sexta-feira, 27 de abril de 2012

Teatro/CRÍTICA

"De verdade (ou A mulher certa)"

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Náufragos de si mesmos


Lionel Fischer


"A peça aborda, através da relação entre o Marido e a Esposa, os conflitos do amor romântico e do casamento, tangenciando, e tendo como pano de fundo, o ideário da condição burguesa e a incomunicabilidade do discurso amoroso. Sándor Márai apresenta não apenas versões distintas (Marido X Esposa) do mesmo fato (o casamento), mas enfatiza também a premissa de que os fatos só podem ser apreendidos em sua limitada existência por intermédio das experiências e da memória individual. Márai defende a idéia de múltiplas verdades ou, em suma, de que não há verdade para além da individualidade"

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza as premissas essenciais de "De verdade (ou A mulher certa)", romance do húngaro Sándor Márai adaptado para o palco por Susana Schild e Isabel Muniz. Márcio Abreu assina a direção do espetáculo, em cartaz no Espaço Sesc, estando o elenco formado por Kika Kalache e Guilherme Piva, que dividem o palco com o músico Antonio Saraiva.

Como todos sabemos, os puristas de plantão costumam torcer seus  graciosos (nem sempre) narizes sempre que uma montagem se materializa a partir de uma adaptação, seja de um romance, conto, novela etc. E sua argumentação é sempre a mesma: a especificidade da linguagem do palco, que estaria atrelada aos diálogos, sendo que estes explicitariam os conflitos entre os personagens, daí decorrendo a ação e por aí vai.

Isto não deixa de ser verdade, naturalmente. Mas não é menos verdadeira, tampouco menos válida, uma proposta que traga para o palco elementos de outras manifestações artísticas, desde que as mesmas contribuam para viabilizar aquilo que o teatro propõe de mais essencial: um real encontro entre quem faz e quem assiste. E tal encontro pode até mesmo, em alguns casos, prescindir de diálogos. Ou não? 

No presente caso, temos diálogos, solilóquios, narrativas  contraditórias, repetições de passagens aparentemente iguais, mas sutilmente diferentes. Enfim...uma série de recursos cuja mescla enfatiza, de forma criativa e pertinente, os principais conteúdos propostos pelo autor - como não li o original, não posso avaliar os méritos da adaptação; mas como permaneci todo o tempo atento, interessado e, não raro, comovido, ouso supor que seja de excelente nível o trabalho feito por Susana Schild e Izabel Muniz.

Tudo aqui gira em torno de duas histórias de amor, sendo que uma delas conta com a participação do casal - a outra, ainda que apenas evocada, contribui para levantar ainda mais questionamentos sobre a complexidade inerente a qualquer relação amorosa. E o que mais me encantou no texto, e também o que mais me afligiu, diz respeito a uma certa (ou total) impossibilidade de se conhecer plenamente o outro, de nos relacionarmos com o outro sem perceber que muitas vezes o idealizamos, o que nos leva a priorizar fantasias em detrimento do real da vida. Mas, um um belo dia, as máscaras caem, a visão das faces descobertas se torna intolerável e a separação se afigura como a única possibilidade. Então os casais se despedem, em geral com a sensação de serem náufragos de si mesmos...

Bem escrito, contendo ótimos personagens e reflexões mais do que pertinentes sobre o amor, o texto de Sándor Márai recebeu ótima versão cênica de Márcio Abreu, cabendo destacar não apenas a expressividade das marcas e a impecável manipulação dos tempos rítmicos, mas sobretudo a atmosfera ao mesmo tempo árida e dolorosamente poética que permeia toda a montagem. E como os atores muitas vezes se dirigem ao público, seja expondo seus pontos de vista, seja fazendo perguntas, torna-se inevitável que cada um se veja um tanto obrigado a questionar suas posições perante o amor. No meu caso específico, saí do teatro com um número bem maior de dúvidas do que de certezas. Mas talvez seja essa uma das propostas deste inquietante e belo espetáculo.

Quanto aos atores, Kika Kalache e Guilherme Piva exibem ótimos desempenhos, tanto nas passagens mais dramáticas quanto naquelas em que o humor predomina. Afora isto, sua contracena é impecável, visceral, com ambos valorizando de forma sensível e vigorosa tanto as falas como os muitos silêncios. Sob todos os aspectos, duas intepretações que se incluem entre as mais significativas da atual temporada.

Na equipe técnica, considero irretocáveis as contribuições de todos os profisisonais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Fernando Marés de Castilho (cenografia), Nadja Naira (iluminação) e Cao Albuquerque (figurinos). Cumpre também destacar a forte presença cênica de Antonio Saraiva, responsável pela direção musical e, ao que imagino, pelas composições (ou fragmentos musicais) que executa ao piano e saxofone, alternando climas jazzistícos com sonoridades que remetem a compositores como Éric Satie, sempre em total sintonia com os múltiplos climas emocionais em jogo.

DE VERDADE (OU A MULHER CERTA) - Texto de Sándor Márai. Adaptação de Susana Schild e Isabel Muniz. Direção de Márcio Abreu. Com Kika Kalache e Guilherme Piva. Espaço Sesc. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.      




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