Teatro/CRÍTICA
"Mata teu pai"
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Poderoso libelo contra a discriminação e a intolerância
Lionel Fischer
Antes de entrar no mérito do presente espetáculo, e pensando nos leitores que desconhecem tanto o Mito de Medéia como a tragédia grega "Medéia", escrita por Eurípedes em 431 a.C., vou tentar contextualizar, da forma mais sucinta possível, a realidade da mulher na Grécia naquela época.
Ao nascer, uma menina era muito menos bem-vinda do que um menino. Não tinha acesso a nenhum tipo de educação mais refinada. Mais adiante, não escolhia o marido, função que cabia ao pai. No casamento, era pouco mais do que uma serva do marido. Caso o traísse, e o adultério fosse comprovado, o marido poderia até matá-la. Em contrapartida, o esposo poderia ter quantas amantes desejasse. Em função deste amargo contexto, a terrível discriminação contra as mulheres ganha impressionante dimensão em uma fala (aqui um pouco reduzida) de Medéia dirigindo-se ao Coro das Mulheres na tragédia de Eurípedes:
De todos os seres que respiram e pensam, nós outras, as mulheres, somos as mais miseráveis. Precisamos primeiro comprar muito caro um marido, para depois termos nele um senhor absoluto da nossa pessoa, segundo flagelo ainda pior que o primeiro. Para uma mulher abandonar o marido é escandaloso, repudiá-lo impossível. O homem, dono do lar, sai para distrair-se de seu tédio junto de algum amigo ou de pessoas de sua idade; mas nós, é preciso não termos olhos a não ser para eles.
Isto posto, convém também recordar que, além de sua condição de estrangeira, Medéia sacrificou tudo por Jasão, além de ter-lhe dado dois filhos. Portanto, ao descobrir que estava sendo traída e que certamente seria abandonada, empreende a terrível vingança assassinando as duas crianças, para que Jasão fosse vítima de uma dor inconcebível - para não exaurir o leitor com mais informações, me abstenho de expor a trajetória anterior de Medéia, pontuada por trágicos acontecimentos.
Encerrado o já não tão breve preâmbulo, vamos ao motivo desta análise. "Mata teu pai" é o sexto espetáculo da Cia OmondÉ, em cartaz no Espaço Cultural Sergio Porto. De autoria de Grace Passô, a peça chega à cena com direção de Inez Viana e interpretação a cargo de Debora Lamm, que divide o palco com 13 senhoras, moradoras da região da Gamboa, todas com mais de 65 anos e que formam um coro que, de acordo com o release que me foi enviado, representa uma espécie de inconsciente de Medéia.
A personagem, na atual versão, é uma imigrante que convive com outras imigrantes, advindas da Síria, Cuba, Israel, Haiti e uma paulista - Nelson Rodrigues costumava dizer que a pior forma de solidão é a companhia de um paulista. Com elas reparte suas angústias, de algumas obtendo apoio, de outras rejeição. E que angústias são essas? Basicamente tudo se resume à questão do não pertencimento ao lugar em que se vive, ao papel destinado às mulheres numa sociedade dominada pelos homens e à intolerância.
Em meio a reflexões impregnadas de lúcida ferocidade, a Medéia contemporânea criada por Grace Passô assume uma fortíssima dimensão atemporal, pois se as mulheres de agora já conquistaram um espaço muito mais relevante do que as do passado, ainda assim continuam sendo vítimas de uma infinidade de discriminações. E há que se levar em conta também que, no presente caso, tudo gira em torno de mulheres expatriadas, ou seja, que carregam o estigma, como já foi dito, do não pertencimento, da permanente sensação de viverem em uma sociedade que dificilmente as aceitará plenamente. Finalmente, o texto aborda a decisão desta Medéia contemporânea de cometer o mesmo e terrível ato da mitológica figura, fruto das mesmas circunstâncias - nessa passagem, o ótimo texto de Grace Passô adquire uma potência trágica realmente admirável.
Com relação ao espetáculo, Inez Viana aproveita ao máximo a excelente cenografia de Mina Quental, uma espécie de terra arrasada entulhada de lixo eletrônico - carregadores de celular, baterias, teclados de computador, monitores. Aqui me parece que a ideia da cenógrafa possa ter sido a de sugerir a inutilidade de tanta tecnologia, já que a essencial humanidade não existiria. Em meio a esses destroços, a solidão, a revolta e o desespero da protagonista ganham uma dimensão ainda mais trágica, circunstância que Debora Lamm explora de forma magnífica.
Possuidora de ótima voz, grande expressividade corporal, forte presença e uma inteligência cênica que a faz desprezar as soluções mais fáceis ou as mais óbvias, Debora Lamm exibe aqui a melhor performance de sua brilhante carreira, reafirmando uma vez mais tratar-se de uma das melhores atrizes de sua geração. Quanto ao coro das senhorinhas da Gamboa, todas executam com segurança as tarefas que lhes foram confiadas.
No complemento da ficha técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral - Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni (iluminação), Sol Azulay (figurino), Josef Chasilew (caracterização), Felipe Storino (direção musical), Marcia Rubin (direção de movimento) e Felipe Braga (programação visual).
MATA TEU PAI - Texto de Grace Passô. Direção de Inez Viana. Com Debora Lamm e senhorinhas da Gamboa. Espaço Cultural Sergio Porto. Sábado e segunda, 21h. Domingo, 20h.
terça-feira, 17 de janeiro de 2017
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