terça-feira, 19 de outubro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XVIII


O quarto dia de permanência na granja começou da pior maneira possível. Assim que despertei tive o pressentimento de que sofreria sem parar ao longo das próximas 24 horas. Não sabia a que atribuir a incômoda premonição, já que me deitara satisfeito e não tivera nenhum sonho desagradável. Ainda no leito tentei atribuir essa sensação à chuva torrencial que caía, tão forte que dava a impressão de que faria o teto desabar. Mas essa justificativa não me satisfez, pois a chuva nunca me gerara uma aflição parecida. Minha dificuldade em respirar e meus acelarados batimentos cardíacos deveriam, portanto, ter uma outra explicação.

Após meia-hora de intensas especulações, resolvi enfrentar a vida. Quando caminhava pelo corredor em direção ao banheiro escutei a voz de monsenhor, vinda da sala, que gorgeava desafinadamente uma canção inexpressiva. Isso teve o poder de me irritar, pois sabedor de que já deviam ser umas dez horas não via nenhum motivo para que o prelado ainda estivesse naquela casa. Em todo caso, fui até o banheiro, fiz o que todo mundo faz assim que acorda e voltei para o quarto. Enquanto me vestia e ouvia os malditos trinados, minha irritação crescia, a ponto de me fazer considerar a hipótese de tamponar a boca de monsenhor com um chumaço de algodão. Ou no mínimo lhe passar uma reprimenda, pois eu não era obrigado a conviver com seus gorgeios.

Mas ao chegar na sala, minha ira se aplacou de imediato, embora monsenhor prosseguisse massacrando a tal musiquinha: tendo acordado mais cedo do que eu e possivelmente querendo retribuir minha hospitalidade, ele resolvera fazer uma faxina completa no ambiente. Para tanto, com exceção da mesa onde depositara nosso desdejum de forma impecável, arrastara todo o resto do mobiliário para os cantos. Com um trapo amarrado na cintura em forma de avental e munido de um rodo em cuja extremidade enrolara um pano úmido, monsenhor, com o empenho de uma doméstica recém contratada, fazia a assepsia do assoalho. Ia e vinha em movimentos ritmados, cuja sincronia com a canção o fazia parecer-se com um personagem de opereta. Quando julgava que o pano já estava imundo, ele o retirava do rodo e desaparecia na direção da área, de onde retornava com o paninho gotejando, que novamente enrolava na ponta do rodo e então recomeçava sua incansável tarefa. Depois de observá-lo por uns 15 minutos, resolvi intervir:

- Mas monsenhor, que absurdo! Quem lhe deu ordens para empreender tão exaustiva faxina? - perguntei, aparentemente sério.

- Não sei quais são seus padrões de higiene, Gabriel, mas me foi impossível permanecer mais um minuto nesta casa em meio a essa poeirada...- retorquiu, faceiro, sem interromper a limpeza cadenciada.

- Por que o senhor não me acordou? Eu poderia ajudar.

- Você só iria atrapalhar. Ficaria dando palpites, tentando abreviar o serviço...

- Mas o senhor nem ao menos se alimentou!? Poderá ter vertigens...

- Estava esperando você acordar. Um hóspede nunca se serve antes do anfitrião.

Nesse momento, ele interrompeu sua obsessiva faxina e se virou para mim. Seu rosto denotava tanta simpatia que não reprimi um sorriso. Dizem que as pessoas em vias de morrer afogadas conseguem relembrar, em poucos segundos, grande parte de suas vidas. Embora meus pulmões não estivessem cheios d'água, deu-se comigo o mesmo fenômeno. Toda a minha curta mas intensa vida em comum com monsenhor me veio à cabeça, com uma incrível riqueza de detalhes. E o saldo dessa convivência era extremamente positivo, pois se chagáramnos a ter algumas brigas, em contrapartida também vivêramos momentos de grande cumplicidade. A partir daí, monsenhor e eu nunca mais nos desentendemos, ao menos seriamente. Esse sorriso que trocamos nessa manhã de temporal veio como que selar um pacto de amizade que nem a morte do prelado conseguiu romper, pois mesmo depois que ele se foi continuei sentindo sua presença amiga, como se ele tivesse se convertido em meu anjo da guarda. Aliás, em minha opinião, certos sentimentos, como o amor e a amizade, quando realmente verdadeiros, transcendem a existência temporal e se prolongam por toda a eternidade.

Assim que concluí essas divagações, falei:

- Bem, monsenhor, e que tal se agora sentássemos para comer?

- Acho uma ótima idéia! - retrucou, tirando o avental e dirigindo-se para a mesa.

Como de costume, comemos em silêncio. Mantivemos sempre esse singular hábito, para o qual nunca encontrei uma explicação convincente, pois o que não nos faltava era assunto. Quanto ao nosso desdejum, monsenhor fora pródigo em sua escolha, já que além de pão, queijo e leite ele colocara na mesa biscoitos, geléia e um doce de goiaba cuja calda era o néctar dos deuses. Embora sem sofreguidão, nos empanturramos como dois romanos que participassem de uma orgia gastronômica. Só nos levantamos quando percebemos que uma próxima garfada, colherada ou golada poderia ser fatal. Um tanto zonzos, fomos cada qual cuidar de seus interesses. Monsenhor recomeçou a faxina interrompida, sempre a solfejar, e eu fui até o quarto onde depositara a vida de Ambrosina, decidido a continuar a trabalhar em sua história.

Mas infelizmente não conseguia me concentrar. Tentei durante mais de duas horas dar prosseguimento à curta narrativa iniciada na véspera, mas meus pensamentos se voltavam a todo momento para aquela que amava desesperadamente e cujo amor já imaginava haver perdido. Quando percebi que a qualquer momento acabaria ateando fogo em toda aquela papelada, deixei o quarto e fui para a varanda. Ao passar pela sala, monsenhor já havia terminado a limpeza e todos os móveis estavam em seus lugares. Mas sua vozinha, vinda dos fundos da casa, indicava que ele continuava empenhado em transformar todo o espaço em algo habitável. Sentado nos degraus da varanda, comecei a contemplar a inacreditável chuva que caía.

Minha impressão era a de habitar uma casa fluvial, pois não havia nas imediações um único pedaço de terra que não tivesse sido coberto pelas águas. Numa tentativa de dominar a angústia que a ausência de irmã Geovana me causava, iniciei inúmeras conjecturas: tentei adivinhar as espécies de árvores que circundavam a granja, avaliei até que ponto a casa resistiria ou conseguiria se manter impermeável àquele aguaceiro, enfim, agarrei-me a essas e outras banalidades como um náufrago a um tonel flutuante. Mas uma hora depois, apesar dos meus esforços, irmã Geovana se apossou de mim como uma doença incurável. Escutava sua voz, sentia nos cabelos a maciez de suas mãos, a tristeza que um dia transferira de sua boca para a minha e que agora me umedecia os lábios. Em suma: minhas lembranças se materializavam de forma avassaladora.

De repente, levado por um súbito descontrole, abandonei a varanda e saí feito um louco pela granja, chutando a água que me impedia de correr, golpeando as árvores à minha frente, arrancando flores cuja beleza me parecia agora uma afronta à minha dor e amaldiçoando aquela que me acenara com a perspectiva de um futuro comum que jamais se cumpriria. Deus, que inventara o amor, não escapou à minha cólera - como naquela noite no terraço do convento - e contra Ele dirigi as piores ofensas, como se assim agindo pudesse amenizar o sofrimento que minha imaturidade impedia de suportar com resignação. Quando, por fim, se esgotaram tanto o meu fôlego como minha capacidade de inventar novas injúrias, tombei de quatro como um animal agonizante e nessa ridícula postura permaneci até meus músculos amolecerem, quando então mergulhei no charco.

Incapaz de compreender o que me acontecia, teria morrido afogado não tivesse monsenhor Flávio me agarrado pelos cabelos e, dando mostras de uma imprevista energia, me arrancado dali. Como disse há pouco, ele estava nos fundos da casa fazendo faxina e por sorte me vira passar feito um alucinado. Imaginando que algo de grave deveria estar acontecendo, resolveu me seguir. Devido ao defeito pernal, só pôde fazê-lo a uma certa distância, felizmente não tão grande que o impedisse de chegar a tempo de evitar minha morte. Conseguindo levantar-me da descomunal poça em que mergulhara, amparou-me até a casa, em cuja varanda nos estiramos, ambos exaustos. Dessa vez quem chorava amargamente era eu, mas monsenhor teve o bom senso de aguardar que se esgotasse o meu pranto, para então manter comigo o seguinte diálogo:

- Você acredita em premonições, Gabriel?

- Acredito, monsenhor...embora todas as que tive até hoje tenham sido péssimas.

- E você acha que elas se dão de forma casual ou revelam um desejo íntimo, profundo, adormecido no nosso inconsciente?

- Não sei, monsenhor...eu desconheço os mecanismos que regem a nossa mente. Mas se for verdade que as premonições são o reflexo de um desejo, então o meu inconsciente só nutre a meu respeito as piores intenções.

Nós não estávamos nos olhando, portanto não pude avaliar a reação de monsenhor a essa afirmativa. Em todo caso, depois de um breve silêncio, ele prosseguiu:

- É engraçado...mas hoje, assim que acordei, tive a intuição de que você teria um dia muito feliz.

- Pois eu tive uma intuição diametralmente oposta! - retruquei, erguendo-me nos cotovelos. - E pelo visto estava certo...

- O dia mal começou, Gabriel...-retorquiu, imitando minha postura.

- Eu sei...- e tornei a me estirar. - Mas tenho certeza de que a única coisa que poderia realmente me fazer feliz, hoje, não vai acontecer. Seria bom demais...

- Quem sabe?

Monsenhor se sentou e então eu pude vê-lo. Sua expressão denotava tamanha confiança que por um momento acreditei que o milagre se daria. Interessante figura, monsenhor Flávio: seu desespero e sua esperança se manifestavam com idêntico vigor. Ele, nesse instante, irradiava tanta certeza, tanta fé e, mais do que isso, tanta vontade de que eu fosse feliz que novamente me descontrolei e comecei a soluçar. Mais uma vez monsenhor aguardou que eu me acalmasse, sem pronunciar uma única palavra ou esboçar qualquer gesto. E no entanto eu o sentia todo tempo ao meu lado, presente, amigo. Quando tornei a olhá-lo, ele estava encostado à grade de madeira que limitava a varanda, olhando absorto a chuva que ainda caía, mas já com menor intensidade.

- O temporal se vai, meu amigo. É um bom sinal.

- Monsenhor...- falei, acercando-me dele - que a chuva caia ou deixe de cair, isso não altera nada!?

- Engano seu, Gabriel...- retrucou, olhando-me fixamente. - É imprescindível que pare de chover. Senão os caminhos se tornam impraticáveis.

Sua resposta me encheu de perplexidade. Que estaria monsenhor pretendendo dizer? Meu coração começou a bater mais forte, enquanto eu tentava desvendar o real sentido de suas palavras. Ele sustentou meu olhar com amesma serenidade e confiança anteriores, mas percebi em sua expressão o sorriso típico daquele que, mesmo conhecendo o segredo do outro, se abstém de explicitá-lo. Mas...seria a minha alma assim tão fácil de ser devassada? Não era possível que ele tivesse detectado o motivo de minha angústia, a menos que...

Foi então que para mim tudo se tornou claro. Ele ouvira meus gritos, portanto sabia do meu amor por irmã Geovana. Sua intuição, na verdade, não passava de um ardil que ele utilizara para tocar no assunto. Assim, ainda que movido pelas melhores intenções, ele me mentira e isso era grave. Afantando-me um pouco, disse:

- Essa história de premonição não passa de um blefe. O senhor ouviu meus greitos, nos quais o nome de uma determinada pessoa foi inúmeras vezes invocado. Agradeço sua intenção de me reconfortar, como sou grato por ter salvo a minha vida. Mas o senhor poderia ter ido direto ao assunto, me privando de escutar um preâmbulo totalmente dispensável!

Monsenhor ouviu esse breve e ardoroso discurso de forma impassível. Quando o concluí, se aproximou de mim e disse, com toda a calma:

- O nosso pacto de confiança absoluta ainda se mantém de pé?

- De minha parte, sim. Por quê?

- E se eu disser que a chuva torrencial que caía me impediu de compreender uma única palavra que você proferiu, você acreditaria?

- Só se o senhor jurar! - retorqui, secamente.

- A confiança dispensa juramentos. O essencial é a palavra dada - ajuntou, com firmeza.

À minha frente se achava um homem a quem eu fizera uma proposta, prontamente aceita, que me parecera a única que nos permitiria continuar convivendo em paz. Entretanto, na primeira ocasião em que sua consistência era posta à prova, eu vacilava. Não que estivesse arrependido de tê-la feito, apenas nunca vivera uma situação em que precisasse confiar cegamente em alguém.Isso me assustava. Não se tratava apenas de ceder, mas de aceitar sem qualquer restrição que monsenhor não estivesse mentindo. A manutenção de nosso pacto dependia disso, assim como nossa amizade.

Quando não suportei mais a urgência de seu olhar, afastei-me um pouco e fitei o horizonte. A chuva, nesse momento, já cessara e alguns raios de sol se infiltravam, atrevidos, por entre as nuvens que o vento dispersava. A natureza alterava seu humor, bania a própria angústia. Dentro de poucos minutos, os animais abandonariam seus refúgios e tornariam a caminhar pelos campos. As aves dançariam num céu sem nuvens e todos os seres dotados de vida haveriam de festejar, cada qual à sua maneira, a paz que de novo se instalava.

Pouco a pouco, esse espetáculo foi exercendo sobre mim uma poderosa influência e tal como o vento fizera com as nuvens, acabou afastando do meu coração toda a incerteza que o oprimia. Finalmente, quando tornei a olhar para monsenhor Flávio, já não tinha mais qualquer dúvida quanto à resposta que lhe daria. Curiuosamente, não senti nenhuma vontade de verbalizar a confirmação de nosso pacto. Nossa cumplicidade era evidente e as palavras, portanto, dispensáveis.

Monsenhor e eu continuamos na varanda, observando o fantástico espetáculo que a natureza nos oferecia. Pouco nos importamos com nossas roupas encharcadas. O essencial era apreciar as cores, os reflexos, as transparências, as infinitas gradações tonais que se davam no firmamento, que parecia empenhado em nos demonstrar sua incrível capacidade de mutação. Por volta das seis horas o céu se encheu de diamantes e só então voltamos a conversar.

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