quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

ÉDIPO: A Imitação de uma ação

Francis Fergusson


          A idéia geral que usamos para comparar as formas e o conteúdo espiritual da tragédia com os do antigo ritual foi a de "imitação da ação". O ritual imita a ação de certo modo, a tragédia de outro, e o uso por Sófocles das formas rituais indica ter ele sentido o ritmo trágico comum a ambos.

          Mas a linguagem, o enredo, os personagens da peça também podem ser compreendidos com mais detalhes e mais claramente em suas relações mútuas como imitações, cada um em seu campo, daquela ação. Já citei Coleridge a respeito da unidade de ação: "não propriamente uma regra", diz ele, "mas o grande fim em si mesmo, não apenas do drama, mas do épico, do lírico, e até da breve cintilação de um epigrama, e não somente da poesia, mas da poética em geral, sendo termo genérico apropriado inclusive para todas as belas-artes, como sua espécie".

          Provavelmente a influência de Coleridge é em parte responsável pelo ressurgimento desse conceito de ação que sublinha os recentes estudos de poesia mencionados por mim. A expressão de Burke, "linguagem como ação simbólica", refere-se àquela idéia, e assim também a sua afirmação de que "O poeta sabe intuitivamente que a beleza é na medida em que faz" (que o estado precisa ser corporificado em ato).

          Essa idéia de ação, e da peça como imitação de uma ação, é em última análise derivada da Poética, derivação que explico no Apêndice. Agora gostaria de mostrar que a forma complexa de Édipo - seu enredo, personagens e falas - pode ser compreendida como imitação de certa ação.

          A ação da peça é a procura do assassino de Laio. É este o objetivo maior que a informa - "achar o culpado para purificar a vida humana", podemos dizê-lo. Sófocles deve ter visto essa ação de procura como a verdadeira vida do mito de Édipo , percebendo-a através de personagens e acontecimentos como se percebe "a vida de uma planta através de suas folhas verdes".

          Ainda mais, ele deve ter visto essa determinada ação como um tipo, ou como exemplo decisivo da vida humana. Daí ter-lhe sido possível apresentá-la na forma do antigo ritual que também indica e celebra o mistério perene da vida e ação humanas. Assim, por "ação" não quero dizer os acontecimentos da história, mas o foco ou o propósito da vida psíquica de onde emanam, naquela situação, os acontecimentos.

          Se Sófocles estava imitando a ação nesse sentido, pode-se esquematicamente imaginar seu trabalho de composição em três estágios, em três atos miméticos:

          A) Ele estabelece o enredo, isto é, arruma os acontecimentos da história de tal modo que revelem a ação de procura da qual resultam.

          B) Desenvolve os personagens da história como formas individualizadas da "procura".

          C) Expressa ou explica as ações deles por meio das palavras que pronunciam em várias situações do enredo.

          É claro que este esquema não tem nada com a ordem temporal em que o poeta possa ter, na realidade, elaborado sua composição, nem com a ordem que seguimos para travar conhecimento com ela: começamos com as palavras, "as folhas verdes". O esquema refere-se à "hierarquia de estruturações" que, eventualmente, poderemos aprender a dintinguir na obra completa.

          1) O primeiro ato de imitação consiste em fazer o enredo ou arranjo dos incidentes. Aristóteles diz que o poeta trágico é basicamente um fazedor de enredos, porque nele está a "alma da tragédia", sua causa formal. O arranjo que Sófocles fez dos acontecimentos da história - começando próximo ao final, e fazendo a montagem do passado em relação com o que está ac ontecendo agora - já de alguma forma estrutura em atos a procura trágica que ele quer mostrar, antes mesmo de sentirmos os personagens como indivíduos ou de ouvi-los falar e cantar.

          2) Os personagens, ou agentes, são a segunda estruturação da ação. De acordo com Aristóteles, "os agentes são basicamente 'imitados' em decorrência da ação" - isto é, o núcleo da tragédia já está presente na ordem dos acontecimentos -, o ritmo trágico da vida de Édipo e Tebas; mas esta ação pode ser mais rapidamente apreendida e mais elaboradamente demonstrada pelo desenvolvimento de variações individuais sobre ela. Era com esse princípio em mente que Ibsen escreveu a seu editor, depois de dois anos de trabalho em O Pato Selvagem, que a peça estava quase pronta, e ele podia agora começar uma "individualização mais enérgica dos personagens".

          Se considerarmos a cena Édipo-Tirésias, podemos ver como os personagens funcionam para estabelecer a ação do todo. Eles revelam a qualquer momento um "espectro de ação" como aquele que o ritmo trágico desdobra diante de nós em sucessão temporal, ao mesmo tempo oferecendo casos concretos de precisão quase fotográfica. Assim, Tirésias "sofre" na escuridão de sua cegueira enquanto Édipo mantém seu "propósito" racional; depois, Tirésias realiza o "propósito" de servir à visão profética da verdade, enquanto Édipo sofre uma paixão ofuscante de medo e ira.

          Os agentes também servem para mover a ação, desenvolvê-la no tempo, através de seus conflitos. O coro entretanto, de certa forma entre os antagonistas, e por outro lado em nível mais profundo que eles, representa os interesses de uma solução, de um último estágio do sentir, onde o objetivo da ação, visto irônica e empaticamente como um todo, será conseguido.

          3) A terceira estruturação está nas palavras da peça. A ação de procura que é a substância da obra é imitada primeiro no enredo, depois nos personagens e por último nas palavras, conceitos e formas da fala onde os personagens "estruturam" sua vida psíquica em permanente mutação, respondendo ao desenvolvimento constante das situações da peça.

          Se pensamos na elaboração do enredo, dos personagens e do texto como sucessivos "atos de imitação" do autor, podemos também dizer que eles constituem, na obra pronta, uma hierarquia de formas e que as palavras da peça são sua "mais alta individualização". São as "folhas verdes" que podemos ver realmente; o produto e o sinal daquela "vida da planta" que, num esforço de imaginação, vamos adivinhar por trás delas.

          Tornamos pois a encontrar a teoria de Burke da "linguagem como ação simbólica" e os muitos estudos contemporâneos sobre poética, feitos desse ponto de vista. Seria útil oferecer um estudo detalhado da linguagem de Sófocles, usando os instrumentos modernos de análise, para dar substância às minhas afirmações. Mas isso requereria o conhecimento de grego que Jebb levou uma vida para adquirir; devo então contentar-me em mostrar, em termos mais gerais, que as várias formas poéticas em Édipo só podem ser compreendidas em bases histriônicas: isto é, através de uma percepção direta do ritmo trágico da ação.

          Na cena Édipo-Tirésias há um "espectro das formas do discurso" correspondente ao "espectro da ação" que descrevi. Ele se estende da fala inicial de Édipo - uma exposição racionalizada, embora não sem sentimento, mas essencialmente baseada em idéias claras e numa ordem lógica - ao canto coral, construído sobre imagens sensuais e com a "lógica do sentimento". Assim ele emprega, no começo, os princípios de composição que Burke chama de "progressão silogística", e, no outro extremo do espectro a "progressão por associação e contraste" segundo Burke.

          Quando os neoclássicos e os críticos racionalistas do século XVII leram Édipo viram apenas a ordem da razão e não sabiam o que fazer do coro. Daí o teatro de Racine ser de "ação enquanto racional": um drama de situações estáticas, de conceitos claros e imagens apenas ilustrativas.

          Nietzsche, por outro lado, viu apenas a paixão do coro, porque seu modo de ver baseava-se em Tristão e Isolda, que é essencialmente composto de imagens sensuais e desenvolve-se por associações e contrastes de acordo com uma lógica do sentimento: drama que toma a "ação enquanto passional". Nenhum desses pontos de vista nos habilita a perceber como o quadro pode mostrar-se uno.

          Se as falas dos personagens e as canções do coro são apenas a folhagem da planta, isso equivale a dizer que a vida e o significado do todo nunca estão presentes de forma literal e completa em qualquer daquelas formulações. São necessários todos os elementos - a situação que se altera gradualmente, os personagens que mudam e evoluem e seus pronunciamentos racionalizados ou líricos, para indicar no conjunto a ação que Sófocles deseja comunicar.

          Porque esta ação toma forma de razão e paixão, e de contemplação por meio de símbolos; porque essencialmente ela se destina ao movimento (dentro do ritmo trágico), e porque dela participam de diferentes maneiras todos os personagens, a peça não tem nem unidade literal, nem a unidade racional da idéia verdadeiramente abstrata, ou "conceito de homogeneidade".

          Suas partes e seus momentos são unos apenas "por analogia", e assim como os Santos nos avisam que precisamos crer para compreender, assim precisamos "fazer de conta", por um ato de participação e imitação, originado na sensibilidade histriônica, para captar o que Sófocles pretendia com sua peça.

          É a base histriônica da arte de Sófocles que a faz misteriosa para nós, com nossas exigências de clareza conceitual, ou com nossa condescendência em ceder a uma torrente de sentimentos e imagens subjetivas. Mas também é isso que a faz, em sua inteireza, um momento fundamental da arte teatral, como se o autor compreendesse "música, espetáculo, pensamento e representação" em suas raízes sutis e primitivas. E é a base histrônica do drama que "é um atalho em relação à teologia e à ciência".
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Extraído de Evolução e Sentido do Teatro, Zahar Editores, 1964, tradução de Heloisa de Hollanda G. Ferreira

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