quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"L, O Musical"

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Que se abram todos os armários



Lionel Fischer



"Ester Rios é uma renomada autora de novelas e está esfuziante com o sucesso do primeiro folhetim a ter um triângulo amoroso formado por mulheres. Ela divide esse cotidiano profissional e afetivo com amigas, sempre se lembrando daquela que foi seu grande amor, Rute. Revelações e a chegada de notícias inesperadas mudam o destino daquelas mulheres".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "L, O Musical", que após cumprir temporada em Brasília está em cartaz no Teatro I do CCBB. Mais recente realização da Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada, a montagem tem direção geral e dramaturgia assinadas por Sérgio Maggio, esta última tendo Daniela Perreira de Carvalho como supervisora. No elenco, Elisa Lucinda (Ester), Ellen Oléria (Rute), Renata Celidonio (Anne), Gabriela Correa (Noiva Erina e Simone), Tainá Baldez (Noiva L e Elle) e Luiza Guimarães (Xena Charme, Noiva Safo, Lea Secret e Filipa). O espetáculo conta também com a ótima participação das instrumentistas Alana Alberg (baixo), Marlene de Souza Lima (guitarra), Nathália Reinehr (bateria) e Janá Sabino (teclado). 

Quando criou a Casa-Poema, Elisa Lucinda tinha, dentre outros objetivos, o de fazer com que seus alunos conseguissem dizer poesia sem ser chato. Aqui não é a poesia que está em causa, mas questões relativas a lésbicas, gays, bissexuais, trans e todas as variantes possíveis e imaginárias. Como vivemos uma época de brutal intolerância com relação a pessoas que dirigem seus afetos confrontando o que a moral e os bons costumes apregoam - em se tratando de Brasil, constitui macabro humor se falar em moral e bons costumes -, o texto poderia priorizar o panfletário, o que o faria enveredar para o campo das discussões exacerbadas e cujo resultado só contribuiria para afastar ainda mais os que defendem posições antagônicas.

Aqui, no entanto, dá-se rigorosamente o oposto. O texto não objetiva provar nada, não tenta legitimar nada, não investe de forma tácita contra aqueles que se apegam a valores jurássicos. Muito pelo contrário. Tudo se resume a uma trama que expõe, de forma ao mesmo tempo divertida e densa, variados conflitos decorrentes de múltiplos afetos. E essa exposição traz em seu cerne o que de mais precioso existe (ou deveria existir) no tocante ao humano: a liberdade. 

Se não somos livres para fazer nossas opções (sejam elas políticas ou sexuais, dentre muitas outras), se permitimos que a opressão nos domine e assim inviabilize a materialização de nossos anseios mais profundos, então não passamos de marionetes manipuladas pelos que detêm o poder e, queiramos ou não, acabamos contribuindo com nossa passividade para a perpetuação da violência e da intolerância que imperam no tempo em que vivemos. 

Em resumo: o que o ótimo texto de Sérgio Maggio nos propõe, em uma leitura mais ampla, é que se abram todos os armários e dele emerjam pessoas dispostas a lutar pelo legítimo direito de serem o que quiserem ser. E se eventualmente a luta parecer inglória, não custa nada lembrar que é impossível levar um barco sem temporais, e que o leme de nossas vidas está em nossas mãos e de ninguém mais. 

Tendo como espinha dorsal 22 canções de cantoras assumidamente lésbicas, dentre elas Simone, Adriana Calcanhoto, Mart' nália, Lecy Brandão, Sandra de Sá e Angela RoRo, o espetáculo consegue mesclá-las à narrativa de forma tão orgânica que o resultado quase me levou a crer - sei que não, obviamente - que as músicas haviam sido compostas simultaneamente à escrita. Sob todos os pontos de vista, uma montagem memorável, seja pelos pertinentes temas que aborda, seja pela forma como estão materializados na cena.   

Com relação ao elenco, poderia particularizar cada uma das performances. Mas as atrizes fazem tão bem seus personagens e é tamanha a força do conjunto, que opto por parabenizar a todas com o mesmo entusiasmo, a todas agradecendo o divertido e emocionante encontro que tivemos. E creio firmemente que todos os espectadores haverão de sentir o mesmo, pois não é comum, ao menos para mim, voltar pra casa impregnado do mais puro encantamento. Assim, só me resta implorar aos sempre caprichosos Deuses do Teatro que abençoem esta imperdível e mais do que oportuna empreitada teatral.

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as colaborações de Luís Filipe de Lima (direção musical), Ana Paula Bouzas (direção de movimento), Aurélio de Simoni (iluminação), Carol Lobato (figurinos), Maria Carmen de Souza (cenografia), Luma Le Roy (visagismo), Sara Mariano (preparação vocal) e Sérgio Maggio e Ellen Oléria (roteiro musical).

L, O MUSICAL - Direção geral e dramaturgia de Sérgio Maggio. Com Elisa Lucinda, Ellen Oléria, Renata Celidonio, Gabriela Correa, Tainá Baldez e Luiza Guimarães. Teatro I do CCBB. Quarta a domingo, 19h.



       


Um comentário:

  1. Querido, Lionel, que crítica que dialoga com nosso processo criativo e todas as premissas de criação. Ficamos todos e todas bastantes tocados na forma como você nos toca e como foi tocado. Isso é teatro realimentado por palavras tão poderosas. Gratxs

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