terça-feira, 22 de novembro de 2016

Teatro/CRÍTICA

"A paixão segundo Adélia Prado"

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Apaixonante encontro na Laura Alvim



Lionel Fischer



Tão carente em tantos aspectos, o Rio de Janeiro acaba de receber um inestimável presente: a reinauguração do Teatro Laura Alvim, fechado há mais de um ano. E isto se dá através de um espetáculo admirável, que faculta ao público conhecer um pouco mais a vida e a obra de nossa maior poeta viva, Adélia Prado. Com adaptação teatral assinada por Elisa Lucinda e Geovana Pires, direção de Geovana e interpretação de Elisa, que divide a cena com o músico André Ramos, "A paixão segundo Adélia Prado" vai cumprir temporada de três meses, o que promete tornar ainda mais apaixonante o verão que se aproxima.  

O primeiro grande trunfo da montagem diz respeito ao excelente roteiro. A partir de versos, textos em prosa e entrevistas, as adaptadoras criam uma circunstância cênica que, sem abdicar da teatralidade, aproxima de forma calorosa a poeta daqueles que a assistem. Em dados momentos, tive a sensação de estar diante de Adélia na sala de sua casa, sendo merecedor de saborosas e aparentemente corriqueiras confissões. Mas em outras passagens, o tom ameno cede espaço aos dilacerantes embates de uma mulher que procura um ponto de equilíbrio entre o profano e o sagrado, que tenta desesperadamente conciliar seu arrebatador erotismo com os preceitos essenciais do catolicismo. A alma e o corpo são inconciliáveis? O desejo e a fé são incompatíveis? O espectro da punição é na realidade nosso anjo da guarda?

Enfim...essas e muitas outras questões são abordadas com delicadeza e furor neste espetáculo dirigido de forma impecável por Geovana Pires, que valoriza com enorme sensibilidade os muitos e diversificados climas emocionais em jogo. E a Geovana Pires cabe o mérito suplementar de haver extraído excelente performance de Elisa Lucinda, ela também uma poeta de primeiríssima linha.

Além de possuir ótima voz, expressividade corporal e inteligência cênica, Elisa Lucinda exibe a rara qualidade de nos magnetizar por completo desde que entre em cena, faça ela o que fizer, e ainda que nada faça. Um exemplo: há uma passagem em que ela permanece sentada olhando para a plateia. Através de sutis alterações faciais e corporais, a atriz sugere que a personagem pode estar pensando algo a respeito de si mesma, ou então que seu alvo somos nós, que a olhamos. Aos poucos, um riso algo nervoso, algo cúmplice, se estabelece. E logo todos estamos sorrindo, sem saber exatamente por que. Sob todos os aspectos, um breve e memorável momento de total comunhão entre quem faz e quem assiste.

Mas é óbvio que a atuação de Elisa Lucinda não se resume ao momento acima mencionado. Ao longo de todo o espetáculo, é maravilhoso ver a coragem com que mergulha visceralmente em um universo em que lágrimas e sorrisos caminham sempre de mãos dadas, em que momentâneas tréguas são sempre o prenúncio de inevitáveis tempestades. Assim, só me resta agradecer o privilégio de ver em cena uma artista do porte de Elisa Lucinda - muito bem acompanhada pelo excelente músico André Ramos -, e desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem esta imperdível empreitada teatral.

Com relação à equipe técnica, a todos parabenizo com o mesmo entusiasmo - Carlos Malta (direção musical), Djalma Amaral (iluminação), Bia Junqueira (cenografia), Madu Penido (figurino), Duda Maia (direção de movimento), Ronald Valle (preparação vocal) e David Lima e Bruno Cachimbo (direção artística).

A PAIXÃO SEGUNDO ADÉLIA PRADO - Textos de Adélia Prado. Adaptação teatral de Elisa Lucinda e Geovana Pires. Direção de Geovana Pires. Com Elisa Lucinda e o músico André Ramos. Teatro Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.






2 comentários:

  1. São Paulo já! Belíssima crítica ou comentário poético para combinar com proposta!
    Vou fazer uma menção e minha amiga Selene Marinho que abraçou esta produção e tenho certeza que vai além do profissional!

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  2. Wilson amigo,

    te agradeço as palavras tão gentis.

    Abraços,

    Lionel Fischer

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