em que o ator, de repente, tem um branco, esquece o seu texto, vacila e se deixa invadir pelo inesperado, pelo vazio que aparece diante dele como espaço aberto, onde entre a memória e o presente um abismo se apresenta e o absoluto emerge num sentido abissal. É um fora que penetra no território suposto conhecido, o não previsível que invalida e violenta todas as certezas. Estava tudo em ordem, a palavra que seguiria a outra palavra, já prevista. E agora, o caos, o balbuciar lento das palavras, arrastando as sílabas.
É a emoção que nasce nesse interlúdio, nesse momento suspenso no ar, que faz que o espectador, ele também, sinta que o mundo está sendo inventado naquele exato instante. Ator e espectador, heterônimos de si mesmos, máscaras sobre outras máscaras que deixarão transparecer um corpo intenso. Um corpo que, seguramente, abriga uma alma, que, como pensava Platão, antes de se ter encarnado no corpo, passeou na companhia dos deuses pela planície das idéias. Mas que seja um corpo belo, que esteja na via erótica.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 161/2000. Dina Moscovici é professora de Improvisação no Tablado.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
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