quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O tao do corpo

Maria Pia


O homem deste fim de século caminha rumo à sua essência, resgatando verdades simples e universais como a harmonização com a vida através do respeito a todos os seres vivos e a si próprio, e o despertar de uma consciência da Unidade, para compreender que tudo está ligado, pulsando no ritmo da sincronia universal. A dualidade cartesiana dá lugar à Unidade, ao entendimento de que não existe a energia do Bem e do Mal com ses desmembramentos, mas sim Energia Una, Toda, Total, Indivisível, porém Mutável. A constante mutação desta Energia única gera movimento, gera vida, em todas as suas formas e facetas. O Tao, na concepção chinesa é o próprio movimento da vida - "O desenho do Caos Maravilhoso e do caminho, o trajeto do nascimento, crescimento, amadurecimento, decrepitude, morte, vazio, recomeço perpétuo, alternância de Yin e Yang" (Tao te King, livro milenar de sabedoria chinesa).

Seguindo o trilho do pensamento da Unidade, somos levados a pensar no corpo como uma entidade composta de matéria, sentimentos, sensações e alma, que deve ser trabalhado em todos estes aspectos que o envolvem; um treinamento corporal somente físico gera "Rambos", corpos trabalhados somente no exterior, porém afastados do ser interno. Os treinamentos excessivamente teóricos e psicológicos, por sua vez, geram mentes enormes, sem um alicerce físico que as sustentem. O trabalho no corpo deve ampliar o potencial humano de um ser como um todo; sua forma física, sua beleza estética e interior, seu potencial criativo orgânico, sua capacidade de amar e de iluminar-se. Em última análise, devemos aprender as leis que regem o Tao universal, as mesmas leis do Tao do Corpo, porque somos um Microcosmos que funciona igual ao Macrocosmos no qual estamos inseridos.


Deus é Musculatura

Kasuo Ohno, o velho mestre da dança Butoh japonesa diz que nosso corpo é composto de cinco musculaturas, que devem ser conscientizadas e trabalhadas. Cada musculatura tem suas regras e leis próprias, embora se interdependam.

1ª Musculatura - é o corpo físico propriamente dito, o corpo que pode ser visto, tocado, o limiar entre o nosso interior e o nosso exterior.

2ª Musculatura - é o corpo físico da pele para dentro; nossos órgãos, sangue, células, e todos os movimentos que se processam no interior físico do nosso corpo.

3ª Musculatura - é uma musculatura abstrata; é o corpo emocional, psíquico, vibratório, mental, sensível, mediúnico.

4ª Musculatura - é a energia única que contém o Tudo, a força da vida que circula em nós e que nos mantêm vivos. É a musculatura Essencial.

5ª Musculatura - é a musculatura do contato, é o outro, o mundo que nos cerca, o meio ambiente, a sociedade, a troca.

O processo de trabalho do corpo deve começar portanto pela quarta musculatura, para contactar com aquela energia essencial, divina, que reina no interior de cada um de nós. Este trabalho é chamado Meditação.


Meditação

Na concepção taoísta, meditação significa "concentração perfeita em um ponto perfeito". O ponto perfeito é o próprio alento vital, e a concentração perfeita neste ponto é talvez a grande tarefa a ser desenvolvida durante o tempo de vida que temos. A meditação gera, a nível de sentimentos e emoções, um estado de humildade e rendição a um poder superior, esvaziando nossa mente de nossas próprias idéias, gostos, afinidades, pessoalidade, mergulhando nosso ser no silêncio. Este esvaziamento é condição fundamental para que possamos aprender o novo, porque quando estamos cheios de algo, não há espaço para aprender nada. Einstein dizia "eu penso 99 vezes e nada descubro; deixo de pensar, eis que a verdade se me revela. Tudo começa no silêncio e na intuição".

A nível físico, a prática da meditação produz uma oxigenação profunda em todo o corpo, desbloqueando tensões, eliminando toxinas e ativando a circulação de energia. É uma fonte de saúde física, psicológica e anímica. Para praticar meditação, devemos corrigir certos vícios de pensamento e imagens distorcidas que nos impedem de praticá-la. Não podemos confundir meditação com "não pensar em nada", ou criar a ilusão de que meditação retira todo o sofrimento humano. Conheci um mestre no Oriente que dizia a seus discípulos: "Pratiquem meditação diariamente e não se preocupem com seus problemas; eles estarão todos te esperando assim que você sair da meditação". Não se trata, portanto, de um remédio milagroso, mas de um estado de consciência que deve ser incorporado lentamente em nosso cotidiano.

Da mesma maneira, meditar não significa parar de pensar. A mente pensa constantemente, esta é a sua função; com a prática da meditação, aprendemos a discriminar e separar duas energias que existem dentro de nós. A primeira é um fluxo interminável de pensamentos, a segunda é o alento vital, algo mais sutil do que a própria respiração. Aos poucos, aprendemos a concentrar nossa atenção, é a prática do simples e óbvio. Jesus Cristo dizia "não lutem contra o mal", ou seja, não dar trela ao curso de nossos pensamentos, deixando-os livres, e eles nos deixarão livres também.

Einstein dizia que existem duas mentes, a inferior e a superior. A primeira é a mente intoxicada de dúvida, confusão, dever, culpa, descrença, vícios etc. É a mente cotidiana, banal e chata. Esta camada de pensamentos é paulatinamente suavisada com a prática da meditação, para que a mente superior possa se manifestar com mais freqüência dentro de nós. A mente superior é aquela que produz grandes idéias, invenções, arte, que conduz à sabedoria, e à luz. Quando a mente banal se cala, contactamos esta freqüência mais alta de pensamentos, abrindo espaço para que eles desçam ao nosso consciente.

Desta maneira, antes de começar qualquer trabalho de corpo, entre em estado de meditação, e procure se livrar de todos os pensamentos que te assolam. Eles estão em você, mas não são você, lembre disso. E deixe espaço para que as idéias superiores possam descer até o seu consciente, e guiá-lo rumo a um trabalho com mais qualidade. Isto é válido para pessoas que trabalham com o corpo, e tambémpara atores; esvazie-se antes de entrar em cena, esta é a condição fundamental para a qualidade do trabalho dramático.


Exercício para meditação

Este exercício deve ser praticado diarimente por 15 minutos. Ele não corresponde à meditação propriamente dita, pois este é um contato espiritual. O exercício prepara o corpo e a mente, facilitando a entrada na consciência de meditação. Se ao decorrer dos 15 minutos você percebe que se acalmou inteiramente e fisicamente, estenda este estado de tranquilidade ao seu dia-a-dia.

Sentado, coluna ereta, respire silenciosamente pelo nariz, colocando sua atenção no trajeto do ar em seu corpo. Sinta o ar sendo puxado das regiões viscerais na inspiração precisamente no ponto Tantien. O ar sobe num tubo energético que percorre umbigo, esterno, glote, terceiro olho, cucuruto da cabeça e desce no mesmo percurso na expiração. Não brigue com sua mente; cada vez que você seguir um pensamento, volte a se concentrar no trajeto do ar e no silêncio.

3ª Musculatura - atitude interior do guerreiro:

As escolas chenesas de artes marciais dividem o trabalho corporal em duas etapas; a primeira é a etapa interior, que começa com meditação, e desenvolve uma atitude interior correta a nível mental, sentimental e emocional, que possibilita o aprendizado do guerreiro. Ser um guerreiro, para o taoísmo, é ser um sábio que controla suas forças internas e externas. A verdadeira postura começa pela postura do interior; o Tao Te King ensina os dez mandamentos básicos para desenvolver esta postura interior do guerreiro.

10 mandamentos básicos para
a boa postura e alinhamento

1º - Ser vazio interiormente, e levar a força do "Tantien" ao cucuruto da cabeça.

O Tantien é o ponto de força que sustenta nossa estutura física, e que deve ser forte e ativado. Situa-se a três dedos abaixo do umbigo, numa linha reta. A cada inspiração, pressione o Tantien para dento de você, repetidamente. Este exercício deve ser feito sempre que você estiver sem energia.

O ar é bombeado do ponto do Tantien, e sobe passando pelo umbigo que deve estar todo aberto como um sol; se alguma parte do umbigo estiver fechada, ou colada, é sinal de que você está sentado em sua cintura. Abra o umbigo todo, para isso você terá que subir seu corpo para cima, e se descolar na cintura. Sinta uma força que lhe puxa para cima a partir do Tantien, e outra que crava seus pés no chão, dando apoio para a subida.

2º - "Encolher ligeiramente o peito, esticando as costas para trás. O cucuruto da cabeça deve estar paralelo ao céu". Sinta as costas; normalmente a tensão faz dois montes em torno da coluna vertebral. Inspire e mande ar para os montes das costas, apague-os, cresça por trás. Deixe o pescoço ereto; o cucuruto quer o céu.

3º - Afrouxar a cintura - gire repetidamente seu corpo de um lado para o outro, sem travar o movimento. Sinta que seu corpo pode dobrar e girar.

4º - Distinguir cheio de vazio - esta é uma lei muito importante a ser observada em nosso cotidiano. É a transferência total do peso do corpo de um pé para o outro a cada passo. Observe seu caminhar, e transfira seu peso todo a cada passo. Não deixe parte de seu peso na perna de trás quando o movimento de impulso é com a perna da frente.

5º - "Baixar os ombros, deixar cair os cotovelos". Quando o ponto Tantien não é forte o suficiente, a tensão sobe para os ombros e o pescoço. Insconscientemente, tentamos manter a postura ereta colocando força na área superior do corpo, quando na verdade, o movimento é exatamente oposto. Os chineses dizem que "o corpo é ferro sob algodão". A parte inferior, região visceral, deve ser o alicerce de ferro, e da cintura para cima devemos ser leves e fluidos como o algodão.

- "Em lugar de força muscular, usar sabedoria para comandar os movimentos". Esta frase é bastante abstrata, mas fala de uma atitude interna que devemos desenvolver em nós. Esta atitude começa na apreensão das regras corporais, e na vigilância cotidiana desta postura harmônica. Não adianta ficar ereto somente quando fazemos exercícios. Esta consciência deve ser constante em nosso cotidiano para que haja uma mudança real em nossas atitudes corporais. Jesus Cristo dizia "orai e vigiai" em referência a esta atitude interior de "serenidade com atenção", a atitude do guerreiro marcial, do sábio, do homem consciente.

"Ligar alto e baixo" - os pés movem-se junto com as mãos e os olhos, a parte de cima do corpo move-se junto com a parte de baixo. A tensão social, o pensamento facetado, a separação corpo-mente-espírito nos levou a ter atitudes corporais também divididas. É necessário imprimir fisicamente este conceito da Unidade, para estarmos também inteiros no corpo. Muitas vezes olhamos só com os olhos para uma direção, enquanto que nossos joelhos e pernas vão na direção oposta, nossa mente divaga em outra situação que não é aquela que estamos vivendo, e assim nos tornamos um circo louco de impulsos desconexos. Estar aqui e agora totalmente, com todas as partes do ser e do corpo. Se olho para o lado, todo o meu ser olha para o lado, e assim por diante. Procurar levar todo o corpo em cada ação física que desempenhamos.

8º - "Unir interior a exterior - abertura e fechamento dos pés e mãos correspondem à abertura e fechamento do espírito". Corpos fechados correspondem a espíritos fechados. Quando existe o trabalho interior de fluir com a vida, ser maleável e aberto interiormente, automaticamente esta atitude começa a se imprimir no corpo físico, de dentro para fora.

- "Ligar movimentos sem interrupção - novamente uma atitude de fluidez, não viver aos trancos e barrancos, mas soltar-se e transformar-se de acordo com as situações que a vida nos apresentar; ser macio.

10º - "Manter a calma interna durante o movimento". Ao praticar exercícios físicos devemos ser capazer de reter o calor interno que o exercício provoca, acalmando os batimentos cardíacos para que não ocorra stress muscular.


A 1ª e 2ª Musculaturas

Neste ponto do processo estamos aptos para o trabalho físico propriamente dito, na 1ª e 2ª musculaturas. Estas são musculaturas de repetição, que devem ser exercitadas diariamente, com constância e disciplina. Se queremos um abdômem forte, não podemos apenas mentalizar os músculos abdominais, pretendendo que estes se enrijeçam. Falamos de um trabalho físico, repetitivo, disciplinado, que envolve suor. Não pretendo me estender nas práticas físicas, pois estas são experiências na ação, e não de leitura. Aconselho aos atores que exercitem seu físico diariamente, incorporando as atitudes internas que tratamos neste artigo.


A 5ª Musculatura - o corpo dramático.

A 5ª musculatura fala de sincronia, comunicação, do outro, aquilo que está fora de nós, mas passa a ser um desmembramento nosso quando existe o elo da comunicação. Comunicar é vibrar igual, no momento presente. O chão que pisamos é a nossa quinta musculatura, assim como a roupa que vestimos. Outra pessoa passa a ser parte de nós quando existe uma troca entre dois "Eus" que se afinam e reconhecem no outro os mesmos sentimentos que existem no próprio "Eu".

Esta musculatura de sincronia é fundamental para o drama, o ofício do ator; a platéia é a 5ª musculatura do ator. É comum ver atores em cena "fazendo força" para prender a atenção, na ilusão de que a platéia é algo fora dele. Geralmente esta "força" não possui o carisma de reter a atenção sobre o ator. Quando o "Eu" do ator está totalmente entregue ao personagem, com seu físico, mente, emoções e alma, não existe força. A verdade flui naturalmente de cada gesto, de cada olhar, e comunica algo, vibra com o "Eu" coletivo da platéia. O ator deve ser um camaleão integral, e realmente "entrar na pele" do personagem, em corpo, mente e espírito.

Para realizar esta tarefa, o ator deve começar por esvaziar-se, buscando a neutralidade. Retire seu próprio personagem na vida, utilizando o estado meditativo, e a postura interior do guerreiro. Feita esta primeira "faxina", aproxime-se do eu do personagem sem julgamentos nem preconceitos. Entre nele pelas primeiras duas musculaturas, o seu físico. Ande como o personagem, olhe como ele, sinta a sua temperatura interna, as batidas de seu coração, seus gestos, a forma como ele ocupa o espaço, seu "timing", sua voz. Quando o físico do personagem estiver entranhando em seu físico, aproxime-se de sua mente, emoções e sentimentos e assuma-os todos, sem julgamento.

Seja outra pessoa nas ações mais banais e cotidianas. Pague uma conta no banco como ele pagaria, ande de ônibus como ele andaria, vá ao banheiro como ele iria. Vai chegar o momento que esta fusão se dá sem o uso da força, aquele momento em que o ator já não precisa mais se convencer, nem aos outros, de que é o personagem. Quando esta naturalidade flui das ações mais simples, o trabalho está pronto. As grandes verdades da existência são simples, sem sofisticação de qualquer espécie. Quando o ator é simples, é porque existe um ser inteiro, íntegro e total, no momento presente, dsempenhando cada ação. Nestes momentos, algo belo e de grande qualidade acontece em cena.
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Maria Pia é coreógrafa e terapeuta corporal. O presente artigo foi extraído da revista Cadernos de Teatro nº131/1992, edição já esgotada.

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