sábado, 4 de setembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO X


Nos quinze dias que se seguiram, como já disse, me limitei a ordenar a monumental papelada, ao mesmo tempo em que bebia e sonhava - se bem que os momentos de enlevo fossem curtos, já que trabalhava praticamente dia e noite. Mas ao final do décimo quinto dia, por volta das dez da noite, consegui colocar na ordem certa a última folha. Estava completamente esgotado, com a coluna em pandarecos, e por iso me deitei na cama, só que em sentido contrário, o que me permitiu vislumbrar as estrelas que dançavam num céu imenso. Pouco depois, e para minha surpresa, me percebi avaliando com toda a seriedade a conveniência ou não de me suicidar.

Sim, pois a situação em que me encontrava não oferecia nenhuma perspectiva animadora. Estava naquele lugar a dezenove dias e dentro de onze, com a chegada do trem, teria que deixá-lo. Neste curto espaço de tempo, ainda que trabalhasse febrilmente, avançaria muito pouco na história de Ambrosina e uma vez longe dali, não sei se teria ânimo para levá-la adiante. O que de início tomara por missão transformara-se em pretexto para ficar perto de irmã Geovana, que, diga-se de passagem, contrariando brutalmente a expectativa que me levou a flutuar pelos corredores e a tomar o porre homérico, não me fez uma única visita ao longo desses quinze dias. E tampouco solicitou minha presença em seu gabinete. Portanto, as conjecturas sobre a minha extinção como indivíduo, eu as fazia por intuir que não veria mais aquela que se tornara a grande motivação de minha vida.

Às onze em ponto, a decisão estava tomada: me mataria naquela mesma noite. Restava apenas decidir o modo através do qual deixaria este desgraçado mundo. Após avaliar algumas possibilidades, decidi que cortaria os pulsos com a lâmina de barbear e me deitaria na banheira, não sem antes rabiscar em todas as paredes - e com meu próprio sangue! - os motivos que me haviam levado ao derradeiro gesto. O único problema consistia em encontrar uma frase que pudesse sensibilizar irmã Geovana, sem contudo lhe causar remorsos, já que a ela, obviamente, dedicaria meu epitáfio. E mais: teria que ser uma frase curta, se desejava mesmo repetí-la por todo canto. Foi então que me invadiu uma certa angústia, pois por mais que desse voltas não via como sintetizar em poucas palavras um sentimento tão avassalador - é curioso observar que a feitura de tal frase passou a me inquietar bem mais do que a iminente perspectiva de acabar com a própria vida...

Em todo caso, e após tremendos esforços criativos, cheguei às seguintes alternativas:

Prefiro o Hades a viver sem teu amor.

Para os braços da eternidade marcho, já que para os teus não pude marchar.

Ah...se em vez de um hábito tivesses escolhido vestir o meu amor.

Aguardo-te no além, como Tristão a Isolda.

Doce e delicada pomba que em meu pombal não quis se aninhar.

Irmã querida, custava teres requerido a Deus o teu divórcio?

Mas acabei renunciando à construção premeditada da tal frase e passei a acreditar que a grandiosa, perfeita e insubstituível surgiria - caso surgisse - no exato instante em que o ato fosse consumado. Sim, já com o sangue escorrendo e o futuro traçado. Se realmente imenso era o meu amor, maravilhosa haveria de ser a pixação sangüínea!

Satisfeito, me abstraí de tudo e fixei o firmamento, que parecia conhecer meus planos e resolvera me prestar uma última homenagem. De fato, nunca contemplara noite tão esplendorosa. As estrelas variavam tanto sua intensidade luminística que poderiam ser confundidas com fogos de artifício. Quanto à lua, esta se intrometia em meu leito, como a querer bisbilhotar a iminente materialização de um grande amor. Pouco a pouco, e de forma quase que imperceptível, fui ficando triste. Afinal, eu contemplava um extraordinário espetáculo de celebração da vida já com a decisão tomada de deixá-la. E a consciência de que a natureza voltaria a produzir incontáveis festas semelhantes, às quais eu não assistiria, começou a balançar minha decisão de acabar com a vida. Foi, portanto, sem nenhuma surpresa que, de repente, me surpreendi aos prantos, dividido entre seguir vivendo sem aquela a quem tanto amava ou acabar com tudo de uma vez.

A primeira hipótese pode parecer mais simples, mas na realidade não era. Havia vivido 25 anos da forma mais idiota possível - sempre solitário, carente e sem esperanças. Se não tivesse conhecido irmã Geovana, poderia viver outros 25 anos da mesma maneira. No entanto, tendo vivenciado a insuperável experiência de me apaixonar por um ser extraordinário, é claro que meu padrão de exigência se modificara. É a tal história: se na merda vives, a ela te habituas. Mas se te é dada, nem que seja por um fugaz momento, a oportunidade de experimentar algo que transcenda tua própria miséria, quando a ela retornas ela se afigura como intoleravel!

Quanto à segunda alternativa, ela me seduzia sobretudo porque evitaria os terríveis sofrimentos pelos quais teria que passar, caso me decidisse pela primeira. Sendo emocionalmente um desastre, acabaria me tornando um zumbi patético e sendo confinado num manicômio. Estava, portanto, acossado por essas duas forças antagônicas quando o relógio do convento soou as doze badaladas. Lembrei-me, então, do velho Machado e do seu pavor da meia-noite. E ele tinha razão: é uma hora que apavora! Talvez por isso tenha corrido até o parapeito da janela e nele me sentado: bastaria, a partir dali, escorregar até o pequeno telhado, dar três passos e tudo estaria acabado. Mas a visão do negro pátio me fez estremecer e a tal ponto que voltei a cabeça na direção do quarto. Imediatamente, percebi que havia nele mais alguém, imóvel, postado junto à porta.

- Quem é você? - gritei. - Mas seja quem for, agora é tarde. A decisão está tomada. Quero morrer como sempre vivi: sozinho. Saia!!!

Mas o vulto, ignorando a ordem recebida, começou a se aproximar. Quando chegou naquele ponto do quarto que a lua banhava, reconhecí-o de imediato: era irmã Geovana!? Estava séria e seus olhos brilhavam intensamente. Sem saber o que fazer, eu a olhava magnetizado. Finalmente, ela disse:

- Feliz aniversário, Gabriel...- e após depositar em minha cama um pratinho com um pedaço de bolo, desapareceu tão misteriosamente como havia surgido.

Fiquei ainda um bom tempo sem conseguir realizar nenhum movimento, mas minha cabeça dava voltas. Como pudera me esquecer de que completara 26 anos naquele dia? Irmã Geovana o lembrara - ela teve acesso aos meus documentos, lembram-se? - e não contente viera me desejar felicidades. Mas por que o fizera? Ela sabia, tinha que saber que sem ela eu não poderia ser feliz. Assim sendo, como interpretar seu gesto, de matar de inveja ao mais despudorado autor de folhetins? Será que me acenava com alguma esperança? Eu não saberia dizer. Mas o que importa é que este acontecimento encheu de luz o meu espírito. Assim, com o coração novamente transbordando de júbilo, degustei lenta e amorosamente a deliciosa torta de nozes até a última casquinha. Depois, bebi pelo gargalo o resto de groselha que havia numa garrafa e com o infinito festejei, durante toda a madrugada, o renascer de uma esperança que já acreditava perdida.

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