terça-feira, 16 de novembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Senhora dos afogados"

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Tensão e perplexidade no cais


Lionel Fischer


Tratados já foram escritos sobre a obra de Nelson Rodrigues, atacando-a ou defendendo-a. Mas talvez não sejam muitos os leitores/espectadores que tenham tido a oportunidade de saber o que pensava nosso maior dramaturgo a respeito de seus admiradores ou detratores - em especial, dos últimos. Então, julguei oportuno reproduzir aqui o fragmento de um artigo ("Teatro Desagradável") escrito por Nelson Rodrigues, em 1949, publicado na primeira edição da revista Dionysos. Vamos a ele:

"Peçam tudo, menos que eu renuncie às atrocidades habituais dos meus dramas. Considero legítimo unir elementos atrozes, fétidos, hediondos ou o que seja, numa composição estética. Qualquer um pode, traqüilamente, extrair poesia de coisas aparentemente contra-indicadas. Isso é tão óbvio, que me envergonho de repeti-lo. E continuarei trabalhando com monstros. Digo monstros, no sentido de que superam ou violam a moral prática e cotidiana. Quando escrevo para teatro, as coisas atrozes e não atrozes não me assustam. Escolho meus personagens com a maior calma e jamais os condeno. Quando se trata de operar dramaticamente, não vejo em que o bom seja melhor que o mau. Passo a sentir os tarados como seres maravilhosamente teatrais. E no mesmo plano de validade dramática, os loucos varridos, os bêbados, os criminosos de todos os matizes, os epiléticos, os santos, os futuros suicidas. A loucura daria imagens plásticas e inesquecíveis, visões sombrias e deslumbrantes para uma transposição teatral! Certa vez, o sr. Carlos Drummond de Andrade falou em 'obras-primas fulgurantes...e podres'. Infelizmente, minhas peças não são obras-primas. Se o fossem, teriam direito de ser podres".

Isto posto, passemos à avaliação de uma das peças de Nelson mais contestadas, "Senhora dos afogados", ora em cartaz no Restaurante Albamar. Produzida pela Cia. Teatral do Movimento, a obra chega à cena com direção de Ana Kfouri e elenco formado por Anna Abbott (Moema), Cris Larin (D. Eduarda), Fabiano Fernandes (Paulo), Renato Carrera (Misael), Renato Livera (Noivo), Suzana Saldanha (Avó e Dona), André Frazzi (Sabiá), André Marinho (Vendedor de Pentes), Aline Bernardi, Flavia dos Prazeres, Julia Bernat, Paula Alexander e Vanessa Soares (Mulheres do Cais), João Pedro Orban, Letícia Braga e Maurício Lima (Vizinhos), Camila Maia, Christiane Ayune, Gleice Uchoa, Lian Tai, Luciana Veloso, Mayara Travassos, Nina Adlin, Paula Loffler, Rebeca Dourado, Sitha Coulibaly, Thaísa Violante e Thalita Vaz (Coro Mulheres do Cais), que dividem a cena com os músicos Raquel Coutinho, Samantha Rennó e Joana Bergman - Raquel Karro faz participação especial em vídeo, na pele da Prostituta Morta.

Como dito no parágrafo incial, muitos tratados já foram escritos sobre a obra de Nelson Rodrigues, e por profissionais de incontestável gabarito, como Helio Pellegrino, Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski etc. Portanto, ao menos em termos teóricos, julgo pouco provável que tenha algo acrescentar às conjecturas e especulações feitas pelos referidos mestres e por outros tantos que deixei de citar. Assim, tomei a decisão de, ao escrever esta crítica, tentar esquecer tudo que já li sobre esta peça, numa tentativa de com ela me relacionar como se a estivesse conhecendo agora.

Abstendo-me de resumir seu enredo, posto que o mesmo me parece por demais conhecido, deparei-me com um contexto sombrio e trágico, estruturado em torno de uma família que os "idiotas da objetividade", como dizia Nelson, considerarão implausível. Não compartilho, evidentemente, desta opinião. Mas ainda que compartilhasse, teria que possuir um QI de ameba para não levar em conta que a família em questão poderia não estar inserida num contexto "real". Ou seja: mais do que personagens, estes se materializam na cena como símbolos de toda uma série de neuroses, obsessões, repulsas, impulsos reprimidos e raramente materializados, enfim, de múltiplas e diversificadas manifestações de nosso inconsciente. E como todos pertencemos à espécie humana, tudo que é relativo ao humano nos é inerente. Para o bem ou para o mal. Negar esta premissa básica equivale a condenar o mar pela inconstância de suas marés. E se porventura os personagens às vezes se assemelham a espectros que realizam orgias sobre a campa das próprias sepulturas, cabe a cada espectador não rejeitá-los como se fossem aberrações de uma mente doentia, mas tentar perceber seu próprio espectro e, conseqüentemente, suas próprias aberrações - ou será que alguém cultiva a ilusão de deter o monopólio de todas as virtudes?

Quanto ao espetáculo, este é sem dúvida o melhor já realizado por Ana Kfouri. Impondo à cena uma dinâmica austera e hierática, mas ao mesmo tempo passional e arrebatada, a encenadora consegue transmitir todos os conteúdos propostos pelo autor, obrigando o espectador a permanecer em um estado de permanente tensão e perplexidade. Valendo-se de marcas imprevistas e criativas, explorando com total propriedade os dois espaços em que se desenrola a ação, Ana Kfouri exibe ainda o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações de todo o elenco, tanto no que diz respeito ao texto articulado quanto ao universo gestual. E por ter obtido um resultado final em que a unidade impera, julgo inoportuno destacar qualquer desempenho individual, mas a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo.

Na equipe técnica, são igualmente irretocáveis a cenografia de André Sanches, os figurinos de Luiza Carneiro da Cunha, a iluminação de Renato Machado, a direção musical, composição e arranjos de Raquel Coutinho, a preparação vocal de Sonia Dumont e o vídeo de Eduardo Chamon, cabendo ainda citar a criação audiovisual de Renato Liverta e Yuri Fortuny e a programação visual de Buenavila.

SENHORA DOS AFOGADOS - Texto de Nelson Rodrigues. Com a Cia. Teatral do Movimento. Restaurante Albamar. Domingo a terça, 19h30.

Um comentário:

  1. oi Lionel, legal a crítica. Só uma ressalva a fazer. Os vídeos que são apresentados durante a peça são meus e do Renato Livera. A captação do que acontece fora do Albamar, e que é projetada no telão, também é minha.

    O vídeo do Eduardo Chamon foi a chamada para TV, essa aqui http://www.youtube.com/watch?v=9TLHLUB4aH4, que foi captada por mim aqui http://www.youtube.com/watch?v=kb5kfvg7QXg&feature=related

    E os clips de divulgação que estão no YouTube (os Teasers)também foram feitos por mim.

    Um abraço,

    Yuri.

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