segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"Jacinta"

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Delicioso tributo ao teatro



Lionel Fischer



Consta que ela seria a pior atriz de todos os tempos. Em termos estritamente lusitanos, não cabe a menor dúvida - segundo renomados e desconhecidos historiadores, após uma apresentação na corte, em meados do século XVI, ela provocou a morte da rainha, que sucumbiu ao vê-la interpretar um poema de Gil Vicente. Sempre acossada pela fome e por uma desesperada ânsia de aplauso, Jacinta cruza o Atlântico e chega ao Brasil, onde dá prosseguimento à sua saga, repleta de passagens rocambolescas. 

Isso posto, caberia a seguinte reflexão. O texto tem, como figura central e magnífica, a patética e desvairada dama que persegue, com férrea obstinação, um sucesso que dificilmente alcançará. Mas seria ela a real protagonista? Ou o protagonista seria o próprio teatro? Em minha opinião, o que está realmente em causa é a sagrada e milenar arte teatral, aqui trabalhada de forma sensível, comovente e hilária.

A partir do original escrito por Newton Moreno, Aderbal Freire-Filho e Branco Mello (em parceria com o autor) criaram a comédia-rock "Jacinta", em cartaz no Teatro Poeira. Aderbal Freire-Filho assina a direção, Branco Mello a direção musical, Mello e Emerson Villani respondem pelas músicas e Newton Moreno e Aderbal pelas letras das treze canções.

No elenco, Andréa Beltrão vive a protagonista, tendo como parceiros Augusto Madeira, Gillray Coutinho, José Mauro Brant, Isiio Ghelman e Rodrigo França, que se dividem em uma infinidade de personagens. Na parte musical, o grupo Os Jacintas, composto por Maurício Coringa (guitarra, violão e bandolim), Tássio Ramos (baixo), Ricardo Rito (teclados) e Hélio Ratis (bateria). 

Como disse acima, em minha opinião o grande personagem desta deliciosa comédia-rock é o teatro. Ela aborda um sem-número de questões inerentes ao fazer teatral, tais como talento, vocação, carências, fragilidades, aprendizado, recomeço, renúncias, variadas formas de sujeição, a inarredável crença de que as coisas acabarão dando certo etc. 

Como todos sabemos, Galileu teve que se ajoelhar perante a Santa Inquisição, mas nem por isso a terra deixou de girar em torno do sol. E o mesmo se dá com aqueles que merecem ser chamados de "atores" - atores do palco, bem entendido. Não há derrota que os faça desistir, posto que conscientes de que só pode usufruir a luz aquele que conheceu as trevas. E os verdadeiros atores também sabem que todo adeus contém em si a promessa de um encontro futuro - o que se julga perdido num determinado momento, pode ser reinventado amanhã. Jacinta talvez não tenha talento, no sentido óbvio do termo. Mas possui algo que o transcende: sua inabalável crença de que só o teatro permite um visceral encontro entre os homens. 

Bem escrito, contendo ótimos personagens e uma trama que encanta por sua fantasia e inusitadas situações, "Jacinta" recebeu maravilhosa versão cênica de Aderbal Freire-Filho, tanto no que concerne à criatividade das marcações quanto no que diz respeito à forma como brinca com a estrutura teatro dentro do teatro. Sob todos os aspectos, uma brilhante, divertida e comovente festa em homenagem ao teatro, regada a excelentes canções a partir de letras saborosíssimas.

Com relação ao elenco, Andréa Beltrão demonstra uma vez mais seu inconcebível talento. Mencionar seus vastíssimos recursos expressivos, a esta altura, me parece irrelevante, posto que os mesmos já são de há muito conhecidos. Assim sendo, opto por me centrar na inteligência de suas escolhas. Andréa jamais envereda pelo caminho mais fácil, previsível e que já sabe que domina. Pelo contrário: trabalha sempre no risco, recusando-se a se tornar uma espécie de parasita de suas próprias conquistas. E sua composição de Jacinta é uma verdadeira aula de como se fazer comédia sem lançar mão de abomináveis e defasados truques. Vou tentar esmiuçar um pouco o que acabo de dizer.

Os que conhecem minimamente a arte de representar sabem que deve haver total sintonia entre corpo e voz, ou seja, tanto os gestos como a forma de dizer o texto devem constituir uma unidade indissociável. Não basta, portanto, ter ótima voz (Andréa a possui) ou um corpo capaz de obedecer a diferenciados estímulos (Andréa faz o que quer com seu corpo). É preciso que tais recursos sejam trabalhados de forma a expressar um determinado caráter, em toda a sua complexidade e amplitude, sem se desprezar qualquer detalhe. E aqui, dentre muitos outros, menciono dois: a forma como Andréa impõe exacerbado e hilariante descontrole aos seus gestos e a expressão deliciosamente obtusa de seu olhar, sempre que a personagem não entende alguma coisa ou a perplexidade a domina. Sob todos os aspectos, um desempenho que se insere entre os melhores de sua brilhantíssima carreira - cumpre também assinalar que a triz canta muito bem e é charmosíssima quando dança.

Com relação Augusto Madeira, Gillray Coutinho, José Mauro Brant, Isio Ghelman e Rodrigo França, todos também exibem performances irretocáveis e certamente revelam-se parceiros à altura da protagonista, o que constitui tarefa nada fácil, já que Andréa Beltrão é uma intérprete de exceção. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo e a todos agradeço a deliciosa noite que me proporcionaram.

Na equipe técnica, são excelentes as músicas de Branco Mello e Emerson Villani (também responsável pelos ótimos arranjos), o mesmo aplicando-se às letras de Newton Moreno e Aderbal Freire-Filho. Antonio Medeiros responde por figurinos que mesclam, com grande criatividade, o passado e o presente. Como de hábito, Maneco Quinderé ilumina a cena de forma irrepreensível, sendo impecáveis a cenografia e os objetos criados por Fernando Mello da Costa. João Saldanha e Marcelo Braga criaram divertidas coreografias, cabendo ainda mencionar o visagismo de Lu de Moraes, a contribuição na parte de prosódia de Iris Gomes da Costa e a direção vocal de Cris Dellano.  

JACINTA - Comédia-rock de Newton Moreno, Aderbal Freire-Filho e Branco Mello. Direção de Aderbal Freire-filho. Com Andréa Beltrão, Augusto Madeira, Gillray Coutinho, Isio Ghelman, José Mauro Brant e Rodrigo França. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.

    

Um comentário:

  1. Gostaria de apresentar o link para a minha peça A Família Drähm no Recanto das Letras:

    http://www.recantodasletras.com.br/roteirosdeteatro/3988444

    Também tenho o blog www.tudocultural.blogspot.com

    Espero que goste.
    Gustavo

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