quarta-feira, 27 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"O Idiota"

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Obra-prima em versão inesquecível


Lionel Fischer


Antes de mais nada, gostaria de declarar que Fiódor Dostoiévski (1821-1881) é o escritor que mais amo e cuja obra li em sua totalidade - isto não significa, bem entendido, que seja um especialista no autor e, portanto, capaz de tecer sobre ele considerações mais significativas do que as infinitas já formuladas por alguns dos mais brilhantes teóricos de todo o mundo. 

Isto posto, cabe uma segunda declaração: todas as vezes que vou assistir a um filme ou peça de teatro baseados em alguma obra do autor, em termos metafóricos me tremo todo, como se padecesse de malária, por temor de que a mesma resulte parcial ou completamente desfigurada. Felizmente, não é o caso desta inesquecível montagem, produzida pela Mundana Companhia de Teatro, de São Paulo, em cartaz no Espaço Tom Jobim (Galpão das Artes) e que encerra sua temporada carioca na próxima segunda-feira.

Contando com tradução de Paulo Bezerra, roteiro adaptado de Aury Porto, colaboração dramatúrgica de Vadim Nikitin, Luah Guimarães e Cibele Forjaz, consultoria teórica de Elena Vássina e direção de Cibele Forjaz, o espetáculo chega à cena com elenco formado por Aury Porto, Fredy Allan, Luah Guimarães, Lúcia Romano, Luís Mármora, Sérgio Siviero, Silvio Restiffe, Sylvia Prado e Vanderlei Bernardino.

Pensando naqueles que ainda não leram a obra, transcrevo a seguir a sinopse da mesma, extraída do programa oferecido ao público:

"O príncipe Míchkin está de volta a São Petersburgo depois de um período na Suíça, onde estivera se tratando de epilepsia. Ao chegar a São Petersburgo, ele pretende procurar por Lisavieta, uma parenta distante com quem deseja travar conhecimento. Apesar de príncipe, Míchkin é pobre e, ao viajar num vagão de terceira classe do trem da rota Petersburgo-Varsóvia, ele conhece Ragôjan, um novo-rico que acaba de ganhar uma vultuosa herança do pai, com a qual pretende arrebatar Nastássia Filípovna, mulher fatal, primeiro afilhada e depois amante de Tôstski, um milionário petersburguense.

Arma-se aí um dos pilares de O Idiota. Ragôjan, protótipo do homem rude, é apaixonado por Nastássia, que, por sua vez, fica fascinada pela santidade de Míchkin, também 'medusado' pela figura da concubina santa. A partir da segunda parte da peça vemos Míchkin enredado em outro triângulo amoroso. Agora, em um dos vértices do triângulo está Aglaia, a filha de sua parenta Lisavieta, que ficará fascinada com a possibilidade de Míchkin vir a ser o amante revolucionário com o qual ela tanto sonha. Nesse triângulo, Nastássia e Aglaia disputam o coração de Míchkin. Outros personagens envolvidos diretamente nesses triângulos tornam o enredo dessa história bem mais complexo, para além do simples jogo amoroso. No olho do furacão está Mítchkin, que tem como falha trágica compadecer-se de todas as personagens à sua volta".

Como se vê, estamos diante de uma trama com evidente caráter folhetinesco. Mas o que a difere do folhetim tradicional é a extraordinária capacidade do autor de mergulhar profundamente na alma humana, fazendo aflorar alguns de seus aspectos mais contraditórios e sombrios. Ao mesmo tempo, e por mais paradoxal que possa parecer, Dostoiévski reafirma sua crença no homem através do protagonista, que muitos consideram uma mescla de Dom Quixote e Jesus Cristo.

E tal crença baseia-se na suposição de que o homem, ainda que contendo aspectos nada meritórios, ao mesmo tempo também possui uma porção, digamos, de santidade, aqui materializada na capacidade de Míchkin de sentir compaixão (ao invés de julgar) e de perdoar a todos aqueles que se maltratam e, em especial, o maltratam com cruel insistência.

Tais predicados geram, inevitavelmente, sentimentos antagônicos. Quando alguém é vítima de uma ofensa, por exemplo, o natural é que reaja. Mas se, ao invés de fazê-lo, oferece a outra face, o agressor se sente confuso, não sabe como proceder diante de uma reação tão inesperada. Ao invés de ódio, recebe o perdão...

No entanto, ultrapassada a surpresa inicial, surge o grande impasse, pois o agressor é como que forçado a encarar aquele que agrediu como uma especie de materialização do ideal humano; não sendo ele capaz de se enquadrar nesta categoria, passa a amar e a odiar simultaneamente aquele que o perdoou. E que, assim agindo, mostra a viabilidade de um maior entendimento entre os homens. Em última instância, Mítchkin causa profundo desconforto em todos que o cercam exatamente pelo fato de personificar o bem, no sentido mais amplo da palavra.

Com relação ao espetáculo, este merece ser considerado como um dos mais significativos já vistos em palcos cariocas. Exibindo uma estrutura itinerante, o espetáculo convida o espectador a acompanhá-lo em diversos cenários, sempre colocando-o muito próximo da ação. E a tal ponto que me foi dado o privilégio de escutar o seguinte diálogo entre duas jovens, de no máximo 20 anos, quando a montagem estava chegando ao seu final.

Uma delas disse: "É como se a gente estivesse na peça", no que a outra retrucou: "Mas nós estamos na peça!". E foi exatamente essa a sensação que senti ao longo das seis horas do espetáculo.

E isto se deve não apenas ao fato de, eventualmente e com toda a delicadeza, os atores convidarem alguns espectadores a breves participações. O essencial é que desde o primeiro momento já estava implícito que a montagem só faria endossar a defininição de Peter Brook do fenômeno teatral: "O teatro é a arte do encontro". E tenho absoluta certeza de que todos que assistiram "O Idiota" jamais esquecerão este encontro tão arrebatador.

Impondo à cena uma dinâmica repleta de humor e humanidade, aqui materializadas através de marcas tão imprevistas quanto criativas, Cibele Forjaz consegue ser absolutamente fiel ao romance, mas ao mesmo tempo teatralizando-o de forma admirável. E mais: a ele conferindo um tamanho grau de contemporaneidade que por vezes temos a impressão de que o autor poderia perfeitamente estar sentado na platéia - e, sem dúvida, felicíssimo com o resultado exibido.

Com relação ao elenco, mais uma vez me vejo obrigado a repetir o que já disse em tantas críticas: este país pode carecer de tudo, menos de intérpretes maravilhosos. E os atores da Mundana Companhia de Teatro só fazem reafirmar esta minha inabalável crença. E não apenas por exibirem amplos recursos expressivos, mas também por sua notável capacidade de entrega e pelo inenarrável prazer que demonstram de estar em cena, partilhando suas emoções com o público.

A todos, portanto, agradeço essa noite memorável, e apelo aos sempre caprichosos deuses do teatro que continuem abençoando esta montagem e permitam que a mesma fique em cartaz por muito, muito tempo.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiamo os irrepreensíveis trabalhos de Paulo Bezerra (tradução), Aury Porto (roteiro adaptado), Vadin Nikitin, Luah Guimarães e Cibele Forjaz (coloboração dramatúrgica), Elena Vássina (consultoria teórica), Lu Favoreto (direção de movimento), Lúcia Gayotto (direção vocal e interpretativa), Otávio Ortega (direção musical, trilha sonora, música ao vivo), Laura Vinci (cenografia), Joana Porto (figurinos), Alessandra Domingues (iluminação) e Simone Mina (arte gráfica) - e aqui faço questão de ressaltar que este foi o melhor programa de uma peça que já me chegou às mãos, tantas e tão pertinentes são as informações nele contidas.

O IDIOTA - Texto de Fiódor Dostoiévski. Roteiro adaptado de Aury Porto. Direção de Cibele Forjaz. Com a Mundana Companhia de Teatro. Espaço Tom Jobim (Galpão das Artes). Sábado, domingo e segunda, 17h30. 




   

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