sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Teatro/CRÍTICA

"A ira de Narciso"

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Ser e ser: eis a questão



Lionel Fischer




"A peça é uma autoficção em primeira pessoa, que conta a passagem do autor por Ljubljana, capital da Eslovênia, onde vai dar uma palestra sobre o mito de Narciso. O drama se passa em um quarto de hotel, onde o autor está hospedado, durante os últimos preparativos para a conferência, enquanto descreve os vários encontros com um jovem esloveno que acabara de conhecer. A partir da descoberta de uma mancha de sangue no carpete, o relato da viagem profissional e dos encontros amorosos dá lugar a uma intriga policial. Alternando sutilmente narração, palestra e confissão, A ira de Narciso é uma jornada arriscada que conduz o espectador em um labirinto do eu, da linguagem e do tempo".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "A ira de Narciso", de autoria do uruguaio (radicado na França) Sergio Blanco. Em cartaz no Teatro Poeirinha, a montagem tem direção assinada por Yara de Novaes, estando a interpretação a cargo de Gilberto Gawronski - Renato Krueger atua como ator assistente.

Antes de passarmos à análise do presente espetáculo, julgo oportuno tecer algumas considerações sobre o que é ou possa ser autoficção. Tratados já foram escritos sobre o tema, nem sempre concordantes. Seja como for, reproduzo agora o ponto de partida de todas as vertentes: "Autoficção é um termo usado na crítica literária para se referir a uma forma de autobiografia ficcional. O termo foi cunhado por Serge Doubrovsky em 1977, com referência ao seu romance Fils".

Como não estou escrevendo para acadêmicos e sim para leitores de níveis culturais variados, vou tentar ser o mais simples possível. Quando alguém escreve uma biografia, refere-se a uma outra pessoa. Quando alguém escreve uma autobiografia, obviamente refere-se a si mesmo. Mas o que acontece quando nos deparamos com uma autoficção, que combina dois estilos paradoxalmente contraditórios, o de autobiografia e ficção? Como o leitor/espectador deve se posicionar diante de uma obra assim estruturada?

Sem pretender dar conselhos a ninguém, até pela consciência que tenho de que conselhos jamais são seguidos, acredito que a postura mais salutar seja a de admitir que tudo é verdade e não é. Um exemplo: se em dado momento o Narrador nos conta algo supostamente vivido pelo Autor (e aqui o Narrador e o Autor seriam a mesma pessoa), eu posso acreditar em suas palavras, mas também posso atribuí-las ao Intérprete que está em cena, que talvez tenha decidido recriá-las. 

Em vista disso, torna-se inócua qualquer tentativa de se relacionar com o espetáculo a partir da apreensão do mesmo pautada na lógica. O essencial, em meu entendimento, é entrar no jogo, deixar-se impregnar de todas as ambiguidades e delas extrair o que pareça mais relevante. Com isso estou querendo dizer que cada espectador fará a sua leitura do espetáculo. E se por acaso todas as leituras forem divergentes, ouso supor que o autor haveria de ficar muito satisfeito. 

Bem escrito, contendo pertinentes reflexões sobre a arte, a sexualidade e o tempo (dentre muitas outras), o texto de Sergio Blanco recebeu ótima versão cênica de Yara de Novaes, cujo maior mérito foi o de materializar os conteúdos propostos pelo autor em total sintonia com sua escrita - haveria de ser patético se a encenadora optasse por, digamos assim, facilitar a compreensão do espectador, ao invés de estimulá-lo a criar sua própria relação com o espetáculo. Valendo-se de marcação criativas e imprevistas, e explorando com grande maestria todos os climas emocionais em jogo, Yara de Novaes exibe o mérito suplementar de haver contribuído para que Gilberto Gawronski nos brindasse com mais uma performance deslumbrante.

E meu deslumbre não se atém a aspectos meramente técnicos, como excelente voz, exímio preparo corporal, e tampouco à sua notável capacidade de entrega, grande inteligência cênica etc. Há algo em Gawronski que sempre me fascinou, que é a sua aparentemente inesgotável capacidade de não ser previsível. Ou seja: nunca consigo prever o que ele fará, como dirá determinada frase (no caso de conhecer a peça), por quanto tempo sustentará uma pausa e assim por diante. Gawronski, como todo intérprete de exceção, me gera sempre uma mescla de espanto e deliciosa ansiedade. Que Deus, caso exista, o conserve sempre assim. Renato Krueger desempenha com vigor e eficiência as tarefas que lhe cabem no espetáculo.  

Na ficha técnica, considero de altíssimo nível as contribuições de Dr. Morris (direção musical), André Cortez (cenografia), Wagner Antonio (iluminação) e Fábio Namatame (figurino).

A IRA DE NARCISO - Texto de Sergio Blanco. Direção de Yara de Novaes. Com Gilberto Gawronski e Renato Krueger. Teatro Poeirinha. Terça e quarta, 21h.








2 comentários:

  1. Extremamente útil e reflexivo, seu blog contém excelência artística e questionamentos muito pertinentes. Gratidão por se dispor a partilhar saberes de forma horizontal!

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