quarta-feira, 24 de março de 2010

Eugène Ionesco
(1912-1994)

Lionel Fischer


Autor dramático romeno-francês, Ionesco passou a infância em Paris e a juventude na Romênia. Dedicou-se ao teatro após uma etapa como escritor e ensaísta em Paris. Considerado um dos principais representantes do Teatro do Absurdo, converteu-se, depois de uma fase inicial de não-aceitação pelo público, em um dos autores mais representados em todo o mundo. Valendo-se de meios e experimentos do dadaísmo e do surrealismo, iniciou sua carreira com uma série de peças em 1 ato - A cantora careca, A lição, As cadeiras, Vítimas do dever, Jacques ou a submissão - que surpreenderam por sua irrealidade, obsessão e humor grotesco.

A esta primeira fase mais experimental pertencem a peça em 3 atos Amadeus e os textos curtos O quadro, O novo inquilino e O Improviso da alma. Com Assassino sem recompensa inicia uma segunda fase criadora, em que afirma sua posição anti-realista e crítica, afora sua visão absurda da existência. Desse período constam, entre outras, O rei morre e uma de suas obras mais conhecidas, O rionoceronte.


A seguir, um trecho da longa entrevista concedida por Ionesco a Claude Bonnefoy, convertida no livro "Diálogos com Ionesco" (Editions Pierre Belfond, Paris, 1970). Aqui o livro saiu em 1974, Editora Mundo Musical LTDA, coleção IDÉIAS, volume I, tradução de Maria Emília Corrêa Cardozo. O volume é dividido em vários tópicos: A Descoberta, A Criação, Os Temas, Hoje e Amanhã, Ionesco visto por seus contemporâneos e As criações teatrais, sendo que aqui nosso foco recairá sobre A DESCOBERTA, cabendo frisar que reduzi bastante o enunciado das perguntas, muitas vezes gigantesco, assim como das respostas, não raro igualmente quilométricas, mas tentando ao máximo não trair o espírito do livro, que é o de sugerir a conversa entre dois amigos, portanto sem nenhuma preocupação com "edição". Devo também acrescentar que omiti algumas peguntas, pois mesmo adotando o reducionista "esquema" acima mencionado, ainda assim a presente matéria se tornaria imensa.

* * *

A DESCOBERTA

C. B. - Sendo seu teatro tão onírico, não se encontram nele sonhos que foram os seus sonhos de criança?

E. I. - Sonhos de criança? Não. Tenho recordações da infância, imagens da infância, luzes e cores da infância. Se a matéria das minhas peças é freqüentemente feita de sonhos, esses sonhos devem ser bastante recentes para que eu os lembre com precisão. Empresto muita importância ao sonho, porque ele me dá uma visão um pouco mais aguda, mais penetrante, de mim mesmo. Sonhar é pensar, e é pensar de um modo muito mais profundo, mais verdadeiro, mais autêntico, porque é como que debruçar-se sobre si mesmo. O sonho é uma espécie de meditação, de recolhimento. É um pensamento em imagens. Algumas vezes, é extremamente revelador, cruel. É de uma evidência luminosa.

Para qualquer um que faça teatro, o sonho pode ser considerado como um acontecimento essencialmente dramático. O sonho é o próprio drama. Em sonho, está-se sempre em situação. Em resumo, creio que o sonho é ao mesmo tempo um pensamento lúcido, mais lúcido que o estado de vigília, um pensamento em imagens e que já é teatro, que é sempre um drama, porquanto se está sempre em situação.

C. B. - Poderia evocar essas lembranças, essas imagens da infância? Quais as emoções que o marcaram?

E. I. - A tristeza de minha mãe, a revelação da morte, ainda a solidão de minha mãe, tudo isso constituindo o aspecto negativo. E depois a infância no campo, na Chapelle Anthenaise, são os dias de plenitude, de felicidade, de luz que vivi.

C. B. - Que foi essa experiência da solidão?

E. I. - Da solidão, não. Da solidão de minha mãe. É difícil de expor. Meu pai tinha precisado retornar a Bucareste, e eu a via só e infeliz, lutando penosamente para ganhar dinheiro, cercada pela ferocidade do mundo, um pouco como Josefina em "Le piéton de l'air".

C. B. - E a revelação da morte?

E. I. - Já escrevi que eu me impressionava muito quando via os enterros, os cortejos passando sob as janelas da casa onde eu morava, e um dia perguntei à minha mãe o que aquilo significava. Ela respondeu: "Alguém morreu". E eu: "Mas...morreu por quê?". Acabei por compreender que a gente morria porque tinha tido uma doença, porque sofrera um acidente, de toda a forma a morte era acidental, e que, se tomasse muito cuidado para não se ficar doente, sendo prudente, usando-se a manta, tomando-se direito os remédios, prestando-se atenção aos carros, não se morria jamais. Aquilo me inquietava, sobretudo porque eu me apercebera de que a gente envelhecia. Dizia para mim mesmo: "Até que ponto se pode envelhecer? Até onde isto pode ir?".

Imaginava um homem envelhecendo, via-o crescer, via-o começar a curvar-se, via que a barba se lhe punha branca, que sua barba estava cada vez mais branca, cada vez mais longa, e que ele a arrastava pela rua, que ele próprio estava cada vez mais curvado. E me dizia: "Não, isto deve ter um fim, não, isto não é possível!". Um dia, perguntei à minha mãe se iríamos todos morrer e ela me disse que sim. Eu devia ter quatro ou cinco anos, estava sentado no chão, ela se achava de pé diante de mim. Trazia as mãos atrás das costas. Quando me viu soluçar - porque de repente me pus a chorar - ela me olhou desarmada, impotente. Tive muito medo. Pensei, sobretudo, que um dia ela iria certamente morrer, aquilo me apavorava. Temeria eu sua morte mais ainda do que temia a morte? É curioso como todas essas impressões, todas essas angústias desapareceram logo que fui para o campo, onde vivi durante três anos, longe de minha mãe que era talvez a causa inconsciente de minha angústia.

C. B. - Depois, essas angústias voltaram?

E. I. - Voltaram; elas me põem à prova. Voltaram, não sei exatamente em que momento, depois do meu regresso da Chapelle Anthenaise, porque descobri o tempo: os domingos, aos quais deviam necessariamente suceder as segundas-feiras. Um dia de festa nunca era bastante longo para não acabar, todo regozijo tinha como que um buraco dentro do seu próprio interior que o devorava. Cada hora estava enraizada no passado. Na Chapelle Anthenaise, o tempo não existia. Eu vivia no presente. Viver era o encanto, a alegria de viver.

C. B. - Que idade você tinha?

E. I. - Oito, nove anos.

C. B. - E o que representa para você esta experiência no campo?

E. I. - Uma plenitude; uma simbolização, se o posso dizer, do paraíso. Esse lugar é sempre para mim como a imagem do paraíso perdido. Deixei-o para ir a Paris, em seguida à Romênia. Ele se distanciava ao mesmo tempo geograficamente e no tempo.

C. B. - O que você considera mais enfadonho na sociedade atual?

E. I. - O mais enfadonho na sociedade atual é que a pessoa se confunde com a função que exerce, ou, mais propriamente, a pessoa é tentada a identificar-se totalmente com a função. Não é a função que toma uma fisionomia, é um homem que se desumaniza, que perde sua fisionomia. É isto que se passa principalmente nas sociedades totalitárias. Muitas vezes disse para comigo mesmo que o que era estupidificante, desumanizante, é o fato de um cabo dormir com seu uniforme. Ele é cabo totalmente, metafisicamente. É, sem dúvida, porque a "função" adquiriu tanta importância que atualmente se fala de tal maneira em sociologia. Há aí uma verdadeira alienação. A função social não deve absorver o homem totalmente, totalitariamente. Jamais, nós o sabemos, o homem esteve tão alieanado, particularmente nas sociedades socialistas que falam em desaliená-lo. Ele também o era anteriormente, é certo, mas não tanto.

Ora, na aldeia o homem não era confundido com sua função. Era o Padre Durant que "fazia" o pároco, o Pai Untel que "fazia" o guarda rural, tal como os atores desempenham seus pepéis, ainda que em nosso mundo um "homem de letras" seja "um homem de letras", quase que até em seus sonhos; ele tem uma gravata "homem de letras", uma mulher "homem de letras", amigos "homem de letras", ou seja, ele é anulado por sua função, nada mais é do que uma função alienante, ele não existe mais. Ele é engolido pela maquinaria social. A maquinaria social é a sociedade tornada monstruosa, devoradora.

C. B. - Você acha que sua obra dramática deve alguma coisa às suas recordações da Chapelle Anthenaise?

E. I. - Sim, muitas das preocupações, das obsessões me vêm da Chapelle Anthenaise e da ruptura com esse paraíso. Tudo o que vivemos deixa traços. Sim, eu era umja criança, um homenzinho no meio da sua realidade...sim, de vez em quando estudante, mas não essencialmente estudante...uma criança que, entre outras, ia à escola...não a engrenagem de uma máquina...Isto é, não o indivíduo de uma única função, depauperadora, que tira ao homem uma de suas dimensões.

Um comentário:

  1. Belíssima entrevista!!! Muito boa e esclarecedora sobre os pensamentos, reflexões e influências deste grande mestre. Escrevi há aproximadamente dois anos, uma peça que é influenciada pela obra de Ionesco de ponta a ponta. Trata-se do espetáculo As Mulheres da Rua 23 que este ano voltará em cartaz, em julho, no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema. Aproveito para convidá-lo e ainda a todos os leitores do blog admiradores de Ionesco e do tão falado Teatro do Absurdo.
    Forte abraço!!!
    Leandro Bertholini

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