segunda-feira, 28 de maio de 2012

Teatro/CRÍTICA

"A volta ao lar"

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Obra-prima em excelente versão


Lionel Fischer


Um dos maiores dramaturgos ingleses do século XX, Harold Pinter (1930-2008) escreveu dentro de uma convenção próxima à do Teatro do Absurdo. Valendo-se sempre de magistrais diálogos, não raro Pinter cria um clima de angústia latente, graças à sensação de que um perigo ronda a cena. Seus principais temas são a solidão, o medo, a incerteza existencial e a brutalidade das relações humanas. É autor de uma obra vasta e diversificada, com destaque para "O quarto", "O monta-carga", "Festa de aniversário", Uma ligeira dor", "O inoportuno" e "A volta ao lar".

Esta última é a terceira empreitada da Cia. Teatro Esplendor, criada por Bruce Gomlevsky - as montagens anteriores foram "Festa em família" e "Cyrano de Bergerac". Em cartaz no Centro Cultural Correios, "A volta ao lar" chega à cena com direção de Bruce Gomlevsky e elenco formado pelo próprio Bruce, Tonico Pereira, Arieta Corrêa, Jaime Leibovitch, Sérgio Guizé e Gustavo Damasceno.

Por tratar-se de uma obra por demais conhecida, não julgo necessário reproduzir seu enredo. E tampouco ficar tecendo muitas conjecturas sobre um texto que já mereceu volumosos ensaios de alguns dos mais brilhantes críticos do planeta. Seja como for, não custa nada enfatizar aquilo que me parece mais essencial - dentre muitos outros aspectos essenciais - desta obra magnífica: a extraordinária capacidade do autor de falar da condição feminina, ao menos como se apresentava socialmente quando escreveu "A volta ao lar".

É possível que o autor não tenha pretendido somente criar uma personagem feminina tão deslumbrante quanto enigmática, como é o caso de Ruth, mas sim um arquétipo da feminilidade. Como uma espécie de ilha cercada de homens por todos os lados, Ruth desempenha várias funções, tais como a de mãe, esposa, amante, prostituta e criada. E se por um lado serve aos homens, por outro os domina, na medida em que se torna a referência de uma casa impregnada de múltiplos conflitos.

Estes, evidentemente, já existiam, pois quando a personagem surge o espectador já se familiarizou com os confrontos familiares, com a crueza da expressões, com os baixos instintos e com a intolerância generalizada. Mas certamente é através de Ruth que tais conflitos se potencializam e, magistral e ironicamente, como que se equacionam.

Através de uma escrita que mescla frieza, humor e brutalidade, Harold Pinter criou uma das peças mais brilhantes de sua obra, que recebeu aqui uma versão à altura de seus incontáveis méritos. Impondo à cena uma dinâmica que, desprezando inúteis mirabolâncias formais, prioriza o que de fato importa - a exposição crua dos conflitos entre os personagens - Bruce Gomlevski valoriza de forma admirável todos os conteúdos implícitos, valendo-se de marcas expressivas, ótima manipulação dos tempos rítmicos e de um irrepreensível trabalho de todo o elenco, a começar pelo próprio.

Na pele do suposto cafetão Lenny, Bruce materializa de forma irretocável uma personalidade marcada pelo cinismo, frieza e virulência. Vivendo o patriarca Max, Tonico Pereira exibe uma das melhores atuações de sua brilhantíssima carreira, conferindo ao personagem uma dimensão à altura de sua complexidade, tanto no que diz respeito ao texto articulado quanto à composição física. Sem dúvida, um dos desempenhos mais marcantes da atual temporada.

Como Ruth, Arieta Corrêa atende a todas as exigências do dificílimo papel, que pressupõe fortíssima sensualidade e uma ambigüidade exasperante, diria mesmo enigmática, num permanente jogo de submissão e domínio. Jaime Leibovitch também convence plenamente na pele do pacífico e enquadrado Sam, o mesmo aplicando-se a Gustavo Damasceno, que dá vida a Teddy, marido de Ruth, professor de filosofia que parece a perfeita encarnação do burguês acomodado e blasé. Em papel de menores oportunidades, ainda assim Sérgio Guizé valoriza muito bem o pugilista dotado de pouquíssimos neurônios.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as irrepreensíveis contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Luiz Paulo Nenen (iluminação), Bel Lobo (cenografia), Rita Murtinho (figurinos) e Millôr Fernandes, responsável por ótima tradução.

A VOLTA AO LAR - Texto de Harold Pinter. Direção de Bruce Gomlevsky. Com Bruce Gomlevsky, Tonico Pereira, Arieta Corrêa, Jaime Leibovitch, Sérgio Guizé e Gustavo Damasceno. Centro Cultural Correios. Quinta a domingo, 19h.

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