segunda-feira, 25 de abril de 2011

O caso do espelho e
O caso do sapato

Domingos Oliveira


          Conta a lenda que uma grande atriz brasileira representava um vaudeville no qual, em certa cena, se olhava num espelho de mão. Durante os ensaios essa atriz recobriu o espelho com um pedaço de jornal, recortado em forma oval. Na estréia, o contra-regra retirou o jornal. Qual não foi sua surpresa quando, entre um ato e outro, foi eloqüentemente repreendido pela grande atriz: "Meu filho, pelo amor de Deus, assim você me estraga a representação! Eu estou em cena, olho o espelho e, de repente, vejo minha cara? Não posso, eu não estou com a minha cara no personagem! Assim você me atrapalha..."

           Conta a lenda que um grande ator russo (Tchecov) ensaiava uma peça de seu irmão dramaturgo, Anton Tchecov, na qual fazia o papel de um aristocrata decadente. Apesar de sua grande categoria profissional, o ator estava sofrendo muito, não conseguia resolver o personagem: "Não consigo. Se trabalho seriamente sobre o aristocrata, pouco a pouco perco a decadência. Se trabalho sobre a decadência, vou imperceptivelmente perdendo a aristocracia! Estou desesperado, num beco sem saída".

          Foi quando surgiu Stanislavski para fazer-lhe uma visita. Numa conversa de camarim, o grande ator confessou sua angústia ao grande diretor. Stanislavski, numa tirada digna de Sherlock Holmes, retrucou: "É simples a solução. Faça um buraco na sola do sapato".

          E assim fez o ator, com o auxílio de um canivete. Um buraco na sola do sapato direito! Um buraco que ninguém percebia, nem o colega, nem os espectadores. Mas que ele sabia que tinha! Um buraco no sapato que não lhe permitia cruzar as pernas com a mesma impunidade. Um homem não anda da mesma maneira quando sabe que tem um buraco no sapato...Não fala, não pensa do mesmo jeito, pois sabe que, embora ninguém o perceba, seu sapato está furado! E assim ficou resolvida a interpretação. Através de um buraco na sola do sapato.
          
          Um grande amor não pode sobreviver sem que haja segredos entre os amantes, assim como os há entre o céu e a terra. Do mesmo modo, deve haver segredos entre o personagem e a pessoa do ator que o concretiza.
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Extraído de Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro (Coleção "Documentos". MINC/INACEN)

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