quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Deus da carnificina"

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Com a lama até o pescoço


Lionel Fischer


Dois garotos de onze anos, que estudam na mesma escola, um dia resolvem ir às vias de fato. Um deles leva a pior e tem dois dentes quebrados, fruto de uma paulada. Em função do incidente, os responsáveis pelos garotos se encontram na casa do agredido para tentar encontrar alguma forma de reparação. Aos poucos, porém, o foco muda para a vida pessoal e profissional dos casais, e a convencional polidez do início cede lugar a embates cuja virulência por muito pouco não descamba para agressões físicas.

Eis, em resumo, o enredo de "Deus da carnificina", de Yasmina Reza, que entrou ontem em cartaz no Teatro Maison de France. Emílio de Mello assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Orã Figueiredo (Michel Hortiz) e Deborah Evelyn (Verônica, sua esposa) - pais do menino agredido - e Alan Reis (Paulo Betti) e Julia Lemmertz (Annette).

Num texto inserido no programa, a autora diz o seguinte: "Não acredito que o ser humano seja pacífico. Penso que ele não evolui desde a Idade da Pedra e que o verniz social que nos protege da selvageria é inquietantemente suave e sempre a ponto de estourar. Eu escrevo um teatro de tensão, porque as tensões nos governam. Meus personagens são pessoas educadas que pretendem manter a compostura. Mas como são também impulsivos, não conseguem manter as regras que impuseram a si mesmos. E é precisamente essa lutra contra si mesmo que me interessa. Minhas obras sempre foram consideradas comédias mas penso que são tragédias divertidas. Mas tragédias, ao fim..."

Diante do acima exposto, só me resta concordar inteiramente com a lúcida visão da autora sobre sua obra. Todos sabemos que uma salutar convivência em sociedade implica, não raro, na representação de papéis que não correspondem exatamente aos nossos "personagens". No entanto, dependendo das circunstâncias, todas as máscaras acabam por cair, exibindo a verdadeira face que até então ocultavam. E quando isto se dá, o que vem à tona é a essência de cada um de nós, os aspectos mais sombrios, violentos ou intolerantes - dentre muitos outros - de nossa até então agradável personalidade.

Isto posto, cumpre ressaltar a extrema habilidade da autora na construção da ação, fazendo-a caminhar aos poucos para o ponto que deseja. E tal mérito se dá a partir da criação de ótimos e singulares personagens, que através de maravilhosos diálogos - ora impregnados de humor e ironia, ora repletos de mágoa e incontida virulência - vão possibilitando ao espectador apreender o que de fato está em causa. Ou seja: a briga entre os meninos passa a ser irrelevante, e deve ser encarada apenas como mola propulsora de embates muito mais graves, que destróem as aparências e nos mostram o homem como ele realmente é.

Aliás, em um de seus poemas, Bertolt Brecht diz o seguinte: "De que serve, com a lama até o pescoço, manter limpas as unhas nas pontas dos dedos?". Os dois casais tentam manter limpas as respectivas unhas, mas já estão completamente atolados na lama que eles próprios criaram. E como devem ser encarados como símbolos de nossa sociedade atual, a esta cabe tomar providências urgentes, pois do contrário muito em breve nem as pontas dos dedos serão visíveis.

Com relação ao espetáculo, Emílio de Mello impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. Enquanto a peça transcorre de uma forma, digamos, hipocritamente civilizada, os personagen agem em sintonia com essa hipocrisia. Mas quando as máscaras começam a descolar, então o encenador parte corajosamente para marcações que cada vez mais enveredam para o descontrole, a violência e a histeria. Sem dúvida, um trabalho brilhante, certamente um dos mais expressivos da atual temporada.

Quanto ao elenco, e mesmo correndo o risco de parecer (ou ser) monótono, torno a afirmar o que já disse tantas vezes e me parece óbvio: nosso país pode carecer de tudo, menos de intérpretes extraordinários. E aqui o quarteto formado por Orã Figueiredo, Deborah Evelyn, Paulo Betti e Julia Lemmertz confirma inteiramente essa minha inabalável crença. Valorizando ao máximo as principais características de seus personagens, os quatro intérpretes conferem especial grandeza à dificílima arte de representar, o que me leva a desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem esta imperdível montagem e permitam que cumpra longa e merecidíssima temporada.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo e irrestrito entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Eloísa Ribeiro (tradução), Flavio Graff (cenografia), Renato Machado (iluminação), Marília Carneiro (figurinos), Marcelo Alonso Neves (música original e projeto de som) e a equipe de produção, formada por Cinthya Graber, José Carlos Furtado, Nacho Laviaguerre e Adriana Zonis.

DEUS DA CARNIFICINA - Texto de Yasmina Reza. Direção de Emílio de Mello. Com Orã Figueiredo, Deborah Evelyn, Paulo Betti e Julia Lemmertz. Teatro Maison de France. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.

2 comentários:

  1. Realmente,o espetáculo é de uma grandeza estonteante.Os quatro atores são magníficos, a direção perfeita e a história envolvente.

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  2. Nossa, os quatros atores dão show de interpretação, uma tragédia comica hilária !

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