segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Teatro/CRÍTICA

"Diário do farol - Uma peça sobre a maldade"

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Montagem imperdível no Sesc




Lionel Fischer




"O público entra na sala e já encontra o ator em cena. Após pedir a um espectador que abra a garrafa d'água que beberá ao longo da narrativa, o personagem inicia seu relato dizendo: O que vou contar agora é honesto e verdadeiro. Sou capaz de matar. Já matei. A partir daí, a plateia conhece a relação dele com o pai, pautada pela total falta de afeto, sua passagem pelo seminário, onde presta favores sexuais em troca de privilégios, culminando no trabalho de informante e torturador do Dops, a temida polícia do governo militar. E uma única vez foi capaz de amar, mas tempos depois Maria Helena haveria de pagar um preço muito caro por tê-lo rejeitado".

Extraído (e levemente editado) do excelente release que me foi enviado pelo assessor de imprensa Christovam Chevalier, o trecho acima sintetiza a narrativa de "Diário do farol - Uma peça sobre a maldade", inspirada no romance "O diário do farol", de João Ubaldo Ribeiro. O projeto chega à cena graças ao estímulo de Domingos Oliveira, que considerava Fernando Philbert capaz de materializá-lo com a imprescindível potência. Philbert e Thelmo Fernandes respondem pela adaptação, cabendo a este último dar vida ao famigerado personagem. A montagem está em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc. 

No parágrafo inicial, estão explicitados alguns fatos protagonizados pelo personagem, mas certamente omiti muitos outros para não privar os leitores de algumas aterrorizantes surpresas. Mas o que me parece essencial ressaltar é a genialidade de João Ubaldo na construção do personagem. Se este fosse meramente um psicopata 
(ainda que o personagem possa sê-lo) e portanto capaz de cometer atrocidades sem nenhuma piedade ou posterior remorso, a obra não teria a transcendência que exibe. E esta ocorre na medida em que o protagonista consegue enxergar beleza na maldade, sendo totalmente sincero ao defender este abjeto ponto de vista. 

Ou seja: o que o difere de um serial killer ou de um torturador que apenas cumpre ordens é que estes podem até sentir prazer com as  ações que praticam, mas certamente não atribuem a elas nenhum valor estético, como ocorre com o protagonista de João Ubaldo. Ele age como se fosse um artista no processo de elaboração de uma obra e tal postura lhe confere uma dimensão ainda mais aterrorizante. 

Sob todos os aspectos, estamos diante de uma obra que tenho certeza que Dostoiévski adoraria, tamanha a profundidade com que João Ubaldo mergulha nos aspectos mais sombrios de uma personalidade execrável. E a ótima adaptação da mesma resultou em um espetáculo que deve ser prestigiado de forma incondicional pelo público. Vejamos por que. 

Em primeiro lugar, porque Fernando Philbert contou com as preciosas contribuições de Natália Lama (cenografia e figurino) e Vilmar Olos (iluminação), determinantes para a valorização dos múltiplos climas emocionais em jogo. E depois porque foi capaz de, mais uma vez, extrair o máximo de um ator que dirige em um monólogo - vou citar apenas a arrebatadora atuação de Marcos Caruso em "O escândalo Philippe Dussaert". No presente caso, tem como parceiro Thelmo Fernandes, um dos melhores atores não apenas de sua geração, mas do país. Vejamos por que - agora me dei conta de que termino este parágrafo da mesma forma que o anterior, o que talvez constitua um defeito ou um discreto charme estilístico, dependendo do ponto de vista.  

Por que Thelmo Fernandes é um ator de primeiríssima linha? É óbvio que possui grandes predicados técnicos, mas não são eles que constituem o essencial. Em meu entendimento, três virtudes o singularizam: enorme versatilidade, visceral capacidade de entrega a todos os personagens que interpreta e uma inteligência cênica que o leva a fazer opões jamais atreladas ao previsível. E aqui, salvo monumental engano de minha parte, o ator exibe a melhor performance de sua carreira, um verdadeiro presente para todos aqueles que amam a arte de interpretar. Assim, só me resta desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro continuem abençoando sua trajetória artística. E que ele permaneça o que sempre foi: um homem extremamente doce e com o senso de humor que caracteriza as pessoas do bem.

DIÁRIO DO FAROL - UMA PEÇA SOBRE A MALDADE - da obra de João Ubaldo Ribeiro. Adaptação de Fernando Philbert e Thelmo Fernandes. Direção de Philbert, atuação de Fernandes. Mezanino do Espaço Sesc. Quinta a domingo, 20h.

  








  

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