terça-feira, 27 de abril de 2010

Desimpostando Shakespeare

Fernando Amaral


Montar Shakespeare é considerado uma audácia ou pretensão, o que atrapalha muito, e enche de medo até os que ousam falar no assunto. No entanto, como todo gênio, ele é simples, claro e direto. Pode ser entendido por crianças, analfabetos ou índios, sem muita reflexão, desde que traduzido em linguagem atual, própria para ser ouvida em teatro - sem a preocupação de "falar bonito", e sim com clareza. Escreveu há 400 anos, usou palavras que nem existem mais em todos os dicionários, o que não significa que em português também seja traduzido dessa forma, ou atores tenham de assumir posturas de quem está dizendo coisas que só os "eleitos" entendem.

O famoso monólogo "Ser nou não ser" já foi pensado por qualquer criança, e por isso tem seu valor de universalidade. É impossível não ser entendido por um analfabeto, se lhe for colocado na linguagem clara que Shakespeare sempre usou. No entanto, como o complicam! Ele mesmo escreveu pela boca de Hamlet, sobre o desprezo que sentia pelos impostados: "If you mouth it, as many of yours players do, I had as lief the town-crier spoke my lines". "To mouth" significa falar com afetação, e Hamlet diz aos atores que vieram representar no palácio, que se fizerem isso, ele prefere chamar o arauto da corte para dizer seu texto. Revela a seguir um profundo horror pelos pernósticos: "It offends me to the soul" (Isso me ofende na alma).

Em várias traduções, Marco Antônio diz que Cesar recusou a coroa de rei que lhe foi oferecida nos "Lupercais". Alguém no Brasil ou Portugal, sabe que diabo é Lupercais? É possível fazer teatro sem que o público entenda o que está ouvindo? "Lupercal" é a festa de todos os deuses ou do deus Pan, e só dicionários especiais trazem isso, mas o tradutor bota Lupercais, sabendo que o público não reclamará para não passar por ignorante. Até na Inglaterra, a maioria não sabe o que é Lupercal, mas em inglês não é possível mudar, pois isso seria deturpação do original. Mas em português, será que não se pode em certas passagens, traduzir "you" por "você"? Shakespeare ficaria chocado?

Detectei o seguinte absurdo num livro bem pomposo da Editora José Aguilar, lindamente encadernado, com letras douradas, papel de primeira, ilustrações etc; em "Ricardo II" havia uma profecia em que o herdeiro do Rei seria assassinado por alguém cujo nome começava com a letra G. Resolveram traduzir George, duque de Clarence, por "Jorge" com "J", sobre quem recaíam as suspeitas. Shakespeare tinha armado toda uma trama onde o real assassino era Ricardo, duque de Gloucester. Ricardo não começa com "G", mas seu título sim: Gloucester! O tradutor botou que a professia era com "J". A peça simplesmente perdeu o sentido.

Mas existem muitos exemplos como esse que acabam afugentando o público e realizadores. Vejamos a seguir uma cena de "Hamlet":

Ato III, cena II

Nesta cena o autor usa o personagem (Hamlet dando uma de diretor de cena) e através dele passa sua própria visão da arte de representar, como um "recado" aos atores, o que nos serve até hoje.

A pedido de Hamlet,uma trupe que era o "mambembe" da época, vai encenar uma peça escrita pelo próprio Hamlet, denunciando o assassinato de seu pai.

Hamlet - Digam o que está escrito, eu vos imploro. ("Speak the speach", poderia ser traduzido por "digam o discurso", mas seria confundido com os vários sentidos que tem a palavra "discurso". Refere-se ao conteúdo do texto. Cabe ao ator passar essa intenção. Se o autor se referisse apenas ao texto, teria escrito provavelmente: "Speak the lines".

Hamlet (continuando) - ...articulando com leveza, pois se falarem com afetação, prefiro chamar o arauto da corte para dizer meu texto. ("Town-crier", arauto da corte, que vemos muito em cinema, lendo mensagens, seria o antecessor do locutor de notícias que narra articuladamente, mas não "interpreta").

Hamlet (continuando) - ...Também não fiquem cortando o ar com as mãos; usem-nas com elegância, pois, mesmo numa tempestade ou turbilhão de paixões, é peciso adquirir uma sobriedade que lhes dê fluência. Ah, me ofende a alma, ouvir um camarada todo arrumadinho de peruca, estraçalhando uma paixão como se fosse um trapo, rachando os ouvidos da galera, que só faz barulho e arruaça. ("Galera" pode parecer um termo meio vulgar para Sjakespeare, mas "Groudlings" significa público de mau gosto. Talvez, e por que não, galera?)

Hamlet (continuando) - ...Eu mandaria açoitar esse sujeito por querer exagerar um deus da violência. ("Termagant", como está no original, é nome próprio desconhecido por nós, e não dá para traduzir. É um deus da mitologia árabe, de grande violência).

Hamlet (continuando) - ...por se fazer de mais tirano do que Herodes. Vos peço, evitem isso.

1º Ator - Eu garanto, senhor.

Hamlet - Também não sejam tímidos demais. Deixem-se guiar por sua própria discreção. Combinem ação com a palavra, e palavras com a ação. Lembro especialmente que não ultrapassem a simplicidade da natureza (No original está "modesty of nature", mas "modéstia da natureza" talvez não tenha o sentido do que o autor quis dizer, mas é preferível por sua simplicidade).

Outros exemplos podem ser estudados. Concluindo: talvez o que Shakespeare tenha tentado passar nesta cena, é que arte e cultura não são necessariamente pernósticas.
________________________
Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 123/1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário