Teatro/CRÍTICA
"O corpo da mulher como campo de batalha"
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Dolorosa e comovente valorização da vida
Lionel Fischer
Refugiada bósnia vítima de estupro coletivo, a jovem Dorra está internada em uma clínica e tudo leva a crer que não mais estabelecerá nenhum contato com o mundo exterior, não só em função da violência que sofreu como também pelo fato de estar grávida de um bebê que não admite ter em hipótese alguma. No entanto, através de seu relacionamento com Kate, psicoterapeuta norte-americana que trabalha como voluntária, Dorra vai pouco a pouco renunciando à sua dor e revolta. E graças à sua progressiva consciência de que, apesar de tudo, nada pode ser maior do que a vida, ela se dispõe a renascer.
Eis, em resumo, o enredo de "O corpo da mulher como campo de batalha", de Matei Visniec, em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc. Fernando Philbert assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Ester Jablonski (Kate) e Fernanda Nobre (Dorra).
Um dos aspectos mais interessantes do texto de Visniec diz respeito à trajetória de Kate. Se ela fosse apenas uma terapeuta diante de uma mulher dilacerada, já teríamos material suficiente para o estabelecimento de uma forte relação. Entretanto, Kate é também uma mulher dilacerada, pois sua atividade inicial na Bósnia consistia em trabalhar junto às equipes que abrem valas comuns, aonde corpos das vítimas de execuções em massa foram jogados. Não suportando mais a crueza de uma realidade insuportável, ela pede transferência para a clínica situada entre a Alemanha e a Suíça, na qual passa a se relacionar com Dorra.
Estamos, portanto, diante de duas mulheres terrivelmente marcadas pela guerra, ainda que de maneiras diferentes. E o tratamento acaba funcionando não apenas porque Kate é uma excelente terapeuta, mas sobretudo porque ela também precisa se curar. Isso significa que seu empenho, ainda que de forma indireta, tem também como alvo ela própria. O renascimento de uma está inteiramente atrelado ao renascimento da outra. E quando ambas finalmente começam a se recuperar dos respectivos traumas, é muito provável que os espectadores sintam internamente que, se ainda restam forças, mesmo que ínfimas, é sempre possível recomeçar. Porque a vida sempre vale a pena. Porque a vida é uma dádiva.
Com relação ao espetáculo, Fernando Philbert impõe à cena uma dinâmica que, sem deixar de ser expressiva, prioriza o que de fato importa em um texto dessa natureza: o embate entre as duas personagens. Neste sentido, sua atuação merece ser considerada excelente, já que são irrepreensíveis as performances das duas atrizes.
Na pela de Kate, Ester Jablonski exibe aqui a melhor performance de sua carreira, convencendo plenamente tanto nas passagens em que sua personagem exibe doce firmeza quanto naquelas em que, completamente transtornada, se deixa tomar por todo o horror que sua antiga atividade lhe causava. A mesma eficiência se faz presente na atuação de Fernanda Nobre, que desenha de maneira irretocável a penosa trajetória da jovem que, aparentemente condenada a um destino trágico, consegue finalmente transcendê-lo. Cabe também registrar a ótima contracena entre as duas atrizes e sua visceral capacidade de entrega. Sem dúvida, as atuações de Ester Jablonski e Fernanda Nobre constituem um presente para aqueles que amam a arte de representar.
Na equipe técnica, Alexandre David responde por magnífica tradução, com Natália Lima assinando expressiva cenografia e figurinos em total consonância com o contexto e a personalidade das personagens. Vilmar Olos ilumina a cena com sensibilidade, cabendo ainda destacar a ótima trilha sonora e música original de Tato Taborda, e a impecável direção de movimento de Marina Salomon.
O CORPO DA MULHER COMO CAMPO DE BATALHA - Texto de Matei Visniec. Direção de Fernando Philbert. Com Ester Jablonski e Fernanda Nobre. Sala Multiuso do Espaço Sesc. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.
sexta-feira, 3 de junho de 2016
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