sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XXII


Durante três dias, desde a partida de minha amada até a noite de domingo, monsenhor não me deixou sozinho um só instante, temeroso de que minha ansiedade me levasse a tomar uma atitude tresloucada. E embora muitas vezes me transtornassem, seus cuidados de enfermeira se revelaram úteis, pois em várias ocasiões estive a ponto de rumar para o convento. Quando me batia essa compulsão, ele adotava uma postura trágica e se colocava diante da porta, declarando que por ela eu só passaria se o arrancasse dali à força. Se estávamos no pátio, repetia o mesmo procedimento, só que diante da porteira. É óbvio que se eu decidisse mesmo assaltar o convento não haveria de ser o diminuto prelado que me impediria. Em todo caso, seu arrebatamento arrefecia o meu e a razão me voltava.

Mas na maior parte do tempo me comportei de forma a não lhe causar grandes transtornos. Passeávamos pela granja, sentávamo-nos na varanda para conversar e cuidávamos da casa. No entanto, os dias pareciam não ter fim. Por mais que monsenhor procurasse esticar nossos passeios, as conversas ou a faxina, por volta das cinco da tarde nada mais nos restava a não ser esperar que o sono nos levasse ao leito. E era justamente durante este período de ociosidade forçada que minha ansiedade atingia seu mais alto grau.

A noite também contribuía para abalar ainda mais meu precário equilíbrio, pois não há problema que não se acentue com a sua chegada. Consciente disso, tão logo o dia começava a declinar, monsenhor iniciava uma longa peregrinação pela casa, acendendo uma a uma todas as luzes. Por último, acendia as do pátio. Da primeira vez que ele fez isso, pensei que pudesse estar havendo algum problema no sistema elétrico. Mas logo fui informado de que o artifício visava atenuar os efeitos da noite num organismo debilitado - no caso, o meu.

A partir de sábado, outro fator veio se juntar à ausência de irmã Geovana para abalar ainda mais meu estado de espírito: a falta de comida. Como o amigo leitor há de estar lembrado, as provisões haviam sido calculadas para durar uma semana, ou seja, até segunda-feira - desde que consumidas por uma única pessoa. Com a presença de monsenhor Flávio, o consumo aumentara, gerando prematura escassez. Assim, urgia traçar um plano que nos permitisse escapar aos tormentos da fome. Disse isso ao prelado, que prontamente se dispôs a colocar todos os seus neurônios a serviço desta nobilíssima causa.

Nossa primeira idéia foi arrombar novamente uma residência ou o famoso botequim de vidro. Mas desistimos dela, não tanto por uma questão ética, mas por pura precaução, pois a essa altura os alimentos já deveriam estar estragados. Descartada essa primeira hipótese, partimos para uma segunda, uma terceira e assim fomos indo. No entanto, à medida que íam se sucedendo, elas se tornavam cada vez mais delirantes, a ponto de monsenhor sugerir, com a cara mais lavada deste mundo, que ralássemos um pedaço da casca de uma determinada árvore a fim de produzir uma sopa que, segundo ele, constava do cardápio de uma tribo indígena - cujo nome não foi capaz de lembrar - que se tornara célebre justamente por sua incrível capacidade de converter a natureza em alimento...

Ao meio-dia interrompemos nossas especulações, visto que nossa fome aumentava na mesma proporção em que nos revelávamos incapazes de satisfazê-la. Completamente órfãos, passamos a concentrar todas as nossas esperanças em irmã Geovana, que a par de seus graves problemas haveria de encontrar uma forma de fazer chegar até nós, segunda-feira, uma nova remessa de alimentos. Até lá, tentaríamos suportar esse jejum forçado da melhor maneira possível, evitando sobretudo qualquer assunto que pudesse, ainda que vagamente, ter alguma relação com comida.

Foi um fim-de-semana insuportável, sobretudo para mim, que precisava combater duas carências. Mas, ao mesmo tempo, ele não deixou de ter alguns momentos engraçados, como aquele em que monsenhor Flávio me pediu que o ouvisse em confissão. À meia-noite de domingo, o resoluto prelado, que até então se comportara de maneira exemplar, foi acometido de uma inesperada crise de fraqueza e cismou que morreria antes do amanhecer. Ainda tentei convencê-lo do contrário, mas meus argumentos se revelaram impotentes e acabei acatando seu pedido. Seguindo suas recomendações, sentei-me na poltrona e me comprometi a não me virar para ele enquanto durasse sua confissão. Monsenhor então se ajoelhou à minha esquerda e apoiou suas mãozinhas no braço da poltrona. Cenário armado, atores em seus lugares, iniciou-se o espetáculo.

Se tivéssemos à nossa frente uma platéia, certamente teríamos sido vaiados em cena aberta. Primeiro, pela fragilidade do protagonista; e depois pela peça em si. Se assistir a um monólogo já não é tarefa a que todos se dispõem com facilidade, escutar um canastrão falar 45 minutos sobre um mesmo assunto se torna um martírio só comparável ao de Jó. E foi exatamente isso que monsenhor fez: masturbou-se todo esse tempo com aquela história do cemitério, sem conseguir em nenhum momento estabelecer um mínimo de empatia e cumplicidade, pois optando por analisar a situação ao invés de sofrer seus efeitos, parecia muito mais empenhado em se defender do que propriamente em pedir perdão. Aparentava força, quando deveria parecer desesperado. Falava alto, quando sussurrar se impunha. Em suma, faltava-lhe direção e um texto melhor. Conseqüentemente, nossa representação foi um fiasco - se Deus se dispôs a escutá-lo, das duas uma: ou dormiu durante a performance de monsenhor ou condenou-o a ir para o inferno.

Segunda-feira nos levantamos com o dia e ambos animadíssimos. Nossa confiança em irmã Geovana era tamanha que até chegamos a debochar de nosso martírio. Tudo passava a ser uma questão de horas. Mais cedo ou mais tarde uma emissária de minha amada - era pouco provável que viesse ela mesma em pessoa - surgiria com o precioso carregamento, afastando, por pelo menos mais uma semana, a possibilidade de uma morte inglória. Às duas da tarde, no entanto, nossa confiança já não era a mesma. Além do receio, agora bastante fundado, o tempo também contribuía para aumentar nossa inquietação, pois o agrupamento de imensas nuvens negras sugeria a iminência de uma tempestade. Se isso ocorresse, os caminhos se tornariam impraticáveis e então, adeus comida.

Às três horas monsenhor propôs que nos ajoelhássemos no centro do pátio e rezássemos um terço completo, para ver se o Senhor se sensibilizava com a nossa causa. Retruquei que achava pouco provável que Ele se dignasse a nos ajudar, depois de seu canhestro monólogo travestido de confissão.

- Não se esqueça, Gabriel, de que é infinita a misericórdia do Senhor!

- E sua paciência...será igualmente infinita?

Nesse momento, o céu rugiu de forma aterradora, e tanto monsenhor como eu tivemos a impressão de que o Senhor respondia à pergunta que eu havia feito. Desvairado, o prelado prostou-se de joelhos, abriu os braços e bradou:

- Oh Senhor, Deus de misericórdia! Por que me falais de forma tão brutal, tão rude, logo a mim que jamais deixei de reverenciar Vosso nome e que fiz de Vossa causa a razão de minha existência? Sei que ontem Vos atormentei com meu longo solilóquio, mas seria essa falta assim tão grave para que façais desabar sobre nós essa terrível tempestade? Tempestade essa que nos privará de alimento e que talvez decrete nossa morte? Se for esse o Vosso desejo, Oh Senhor, faço-vos um último pedido: poupai ao menos este jovem, cuja natural insensatez é compensada por uma igualmente natural bondade e cujo coração está impregnado do mais puro amor! Permiti que ele e irmã Geovana possam ser felizes, pois o lugar dela, bem o sabeis, não é onde se encontra e sim ao lado deste por quem neste momento imploro. Concedei-me ao menos isso e tudo aceitarei com resignação!

Isto dizendo, monsenhor começou a carpir, com uma abundância lacrimal digna de uma profissional da Grécia antiga. Como suas palavras haviam me tocado profundamente - refíro-me às últimas - ajoelhei-me ao seu lado e a ele me abracei, procurando não apenas demonstrar meu reconhecimento, mas também suavisar os tremores que lhe agitavam a frágil ossatura. E assim permanecemos por um razoável tempo, durante o qual o Senhor, possivelmente comovido, começou a expulsar dali as tenebrosas nuvens. Quando finalmente reabrimos os olhos, para nosso total pasmo já o sol se insinuava por entre algumas brechas que o vento produzira na outrora impenetrável massa. Quinze minutos depois, ninguém poderia acreditar que, pouco antes, o céu estivera a ponto de inflingir à Terra os mais inconcebíveis castigos.

Teríamos, sem dúvida, rendido ao Senhor as mais justas homenagens, não tivesse Anacleto irrompido no pátio em desabalada carreira, como se fugisse de um açougueiro. O formidável hirco estava transtornado e por pouco não me deu uma chifrada quando me lancei ao seu pescoço para, como de hábito, manifestar afeto e arrependimento - no caso, pela injustiça que cometera com ele no episódio da dispensa. Mas Anacleto, recusando todas as carícias e todas as desculpas, foi e voltou até a porteira por três vezes. E teria ido uma quarta se eu não resolvesse finalmente verificar o que se passava. Acompanhado de monsenhor Flávio, abandonei a granja e caminhei cerca de cem passos atrás de Anacleto, que a todo momento se virava para se certificar de que o seguíamos. De repente, quase tivemos uma síncope: um grupo de irmãs cavalgava em nossa direção pela mesma trilha que ora percorríamos!

- O que significa isso? - perguntou, atônito, o prelado.

- Como é que eu vou saber, monsenhor? Certamente não se trata da nossa comida!?

Foi aí que Anacleto, pouco afeito a discussões estéreis, partiu em disparada para a granja. E se nós o acompanhamos de imediato isso se deveu ao enérgico puxão que dei em monsenhor, que parecia disposto a permanecer onde estávamos até se certificar de que a única atitude sensata era voltar para a granja e nela nos refugiarmos, tendo o cuidado de trancar todas as portas e janelas, assim como de ocultar qualquer vestígio que denunciasse nossa presença alí. E foi o que fizemos. O término da operação-disfarce, realizada em ritmo alucinante, coincidiu com a chegada das irmãs.

Assim que atingiram a porteira elas se imobilizaram, como uma tropa que avaliasse as condições da fortaleza que pretendiam assaltar. Eram em número de vinte aquelas que à distância devassavam nosso refúgio. Vigiando-as através das frestas de uma das janelas, torcia desesperadamente para que se convencessem de que não havia alí nada que pudesse lhes interessar. Infelizmente, a que parecia ser a líder ordenou que abrissem a porteira e todas invadiram o pátio. Em seguida, começaram a rodear a casa, sempre em silêncio, como um comando de elite. Nesse momento, monsenhor, que também vigiava pela janela situada no lado oposto da sala, abandonou-a e veio sorrateiramente até onde eu estava e me sussurrou algo que me deixou abismado:

- Elas estão atrás de você!?

- O que? - perguntei, elevando sem querer a voz.

- Fale baixo, seu cretino! - sibilou monsenhor. - Quer que nos descubram?

- Eu não entendi, monsenhor. Será que dá para repetir?

- Eu disse que elas estão atrás de você.

- Mas como? Só irmã Geovana e umas poucas de sua inteira confiança sabem que eu estou aqui!?

- Existe mais alguém que sabe.

- O senhor!?

- Eu...e a velha Ecúria!

Antes que eu tivesse tempo de considerar aquela revelação, a líder, dando um grito estridente, ordenou que arrombassem a porta. Monsenhor levou as mãos à cabeça, como se estivesse com enxaqueca e desmaiou no sofá. Anacleto, dando mostras de inusitada coragem, colocou-se diante da porta e para ela apontou seu pontudo chifre, parecendo disposto a repelir o assalto. Quando a mim, tranquei-me no banheiro e tive uma bruta diarréia. Como se vê, nossas defesas ficaram restritas à estóica figura de Anacleto, que mesmo não tendo nada a perder com a invasão da casa, se manteve firme em seu posto, enquanto monsenhor dormia e eu me limitava a responder aos golpes assestados contra a nossa porta ou com sonoros peidos ou com a emissão de esguichos de matéria putrefata. De repente, uma voz que não era da líder se fez ouvir:

- Irmã Filomena, estamos perdendo tempo. É evidente que ele não está aqui. Ninguém conseguiria viver nessa pocilga. Além disso, convém não esquecer que esta propriedade pertence, de uma certa maneira, a irmã Geovana. Acho que já fizemos muito em vir até aqui. Pôr a porta abaixo pode nos trazer complicações desnecessárias.

Jamais cheguei a saber o nome desta santa criatura ou conhecer-lhe os traços, mas em compensação a ela fiquei grato pelo resto de meus dias. Influenciada por suas palavras, a comandante Filomena ordenou rispidamente que parassem de golpear a porta e em seguida levantou o cerco. Meus esfíncteres, que o pavor afrouxara, tornaram-se novamente ríjos e abandonei o vaso com a mesma presteza que um condenado abanbdonaria o patíbulo se seu crime, no último segundo, fosse perdoado.

Uma vez na sala, atirei-me ao pescoço de Anacleto e lhe dei, exatamente, 39 beijos no focinho, ao mesmo tempo em que lhe jurava amor eterno. Mas o bode, demonstrando exemplar coerência, manteve-se impassível, os olhos semi-cerrados, mastigando um pequeno tufo de sua asquerosa barba. Como já o conhecia e aos seus mecanismos de defesa, não esperei que ele retribuísse minhas carícias ou demonstrasse ter ficado feliz com elas, e fui acordar monsenhor Flávio, que me pareceu ter encolhido com o susto. Já conhecendo a dificuldade do prelado de libertar-se dos braços de Morfeu e não desejando perder tempo, pois tínhamos muito o que conversar, tapei-lhe a boca e as narinas, como se pretendesse assassiná-lo. Em poucos segundos monsenhor começou a requebrar como uma passista e quando permiti que de novo respirasse, ele se pôs de pé num salto.

- Estamos salvos, monsenhor! Filomena se retirou com suas asseclas!

- Quem se retirou? E de onde?

- As freiras! Desistiram de arrombar a porta e foram embora! Não está lembrado?

Monsenhor levou quase um minuto para recolocar as idéias em ordem. O medo, além de lhe ter paralisado o físico, obstruíra também sua memória. Durante esse minuto, que minha ansiedade converteu em horas, ajudei-o como pude:

- Estávamos ali, na janela, quando foi ordenado o assalto.

- E depois?

- Depois o senhor saiu cambaleando pela sala e desmaiou no sofá, deixando a mim e a Anacleto a incumbência de defender a casa.

- Eu desmaiei no sofá?

- É incrível, mas é verdade.

- E você, o que fez? - perguntou, após breve reflexão.

- Eu me mantive ali, diante da porta, pronto a sacrificar a própria vida se alguma daquelas loucas resolvesse arrastá-lo daqui como um condenado.

Monsenhor fez uma cara de quem não estava acreditando nem um pouco em minha versão dos fatos. Mas como não se lembrava de nada resolveu não polemizar. Em todo caso, não se furtou à seguinte observação:

- Admirável atitude, a sua. Jamais a esquecerei. São raras as pessoas que se dispõem a arriscar a própria vida em defesa de uma outra que não está ameaçada...

Simulando não ter percebido o duplo sentido de suas palavras, emendei:

- Já que o senhor tocou neste ponto, monsenhor...me perdôe se mudo de assunto...gostaria que me explicasse melhor essa história da velha Ecúria. O senhor se lembra de tê-la mencionado, não?

- Sim, agora me lembro.

- Mas ela não sabe que estamos aqui. E mesmo que soubesse, de que forma poderia ter se comunicado com o convento? E para quê?

- Calma, vamos por partes. Em primeiro lugar, ela deve saber que estamos aqui. No dia em que raptamos sua réplica é possível que tenha nos seguido. Como essa granja é a única das redondezas, ela deve ter deduzido que nela nos refugiamos.

- Até aí, tudo bem. Mas por que avisar as freiras?

- Ela e a antiga superiora são muito amigas. Com certeza quis prestar-lhe um favor.

- Mas isso implica que ela esteja a par da situação no convento!?

- E você tem alguma dúvida quanto a isso?

Fiquei apalermado, sem saber o que responder. Jamais me ocorrera suspeitar de uma tal aliança. Monsenhor, no entanto, esclareceu-me em poucas palavras que ela sempre existira; que Ecúria, durante toda a sua vida, funcionara como uma espécie de espiã da entrevada criatura, passando-lhe informações sobre tudo que acontecia na cidade.

- O senhor pode provar o que está dizendo?

- Não. Mas creio que isso não muda nada. O que importa é que a casa foi cercada. E se foi cercada é porque houve uma denúncia. E se houve uma denúncia ela só pode ter partido da velha Ecúria.

O raciocínio parecia inquestionável. Contudo, para mim ainda restava uma dúvida.

- E como foi que a velha Ecúria fez chegar até aquela medonha a informação de que estávamos ou poderíamos estar aqui?

- Como sempre fez: sem sair de casa. Você acha que alguma vez ela foi até o convento?

A situação ganhava um novo perfil, de razoável complexidade. O fato da bruxa e da Quasímoda se comunicarem telepaticamente não me impressionou tanto quanto a trama propriamente dita. Jamais assistira a um filme ou uma peça em que forças terroríficas se conjuminassem com fins políticos. E era isso que estava acontecendo. Se conseguisse demonstrar que irmã Geovana me alojara na granja, Semibreve ganharia a eleição. Carente de méritos, ocuparia novamente o cargo às custas de um novo e ainda mais retumbante escândalo.

- Semibreve deve estar desesperada...- murmurei para mim mesmo.

- Quem?

- A antiga superiora. É assim que a chamo, por razões que por ora não vale a pena detalhar. Provavelmente ela está perdendo a eleição e tentou a última cartada. A vida é realmente extraordinária, não acha, monsenhor?

- Acho. Mas não sei o que você quer dizer com isso.

- Refiro-me a esta porta: quem haveria de supor que sua resistência poderia definir um pleito?

- É verdade...- assentiu monsenhor, sorrindo. - Ninguém...

E se aproximou da mesma, embevecido, dando a impressão de que proferiria algumas palavras em sua homenagem, como o personagem de Tchecov que exaltava a própria estante. Mas monsenhor se limitou a acariciá-la e em seguida a avaliar os danos que ela sofrera durante o assalto.

- As dobradiças ficaram um pouco danificadas, mas creio que ainda consigam suportar um outro assédio.

- Nós a consertaremos, monsenhor. Assim que tivermos nos alimentado.

Ainda tentei refazer a frase, mas o olhar alucinado de monsenhor embotou minha criatividade. Eu tocara sem querer no ponto nevrálgico e justamente quando deveria mencionar tudo, menos comida. Afinal, o dia declinava e nossas chances de que irmã Geovana nos enviasse provisaões eram praticamente nulas. É claro que poderíamos suportar essa situação de total abstinência por mais um dia ou dois, mas o problema é que nossas defesas haviam se enfraquecido, pois acreditáramos que comeríamos de qualquer maneira nessa segunda-feira. Impunha-se, portanto, um novo e sobre-humano esforço, já que agora não havia mais nenhum prazo, um limite em função do qual pudéssemos armar algum esquema psicológico para combater o pânico.

Procurando escapar do semblante esgazeado de monsenhor, que começava a me incomodar seriamente, assumi um ar descontraído e comecei a reabrir a casa, a fim de pelo menos arejar um pouco o ambiente, já que não poderia fazer o mesmo com nossas cabeças. Enquanto executava essa tarefa, que procurei render ao máximo, fui me conscientizando de que seria forçado a desempenhar o papel de líder, pois o estado do caríssimo prelado era bem pior do que o meu. Isso sem dúvida me assustava, visto que por temperamento sempre me fora muito mais fácil discutir a idéia de alguém do que levar adiante uma própria. No entantro, nossa situação era crítica: ou eu a conduzia com habilidade e firmeza ou então a qualquer momento monsenhor se desestruturaria, me desestruturando junto. Como eu não queria me entregar antes de atingir o limite de minhas forças, passei da teoria à prática e bradei, num tom de voz em tudo semelhante ao de alguém acostumado a dar ordens, e fundamentalmente, em vê-las obedecidas:

- Vamos, monsenhor! - e dando-lhe as costas, parti resoluto.

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