terça-feira, 1 de setembro de 2009

Liberdade, liberdade

Lionel Fischer


Antes que me acusem de plágio, faço questão de esclarecer que o título acima não é de minha autoria - o que muito lamento. Refere-se à peça Liberdade, liberdade, escrita em parceria por Millôr Fernandes e o falecido Flávio Rangel, cabendo a este último a direção do espetáculo - e aqui uma nova lamúria, pois adoraria possuir talento suficiente para ter escrito o texto e assinado a direção do mesmo.

É possível que os adoráveis parceiros deste blog - sobretudo os ainda muito jovens - ignorem a importância deste evento teatral, sem dúvida um dos mais significativos já ocorridos nesta cidade. Estreada em 21 de abril de 1965, no Rio de Janeiro, numa produção conjunta do Grupo Opinião e do Teatro de Arena de São Paulo, Liberdade, liberdade fez um sucesso extraordinário, não apenas por sua qualidade artística, mas também - e sobretudo - porque ousou erguer a voz contra a tenebrosa ditadura implantada no país no ano anterior, quando a prudência sugeria o silêncio.

Mesclando textos, canções e poemas (dos citados autores e de outros), o espetáculo, estruturado como uma "colagem", chegou à cena com elenco formado por Paulo Autran, Nara Leão e Oduvaldo Vianna Filho, com Tereza Rachel fazendo uma participação especial. E sua repercussão foi tamanha e tão imediata que até o New York Times fez questão de publicar um artigo sobre a montagem, em 25 de abril de 1965, ou seja, apenas quatro dias após a estréia.

Liberdade, liberdade é leitura obrigatória para os amantes de teatro e pode ser encontrada até mesmo em bancas de jornais - ao preço de $ 8,00, equivalente a duas latinhas de coca-cola e uma bala Juquinha. Então, à guisa de incentivo, transcrevo a seguir apenas quatro monólogos da peça, que desejo sinceramente que todos que ainda não a conhecem tenham o privilégio de fazê-lo o mais rapidamente possível.

* * *

"Sou apenas um homem de teatro.
Sempre fui e sempre serei
Um homem de teatro.
Quem é capaz de dedicar
Toda a sua vida à humanidade
E à paixão existentes nestes metros de tablado,
Esse é um homem de teatro." (Baseado em textos de Louis Jouvet e de Jean Louis Barrault, do livro Je suis homme de théâtre)


"Operário do canto , me apresento sem marca ou cicatriz,
Limpas as mãos, minha alma limpa, a face descoberta,
Aberto o peito, e - expresso documento -
A palavra conforme o pensamento.
Fui chamado a cantar e para tanto
Há um mar de som no búzio de meu canto.
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
Sem se tornar com isso menos pura,
A voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto onde não seja a boca livre,
Onde não haja ouvidos limpos e almas afeitas
A escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo - ou distrair criaturas
Já de si tão mal atentas, não canto...
Canto apenas quando dança,
Nos olhos dos que me ouvem,
A esperança". (Versos de Geir Campos, do poema Da profissão do poeta).


"Mas afinal, o que é a liberdade?
Apesar de tudo o que já se disse
E de tudo que dissemos sobre a liberdade,
Muitos dos senhores ainda estão naturalmente
Convencidos que a liberdade não existe,
Que é uma figura mitológica criada pela
Pura imaginação do homem.
Mas eu lhes garanto que a liberdade existe.
Não só existe, como é feita de concreto e cobre
E tem cem metros de altura.
A liberdade foi doada aos americanos
Pelos franceses em 1866 porque naquela época
Os franceses estavam cheios de liberdade
E os americanos não tinham nenhuma.
Recebendo a liberdade dos franceses,
Os americanos a colocaram na ilha de Bedloe,
Na entrada do porto de Nova York.
Esta é a verdade indiscutível.
Até agora a liberdade não penetrou
No território americano.
Quando Bernard Shaw esteve nos Estados Unidos
Foi convidado a visitar a liberdade,
Mas recusou-se afirmando que seu gosto
Pela ironia não ia tão longe.
Aquelas coisas pontudas colocadas
Na cabeça da liberdade ninguém sabe o que sejam.
Parecem previsão de defesa antiaérea.
Coroa de louros certamente não é.
Antigamente era costume coroar-se heróis
E deuses com coroa de louros.
Mas quando a liberdade foi doada
Aos Estados Unidos, nós os brasileiros
Já tínhamos desmoralizado o louro,
Usando-o para dar gosto no feijão.
A confecção da monumental efígie
Custou à França 300 mil dólares.
Quando a liberdade chegou aos Estados Unidos,
Foi-lhe feito um pedestal que, sendo americano,
Custou muito mais do que o principal: 450 mil dólares.
Assim, a liberdade põe em cheque a afirmativa
De alguns amigos nossos, que dizem de boca cheia
e frase importada, que o 'Preço da liberdade é a eterna vigilância'.
Não é. Como acabamos de demonstrar,
o preço da liberdade é de 750 mil dólares.
Isso há quase um século atrás.
Porque atualmente o Fundo Monetário Internacional
Calcula o preço da nossa liberdade em três portos
E 17 jazidas de minerais estratégicos".


"Às vezes, no fim de uma batalha,
Nem se sabe quem venceu;
Ou o vencedor parece derrotado.
Cristo moreu na cruz, mas o cristianismo
Se transformou na maior força espiritual do mundo.
Galileu Galilei cedeu diante da Inquisição,
Mas a Terra continuou girando em torno do Sol,
E quatro séculos mais tarde, um jovem tenente
Anunciou da estratosfera que a Terra é azul.
Anne Frank morreu, mas Israel ressurgiu da cinza dos tempos.
Quando Hitler dançou sobre o chão da França,
Tudo parecia perdido.
Mas a cada ato de luta corresponde
Um passo da vitória.
O poeta Brodsky acaba de ser libertado
Por um movimento de intelectuais.
Ainda há homens oprimidos, mas não há mais escravos.
Milhões sofrem pressão econômica,
Mas ninguém pode mais ser preso por dívidas.
Depois da Segunda Guerra Mundial
Tornaram-se independentes 13 nações asiáticas e 34 nações africanas.
E se a insensatez humana continua a nos ameaçar
Com a Terra Arrasada, a Ciência, pela primeira vez na História,
Pode nos dar a Terra Prometida.
A liberdade é viva;
A liberdade vence;
A liberdade vale.
Onde houver um raio de esperança
Haverá uma hipótese de luta.

Gostaria que meu boa-noite tocasse vossos corações
Numa síntese de fé e coragem igual ao boa-noite de
Winston Churchill, em 1940, atravessando o Canal da Mancha
Numa silenciosa e fria madrugada:

'E agora, boa-noite. Durmam a fim de recobrar forças para o amanhã; pois o amanhã virá. E brilhará claro e limpo sobre os bravos, os honestos, os de coração sereno, brilhará sobre todos os que sofrem por esta causa e, mais gloriosamente, sobre a campa dos heróis. Assim será nossa alvorada. Boa noite'".

Um comentário:

  1. Olá...
    Comecei a frequentar seu blog ao ler a crítica da peça Música Segunda, a qual linkei no meu blog... é a primeira vez que comento, porque tenho uma paixão imensa por Oduvaldo Vianna Filho e "Liberdade, liberdade" tem um significado especial na história da minha carreira de atriz, assim como o próprio Vianinha... Portanto, obrigada por relembrar trechos tão maravilhosos dessa peça, que deveria ser muito encenada ainda hoje...
    Abços!

    ResponderExcluir