quinta-feira, 17 de agosto de 2017

PENSAR O TEATRO NO ESPAÇO DA ARTE


                                                                         DINA MOSCOVICI
                                                                                                                                                                                    Abril, 2008-04-15


Dá o terceiro sinal.  O escuro se faz.  O público silencia e dirige sua atenção para o palco.  Uma tênue luz começa a iluminar a cena, delimitando o contorno onde a ação deverá se dar. Aparentemente, ainda nada acontece.  Há pura espera.  Mas, nossas projeções imaginárias começam a povoar o espaço.  No vazio, as expectativas vão se acentuando.  Talvez, quem sabe, a espera nos cause alguma inquietação.  Movemos-nos, tossimos. Certa angústia, que tentamos dissimular, nos acomodando nas poltronas, é contagiante, repercute na sala.  O silêncio perturba.  É demasiado barulhento.

Felizmente, algo acontece.  Um ator entra em cena.  Sai da sombra e caminha da lateral esquerda até o centro do palco.  Também ele parece perdido, chegado a um lugar estranho que examina olhando em todas as direções. Parece querer marcar território.  Subitamente, a sensação de algum ruído.  Ele escuta no silêncio porque depois de uma pequena hesitação vira-se abruptamente para o fundo do cenário.  É de lá que vem o perigo.  Somos nós e ele, atentos, com a respiração em suspenso.  Foi apenas um susto porque o ator vira-se para o público e nos faz respirar.  Agora, frontalmente, dirige o olhar para algum lugar distante, no vazio. Acena.  Seguramente vê algo.  Daqui a pouco saberemos o que, qualquer coisa que nos assegure na compreensão de alguma realidade.  É sempre assim, desde sempre, esta inquietação na procura de alguma resposta tranquilizadora, apaziguadora de nossas inquietações.

Sabemos que a realidade nunca se apresenta como algo homogêneo e linear, nem dá respostas certas e definitivas.  Em cada época, a cada momento, somos sempre atravessados por novos desafios e desgarramentos que nos remetem à repetição das mesmas perguntas fundamentais sobre nos mesmos, sobre a natureza, sobre a dicotomia com a natureza e sobre o sentido da própria existência. 

Novos planos de imanência se desdobram com novos paradigmas que exigem novo esforço para encontrar novas provisórias respostas.  Mas, nenhuma vai conseguir apaziguar a turbulência avassaladora que nos invade ao querer desvendar o nosso inexplicável existir entre as coisas. Estaremos sempre no vazio do palco, na espera do acontecimento. 

Quem sabe, aparecerá um outro, um outro ator, ou outros, que num jogo de espelhos nos decifrem os porquês de estarmos na espera de respostas.  Condenados a pensar o mundo e a nós mesmos, dilacerados entre o ser mais um ente entre as coisas, estamos permanentemente criando uma espacialidade, um habitat perambulante aonde gestus irão deixando marcas, delimitando territórios.

No princípio, no mais arcaico, um plano mítico, no qual o homem tratava de apropriar-se do mundo, antigas teogonias convivem com os homens, interferindo em seus destinos.  Logo, do discurso mítico, pré-filosófico, um longo caminhar para uma ordenação racional do mundo.  A Filosofia conceituando o intrincado relacionar do homem com a natureza.  

Por outro lado, um universo sensível tratando de possibilitar o desvendar de verdades oraculares, em regiões ontológicas onde só o artista é capaz de tornar visível o invisível.  Aquilo que ele experimenta como sensação toma forma.  É expressividade tornada matéria, num visível que é pura expressividade.  Porque a arte expressa, não representa. 

O ator estará no palco com todo seu corpo, mas também com algo mais que seu corpo. Ele expressa aquilo que viu, mas sua visão inclui todos os sentidos e não apenas o olhar. Assim como na vida: estamos sempre imersos numa visibilidade múltipla, numa transversibilidade dos sentidos, não apenas táteis, visuais, etc., mas de todos os sentidos ao mesmo tempo.  Somos todo o tempo, um corpo que se expressa, um corpo de sensações capaz de ultrapassar os limites de seu próprio contorno. Um corpo que sente e não um corpo que funciona sob uma prévia organização aonde apenas se chegaria a uma simples representação.  Um corpo de intensidades,  no embate entre o aprisionamento e a liberação  do organismo.

Talvez, quem sabe, quando Artaud, em sua obra teórica, se referia ao ator,  estivesse, justamente, apregoando um mais além de uma simples presença corporal, onde  ainda não existissem as intensidades, os impulsos e os afetos. Porque um corpo em que cada órgão tivesse, nele mesmo, apenas, já uma função previamente determinada, seria apenas um corpo empobrecido, sabotado, afastado de suas possibilidades. Incapaz de doar ou de acolher o que a ele se oferece como possibilidade de um porvir criativo.
  
Pensemos o teatro como captação dos conflitos existentes na realidade. Conflitos entre homens e deuses; entre homem e Deus ou entre homens com outros homens. Ou, como no Teatro do Absurdo, a captação de conflitos internos, insolúveis, do homem consigo mesmo.  A cena teatral seria mais uma das maneiras de eternizar o tempo vivido, de possibilitar os encontros e desencontros. De eternizar o efêmero como duração.  De fazer vir à luz alguma coisa que na vida foi apenas pressentida.

A visão de um acontecer às cinco horas da tarde, aparentemente, pertence apenas às cinco horas da tarde, mas, na cena teatral ela pode se eternizar.  Assim como num poema – ‘eram las cinco en punto de la tarde’-, ou como num quadro.  O poeta ou o pintor ao capturar um momento, o retirando do tempo vivido e colocando-o no poema ou na tela, lhe dão eternidade no tempo. Mas, não será esta afirmação apenas uma falácia? 

Aparentemente, o tempo do cotidiano aparece como se fosse sempre atravessado por clichês. O artista teria o poder de transformar estes clichês, estes momentos efêmeros, em singulares e eternos. Mais ainda, na obra de arte estes momentos são sempre os mesmos e ao mesmo tempo diferentes deles mesmos.  Há sempre, na obra de arte, um algo que é sempre igual e ao mesmo tempo diferente de si mesmo.  Uma transitorialidade, um nomadismo que abre mundos para aquele que aprecia a obra lançando-o sempre para mais além da resposta, para uma sempre nova interrogação, num “motus perpetuo”,  sempre chegada e fim de caminho.  Uma cartografia de espaços imaginários que emana da geografia de corpos transgressores que desafiam e duelam com o mundo da razão.
      
No palco, esta geografia corporal se desenha em cartografias com linhas de fuga apontando para múltiplas direções que vão mais além dos limites da cena, denunciando permanentemente que por traz de uma realidade tácita, patente, existem outras latentes, inexpurgáveis.  Há sempre uma abertura aberta para uma nova abertura, um novo conflito que remete a outros conflitos.
     
No Teatro, tudo aquilo que acontece na cena é sempre transitório.  Os personagens entram em conflito na luta pela realização de seus desejos. Desejar é estar na falta, lançar-se na tarefa de possuir o objeto desejado.  Mas, satisfazer o desejo, possuir o objeto desejado, pressupõe, ao mesmo tempo “consumir”, fazer desaparecer o objeto desejado. Mas, o objeto desejado vai reaparecer quando o novamente a sua falta se fizer presente, na presença de sua ausência, como negação. 

Assim, todo desejo se anunciará sempre como desejo antecipado de outro desejo. E, é nesse embate entre diferentes desejos dos diferentes personagens que a obra teatral vai evoluindo no tecido dramático de sucessivos instantes presentes e intensivos. O acontecer no acontecer vai determinar a evolução do drama cênico definindo-o como uma comédia, um drama ou uma tragédia.








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